O cruzeiro de São Bento de Cástris, em Évora. Uma memória devocional do Cardeal D. Henrique

May 29, 2017 | Autor: Francisco Bilou | Categoria: N/A
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O cruzeiro de São Bento de Cástris, em Évora. Uma memória devocional do Cardeal D. Henrique 1 Francisco Bilou [email protected]

Em 1571, no seu monte em Camarões (Almargem do Bispo, Sintra)2 onde se refugia no final da vida, verosimilmente desiludido com a indiferença a que é votado pelo poder régio na pessoa do jovem rei Sebastião3, Francisco de Holanda escreve em Da Fabrica que falece ha cidade de Lisboa, no capítulo VIII (Das cruzes e miliários) o seguinte: «Não deixarei de lembrar mais a V. A. e a esta cidade e reino, que devem ter muito maior cuidado das cruzes de pedra que se põem em os caminhos e lugares públicos, tirando as de pau quebradas e velhas e que muitas vezes ficam sem ser o que são com os braços quebrados, principalmente ao redor d’esta cidade de Lisboa. De que me muito espanto de homens e cidadãos para tanto terem n’isto tanto descuido. Não fez assi o muito catholico e prudentissimo Cardeal vosso tio em a cidade de Evora, que de cruzes de marmore de Estremoz ornou todas entradas e saidas d’aquella cidade, o que não faz Lisboa»4. Ao lembrar Évora e o múnus do Cardeal-Infante D. Henrique, Francisco de Holanda não faz nenhum exercício retórico de circunstância. Pelo contrário, as suas palavras são bem informadas (e talvez calculadas), não só pela reverência devida ao actor político mais importante desse tempo a seguir ao rei (que, de resto, lhe sucederá no trono sete anos volvidos), mas, sobretudo, porque Évora representa para ele a sua segunda pátria. É, de facto, na capital alentejana que Holanda passa quatro anos da sua juventude (de 1533 a 1537), aprendendo com o pai a arte do debuxo e iluminação e, tomando do próprio André de Resende, além do aprendizado das antiguidades, também decerto o primeiro fascínio pela cultura do Mundo Antigo. É este impulso formativo que o leva a Roma, ao círculo erudito de Vittoria Colonna e ao contacto privilegiado O autor agradece a Sylvie Deswarte-Rosa, Rui Mendes e Manuel Branco as reflexões partilhadas sobre o tema. 1

Por todos: PINHO, Joana Balsa de, «A capela do Monte de Francisco de Holanda em Camarões (Almargem do Bispo) - novos elementos», Artis, N.º 9/10, 2010/2011, pp. 225-240. 2

Cf. MOREIRA, Rafael, «Novos dados sobre Francisco de Holanda», Síntria, vol. I-II, tomo I, 1982-83, pp. 623-625. 3

4

VASCONCELLOS, Joaquim de, Francisco de Holanda, Porto, Imprensa Portuguesa, 1929, p. 17.

com o pintor Miguel Ângelo, factos que tão grande influência têm na construção da personalidade do ilustre tratadista português 5. Já coroado pela glória da arte de Roma, é ainda a Évora que Holanda regressa pelos anos de 1544-45, agora e sempre ao sabor da itinerância régia, e aqui vê nesse tempo materializar-se uma obra ao antigo – a igreja do conventinho do Bom Jesus de Valverde –, a qual apetece imaginá-la como resultado de especulações teóricas emanadas do círculo artístico de D. Henrique e onde o desenho do Templo de Baco pode bem ter sido sugestão que ajudou à traça final de Miguel de Arruda (FIG. 1). De facto, a escolha de um partido estético conformado à idealização de um risco de planta centralizada, nichos envolventes, colunata em rotunda e marcação do pavimento de clara intensão neoplatónica, pode não ser só uma mera coincidência formal com o desenho de Holanda trazido de Itália, mas antes uma deliberada actualização do gosto ao antigo segundo modelos reais desenhados in loco. E não se julgue pelo titulatura profana do templo que o seu modelo seja incompatível com um templo cristão e logo destinado a um cenóbio franciscano. Na verdade, já nesse tempo se sabia que o Templum Bacchi fora construído para mausoléu de Constantina, filha do imperador Constantino e adaptado ao rito cristão no ano 1256 na devoção a Santa Constança6. O ter sido um templo antigo extramuros da cidade de Roma parece, enfim, dar crédito a esta hipótese e o ser edificado em honra da filha do primeiro imperador romano cristão, também. Holanda, de resto, bem se esforça para harmonizar a antiguidade clássica aos apertados cânones católicos saídos da Contra Reforma. No caso vertente ele o declara a propósito das cruzes que falecem a Lisboa: em todas elas se deve colocar, à imagem das colunas (miliários), «letras que (ensinem) os caminhos e legoas»7. Mas é evidente que as cruzes, cruzeiros e alminhas não são devedoras, nem na forma nem na substância, a Roma Antiga. São antes manifestações de religiosidade popular, vindas de uma longa tradição medieva de sacralização do espaço, de excomunhão do mal escondido nas encruzilhadas da cristandade, 5

Dessa teoria artística resultaram os tratados: Da Pintura Antigua (1548) integrando os Diálogos em Roma, Do tirar polo Natural (1549), Da fábrica que falece ha cidade de Lisboa (1571) e De quanto serve a sciência do desenho e entendimento da arte da pintura (1571). Paralelamente deixou abundante obra gráfica no Álbum dos desenhos das Antigualhas (1537-1540/64) e De Aetatibus Mundi Imagines (c.1545-1573). Sobre o tema e por todos: DESWARTE-ROSA, Sylvie, «Francisco de Holanda, teórico entre o renascimento e o maneirismo«, História da Arte em Portugal. Lisboa, Publicações Alfa, 1986; As imagens das idades do mundo de Francisco de Holanda, Lisboa, Imprensa Nacional -Casa da Moeda, 1987; Ideias e Imagens em Portugal na época, dos descobrimentos: Francisco de Holanda e a teoria da arte, Lisboa, Difel, 1992. Seguimos a tese de doutoramento de Rogéria Olimpio dos Santos, O álbum das Antiqualhas de Francisco de Holanda, 2015, de quem reproduzimos ainda o desenho do Templo de Baco. 6

