A Teoria Geral Do Direito e o Marxismo

July 22, 2017 | Autor: Leandro Forner | Categoria: Marxismo
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E. B. PASUKANIS 1891-1937

A TEORIA. GERAL DO DIREITO E O MARXISMO Tradução, apresentaçao, índice e notas por · PAULO BESSA

RENOVAR

Todos os direitos reservados à LIVRARIA E ·EDITORA RENO VAR LTDA. Rua da Assembléia, 10/1.417 - 20011 - Centro Rua Almirante Baltazàr, 56-A - 20940 - São Cristóvão Tel.: 232-9205 -Rio de Janeiro - RJ

SUMÁRIO

A Teoria Geral do Direito e o Marxismo E. B. Pasukanis © .da tradução: Paulo Bessa Apresentação/

Produção editorial Antonio Cordeiro Filho

PREFACIO DA SEGUNDA EDIÇÃO RUSSA/

Revisão tipográfica José Adriano Monteiro de Moraes e Cristina Lopes de Oliveira Capa Júlio Cesar Gomes Composição Linolivro S/C Composições Gráficas

Pasukanis, Eugeny Bronislanovich, 1891-1937 A teoria geral do direito e o marxismo I E. B. Pasukanis I trad., apres. e notas por Paulo Bessa. - Rio de Janeiro, Renovar, 1989.

1. Direito, teoria geral. 2. Marxismo. I. Título. CDU 340.11

Proibida a reprodução (Lei n.0 5.988/73) Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Introdução AS TAREFAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO/

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Capítulo Um . OS MÉTODOS DE CONSTRUÇÃO DO CONCRETO NAS CIÊNCIAS ABSTRATAS/ 31 . Capítulo Dois IDEOLOGIA E DIREITO/ Capítulo ·Três RELAÇÃO E NORMA/

FICHA CATALOGRAFICA

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Capítulo Quatro MERCADORIA E SUJEITO/ Capítulo Cinc.o DIREITO E ESTADO/ Capítulo Seis DIREITO E MORÀL/

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Capítulo Sete DIREITO E VIOLAÇÃO DO DIREITO/

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lndice Onómástico/ 167 Breve Notícia Biográfica de Alguns Autores Citaqos/ Termos Latinos Citados/ 175

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.,,, Dedicada a Edmundo Moni:z, marxista.

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1. Introdução Geral- A Teoria Geral do Direito e o Marxismo é uma das primeiras tentativas de compreensão do fenômeno jur~dico utilizando-se o instrumental te6rico fornecido pelo Materialismo Hist6rico. Pasukanis, juntamente com Stucka e Gojchbarg, buscou elaborar uma teoria científica do Di· reito que servisse de ferramenta para · a construção do socialismo, levando em conhl o papel· que o· Direito poderia desempenhar nesta nova ordem. Eugeny Bronislanovich Pasukanis realiza sua investigação partindo ·do pressuposto que o Direito é uma forma necessária da sociedade capitalista e que surge em conseqüência de um determinado nível de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais daí decorrentes. Vale observar que a formulação te6rica estruturada pelo juristlz bolchevique foi realizada em período de intensa luta política e no qual Pasukanis exercita o elevado cargo . de Vice-Comissário do Povo 'para a justiça (Stucka era o Comissário do Povo para a justiça) e, portanto, desempenhava relevante função no organograma do novo Estado Soviético e na modelagem dos princípios e 'institutos de uma ordem jurídica revolucionária. Assim, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo · possui um inequívoco sentido prático e de polêmica politica contra os juristas burgueses e de discussão fraterna entre os camaradas do partido que tinham tarefas a serem cumpridas na área do Direito. Este duplice conteudo da obra que ora sé apresenta torna-a extremamente viva e fascinante. Vale notar.• em favor do livro, que este era destinado a ser um trabalho

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pessoal de Eugeny Bronislanovich e não um documento para publicação ou destinado ao grande público. Apesar disto, as edições do trabalho se têm sucedido através . dos tempos e sempre alcançado incontestável êxito. Ainda que· com enfoques e objetos extremamente diversificados, A Teoria Geral do Direito e o Marxismo está no mesmo nível que as grandes obras de doutrina política e jurídica, tais como as de Locke, Rousseau, Hobbes e outros. O método empregado é o que vai em busca das generalidades do Direito e daquilo que há em comum entre os vários sistemas jurídicos e as suas junções concretas no interior do Modo de Produção Capitalista. Marx, em relação à Economia Política, buscou as categorias econômicas, isto é, os elementos mais simples e que na sua simplicidade continham a condensação das leis principais da Economia. Foi a partir da mercadoria, do valor, do preço que Marx pôde estabelecer e compreender as regras básicas e universais da Economia Capitalista. Como Marx, Pasukanis buscou certificar-se das leis fundamentais do direito na sociedade capitalista. Assim, ele busca desvendar as categorias básicas do Direito, isto é, aquelas encontráveis em qualquer ordenamento jurídico burordenamento específico. Avançando na guês e não em trilha aberta pelo autor de O Capital, Pasukanis desvenda as categorias sujeito de direito, pessoa, contrato, etc., e a partir da constatação do papel específico desempenhado por estas categorias no interior da ordem jurídica burguesa ele parte em sentido de construir uma teoria do Direito Público, do Direito Penal, etc. Assim, em A Teoria Geral do Direito e o Marxismo estão claramente tipificadas as implicaçóes que decorrem para todo o direito no momento em que dois sujeitos de direito se encontram no mercado para celebrar um contrato. O ato de contratar, este momento es!:encial para o Capitalismo, é, portanto, o ponto central do Direito burguês. A forma jurídica tem por finalidade precípua estabelecer e mediar os vínculos entre dois agentes econômicos que se pdem em contato no mercado. Esta intermediação, efetuada pelo Direito, 'com o estabelecimento de regras ·e de garantias reciprocas, é a relação jurídica que irá se desenvolvendo e

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desdobrando em conformidade com a complexidade posta pelo nível de desenvolvimento das relações econômicas e sociais. A relação jurídica e as suas conseqüências têm, portanto, um papel fundamental na organização da Economia Capitalista, que é exatamente o de permitir e estimular a circulação de mercadorias . · E· a partir das necessidades concretas postas pelo Modo de Produção Capitalista que o Direito burguês irá cons' truir Úma de suas categorias fundamentais, que é a igualdade. O Capitalismo exige que todos se encont11em no mercado em estrito pé de igualdade. A. igualdade jurídica é a contrapartida lógica e necessária da desigualdade econ8mica. A diferença entre o Capitalismo e os outros sistemas econômicos é que; embora todos aqueles que o precederam tivessem; em sua es~ fera produtora, situações ,desiguais, estas, ao nível político e "jur~dico", não eram encobertas. A desigualdade foi a tônica do escravismo, do feudalismo, etc. fá no Capitalismo às coisas se operam- de fÓrma diferente, a proeminência do mercado e a necessidade de reprodução, ampliação e circulação do Capital impõem uma representação política totalmente diferenciada daquelas dos modos de produção anteriores. A separação entre produtor direto (proletário) e produtor indireto (proprietário dos meios de produção) deve ser transformada juridicamente em igua 1dade entre vendedor e comprador. O Modo de Produção Feudal; com seus entraves à livre circulação de mercadorias - e mesmo a sua produção em escala-diminuta - , dispensava inteiramente a igualdade entre os homens, uma vez que as suas leis internas eram de outra natureza . A agilidade de aquisição e aliena--çáo não. era uma condição necessária à sobrevivência e reprodução do sistema. A · burguesia contestou a "propriedade feudal" não devido ao fato desta ser "feu,dal" mas em razão de' que os gravames, taxas e impos~ tos que -a marcavam tornavam-na extremamente petrificada e com escassa capacidade de rápida c;rculação. Para Pasukanis ~ esta mobilidade e os institutos juridicos que a significam que constituem o que ele denomina "forma jurídica". Entende o jurista soviético que estas são características fup.damentais e essenciais .do Direito, sem as quais não. há Direito. Daí porque o autor em questão só reconhece a existência do direito no Capitalismo, ou seja, o direito é uma forma essencialmente.

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burguesa e capitalista O Feudalismo, dispensando os mecanismos -econômicos capitalistas, dispensava o direito; eiJZ conseqüência, o Estado, estrutura responsável pela sua articulaÇão social, era, destarte, igualmente .desnecessário. Em realidade, assiste plena razão ao autor, uma vez que falar-se em "Direito Feudal" é forçar determinado conceito ao extremo. Sabemos todos que, no Feudalismo, vários "or-denamentos jurídicos" se confundiam e que cada Estado social tinha as suas regras próprias, inaplicáveis aos outros Estados, além das diversas jurisdições paralelas (Eclesiástica, Comercial, do Rei, dos Nobres, etc.). Por oposição, verifica-se que mttra característica do Direito burgu'ês é a existência de aparelho gerador e aplicador centralizado: o Estado. Tal questão ressai bastante óbvia na construção dos Estados Nacionais e na própria incapacidade do Estado absolutista em contémplar os anseios burgueses {políticos e econômicos) de liberdade e sustentar a continuidade dos privilégios aristocráticos. A contradição interna do Estado absolutista foi resolvida com a maré revolucionária dos séculos XVIII e XIX, e com a implantação do Estado burguês de Direito, que é a forma privilegiada da dominação burguesa.

obras, ditas do "jovem Marx", começam a elaborar uma proposição teórica que será aprofundada e cristalizada em O Capital. Em sua obra mais fundamental, Marx examina, em especial, o contrato e os s.eus elementos constitutivos como· instrumentos básicos de reprodução do capital. Não escapou à observação do autor do 18 Brumário de Luis Bonaparte a legislação repressiva adotada pela Inglaterra,. visando a compelir os camponeses expulsos dos campos a se engajarem na produção industrial. Possivelmente é neste ponto de suas pesquisas que Marx mostra com mais crueza e força o verdadeiro significado do Direito burguês. E na legislação referente ao trabalho e ao operariado que se pode aquilatar o conteúdo concreto dos slogans burgueses de liberdade e igualdade.

