A celebração de Mark Twain em As Aventuras de Huckleberry Finn

November 22, 2017 | Autor: Vera Hanna | Categoria: N/A
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A celebração de Mark Twain em As Aventuras de Huckleberry Finn Vera Lucia Harabagi Hanna1

HANNA, Vera L. Harabagi. A celebração de Mark Twain em As Aventuras de Huckleberry Finn. IN: TWAIN, Mark. As Aventuras de Huckleberry Finn. São Paulo: Ed. Martin Claret. 2013. ISBN: 9788572329385.

A oportunidade que se tem hoje de ler os escritos de Samuel Langhorne Clemens, Mark Twain, mais de um século depois de sua morte (1910) pode ser vista como um passeio pela história, mais especificamente a norte-americana na segunda metade do século XIX pelas vias de clássicos da ficção. O período que marca a Guerra Civil Americana (1861-1865) e as grandes mudanças sociais que a motivaram e a sucederam estão de várias maneiras registradas na obra do autor. Objetos de crítica, encontram-se ali anotados o convencionalismo, o racismo, a hipocrisia caminhando lado a lado com a tradição da democracia americana – elementos que compõem o clima social e político da época esquadrinhados por um aguçado espectador de seu tempo. O caráter cronístico e, em grande parte humorístico de seus textos, revela em As Aventuras de Huckleberry Finn um cotidiano de crianças e adultos que ele mesmo experimentou, em que traquinagens e ingenuidades juvenis combinam-se com uma visão cínica e preconceituosa de adultos externadas num estilo de prosa inédito. A opinião de que Twain transformou a literatura americana quando deu voz a um garoto para contar sua própria história com ‘suas próprias palavras’ - o ‘vernáculo de Huck’ é unanimidade entre seus observadores, a aceitação de que abriu novas possibilidades na ficção de seu país para uma polifonia multicultural, alem do uso que fez da sátira e da ironia como poderosas armas de crítica social, idem. Tê-lo como o iniciador da moderna literatura americana e influenciador de grandes escritores como Ernest Hemingway (1899-1961), que declarou, em 1935, “toda literatura americana tem origem em um único livro chamado Huckleberry Finn”2 e William Faulkner (1897-1962) que o chamou de “pai da literatura americana”, numa entrevista, em 1955, são mostras do reconhecimento da grande influência

1

Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, SP. Pesquisadora no âmbito dos Estudos Culturais em sua interface com o Ensino de Línguas Estrangeiras publica em periódicos e em livros no Brasil e no exterior, no campo dos Estudos Culturais, em questões como Interculturalismo, Identidade Cultural, Hibridização Cultural, Pós-Colonialismo, a partir da reflexão em textos de múltiplas linguagens, em diferentes contextos. 2

HEMINGWAY, Ernest. Green Hills of Africa.[1935]. New York: Scribner. 2002. p. 23.

que exerceu e do caminho que abriu para os grandes escritores afro-americanos do século XX. As aventuras de Huckleberry Finn é livro frequentemente citado como gênese da ‘cor local’ na literatura realista norte-americana na segunda metade do século XIX, traço marcante da ficção que captava a fundo a cultura do lugar, os atributos particulares da comunidade. Estão ali reproduzidos, como num esboço de receituário, os usos, os costumes, como seus componentes pensavam, agiam, se expressavam e compartilhavam ideias. Mark Twain soube captar como ninguém a cor local da região em que nascera; o Mississippi e a representação do cotidiano de pessoas comuns acomodavam-se, na constituição de seus textos, tal qual uma bela composição de um retrato artístico. Em sua prosa ficcional, as pessoas rudes, com pouca ou quase nenhuma escolaridade falam ‘em sua própria língua’, falam a linguagem local, fato que chocou puristas, provocou acaloradas discussões. Reporta nos diálogos o ritmo, o tom, e as variedades vernáculas do inglês americano regional, longe de qualquer paródia, ou caricatura. Twain faz questão de informar os leitores de Huck Finn, em nota explanatória, a respeito dos dialetos em que seus personagens se exprimem - tomada como desvelo ou recurso estético, deve ser percebida, também, como um alerta na recepção do texto, não só para os leitores como para os tradutores que enfrentarão a (in)traduzibilidade do texto. Menciona, como se verificará nas próximas páginas, que lida com “vários dialetos dos Estados Unidos”, “o dos negros do Missouri”, “a forma mais exagerada do da região rural central afastada do sudoeste”, de “Pike-County” atentando para o conhecimento e a seriedade com que foram citados: “Não se basearam as variações de modo aleatório nem hipotético, mas meticuloso e com a orientação e o apoio confiáveis do conhecimento pessoal dessas diversas maneiras de falar.” A nota explicativa primeira que ele assina como “O Autor” e que referenda o uso da ‘linguagem verdadeira’, muito pode ter contribuído para que ocasionasse o impedimento da leitura da obra nos Estados Unidos em épocas diferentes. O motivo da rejeição deve-se ao fato de Twain ser visto como um propagador de linguagem inculta, inapropriada e ofensiva, alem de ter dado voz a personagens que viviam à margem do meio social, como o próprio Huck, um pária pragmático, e seu pai, um bêbado, alem de Tom Sawyer, um menino imaginativo, cheio de eloquência, falaz, Jim, um escravo fugitivo, e a vários delinquentes. Todos ignoravam de alguma forma os costumes, os valores, as leis e normas predominantes