7

Vasconcellos, ob. cit., p. 18.

de rememoração permanente do calendário litúrgico e até das obrigações catequéticas diárias. Marcam sítios de sacralidade na periferia dos centros urbanos, pontuando cruzamentos viários, muitas vezes coincidentes com pontos notáveis da paisagem. Descontada esta sua dimensão simbólica e geográfica, é neles, ainda, que se gradua o maior ou menor acatamento a Deus (a máquina inquisitorial tem no acatamento aos símbolos cristãos uma das suas principais fontes de denúncia)8 e, enfim, é neles que se rezam as Avé-Marias quando, vindos dos afazeres do campo, os trabalhadores chegam à cidade depois da hora de véspora… A tudo isto e dando o exemplo de Évora que bem conhece, Francisco de Holanda aporta um outro dado importante: é também através da colocação de cruzeiros de pedra nos principais caminhos de Lisboa que se dignifica o poder e autoridade da capital do reino e se honra a memória dos antigos. Das muitas cruzes colocadas nos principais caminhos à saída de Évora, em tempo do Cardeal D. Henrique, só restam quatro de desigual feição: Cruz da Picada, cruzeiro da estrada da Igrejinha, cruzeiro ao caminho do Espinheiro e cruzeiro de São Bento de Cástris, este último o único que conserva íntegra a sua primitiva forma. Deste em particular discorreremos um pouco mais sobre a sua localização e tipologia. Elevado em peanha de granito de dois degraus, o cruzeiro de São Bento de Cástris tem a expressão de uma coluna dórica constituída por uma base e fuste em granito local rematado por capitel talhado em mármore de rigoroso desenho clássico, tudo encimado por uma cruz volumosa e inscrita (INRI), também marmórea. Este conjunto de três peças totaliza uma altura próxima dos 4 m (possivelmente 3 varas e meia). No «colarinho» do capitel estão abertas 4 capitulares latinas orientadas aos respectivos pontos cardiais: M (a norte); D (a poente); A (a sul); D ( a nascente). Talvez seja mensagem sagrada, mas de difícil interpretação pois não é clara a sequência das iniciais.

Veja–se, a título de exemplo, o processo do pintor Agostinho Rodrigues de Oliveira: «Disse mais, que hauera o mesmo tempo de quatro anos (1673), que estando elle confitente na Igreja da Misericordia da villa de Aljubarrota, chegou a ella hum caixão dentro do qual vinha huma Imagem de vulto de Christo Senhor Nosso que da villa de Santarem enviara o ditto padre Sabastião Barbosa para se encarnar e seruir nos Passos que se havião de fazer na dita Igreja e porque o dito Padre encomendava que quando se tirasse a ditta Imagem fosse com toda a veneração, estavão os irmãos que ahi se achauão em grande duuida como hauia de ser e elle confitente chegando ao caixão o abrio e tomou o Senhor nos braços e o leuou com toda a ligeireza por huma escada asima e o pos na caza em que se hauia de encarnar; e os homens que ahi se achavão prezentes disseram a elle confitente que se espantavam como leuaua com tanta ligeireza a ditta Imagem do Senhor, e elle confitente respondeo que pegaua nella como quem pegaua em huma canastra ou outra couza semelhante»: ANTT, Tribunal do Santo Oficio, Inquisição de Lisboa, proc. 8809, fls. 53-53v. 8

A localização da peça corresponde à conjunção de três factores: a correspondência a uma encruzilhada, a marcação do caminho medieval que ligava Évora ao mosteiro cisterciense e o início da arcaria do Aqueduto da Água da Prata, estrutura arquitectónica de tão assinalável investimento régio começada a erigir nesse preciso local no ano de 1534. Em metros lineares tomados pela antiga estrada de São Bento, o cruzeiro situa-se a 1.890 metros da Porta da Lagoa, valor que não deve representar qualquer simbolismo métrico, aliás, como em todos os outros cruzeiros nomeados, localizados a distâncias muito variáveis da cidade e em nenhuma caso próximo da métrica miliar romana (1.480 m) como sugere Francisco de Holanda para Lisboa. É este património devocional quinhentista um caso de teimosa sobrevivência na área periurbana de Évora, onde boa parte da herança histórica dos períodos medieval e moderno se perdeu irremediavelmente (veja-se, a este propósito o que escrevemos sobre as hortas de Évora). Em todo o caso prova a ancestral ligação da urbe ao seu ager, a forte presença da espiritualidade cristã no espaço público e o papel dos agentes do poder régio no ordenamento da cidade. Em suma, o cruzeiro de São Bento de Cástris, ao qual se pode agora entregar ao mecenatismo henriquino, é mais uma marca da história eborense que dá testemunho da grandeza da cidade no auge da sua afirmação, ela própria encruzilhada de povos e culturas, verdadeiro cruzeiro na paisagem do Alentejo como símbolo maior da identidade portuguesa.

FIGURAS

FIG. 1 Templo de Baco. Francisco de Holanda, Álbum dos Desenhos das Antigualhas. Fl. 22r. Biblioteca do Mosteiro de São Lourenço do Escorial.

FIG. 2 Cruzeiro de São Bento de Cástris, Évora. Foto do autor

Francisco Bilou Évora, primeiro de Outubro de 2016

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