2. Marx "jurista" Tendo estudado em profundidade a Economia Capitalista, Marx não poderia ter deixado de examinar um elemento que é conseqüência desta mesma economia, isto é, o Direito burguês. As análises que· Marx fez sobre o Direito· não foram sistemáticas, uma vez ·que ele jamais se dedicou especificamente a enfrentar o problema jurídico . O Direito para Marx é objeto de análise na medida em que os seus institutos se·rvem para organizar e reproduzir o Modo de Produção Capitalista. Assim, o autor ·de O Capital jamais se preo-cupou com filigranas ou questiúnculas tão ao~ gosto dos "juristas". O Prefácio e a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, a Crítica ao Manifeslo da Escola HistóriCa, as Anotações sobre a Regulamentação da Censura Prussiana, A Crítica Moralizante e a Moral Crítica, a análise do Julgamento dos Lenhadores, a Ideologia Alemã (escrita em colaboração com Engels) são leituras obrigatórias, dentre outras, para aqueles qúe queiram compreender o pensamento. marxiano sobre o Direito. Estas

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Não resta dúvida que, não obstante as várias páginas que Marx dedicou aos temas jurídicos, foi em relação ao Estado que ele teve oportunidade de avançar com mais firmeza e deixar uma teoria mais acabada. Foi a partir de sua intensa prática política que Karl Marx pôde desvendar as características chaves do Estado como aparelho de classe destinado a assegursar uma determinada ordem política e um determinado padrão de acumulação de Capital. A obra marxiana dedicada aos estudos do Estado é bastante vasta e nela podemos vislumbrar dois momentos extremamente importantes, que podem ser identificados com o 18 Brumário de Luis Bonaparte e com As Lutas de Classes em França. No primeiro trabalho é analisada em profundidade a ascensão de Napoleão li/ ao governo e a maneira pela qual ele jogou com as contradições de classe para colocar-se acima das mesmas, na forma de um árbitro, e empolgar o poder com astúcia. já em As Lutas de Classe em França não é mais para o Estado burguês que Marx dirige a sua observação crítica, mas sim em ·direção à luta revolucionária do· proletariado da Comuna de Paris. Foi a partir daquela experfência revolucionária concreta que Marx teve a. possibilidade de estabelecer as ltnhas básicas da futura organi- ' zação do Estado socialista e de seus princípios fun-damentais. Também quanto às características básicas do. Estado socialista deve ser consultada a Crítica ao· Programa de Gotha, na qual o corifeu da Práxis polemiza com os dirigentes do Partido So·

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cial Democrata Alemão quanto à natureza de suas consignas, em especial as referentes ao Estado popular. Marx demonstrou que o Estado popular postulado pelos socialistas alemães era ainda o Estado burguês, de pouco valendo a adjetivação de popular que, por si só, não descaracterizava-o como instituição tipicamente burguesa, por melhor ·que fossem os propósitos do partido alemão. Os enjrentamentos políticos no interior do campo socialista opuseram Marx a Proudhom naquilo que concerne à concepção da propriedade. O líder político francês, em seu opúsculo denominado O que é a Propriedade?, classifiCa-a como um roubo, desenvolvendo inúmeras considerações sobre a propriedade justa. Marx refuta as teses de Proudhom, sustentando que reivindicar uma propriedade justa e classificá-la como roubo é ipso facto admitir como vál.i·dos os seus fundamentos, pois o roubo é subtrair de alguém algo que lhe pertence, logo reconhecer a propriedade enquanto tal. Como .se pode ver nestas rápidas passagens, o tema Di~ reito sempre· esteve presente 11.a reflexão marxiana. Competenos, a partir do legado do autor alemão, avançar em pontos e questões que foram apenas ventilados na obra do fundador da Economia Crítica. Em geral, houve uma abordagem do tema Direito por todos o.s teóricos do marxismo. O próprio Engels enveredou pelo jurídico, dando especial ênfase ao exame ·da propriedade privada como demonstra um de seus trabalhos mais conhecidos e comentados, que é A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, cujas teses fundamentais são exposadas por Marx. Engels defende o ponto de vista, escudado em pesquisas feitas por Morgan, de que o incremento da divisão so. cial do trabalho e a ·separação entre ·produtor direto e indireto deram origem à necessidade de aparelhos de coerção que fossem capazes de assegurar a reprodução das _relações sociais derivadas da nova ordem econômica. O afastamento progressivo dç humanidade da economia "natural" implicou, portanto, no surgimento .·de superestruturas capazes de articular o econômi~ co, o ideológico e o político em unia nova ordem. O Estado ou seus rudimentos - surge como uma racionalização da violência que se encontra espalhada pela sociedade e' que, se dei-

xada à própria sorte, tende a levar à desestruturação da própria atividade econômica. O Estado é, portanto, a violência organizada de uma classe contra aquelas que lhe são subordinadas. O autor de A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra escreveu, também, textos dedicados à análise do socialismo dos juristas· e outros, que podem ser encontrados no AntiDühring, onde versa sobre Direito e Moral, etc. Lenin, em prosseguimento ao trabalho desenvolvido por Karl Marx, também lançou suas preocupações em. direção ao estudo do Estado (0 Estado e a Revolução) e da função a ser desempenhada pelo Direito em um período revolucionário· e conseqüentemente de um elevado nível na luta de· classes. O Estado e a Revolução é a continuidade lógica do que foi teorizado em As Lutas de Classé em França e em A Crítica do Programa de Gotha, acrescido de toda a experiência teórica e prática acumulada pelo proletariad,o internacional desde aquelas memoráveis lutas. Lenin, como dirigente máximo do Estado Soviético, fazia questão de ressaltar em todas as ocasiões possíveis que era fundamental para o êxito da construção do socialismo que os dirigentes partidários e as massas mantivessem a mais estrita observância à legalidade socialista. O Marxismo, ao contrário do que alega a crítica burguesa e liberal, não é refratário ao .direito e à sua investigação científica. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo é, incontestavelmente, um salto de qualidade nesta área particular do conhecimento mas, como não poderia deixar de ser, continuador de uma tradição já existente na Filosofia da Práxis. É, em realidade, a mais completa e original análise marxista do Direito até hoje realizada .

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3. Alguns As.Pectos Fundamentais de A Teoria Geral do DiO sujeito de Direito é o ponto ao redor reito e o Marxismo do qual circulam todas as categorias jurídicas. E mais, é no sentido dq garantir um determinado tipo de "liberdade" que o Direito tutela os interesses deste mesmo sujeito de Direito que; em essência, são interesses egoísticos que se contrapõem àqueles dos demais membros da sociedade. Em linguagem psicanalí-

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tica poder-se-ia dizer que o Direito prima pelo egocentrismo. . O Direito é o reino do erga omnes, ou, em linguagem popular, do salve-se quem puder. Do ponto de vista econômico, o sujeito de Direito encontra-se .situado no mercado como um agente econômico, isto é, como comprador e vendedor de mercadorias. E a repetição destes atos de compra e venda que constitui a circulação -capitalista de mercadorias. Pàsukanis parte deste ato simples de compra e venda e da circulação para ao longo dos capítulos de A Teoria Geral do Direito e o Marxismo demonstrar quão importante é o Direito para assegurar a reprodução perpétua destes mecanismos fundamentais do Capitalismo. O Direito é o Estado são, aos olhos de Pasukanis, constituídos com o intuito de dar. uma normatização á estas relações econôm_icas e de arbitrar os conflitos entre os diversos sujeitos econômicos que, no instante em que passam a ser· motivo das preocupações do Direito, transformam-se em sujeito .de Direito. A ordem jurídica burguesa, ao resguardar os interesses privados de um capitalista, tem por objetivo resguardar os dos Capitalistas. Pasukanis demonstra que é a partir desta necessidade concreta que se constrói aquilo que veio a ser chamado pelos juristas de Poder Público, ou seja, um poder impessoal e independente de indivíduos particulares com a especifica missão de resguardar a ortlem pública. O Poder Público existe para .garantir os interesses da classe dos_.capitalistas e não os seus interesses privados. A noção de Poder Público, para Pa· sukanis, era totalmente impensável nos quadros da ordem feudal pois, naquela, o .senhor feudal era .a própria ordem era a encarnação pessoal de úm dado conjunto de instituições é práticas. Destarte, era praticamente impossível uma diferenciação entre os interesses privados do senhor e o interesse público. O exerctcio de tarefas que, hoje, se apresentam como tipicamente estatais, tais quais a administração e à aplicação da Justiça, era desempenhado pelos senhores feudais muito mais com a finalidade de alcançar rendimentos do que de "prestar um serviço". O tesouro dos nobres er.a indiferenciado do tesouro do Feudo ou da Marca. As penalidades aplicadas pelas Cortes Feudais podiam, em certa medida, ser substitúídas por valores a serem pagos aos nobres. Pasukanis nos fornece · inúmeros

exemplos e situações tais como as que acabaram de ser referidas. A burguesia, partindo de suas necessidades materiais concretas, iniciou nas cidades a implantação de Tesouros Municipais, não mais geridos no benefício de um grupo ou pessoa, mas com a finalidade de assegurar o gerenciamento de atividades essenciais para a classe dos capitalistas, O Poder Público Municipal, com suas características de impessoalidade, 6 o ponto culminante de um processo histórico que, mais adiante, irá desembocar na edificação dos Estados nacionais. O Estado gendarme, irá marcar a sua intervenção no econômico assegurando a "liberdade" de contratar e compelindo ao trabalho as massas oriundas do campo, conforme nos dá um ótimo exemplo a legislação contra a mendicância que se espalhou por toda a Europa. Hugo van Groot (Grotius), ao longo de seus diversos escritos, demonstrou cabalmente a necessidade da "liberdade" para a expansão capitalista urbi et orbi. O Estado burguês na etapa do capitalismo concorrencial, intervém no mercado como garante da propriedade privada e gerente dos interesses comuns da burguesia. O interesse público é, em realidade, não criar obstáculos ·à expansão dos interesses privados. A sociedade burguesa, como se sabe, não é formada só pela classe .dos burgueses; ao contrário, é uma sociedade dividida e fragmentada em diferentes classes sociais, que ocupam funções diferenciadas no âmbito de produção. O Direito burguês tem que formar mecanismos que possibilitem às diversas classes sociais negociarem no mercado. O · sistema político e econômico feudal não conheceu o indivíduo, mas apenas e tãosomente ordens e Estados sociais; era um sistema fundado na desigualdade e em privilégios. ~ A rapidez necessária para a circulação da mercadoria só pode ser conseguida com a desintegração do sistema de Ordens e Estados e a construção de um ordenamento que não sc fixasse nestes anacronismos feudais. O burguês é, em essência, um sujeito de Direito,· Como já disse Marx, as idéias de uma sociedade são as idéias de sua classe dominante, daí que a representação social dos indivíduos também deve set a re-

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presentação das classes dirigentes. Destarte, o proletário também é juridicamente construído como sujeito .e, em um passe de niágica, burgueses e proletários transformam-se, ambos, em suieitos de Direito. A desigualdade concreta que se verifica no mundo real para o Direito é inexistente . Assim, se retomássemos a linguagem psicanalítica, não seria exagero fala1'mos de esquizofrenia do Direito, uma vez. que o seu mundo não é o real, mas especificamente jurídico - burgueses e proletários, tão diferentes, encontram-se no mercado em igualdade de condições jurídicas. A· compra e venda que .ocorre entre burgueses e proletários é sui generis, é o Contrato de Trabalho. A Força de Trabalho .(mercadoria que o proletário põe à venda no mercado), como qualquer mercadoria, precisa circular, a fim de que o capital reali~e o seu Ciclo. O proletário vende a sua forfa de trabalho em . troca do salário, mediante um "acordo de vontades". O capitalista somente tem por inter~sse assegurar .a reproduÇão desta mesma força de trabalho, sem ter qualquer compromisso com o pri'Jletário que vá além de garantir a relativa incolumidade de seu parceiro contratual. A liberdade dos estandartes burgueses resume-se,. para o proletário, em poder vender a sua força de trabalho. A igualdad~ · burguesa, para o proletário, é a igtialdade, como parte, no contrato de trabalho . · Os juristas burgueses, tomo anota Pa,sukanis, construíram a teoria jurídica da pessoa, tomàndo como ponto de partida . uma infinidade de c,onsiderações de natureza mor(ll e teológica acerca da igualdàde "intrtnseca" entre o.s homens." Indaga, com clareza, o autor de A Teoria Geral do Direito e o Mar. xismo onde fica a igualdade e a dignidade do capitalista levado à rutna p1la concorrlncla de outro capitalista? ou mesmo a' .do operdrlo d111mpr~gado que 6 obrigado a deixar sua' família em dificuldades? Estas questões, observa Eugeny Bronislano• vlch; nao t8m respostas. a ser dadas pelos juristas burgueses. Do que vem de ser exposto, ressai que cJ Direito - e seus conceitos basilares - é uma racionalização ideológica, que tem por finalidade alcançar objetivos concretos perseguidos pela burguesia. Em verdade, como fica claro na obra que se está apresentando, o direito· dá tintas civilizadas à opressão de classe. PasUkanis, admitindo esta premissa inicial, entende que a