e, concebidos num realismo desconcertante, não eram aceitos pelos

padrões vitorianos.

Justapõem-se às censuras ao uso de dialetos, a moral duvidosa da figura central, o foco no interesse pessoal de diversos personagens, alem das formas de justiça heterodoxas, os linchamentos, o questionamento religioso, o sentimento de não-pertencimento, a busca da liberdade, a aproximação/afastamento da civilização. A verossimilhança dos detalhes que deleitara os primeiros leitores, resultante da perspicácia de Twain, continua até hoje a prender a atenção página após página. Por esse motivo, chega-se à compreensão que a literatura é notadamente impressão de vida, transcreve diferentes sensibilidades em determinados momentos da história podendo ser compreendida como crônica, já que ao ultrapassar a característica primeira de manifestação cultural, expõe uma época e serve para enriquecer o campo de análise histórico com uma dimensão cultural. Se vista como crônica, uma compilação de relatos verídicos que refletem com agudeza e oportunismo, a vida social, a política, os costumes, o cotidiano do seu tempo, pode vir a ser fonte primária de investigação. Como crônica ou literatura, o texto literário sempre abre espaço para questionamentos a respeito da ‘verdade dos fatos’ e das personagens junto às ilimitadas possibilidades de interpretação. É oportuno, assim, lembrar a autobiografia de Mark Twain3 quando discorre sobre a personalidade de Huck. Ele revela que retratou seu amigo de infância, Tom Blankenship, “exatamente como ele era”, ignorante, mas com um coração tão bom como jamais vira; o que mais lhe chamara a atenção, no entanto, fora a irrestrita liberdade que gozava, a felicidade que emanava, fazendo com que

sua companhia fosse

disputada por todos os garotos e sua independência invejada, motivos que levavam os pais a proibirem tal amizade. Confissões à parte e para concluir, é preciso considerar que não importa saber se o texto segue os princípios da exatidão, já que a verdade literária é ‘caleidoscópica’, os fatos se tornam conhecidos não por interpretações isoladas, mas por meio de diálogos contínuos que ocorrem em diferentes períodos de tempo. Desse modo, o critério da verdade transforma-se em ‘verdade do texto’ que, dentro de um contexto, promoverá incontáveis interpretações. Mark Twain parecia concordar com a ideia de que todas as narrações, de certo modo, são interpretações, e que ler obras ficcionais distante do momento em que foram

escritas

demanda um entendimento a respeito do tempo histórico, ou seja, o conhecimento histórico

3

TWAIN, Mark. Autobiography of Mark Twain: The Complete and Authoritative Edition (Mark Twain Papers) Volume 1. Ed. Harriet Elinor Smith et alii. Los Angeles: University of California Press. 2010.p.397.

se modifica em consequência de novas fontes, novos conceitos, novas teorias e pontos de vista - não existe, um passado preciso, idêntico. Assim, ao iniciar o Capítulo 1, “Civilização de Huck – Srta. Watson – Tom Sawyer espera”, o escritor talvez quisesse prevenir o leitor que a literatura não é igual à história, embora ambas tenham o real como referente; afinal, um dos papéis da literatura é exatamente o de levantar dúvidas sobre a ‘história real’. Num misto de aviso e justificativa avisa, Você não sabe quem eu sou se não tiver lido um livro intitulado As Aventuras de Tom Sawyer, mas não tem a menor importância. Esse livro é da autoria do Sr. Mark Twain, o qual narrou em essência a verdade. Embora exagerasse algumas coisas, na maioria das vezes contou a verdade.4 Isso nada significa.

As Aventuras de Huck Finn é um livro que permite uma leitura com se fosse uma espécie de documento, o testemunho de um garoto que nos leva para bem longe no passado e nos faz pensar sobre o presente.

4

Grifos da pesquisadora.

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