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mera constatação da natureza ideológica do Direito é insuficiente para desvendar os seus mecanismos mais íntimos . As• sim, para o jurista soviético, é fundamental que se estude a forma jurídica e não apenas o seu conteúdo .. Em nosso entendimento, esta· é a principal inov~ão trazida pelo importante autor bolchevique. . Pasukanis parte do pressuposto de que o éonceito jurídico é uma forma ideológica mas que, como a mercadoria que é também uma forma ideológica, um "fetiche", foi estudada cientificamente, não há motivos para negar-se ao direito igual tratamento. Não é o fato de que o Direito seja ; uma ideologia que deve inibir o seu exame; ao revés, o que não é possível, e o que é metodologicamente incorreto, é examinar o Direito apenas quanto ao seu conteúdo (dominação de classe) e abandonar a sua manifestação formal. Para o Direito a forma é essencial. Ao correr da leitura de A Teoria Geral do Direito e o Marxismo constata-se que o seu autor estava perfeitamente I atualizado com as mais modernas teorias burguesas de sua época. E usual atribuir-se a Pasukanis uma teoria jurídica .que propugna pelo imediato desaparecimento da forma jurídica tout court. Nada mais falso. O Vice-Comissário do Povo para a Justiça do primeiro Governo Soviético, coerente com o seu entendimento de que a forma jurídica é da essência do capitalismo, esposava a tese de que só a partir do desaparecimento completo do capitalismo é que poderia ocorrer a desintegração do Direito. Assim, no período de transição (ditadura do proletariado) seria extremamente precipitado e errôneo postular um pleno fim do direito. O que Pasukanis não admite - e a nosso ;uízo o faz com razão - é que os institutos jurídicos se transformem em institutos de Direito socialista. A manutenção das relações de troca -: mesmo que entre entidades estabelecidas pelo poder soviético - .demonstra a permanência das relações capitalistas na ditadura do proletariado. A NEP estabelecida por Lenin confirma o acerto das teorias de E .. B. Pasukanis. Karl Renner, teórico fiiiado à Segunda Internacional, defendia a tese da permanência dos institutos jurídicos, com a modificação de seu conteúdo. As teses de Renner, com algumas modificações, foram utilizadas por Stálin e seu Pro......

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curador Geral, Vishinsky, contra as concepções de Eugeny Bronislanovich. Este, juntamente com Marx, entendia que o simples jato do operariado apoderar-se do aparelho de Estado burguês não implicava em uma modificação metafísica de sua natut'eza. Stálin e Vishinsky, sustentando uma concepção voluntarista do Direito, entendiam que o Direito socialista era a expressão da vontade de classe do proletariado, o que - mutatis, mutandi - não está muito longe da doutrina idealista de Rousseau, que via na lei a expressão da vontade geral. Stálin e Vishinsky fizeram tábula rasa do marxismo e ipso facto perderam de vista a realidade econômica. Não foi sem coerência com este modelo de interpretação do Direito e do. mundo que Stálin chegou a declarar que a União Soviética jd havia alcançado o comunismo! Hoje se sabe perfeitamente o custo social, político e moral da prevalência da corrente stallnista no interior do movimento socialista internacional.

4. O Contrato e o Direito Penal- Os temas fundamentais da Filosofia do Direito são tratados com grande profundidade e firmeza em A Teoria Geral do Direito .e o Marxismo, e a cada um deles é segura a sensação de que . o autor domina-os com absoluta tranqülidade. Hauriou, Kelsen, Duguit, Kant e Stammler não oferecem qualquer dljic.uldade para Pasukanis que ·contesta-os com veemência e quando concorda com os mesmos é para demonstrar as imensas contradiç"es internas da teoria jurídica burguesa. Dentre todos os temas abordados pelo livro ora apresentando, parece-nos que um dos mais relevantes 6 o Direito Penal, o seu papel especifico na ordem jurtdica burguesa como garante da propriedade privada. Mas o que se destaca mais em sua análise, pela criatividade e ineditismo, 6 o exame do processo penal como uma barganha, um contrato entre acusação e acusado, entre delinqüente e ordem e a performance do Estado-Juiz como interveniente 11este contrato atípico e que, no entanto, está. plenamente inserido na lógica do Modo de Produção Capitalista. O Direito Penal merece atenção especial de Pasukanis e, dentro dele, destaca-se a reflexão sobre a pena como reparação equivalente. ·

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A vingança de sangue é o marco zero do qual derivam todos os desdobramentos possíveis e imagnários do tema, chegando-se às modernas teorias do Direito Penal burguês. .De todo o estudo desenvolvido sobre . a violação do Direito incidência privilegiada da norma penal - verifica-se, com clareza indiscutãvel, que a repressão a condutas moralmente reprováveis não· é, nem nunca foi, o centro de atuação da norma penal. As condutas moralmente reprováveis passam a ser penalmente reconhecidas quando implicam em um certo nível de ferimento à o.rdem econômica. Como nos contratos, de maneira geral,· a cada prestação corresponde uma cóntraprestação, in casu, no âmbito do Di.reito Penal burguês, a cada violação da norma corresponde um quantum de liberdade a ser perdido pelo criminoso, como con~ trapresiação do seu ato. Esta nátureza contratual é igualmente encontradiça no processo penal, na medida em que é dada ao réu a possibilidade de defesa (obrigatoriedade mesmo) e a indicação de advogado que tem por junção processual a de negociar o valor a ser pago pelo seu cliente, ou mesmo a .de convencer ao Tribunal de que o réu/ cliente não praticou qualquer ilícito contratual. "Aliás, a Justiça burguesa zela cuidadosamente para que o contrato com o delinqüente seja concluído dentro de todas as regras da arte, de forma que cada um possa convencer-se de que o pagamento é igualmente de_termintido (publicidade do processo judicial) e de que o delinqüente pode negociar livremente sua liberdade (o processo contraditório) e que pode utilizar-se de um profissional tecnicamente preparado (admissão de advogados de defesa), bem como que cada um possa' controlar a aplicação :da lei. Em uma palavra, as relações entre o Estado e o delinqüente situam-se nos quadros de um negócio comercial lealmente estabelecido. E nisto que consistem as garantias do processo penal." · A pena que, ap6s longa evolução e transformação, é um instituto do Direito Público e não mais se confunde com vingança ârbitrária e desmesurada é, no capitalismo, uma gradação escalonada que, com base no princípio da troca equivalente, deve limitar a perda da liberdade do delinqüente. Para cada delito· existe um valor correspondente de liberdade a ser perdida, valor este previamenttl determinado e, por presunção,

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APRESENTAÇÃO

de conhécimento público. O contrato entre o dlllltfiJinll o o Estado tem suas cláusulas adrede conhecida• (prlnofplo da reserva legal) e inafastáveis. Na esteira do qUI /OI tlál(fntado por Pasukanis, é possível avançar o racloctnto 11ft dlrlçilo ao estudo de tema de fundamental importancltl plrt o mundo jurídico, que é a Ação Penal, que tem n01 dl'llfHOI 1l111mas jurídicos trátamento diferenciado. para o DINIIO ,..,,...,.,tcano. não há a indisponibilidade vigente rzô ord,.,.,.IO •Nillllro, sendo que ao Ministério Público é dcido um ''"""' Olimpo de opçÕes capazes de, por si só, confirmar a· ,_, R Mtureza contratual que Pasukanis defende com tanto' IIIUo 1 brilhantismo. já no caso brasileiro, a ação penal .llfd ,,.., a uma maior rigidez e, em conseqüência, é regida por .IM lfttcatll1mo que se materializa na indisponibilidade 1 . . . .Idade. O que merece ser indagado é qual a poutv1l .., . . 111l1t1nte entre os princípios que regem a· Ação P1nal 1t0 fff04tlo Jurldlco norte-americano e a sua relação • com um *do ,.á de acumulação de capital, e daí verificar-SI Gl 1xls· tentes nos ordenamentos de raízes an&l~ 1 01 d1 tradição romano-germânicas. Qual a lfflll dllpt:Jnlbllidade e indisponibilidade da persecuçao . , . , . , f 1 tllmocratização de uma determinada sociedad1 "" ,.,.,,, 11111 ca· minhos ainda precisam ser trilhados p1l1 , . , , /tllltllctl mar· xista. A extensa área do Direito Penal tam.,. ~ . , . d1 atuação das categorias jurídicas fundamtnMII, O lfl/1110 d1 Direito, a igualdade, a pessoa e a vontadl diiiiiMt ltD Cddlgo Penal com a mesma desenvoltura qui o ,_,. M Dlrtllo Civil. Tal qual na legislação civil, o sujeito dl DlrfiiO "14 ltel c1ntro do Direito Penal, isto é, tanto aqui C01fl0 14, I 1141 pr111nça marca indelevelmenie tudo aquilo qui d,. ,.,,,, i aplicação da lei. A responsabiljdade no Dl,liO I'IMI hur11uls ~ pessoal, não passando, em. tese, da p111011 do fllll,.qU~ttrll princípip este que foi alçado ao nl111l dl '""''"' &'tlfllllltuc:ional - , os conceitos de dolo e culptl llo, tlllltrll, ú~rlvt1dos, dos conceitos aplicáveis ao Dlr1ltt:J tm 11 ' ' " "'flctdal, vinculam-se à vontade juridzcam1n11 ~11111 , Dll (/l&lflmt que só há delito imputá1Jel a algulm fiMit~O "' .,., h1t11 ulflutJm possa ser encontrado um compOII111N "'INI-IH IIIIIUntl pre-

ciso: a volição. Justifica-se, conseqüentemente, a exclusão daqueles que não sejam senhores de sua vontade do campo de incidência da norma penal, exclusão esta que, por igual, é feita de tais indivíduos do círculo daqueles que podem contratar validamente. A confissão do réu, nos sistemas nos quais o caráter negociai do Direito Penal é mais evidente, assume assim um aspecto muito mais relevante para o desfecho do processo. Confesso o réu, dispensa-se toda a "confabulação" que significa a marcha do processo e passa-se diretamente a negociar a contrapartida, ou seja, a pena a ser aplicada ao delinqüente. No Direito Processual Penal de origem romano-germânica, verifica-se que o procedimento, pelo seu caráter de indisponibilidade, prossegue não obstante a confissão e, de fato, é como se os "seus mecanismos extremamentes complexos e eruditos estivessem postos com o intuito de dificultar ao máximo a aplicação da pena. Sem exagero, poder·se-ia afirmar que ao Código Penal contrap~e-se o Código de Processo Penal, como em um antagonismo dialético.

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5. Breve Biografia de Pasukanis já vai longe esta apresentação e, com efeito, achamos que a sua finalidade é única e exclusivamente de ser o que, em geral, se espera que ela seja: uma breve notícia sobre o trabalho e a indicação de alguns aspectos que parecem relevantes aos olhos do prefaciador. Julgamos que neste encerramento é necessário que sejam .ditas algumas palavras sobre a biografia de E. B.. Pasukanis. Eugeny Bronislanovich Pasukanis nasceu em 1O de fevereiro de 1891, em uma família de camponeses lituanos, na cidade de Starica. Foi membro do Partido Operário Social-Democrata Russp (bolchevique) desde 1912. Vice-Comissário do Povo para a Justiça na gestão de Stuka como Comissário.· A Teoria Geral do Direito e o Marxismo, sua principal obra, foi publicada em 1924. Após a morte de Lenin, no mesmo ano, e a ascensilo de Stálin ao poder absoluto na União Soviética, iniciou-se uma perseguição política e ideológica a vários militantes bolcheviques, dentre os quais se encontrava Pasukanis. Além das atividades acima relacionadas, Pasukanis foi diretor do Instituto Jurídico je Moscou e Vice-Presidente da

B, 1. JAIUIANII

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Academia ComunlsltJ I PCIIukCinls a elaboração de um novo C~,. l'fMI IMrt 1 Untao das Repúblicas Socialistas Sovl.t/QGI, talf /ti .,,,,.,, tJOn1ld1rado pela seção jurídica da Acadtmt. A partir d1 lllfl IMfllf 1111/trldo por uma matéria do Pravda, em Zil11 ' " ' " ' " ' " " " 111 criticas a E. B. Pasukanis até que ocorrtll 1 ..., """lfiGrtcimento". Pasukanis foi atacado doutriMriMuNII 1 vitima d1 calúnias insidiosas que acusava~ 111lhiJ ""'UIIOrt4rlo d1 "inimigo do povo" e outros eplt1t01 tio 10 10110 do 1tallnlsmo e de Vishinsky (o célebre acusador dOI ,fOHIIOI d1 Moscou). Aos 8 de agosto de 1956, foi dlcrtlldl 1 rHblllta~o de Pasukanis, tendo sido reconhecldtll HlfiO /111111 "' acusações dirigidas contra o jurista bolchtlllflUI. • d1 11 1sperar que em plena Perestroika as idéias d1 PtUukanl• po11am penetrar livremente nos círculos marxis- · til poli, 11m ddvida, elas têm muito que ensinar àqueles. que 11 d1dlcam ao estudo do Direito.

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PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO RUSSA

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Porto Alegre, maio de 1988. PAULO BESSA

Quando da publicação do meu livro, não pensava ser necessária uma segunda edição, sobretudo decorrido tão pouco tempo após a primeira. Aliás, me convenci hoje de que isto aconteceu em razão de este trabalho ter sido usado como manual - o que nunca imaginei! - quando, na melhor das hipóteses, deveria apenas servir de estímulo. Isto significa dizer que é muito insuficiente a ·literatura marxista referente à teoria geral do direito. Do mesmo modo, de que outra forma poderia ser, se, até muito pouco, os meioli marxistas se mostravam descrentes com relação à própria existência de uma teoria geral do direito? De qualquer maneira, o presente trabalho não pretende ser de jeito nenhum o fio de Ariadne marxista no domínio da teoria geral do direito; ao contrário, pois em grande parte foi escrito objetivando o esclarecimento pessoal. De onde a abstração e a forma concisa e mesmo assim apenas esboço de exposição; de onde também o seu aspecto unilateral que se deve inevitavelmente à concentração ·da atenção sobre determinados aspectos do problema que se revelam essenciais. Todas estas particularidades demonstram que este livro não pode deste modo .servir de manual. Ainda que perfeitamente consciente destes defeitos, rejeitei a idéia de suprimi-los na segunda edição, e o fiz pela seguinte razão: a crítica marxista da teoria geral do direito ainda está no início. Por isso, qua(quer conclusão definitiva será preci-

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pitada; é preciso, pois, um profundo estudo de cada ramo da ciência do direito. Ora, neste campo há ainda muito o que fazer. Basta dizer que a critica marxista ainda não abordou, de nenhum modo, domínios tais como, por exemplo, o do · direito inte~nacional. O mesmo se observa com relação à área dos processos e também, se bem que em menor grau, com a do direito penal. No domínio da história do direito dispomos apenas daquilo que a teoria geral marxista do direito nos ·legou. Salvo o direito público e o direito civil, que constituem uma exceção relativamente feliz. P_or conseguinte,· o marxismo se encontra apenas em condições de apropriar-se de um novo domínio. E natural que, de início, tal aconteça sob a forma de discussões, e de lutas entre diferentes concepções.

pela primeira vez por Marx em O Capital". 1 Por conseguinte, faltavam ser compilados e unificados os diversos pensamentos de Marx e de Engels, e tentar-se aprofundar algumas conclusões daí decorrentes. Depois de Marx, a tese fundamental, a saber, de que o sujeito jurídico das teorias do direito se encontra numa relação rnuito íntima com o proprietário das mercadorias, não precisava outra vez ser demonstrada. A segunda proposição também nada continha . de novo. porém, enuncia que aquela filosofia do direito, cujo fundamento é a categoria do sujeito corn a sua capacidade de autodeterminação (já que, até o presente, a ciência burguesa não criou outros sistemas coerentes de filosofia do direito), nada mais é, com certeza, do que a filosofia da economia mercantil, que estabelece as condições mais gerais, mais abstratas, sob quais se pode efetuar a troca de acordo com a lei do valor e ter lugar a exploração sob a forma de "contrato livre". Este pensamento embasa a crítica que o comunismo fez, e ainda jaz, à ideologia burguesa da liberdade,· da igualdade e da democracia burguesa formal, dessa democracia na qual "a república. do mercado" procura mascarar o "despotismo da ·fábrica". .Este pensamento dá-nos a convicção de que a defesa dos chamados fundamentos abstratos da ordem jurídica é a forma mais geral da defesa dos interesses ,da clas.se burguesa, e~c. Contudo, se a análise marxista da forma da mercadoria e da forma do sujeito, que àquela se liga, encontrou uma aplicação muito vasta como meio de crítica da ideologia jurídica bur· guesa, de· modo algum tem sido utilizada para estudo da superestrutura jurídica como fenômeno objetivo. O principal obstáculo a este estudo está em que os raros marxistas que se ocupam das questões jurídicas consideram sem dúvida àlguma o momento da regulamentação coativa social como a característica central e fundamental, a ·única característica típica dos fenômenos jurídicos. Pareceu-lhes que somente este ponto de vista sustentaria uma atitude científica, ou seja, sociológica e

Esta~

Meu livro, que põe em discussão algumas questões da . teoria geral do aireito, objetiva, principalmente, preparar todo esse trabalho. Resolvi, então, conservar o essencial do seu antigo caráter, sem tentar. reestruturá-lo em forma de manual. Fiz apên~s complementações necessárias, devidas, em parte, às observações . da crítica. · Acho convenie11ie revelar, desde já; neste prefácio, algumas. observações prévias quanto às idéias fundamentais' do meu trabalho. O companheiro P. I. Stucka definiu, muito corretamente, a minha posição com relação à teoria geral do direito, como uma "!entativa de- aproximar a forma do direito da forma da mercadoria". Na. medida em que o balanço final permite julgar, esta idéia foi reconhecida >~em ger~l, salvo algumas reservas, como feliz e frutuosa. 1st() se deve, certamente, ao fato de eu não ter tido neste caso necessklade· de "descobrir a América". Na literatura marxista e, em primeiro 'ugar, ·no próprio Marx, é pÓssível encontrar elementos suficientes para uma tal aproximação. Basta citar, além das passagens mencionadas neste livro, o capítulo intitulado "A moral e o direito. A igualdade",· do Anti-Dühring. Nele é dado por Engels uma formulação absolutamente precisa do vínculo existente entre o princípio da igualdade e a lei do valor; numa nota ele afirma que "esta dedução das. modernas idéias de igualdade, a partir das éondições econômicas da sociedade .burguesa, foi exposta

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1. Engels, Herrn Eugen Dührings Umwiilzung der Wissenschaft (1878), 12." ed., Berlim, 19~3,...., Tradução brasileira: Ed. Paz e Terra, Rio, 1979.

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histórica em face do problema do direito, em oposição à atitude dos sistemas idealistas, puramente especulativos; à atitude ;daquela filosofia do direito que tem por fundamento a repr~­ sentação do conceito de sujeito com a sua capacidade de autodeterminação. Era, pois, absolutamente natural pensar que a crítica marxista do sujeito jurídico, imediatamente derivada da análise da forma mercantil, nenhuma relação guardasse com a teoria geral do direito, já que efetivamente a regulamentação coativa, externa das relações recíprocas entre proprietários de mercadorias, representa apenas uma parte ínfima da regulamentação social em geral. Em outras palavras, sob este ponto de vista, tudo o que poderia concluir-se da concepção marxistas sobre os "guardiães de mercadorias", "cuja vontade habita nas próprias coisas"/ parecia válido apenas para um campo relativamente restrito, o do chamado direito comercial da sociedade burguesa,· sendo, porém, totalmente inutilizável noutros campos do direito (direito público, direito penal, etc.) e no caso de outras formações históricas, como, por exemplo, o escravismo, o feudalismo, etc. Falando de outra maneira, o significado da ·análise marxista se restringia, por um lado, a um campo especial do direito e seus resultados, e, por outro, à função de desmascarar a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade, à função de criticar a democracia formal, mas não à função de explicar particularidades fundamentais e primárias da superestrutura jurídica enquanto fenômeno objetivo. Deste modo duas coisas foram negligenciadas: uma esqueceu-se que o principio da subjetividade jurídica .(assim entendemos 'o prlnctplo formal da liberdade e da igualdade; da autonomia da personalidade, etc.) não é somente um meio dissimulatório e um produto da hipocrisia burguesa na medida em que ~ oposto à luta proletária pela abolição das classes, contudo. não deixando de ser também um princípio realmente atuante, que se acha. incorporado à sociedade burguesa desde que essa nasceu da sociedade feudal patriarcal e a destruiu. A outra foi que esqueceu-se

de que a ·vitória deste princípio não é apenas e tão-somente um processo ideológico (ou seja, um processo da ordem das idéias, das representações, etc.), mas antes um real processo de transformação jurídica das relações humanas, que acompanha o desenvolvimento da. economia mercantil e monetária (da economia capitalista, falando da Europa) e que engendra profundas e múltiplas modificações de natureza objetiva. Este conjunto de fenômenos compreende o surgimento e a consolidação da propriedade privada, a sua extensão universal tanto aos sujeitos como a todos os objetos possíveis; a libertação da terra das relações de domínio e servidão; a conversão de toda a propriedade em propriedade mobiliária; o desenvolvimento e preponderância das relações obrigacionais e, finalmen• te, a constituição de um poder político autônomo como particL(lar forma de poder - ao lado do qual tem lugar o poder puramente econômico do dinheiro - , assim como a subseqüente divisão, mais ou menos profunda, entre a esfera das relações públicas e a das relações privadas, entre o direito público e o direito privado. Se a análise da forma mercantil revela o sentido histórico concreto da categoria do sujeito e desvel'da os fundamentos dos esquemas abstratos da ideologia jurídica, o processo de evolução histórica da economia mercantil-monetárie< e mercantil-capitalista acompanha a realização destes esquemas sob a forma da superestrutura jurídica concreta . Desde que as relações humanas têm como base as relações entre sujeitos, surgem as condições para o desenvolvimento de uma superestrutura jurídica, com suas leis formais, seus tribunais, seus processos, seus advogados, etc. ·

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2. Karl Marx, O Capital, Liv. I, Cap. II, Ed. Soclales, Paris, 1969, p. 95. Tradução brasileira: Regis Barbosa e Flávio Kotkhe, Nova Cullu· ral, São Paulo, 3.• ed., 1988, p. 79.

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Chega-se, então, à conclusão de que os traços essenczazs do direito privado burguês são, ao mesmo tempo, os atributos" característicos da superestrutura jurídica. Nos estágios primitivos de desenvolvimento, a troca de equivalentes, sob a forma de compen.sação e reparação dos prejuízos, produziu esta forma jurídica, muito primitiva, que se vê nas leis bárbaras: do mesmo modo, as sobrevivências da troca de equivalentes na esfera da distribuição, que subsistirão igualmente numa organização socialista da produção (até\à passagem para o comunismo evo-

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luído), obrigarão a sociedade socialista a se confinar, por algum tempo, "no horizonte limitado do direito burguês", tal como o previra Marx. Entre estes dois pontos extremos opera-se o desenvolvimento da forma jurídica que atinge o seu mais alto grau na sociedade burguesa capitalista. Podemos também caracterizar este processo como uma desagregação das relações org&nicas patriarcais que são substituídas por relações jurídicas, isto. 4, por relações entte sujeitos que, formalmente, possuem os mesmos direitos. A dissolução da família patriarcal onde o pater familias tem a posse da força de trabalho da mulher e dos filhos, e a subseqüente transformação desta numa família contratual onde os cônjuges celebrqm entre si um contrato que objetiva os bens e onde os filhos (como, por exemplo, na propriedade norte-americana) recebem do pai um salário, consti· tui um dos ttpicos exemplos desta evolução. A qual, além disso, se vê acelerada pelo desenvolvimento das relações mercantis e monetárias. A esfera da circulação, a esfera que se compreende pela fórmula Mercadoria-Din/:zeiro-Mercadoria, desempenha um papel predominante. O direito comercial exerce sobre o direito civil a mesma função que este exerce sobre todos os oUtros ramos do direito, isto é, indica-lhes o caminho do desenvolvimento. O direito comercial é, portanto, por um lado, um. domtnio especial que só tem significação para as pessoas . que fizeram da transformação da mercadoria em forma monetária, ou inversamente, a própria. profissão; e, por outro, ele é () prdprio direito civil nd seu dinamism01. no seu movimento em direção aos mais puros esquemas, nos quais não se encontra qualquer traço de organicismo e onde o sujeito jurí~ dico aparece na. sua forma acabada, como complemento indis-' pensdvel e inevitável da mercadoria. Por este motivo, portanto, o princtplo da subjetividade jurídica e os esquemas nele contidos, que para a jurisprudência b'urguesa surgem cpmo esquemas a priori da vontade humana, derivam necessatiamente e. absolutamente das condições da economia mercantil e monetária. O modo estrltam1nt1 emptrico e técnico de conceber o vínculo existente 1ntt1 IStls dois momentos encontra a sua expressão nas reflBXIJIS r1lativas ao fato de a evolução do comércio exigir algumas garantias, como seja,

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da propriedade, áe bons tribunais, de uma boa política, etc. Porém, se nos aprofundarmos, torna-se óbvio que não apenas tal ou qual estrutura técnica do aparelho do Estado nasce no terreno do mercado, como também que não deixa de existir um vínculo interno indissociável entre as categorias da economia mercantil, e monetária e a própria forma· jurídica. Numa sociedade onde existe dinheiro, e onde, por conseguinte, o trab·alho privado individual só se torna trabalho social pela mediação de um equ_ivalente geral, encontram-se já delineadas as condições de uma forma jurídica com as suas oposições entre o subjetivo e o objetivo. E, pois, somente numa tal sociedade que se abre a possibilidade de o poder político se opor ao poder puramente econômico, o qual se revela, o. mais distintamente, sob a forma do poder do dinheiro. Ao mesmo tempo a forma da lei torna-se igualmente possível. Chega-se, então, à conclusão de que para analisar as definições fundamentais do direito não seja preciso partir do conceito de lei e utilizá-lo como fio condutor, já. que o próprio conceito de lei, enquanto decreto do poder político, pertence a um estágio de desenvolvimento onde a divisão ,da sociedade em esferas civil e política já está concluída e consolidada e onde, conseguintemente, já estão realizaáos os momentos fundamentais da forma jurídica. "A constituição do Estado político, diz Marx, mediante a decomposição da sociedade. burguesa em indivíduos independentes, cujas relações são regidas pelo direito, assim como as relações dos homens das corporações e dos mestres eram regidas por privilégios, conclui-se através de um único e mesmo ato'? O que foi exposto até o momento não quer dizer, de modo algum, que eu considere a :/.IJi!:J:J.a. iw:iricfl como um "simples reflexo de uma pura ideologia": 4 A este respeito penso haver usado expressões suficientemente claras: "o direito, considerado 3. karl Marx, A questão Judaica (1844), Col. Le Monde, Paris, U.O.E., 1968, p. 43. Ed. brasileira: Ed. Moraes, São Paulo, p. 50. ·4. Cf. Stucka, Revoljucionnaja rol'prava i gosudarstva (0 papel re· volucionário do Direito e do ..... Estado), prefácio' à primeira edição, Mos. cou, 1921, p. v.

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como forma, não existe somente na mente das pe.ssoas ou nas teorias dos juristas especializados; ele tem .uma história real, paralela, que tem seu desenvolvimento, não como um sistema conceitual, mas como um particular sistema de, relações".5 Mais adiante falo de conceitos jurídicos que ."refletem teoricamente o sistema jurídico enquanto totalidade orgânica" 6 Em outros termos, a forma jurídica, expressa por abstrações lógicas, é um produto da 'forma jurídica real ou concreta (de acordo com a expressão do companheiro Stucka), um produto da mediação real das relações de produção. Não só indiquei que a gênese da forma jurídica está por se· encontrar nas relações de troca, como também mencionei qual o 7;nomento que; na minha opinião, representa a realização completa da forma jurídica: o tribunal e o processo . E natural que no desenvolvimento de qualquer relação _ jurídica possa haver, na mente dos agentes, diferentes representações ideológicas mais ou menos pronunciadas, deles pró- ' prios enquanto sujeitos, dos seus próprios direitos e deveres, da "liberdade" das suas próprias ações, dos limites da lei. A significação prática das relações jurídicas não se encontra, entretanto, nestes estados subjetivos . da consciênc:a. Enquanto o proprietário de mercadorias não tiver consciência de si como proprietário de mercadorias, então ainda não aconteceu a relação econômica da troca, com o conjunto das conseqU8ncias ulteriores que escapam à suá consciência e à sua vontade. A mediação jurídica só é concluída no momento do acordo. Porém, um acordo comercial já nao se pode dizfJr um fen~meno psicológico; já não se pode dizer uma "idéia", uma "forma da consciência", é um fato econômico objetivo, uma relaç4o eco.nômica indissoluvelmente ligada' à sua forma jurídica que é também objetiva. O objetivo prático da mediaÇão jurídica é o de dar garantias à marcha, mais ou menos livre, da produçao e da reprodução social que, na sociedade de produção mercantil, se operam formalmente através de vários contratos jurtdico.~ 5. 6.

Cf. id., ib,, p. 39. Cf. id., ib ., p. 44.

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privados. Não se pode atingir este objetivo buscando unicamente o auxílio de formas de consciência, isto é, através de momentos puramente subjetivos: é necessário, então, recorrer a critérios precisos, a leis e a rigorosas interpretações de leis, a uma casuística, a tribunais e à execução coativa das decisões Judiciais. P: por este moÍivo que não podemos nos restringir, na análise da forma jurídica, à "pura ideologia", desconsiderando mecanismo objetivamente existente. Todo fato jurídico por exemplo, a solução de um litígio por uma sentença é o que chamamos· de fato objetivo, situado tão fora da consciência dos protagonistas como o fenômeno econômico que, em tal caso, é mediatizado pelo direito. Concordo, com reservas precisas, com uma outra censura que me dirige o companheiro Stucka, a de reconhecer a exis· tência do direito somente na sociedade burguesa. Efetivamente tenho afirmado, e continuo a afirmar, que as relações dos produtores de . mercadorias entre si engendram a mais desenvolvida, universal e acabada mediação jurídica, e que, por consegz,ânte, toda a teoria geral do direito ·e toda a jurisprudência "pura" não são outra coisa senão uma descrição unilateral, que abstrai de todas as outras condições das relações dos homens que aparecem no mercado como proprietários de mercadorias. Mas, uma forma desenvolvida e acabada não exclui formas embrionárias e rudimentares; pelo contrário, pressupõe-nas. ·As coisas apresentam-se, exemplificativamente, da seguinte maneira no que diz respeito à propriedade privada: só o momento da livre alienação revela plenamente a essência fundamental desta instituição, ainda que, indubi:tavelmente, a propriedade, como apropriação, tenha existido antes como forma, não só desenvolvida, mas, também, muito embrionária da troca. A propriedade como apropriação é a conseqüência natural de . todo modo dé produção; porém, a propriedade só reveste a sua forma lógica mais simples e mais geral de propriedade privada quando se visa ao núcleo de uma determinada formação social onde ela é determinada como a condição elementar da contín(J.a · circulação dos valores, que se opera de acordo com a fórmula Mercadoria-Dinheiro-Mercadoria.

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E quanto à relação de exploração, sucede ·exatamente o mesmo. Esta, entenda-se bem, em nenhum caso vê-se ligada à relação de troca como sendo igualmente concebivel numa economia natural. Porém, é apenas na sociedade burguesa ca~ pitalista, em que o proletário surge como alguém que dispõe da sua força de trabalho como mercadoria, que a relação econômica da explo~:ação e juridicamente mediatizada sob .a forma de um contrato. E justamente por isso que na sociedade burguesa a forma jurídica, em oposição ao que ocorre nas sociedades edificadas sobre a escravatura 'e 11 servidão, adquire uma significação universal; é por isso que a ideologia jurtdica se to{na a ideologia por excelência e que também a defesa dos intt!resses de classe dos exploradores surge, com um sucesso sempre crescente, como a defesa dos princípios abstratos da subjetividade . jurídica. Resumindo, minhas investigações não ti.'1ham de modo algum a intenção de ·impedir à teoria marxisia da direito o acesso a estes pertodos históricos que não confieceram a economia capitalista mercantil desenvolvida. Pelo contrário, tenho me esforçado e ainda. me esforço por facilitar a compreensão destas formas embrionárias que se encontram· ·nestes periodos e por relacioná-las com as formas mais desenvolvidas de acordo com uma linha de evolução geral. O futuro mostrará até que ponto minha concepção é frutuosa. Natur~lmente, nesta breve tentativa, não poderia delinear os grandes .traços de evolução histórica e · dialética da forma jurídica. Para esse empreendimento servi-me, essencialmente, das idé~as que encon· trei em Marx. Minha tarefa nã.o era a de resolver· em defi.nitivo todos os prQ.blerrz,as da teoria do .direito ou mesmo apenas alguns. Meu desejo era mostrar unicamente sob que angulo é possível abordá· los e como devem ser equacionados. Fico contente em saber. que alguns ·marxistas tenham considerado que a minha posição sobre as questões do .:Jireito é interessante e oferece perspectivas. E é isto o que ainda me conserva no desejo de prosseguir este trabalho pela via iniciada.

· Pa1ukanls 1926.

Introdução

AS TAREFAS DA TEORIA GERAL DO DIREITO

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A teoria geral do direito pode ser definida como o desenvolvimento dos conceitos jurídicos fundamentais, isto é, os mais abstratos. A esta categoria pertençem, por exemplo, as definições de "norma jurídica", de "relação jurídica", de "sujeito de direito'', etc. Estes conceitos são utilizáveis em qualquer domínio do direito em decorrência de sua natureza abstrata; a sua significação lógica e sistemática permanece a mesma, independentemente do conteúdo concreto ao qual sejam aplicados; Ninguém contestará que, por exemplo, o conceito de sujeito no direito civil e no direito internacional esteja subordinado ao conceito mais geral de sujeito de direito como tal, e que, em conseqüência, esta. categoria pode ser definida e desenvolvida independentemente de tal ou qual conteúdo concreto. Por- outro lado, também podemos constatar, se nos mantivermos nos limites ·de uma área particular do direito, que as categorias jurídicas fundamentais acima mencionadas não dependem do cÕnteúdo concreto das normas jur.idicas, isto é, que conservam sua significação mesmo que o seu conteúdo material concreto se modifique· de umà maneira ou de .outra. .E evidente que estes conceitos jurídicos, os mais abstratos e os mais simples, são o resultado de uma elaboração lógica das normas de direito positivo e representam, em comparação .com o caráter espontâneo das relações jurídicas e das normas que os exprimem, o produto tardio e superior de uma criação consciente. Isto não impede .que os filósofos da . escola neokantiana considerem as categori"as jurídicas fundamentais como uma rea-

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lidade que se situa acima da experiência e que ·torna possível a própria experiência. Assim, por exemplo, em Saval'skijl lê-se o seguinte: "o sujeito, o objeto, a relação e a regra das relações representam o a priori da exper!ência jurídica, as con· dições lógicas indispensáveis desta experiência, aquelas qu~ a. tomam possível". E mais adiante: "a relação jurídica é a con· dição imprescindível e única de toda instituição jurídica e portanto, também da ciência do diteito; pois sem relação jurídica não existe igualmente ciência que a ela se refira, isto é, a ciên· cia do direito, assim como. sem o princípio da causalidade não pode existir natureza nem, conseqüentemente, ciência da natureza".2 Saval'skij, em suas reflexões, apenas reproduz as conclusões de um dos neokantianos mais marcantes, .Cohen.3 O mesmo ponto de vista é encontrado em Stammler. seja na sua primeira obra fundamental; Wirtsçhaft und Reçht\ como em seu último trabalho, Lehrbuçh der Reçhtsphilosophie, onde se lê: "é necessário distinguir, entre os conceitos jurídicosJ de um lado, os conceitos jurí,dicos puros e, de outro, os conceitos jurídicos condicionados. Os primeiros representam as formas de pensamento gerais dos conceitos fundamentais do direito; a sua intervenção nada pressupõe além da própria idéia de direito. Assim sendo, encontram uma aplicação plena em todas as questões jurídicas que possam surgir, pois não são mais do que manifestações diversas do conceito formal do direito. Em conseqüência devem ser extraídos das determinações constantes deste último". 5

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nas lógica e gnoseologicamente; devemos, portanto, constatar que a assim chamada filosofia crítica nos conduz, tanto neste como em muitos outros aspectos, à escolástica medieval.

Os neokantianos podem sempre nos assegurar quey segundo sua concepção, ''a idéia de direito" não precede a experiência :geneticamente, isto é, cronologieamente, mas. ape-

l. Saval'skij, Osnovy filosofii prava v naucliom idealizme (Prlncfpios da filosofia do direito no idealismo cientifico), Moscou, 1908, p. 216; 2. Id., ib., p. 218. 3. Hermann Cohen, Die Ethik des reínen Willens, 2.• ed., Berlim, 1907, p. 22.7 e segs. 4. Rudolf' Stammler, Wirtschaft und Recht, 1896. 5. Id., Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3.• ed., 1928, p. 250.

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Podemos, portanto, ter por assente que o pensamento jurídico evoluído, independentemente da matéria à qual se refira, .não pode pa~sar sem uma certa quantidade de definições abstratas e gerais . Mesmo nosso direito soviético não pode prescindir delas, pelo menos enquanto permanecer como direito, cumprindo as suas tarefas ·práticas imediatas. Os con· ceitos jurídicos fundamentais, formais, continuam existindo em nossos códigos e nos seus comentários. O método de pensamento jurídico ·com os seus procedimentos específicos exigem igualmente sua existência. Mas o acima referido demonstra que a teoria científica do direito deve se ocupar da análise de tais abstrações? Uma concepção bastante difundida atribui-lhes apenas valor puramente técnico condicional. A dogmática jurídica, dizem-nos, utiliza estas denominações por meras razões de· comodidade. Assim sendo, estas denominações, fora da dogmática jurídica, não teriam qualquer significação para a teoria e para o conhecimento. O fato, portanto, de que a dogmática jurídica é uma disciplina prática, e em certo sentido técnica, não nos permite concluir que os conceitos dogmáticos não possam evoluir para o corpo de uma dh;ciplina teórica correspondente. Podemos concordar com Karner (isto é, Renner), quando afir· ma que a ciência do direito começa onde termina a dogmática jurídica.6 Mas daí não se conclui que a ciência do direito deva simplesmente lançar fora as abstrações fundamentais que exprimem a essência teórica da .forma jurídica. A própria economia política começou efetivamente o seu desenvolvimento pelas questões práticas, extraídas sobretudo da esfera da circulação do dinheiro. Ela também fixou, originalmente, a tarefa de mostrar "os meios de enriquecimento dos governos e

6 . Josef Karner, Die soziale Funktion der Rechtsinstitute besonders des Eigertums, cap. I, p. 72, in: 1rlarx-Stu4ien,. tomo I, 1904, tradução russa, 1923, p. 11 (Karner é um pseudômino de Karl Renner).

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dos povos": Todavia, encontramos nestes conselhos técnicos os fundamentos dos conceitos que, s.ob forma aprofundada e generalizada, passam a integrar os marcos teóricos da economia política. Será a ciência do direito capaz de se desenvolver em uma teoria geral do direito, sem dissolver-se na psicologia ou mesmo na sociologia? Haverá a possibilidade de uma análise das definições fun· · damentais da forma jurídica, tal qual existe na economia política uma análise das definições fundamentais e gerais da forma mercadoria e da forma valor? Estas são as questões cuja solução determinará se a teoria geral do direito pode ser considerada como uma disciplina teórica autônoma. Para a filosofia do Direito burguês, cujos representantes, em sua maioria se situam no terreno neokantiano, o problema aqui posto é resolvido pela simples oposição de duas categorias: a categoria do Ser e a categoria do Dever-Ser. Em .conseqüência admite-se a existência de duas modalidades de pontos de vista científicos: o explicativo e o normativo. ~·o primeiro enfoca os objetos sob o ângulo de seu comportamento empírico, que ele busca tornar mais inteligível, relacionando-o com conexões internas dos objetos e .às suas características externas comuns . O segundo considera os objetos sob o ângulo das normas precisas que se exprimem através deles, normas que ele introduz em cada objeto singular como uma exigência. No primeiro caso todos os fatos são valorizados da mesma forma; no segundo são submetidos intencionalmente a uma apreciação valorativa, quer se faça abstração daquilo que con· tradiz as normas estabelecidas, quer se oponha expressamente o comportamento normal, que -confirma as normas, ao comportamento contrário às normas" .7 Para Simmel, a categoria do Dever-Ser determina um modo particular de pensamento que está separado por um abismo intransponível desta ordem lógica através da qual nós pensamos o Ser, que se efetiva com uma realidade natural. O "Tu

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deves" concreto só pode ser fundamentado em relação a um outro imperativo. Permanecendo nos limites da lógica não po· demos, a partir da · necessidade, tirar conclusões acerca do Dever-Ser, e inversamente.8 Em sua obra principal, Wirtschaft und Recht, Stammler desenvolve em todas as nuances o mesmo pensamento, de que a conformidade às leis pode ser estabelecida por dois métodos diferentes: o método causal e o método teleológico. A ciência do direito adquiriu assim, ç;omo disciplina dogmática, uma base metodológica sólida. De fato, as tentativas de aprofundamento desta metodologia conduziram, por exemplo, Kelsen à convicção de que a ciência do direito é uma ciência essencialmente normativa, pois pode, mel:tior do que qualquer outra ciência da mesma classe, manter-se nos limites do sentido formal e lógico da categoria Dever-Ser. Na realidade, tanto na Moral como na Estética, a normatividade está impregnada de elementos psicológicos e pode ser qualificada como vontade qualificada, isto é, como Fato, como Ente: o ponto de vista da causalidade .se impõe permanentemente e prejudica a· própria normatividade. Em oposição, no direito, cuja lei estatal é para Kelsen a expressão mais elevada, o princípio do Imperativo aparece sob uma forma inégavelmente heterônoma, rompendo definitivamente com a facticidade do real. :É: suficiente para Kelsen transportar a função legislativa para o terreno metajurídico - e é o que faz efetivamente - para que a ciência do direito reste a pura esfera da normatividade: a tarefa desta ciência do direito limita-se, portanto, exclusivamente a ordenar lógica e sistematicamente os diferentes conteúdos normativos. Não se pode negar a Kelsen um grande mérito. Pela sua lógica intrépida; ele levou quase ao absurdo a metodologia do neokantismo com as suas duas ordens de categorias científicas . Efetivamente, a categoria científica "pura" do Dever-Ser, liberta de todos os aluviões do Ente, da facticidade, de todas as "escórias" psicológicas e sociológicas, não possui, e não pode possuir de forma alguma determinações de natureza racional.

8. 1910. 7.

Wilhelm Wundt, Ethik, 1903, p. 1.

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Georg Simmel, Einleitung in die Moralwissenschaft, Stuttgart,

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Para o imperativo puramente jurídico, isto é, incondicionalmente· heterônomo, a finalidade é, por si própria, secundária e indiferente. "Tu deves a fim de que ... ", esta .formulação, para Kelsen, não é mais o "Tu deves" jurídico. No plano do Dever-Ser jurídico nada há .mais que a 'Passagem de uma norma à outra segundo os graus de uma escala hierárquica, no cume da qual encontra-se a autoridade sup_rema. que dita as normas e que engloba ó todo - um conceitolimite do qual a ciência do direito parte cbmo de um dado. Um crítico de Kelsen apresentou esta atitude relativa às tarefas da ciência do direito, sob a forma de um diálogo caricatura! entre um jurista e um legislador: "Nós não sabemos - e isto nem nos preocupa - que tipo. de leis os senhores devem ·decretar. Isto pftrtence à arte da .legislação, que nos é estranha. Aprovem leis, como bem vos aprouver; tão logo os senhores o tenham feito, nós vos explicaremos, em latim, de que tipo de lei se trata".9 · Uma tal teoria geral do direito, que não explica nada, que a pribri dá· as costas às realidades. de fato, quer dizer, à vida social, e que se preocupa com as normas, sem se preocupar com as suas origens (o que é uma questão metajurídica!), ou pe suas relações com quaisquer interesses materiàis, não pode pretender o título de teoria, senão o de teoria do jogo de xadrez. Utna tal teoria nada tem a ver com a ciência. Esta "teoria" não pretende analisar o direito, a forma Jurídica enquanto forma histórica, pois não vísa a estudar a realidade. :e por isso, para empregar uma expressão vulg~r, que não há muito que se possa tirar dela. ·

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diferente nas teorias jurídicas denominadas sociológicas e psicológicas. Pode-se exigir-lhes muito mais, pois 'buscam, com o auxílio de seu método, uma explicação do direito .enquanto fenômeno real, em sua origem e desenvolvimento . Mas também nos reservam outras decepções. As teorias jurídicas sociológicas e piscológ:cas deixam usualmente a forma jurídi-

9.

Julius Ofner; Das soziafe·.Rechtsdenken,·Stuttgart, 1923, p. '54.

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ca fora dos seus círculos de reflexões; em outros termos, elas não percebem, pura e simplesmente, o problema que está posto. Elas trabalham desde o começo com conceitos extrajuridicps e ainda que eventualmente levem em consideração definições jurídicas, somente o fazem para apresentá-las como "ficção", "fantasmas ideológicos", "projeções", etc. .Esta atitude naturalista ou niilista inspira, à primeira abordagem, uma certa simpatia, particularmente se a opusermos às teorias jurídicas idealistas totalmente impregnadas de teleologia e de ''moraEsmo". Após frases pomposas sobre "idéia eterna do direito", ou sobre a "significação absoluta da personalidade", o leitor que procura uma explicação materialista dos fenômenos sociais se volta, com satisfação particular, em direção às teorias que abordam o direito como resultado de uma luta de interesses, como manifestação da coerção estatal ou mesmo como um processo desenvolvendo-se na psique humana real. A muitos marxistas têm. sido suficiente introduzir, nas teorias acima, o momento de luta de classes para se obter uma teoria do direito verdadeiramente materialista e marxista. Daí não resulta mais do que uma histót:a das formas econômicas com uma tintura jurídica, mais ou menos forte, ou uma história das instituições, mas em nenhuma hipótese uma teoria geral do direito. 10

10. Mesmo o livro de P. I. Stucka, Revoljucionnaja rol'ptava i gosudarstva, já citado, que trata de toda uma série de questões da teoria geral do direito, não as reúne em uma unid.ade sistemática. O desenvolvimento histórico da regulação jurídica, do ponto de vista de seu cónteúdo de classe, é colocado em primeiro plano em sua exposição em relação ao desenvolvimento lógico e dialético da própria forma (é necessário assimilar, entretanto, que percebe-se naturalmente que o autor dedicou em sua 3.• ed. comparando-a com a 1.• muito mais atenção às questões da forma jurídica). Stucka, contudo, procedeu apenas em função de seu ponto de partida, isto é, em função de uma concepção de direito que faz da teoria geral do direito, essencialmente, um sistema de relações de produção e troca. Se consideramos o direito inicialmente como 11'--forma de qualquer relação social, pode-se dizer que, a priori, as suas características passarão despercebidas. Ao contrário, o direito, enquanto forma de relações de produção e troca, desvenda facilmente, por força de U!Jla ànálise mais ou menos adequada, as suas caracterís· ticas específicas.

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Se os juristas burgueses, que têm tentado defender posições próximas ao materialismo, como por exemplo Gumplowicz, se sentiram obrigados a examinar em detalhes, digamos de ofício, o arsenal de conceitos jurídicos fundamentais, quando mais não fosse para explicar . que estas são construções artificiais, meramente convencionais, os marxistas, que não possuem responsabilidades, particulares em relação à ciência do direito, quedam silentes ante a definição formal da teoria geral do direito, consagrando toda a sua atenção. ao conteúdo concreto das normas jurídicas e à evolução histórica das instituições jurídicas. Em geral, é preciso anotar que os autores marxistas, quando falam de conceitos jurídicos, pensam essencialmente no conteúdo concreto do ordenamento jurídico característico de uma época dada, significa dizer, o que os homens consideram como sendo o direito em uma determinada etapa da evolução. B o que se verifica, por exemplo, na seguinte, formulação: "com base em um estudo determinado de forças produtivas nascem determinadas relações de produção que encontram sua expressão ideal nos conceitos jurídicos dos homens e nas regras mais ou menos abstratas, no direito costu~ meiro e nas leis escritas".U ·

social. Mas o próprio ordenamento jurídico permanece sem ser analisado enquanto forma, apesar da riqueza do conteúdo histórico que introduzimos neste conceito. Ao invés de dispormos de uma totalidade de determinações e de seus vínculos internos, somos compelidos a utilizar, mais modestamente e apenas de forma aproximada, um esboço de análise do fenÔ· meno jurídico. Este esboço é tão fluido que as fronteiras que delimitam a esfera jurídica das esferas vizinhas são completamente enevoadas.U

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O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; . a questão da forma jurídica enquanto tal não é colocada. Contudo não há. dúvida de que a teoria marxista não .deve apenas examinar o conteúdp · concreto dos orden~mentos jurídicos nas diferentes épocas históricas, mas fornecer também uma explicação materialista do ordenamento jurídico como fomia histórica determinada. Se renunciarmos à análise dos conceitos jurídicos fundamentais, obteremos apenas uma teoria jurídica explieativa da origem do ordenamento. jurídico a partir das necessidades materiais da s.ociedade e, conseqüentemente, do fato de que as normas jurídicas correspondem aos interesses de tal ou . qual classe

11. N. Beltov, K voprussu ... (Sobre a evolução da concepção monista da história), Petersburgo, 1894. Beltov é um pseudônimo de G. V. Plékhanov.

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Tal maneira de proceder deve ser reconhecida como justificada até certo ponto. Podemos expor a história econômica e negligenciar completamente as sutilezas e detalhes, por exemplo, da teoria. da renda ou da teoria do salário. Mas o que diríamos de uma história das formas econômicas .na qual as categorias fundamentais da teoria da economia política, ValorCapital-Lucro-Renda, etc., fundamentam-se no conceito vago e indiferenciado de Economia? Não evoquemos a recepção que receberia este tipo de tentativa visando a apresentar tal história econômica como uma teoria da economia política. Entretanto, no domínio da teoria marxista do direito, as coisas ocorrem precisamente como descrito e não de maneira diferente. Podemos sempre consolarmo-nos pensando que os juristas ainda buscam uma definição para o conceito de direito e não conseguem encontrá-la. Ainda que a maioria dos cursos sobre teoria geral comecem habitualmente por esta ou aquela forma, estas, na realidade, não fornecem mais que uma representaçãc confusa, aproximativa e inarticulada do fenômeno jurídico. Pode-se afirmar, de maneira axiomática, que as definições do direito não nos ensinam grande coisa acerca do que ele é realmente, e que, inversamente, o especialista nos faz conhe-

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12. O livro de Micail Nikolajeviê Prokrovskij, Ocerki po istorii russkoj l(ultury (Ensaio sobre a história da cultura russa), onde a definição do clireito se limita às características de imobilidade e de inércia em oposição à mobilidade dos fenômenos econômicos, nos mostrá como a riqueza da exposição histórica se concilia com o mais breve esboço da forma jurídica: cf. op. cit., 2.• ed. M sões possíveis, a cadeia de sujeitos vinculados uns aos outros por pretensões recíprocas, esta é a estrutura jurídica fundamental que corresponde à estrutura econômica, às relações Estas considerações dos juristas burgueses são certamente interessan~ tes, pois significam um sintoma do declínio da época capitalista. Mas a burguesia, de outra parte, somente tolera tais consideraçõ~s acerca das funções sociais da propriedade porque elas não . a comprometem em nada. A antítese real da propriedade, com efeito, não é propriedade concebida como· uma função social, mas a economia planificada socialista; quer dizer, a supressão da propriedade privada, o seu subjetivismo, não cansiste em que "cada um coma o seu pr6prio pão, ou seja, não é o ato de consumo individual, ainda que seja igualmente produtivo, mas na circulação, no ato de apropriação e alienação, na troca de mercadorias onde a. finalidade econômico-social não é nllda além do que o resultado de fins privados e de decisões privadas au~ônomas. A explicação de Duguit, segundo a qual o proprietário não deve ser proegido senão quando cumpra as suas obrigações sociais, não possui nenhum significado ·quando posta nes.tes termos gerais. No Estado burguês é uma hipocrisia, no Estado proletário é uma dissimulação dos fatos.· Pois se o Estado proletário pudesse deixar que cada proprietário, foiir.ttmente, cumprisse sua função social, ele o faria privando dos ·proprietários o direito de dispor de sua propriedade. Porém, se, economica· mettte, ele é incapaz disso, ele tem de proteger o interesse privado enqt~anto tjtl e fixar-lhe, apenas, os limites. Seria uma ilusão afi.rmar que todo iMI'lvíduo que, no interior das fronteiras da União Soviética, acumuleu UllWl . quantidade de dinheiro está protegldo pelas nossas leis e por nossos tribunais apenas porque encontrou, ·para o dinheiro acumulado, uma utt:Uzação ~ocialmente útil. Aliás, Gojchbarg parece ter esquecido. ··a propriedade do capital, sob a sua forma mais abstr!lta, monetária, e raciocina cotriÓ se ·o capital s6 existisse sob a forma concreta de capital proq~,Jtivo. os· ~spectos anti-sociais da propriedade s6 podem ser paralisadQ8. de '}ato,· ou seja, pelo desenvolvimento da economia planificada socialista em detrimento da economia de mercado. Mas nenhu~a espécie de '{órinula mesmo se for extraída das obras dos juristas os mais progressiStas da Europa Ocidental, pode tornar socialmente úteis os COll·

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de produção de uma sociedade baseada na divisão do trabalho e de troca. A organização social que dispõe dos meios de coerção é a totalidade concreta à qual devemos chegar- após termos con- · cebido, puramente, a relação jurídica sob sua forma a mais pura e a mais simples. A obrigação enquanto resultado de um imperativo ou de um CQmando surge, em conseqüência, no estudo da forma jurídica, como um momento que concretiza e complica as coisas. Em sua forma màis abstrata e mais sim~ ' ples, a obrigação jurídica deve ser considerada como reflexa e correlata à pretensão jurídica subjetiva. Se analisarmos a relação jurídica veremos, muito claramente, que a obrigação não pode esgotar o conteúdo lógico da forma jurídica. E mais, ela não é sequer um elemento autônomo desta forma jurídica. A obrigação surge sempre como reflexa e correlata a um direito subjetivo. A dívida, de uma das partes, não é o't!Íra coisa além daquilo que pertence à outra e lhe é garantido. o que é um direito para o credor é uma obrigação para o devedor. A categoria de direito só está logicamente ac,abada no momento em que inclui o titular e o portador do 4ireito c::ujos direitos representam apenas as obrigações correspondent~s de um terceiro para com ele. Esta natureza dúplice do direito é particularmente 1lssinalada por Petrazickij, que lhe dá um fundamento bastante instável em sua .teoria psicológica ad hoc. :e necessário, contudo, obseryar que estas relações recíprocas entre o direito e a obrigação foram formuladas de maneira muito precisa para outros juristas rião suspeitos de psicologismo20. · ~ Portanto, a relação jurídica não .. nos mostra apenas o di'reito em seu movimento real,. nias descobre, igualmente, as propriedades características do direito enquanto categoria lógitratos firmados sob a égide do nosso C6digo Civil e transformar cada proprietário em uma pessoa exercente de uma função social. Uma tal\ supressão verbal da economia privada e do direito privado s6 pode obs· curecer a perspectiva de sua supressão real. 20. Cf. por exemplo, A. Merkel, Juristische Enzyclopi.idie, Leipzig, 1885, § 146, e N. M. Korkunov, Enciklopedija prava (Enciclopédia do Direito), Moscou, 19i8, p. 114.

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ca. · A norma, ao contrário, enquanto tal, quer dizer, enquanto coinando imperlitivo, é tanto um elemento da moral, da estética, da técnica, quanto, ao mesmo título, um elemento do direito. A diferença entre a técnica o &reito não consiste absolutamente, como .pensa I . Alekseev, em que a técnica pressu" põe uma finalidade exterior à sua própria matéria, enquanto que na ordem jurídica todo sujeito constitui um fim em sF1 • Nas páginas seguintes mostraremos que para a ordem jurídica o "fim em si" nada mais é do que a circulaÇão de mercadà.rias. No que concerne, todavia, à técnica do pedagogo ou do cirurgião; que têm, respectivamente, como matéria, um, o psiquismo da criança, o outro, o organismo do paciente operado, ninguém poderá contestar que a matéria, também aqui, contém igualmente o ein si, o fim. A ordem jurídica. se distingue, precisamente, de qualquer outra espécie de ordem social no que cohcerne aos sujeitos privados isolados. A norma jurídica deve sua especificidade, que a distingue da massa de outras regras morais, estéticas, utilitárias, etc., precisamente ao fatp de que ela pressupõe uma pessoa munida de direitos, fazendo valer, ~través deles, . · ativamente, suas pretensões22 • A tendência a fazer da· regulamentação externa o momento lógico fundamental do direito conduz a identificar o direito com .·a ordem social estabelecida autoritariamente. Esta tendência do pensamento jurídico refiete, fielmente, o espírito de nossa época, na qual a ideologia de Manchester e a livre concorrência foram substituídas pelos grandes monopólios capitalistas e pela política imperialista. O capital financeiro aprecia mais um poder forte e a disciplina do que ''os direitos eternos e intangíveis do homem e do cidadão". O proprietário capitalista, transformado em entesourador de dividendos e lucros .da bolsa, não pode deixar

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21. I. Alekseev, Vvedenie v _i:tucel'iie prava (Introdução ao estudo do direito), Moscou, 1918, p. 114. · 22. "0 direito não é dado gratuitamente a quem dele tem ne· cessidade". M. A. Muromcev, Obrazovanie prava (A formaçao do dl· , reito), 1885, p. 33.

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de considerar com um certo cinismo o "direito sagrado de propriedade". Basta nos reportarmos à!r lamentações de lhe~ ring sobre a ''abjeta especulaÇão na bolsa e a agiotagem fraudulenta" onde perece o "sentimento nàrmal do direitG"21 • Não é difícil provar que a idéia de s.ubmissão incondicional a uma autoridade normativa externa não possui a mínima relação com a forma ,jurídica. J! ··suficiente tomarmos de assumir a. forma de· um poder público. O princípio da concorrência que dirige o mundo bur-

guês-capitalista não. permite, como já dissemos, nenhuma possibilidade de vincular o poder político .ab empresário individual (como no feudalismo, onde este poder es1ava vinculado

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à grande propriedade fundiária) . "A livre. concorrência, a liberdade de propriedade 'privada 'a igua!d~de de direitos' ~o mercado, e a garanti;t da existência· da classe ·unicamente romo tal, criavam uma nova forma de poder estat~l, i a democracia, que faz uma classe aceder coletivamente ao poder". 10

B perfeitamente exato que "a igualdade de direitos" no mercado cria uma forma específica de poder, mas o vínculo entre estes fenômenos não se situa lá .onde Podvplockij crê que ele esteja. Em primeiro lugar, o poder, mesmo que não esteja ligado a uni capitalista individual, pode permanecer um negócio privado da organização capitalista. As associações de indústrias, com suas reservas financeiras em caso de conflito, suas listas negras, seus lock-out e seus bandos de ''fura-greves" são indubitavelmente órgãos de poder que existem a0 ]ado do poder oficial, do poder estatal. Ademais, a autoridade no interior da empresa continua assunto do capitalista individual. A ·instauração de uma ordem interna do trabalho é um elo de regulamentação privada, isto é, um elemento autêntico do feudalismo, ainda que os juristas burg,ueses façam m)Jito esforço para dar ao fato .um colorido moderno, construindo a ficção de um autodenominado contrat d'adhésim:z 11 ou de ple· nos poderes particulares que o capitalista teria pretensamente recebido dos órgãos do ·poder público a fim de "exercer com sucesso a função social necessária e útil da empresa" .12 Contudo, no presente caso, a analogia com as relações feudais não é forçosamente exata, pois, como cÜz Marx,· "a autoridade do capitalista, no prccesso direto de produção, porque ele personifica o capital, a função social que lhe vale na qualidade de diretor e mestre da produção, difere essencialmente da autoridade baseada sobre a produção realizada por

10. I. P. Podvolockij, Marksistskaja teorija prava, op. cit.; 1923, .p. 33. 11. Em francês no original (N. do T.). 12. Tal', "Juridiceskaja priroda organicii i1i vnutrennego porjadka predprijatija" (A natureza jurídica da organização ou .a ordem interna da empresa), in: Juridicerkij Vestnik, 1915, IX (I).

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escravos, servos, etc. No regime capitalista de produção, a massa dos produtores diretos se encontra fac1 a face com o caráter social de sua produção, sob a forma de uma autoridade organizativa severa e de um mecanismo social perfeitamente hierarquizado do processo de. trabalho (mas os detentores desta autoridade não são mais, como nas anteriores formas de produção, senhores polítiCos ou teocráticos; se eles a detêm, é simplesmente porque eles personificam os meios de trabalho em relação ao trabalho)".13 As relações de dominação e servidão podem igualmente existir nos quadros do modo de produ· ção capitalista, sem se distanciarem da forma concreta com que se apresentam: como dominação das relações de produção sobre os produtores. Mas sendo dado precisamente que elas não surgem sob uma forma mascarada, como no escravismo ou no regime de' .servidão/4 explica-se por que passam despercebidas aos olhos dos juristas.

1cantil a subordinação ao arbítrio, pois isto significa a subor1, dinação de um produtor de mercadorias a outro. Por isso a coação não pode surgir sob sua forma não mascarada, como um simples ato de oportunidade . Ela deve aparecer como uma coação proveniente de uma pessoa coletiva abstrata e que não é exercida no interesse do indivíduo do qual provém - pois cada homem é um homem egoísta na sociedade de produção mercantil - , mas no interesse de todos os membros partícipes das relações jurídicas. O poder de um homem sobre um outro homem é transposto para a realidade como o poder de uma maneira objetiva,· imparcial.

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Na medida em que a sociedáde representa um mercado, a máquina do Estado se realiza efetivamente como a vontade geral e in1pessoal, como autoridade de direito, etc .. No mercado, como já vimos, cada comprador e cada vendedor é sujeito de direito por excelência. Onde as categorias valor e valor de troca entram em cena, a vontade autônoma dos trocadores é uma condição indispensável. O valor de troca deixa de ser valor de troca, a mercadoria deixa de ser mercadoria quando as proporções de troca são determinadas por uma autoridade situada fora das leis imanentes do mercado. A, coação, enquanto uma função baseada na violência e endereçad;l por um indivíduo a outro indivíduo, contradiz as premissas fundamentais das relações entre proprietários de mercadorias,. ~ por isso que, em uma sociedade de proprietários de mercadorias e no interior do ato da troca, a função da coação não pode aparecer como função social, dado que ela não é impessoal e abstrata. A subordinação a um homem enquanto tal, como indivíduo concreto, significa na sociedade de produção me:r-

13. 14.

K. Marx, O Capital, L. I li, cap. LI, op. cit., t. I li, p. 255/6. Id., cap. XLVIII, p. 209. '

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O pensamento burguês que toma o quadro da produção mercantil pelo quadro eterno e natural de qualquer sociedade considera o poder do Estado em abstrato como um elemento pertencente às sociedades em geral. Este pensamento foi expresso de maneira singela pelos teóricos do direito natural que fundamentaram sua teoria do poder sobre a idéia de relações entre pessoas independentes e iguais e que pensavam tais princípios derivassem das próprias rdações humanas. Eles não fizeram mais do que desenvolver, em suas diversas nuances, a idéia de um poder que vinculasse entre si os proprietários de mercadorias . ~ isto que explica os traços fundamentais desta doutrina, que já aparecem muito claramente em Grotius. Para o mercado, os proprietários de mercadorias que participam das trocas são o fato primário, enquanto que a ordem autoritária é algo derivado, secundário, algo que, do exterior, se acresce aos proprietários existentes. Por isso, os teóricos do direito natural não consideram que o poder estatal seja um fenômeno surgido historicamente e, por conseqüência, vinculado às forças que agem na sociedade em questão, mas encaram-no de maneira abstrata e racionalista. Nas relações entre proprietários de mercadorias, a necessi>dáde de uma coação autoritária surge "'quando a paz foi quebrada ou que os contratos não foram plenamente observados. Assim, a dou~ trina do direito natural reduz a função do poder estátal à manutenção da paz e reserva ao Estado a exclusividade de ser instrumento do direito. Enfim, no mercado, cada proprietário de mercadorias possui esta qualidade graças à vontade

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1dos outros .e todos são proprietários de mercadorias pela vontade comum. B devido a isto que a doutrina do direito na' tural faz derivar o Estado do contrato social havido entre diferentes pessoas isoladas. Este é o esqueleto de toda doutrina que, segundo a situação histórica ou a simpatia política e a capacidade dialética de tal ou qual autor, tolera as mais diversas variações concretas. Ela permite desvios republicanos ou monarquistas e, em geral, os graus mais diversificados de democratismo e revolucionarismo.

rais da lei que exprimem a vontade do Estado.16 Quanto a este · ponto, a: doutrina do direito natural não é mais realista dq que qualquer outra doutrina jurídica do Estado, inclusive a doutrina mais positivista. O essencial ·da doutrina do ·direito natural consiste em admitir,. ao lado das diversas formas de dependência de um homem em· relação a outro (dependência que esta doutrina abstrai), um outro tipo de dependência, aquela em relação à vontade geral e impessoal do Estado. Mas é precisamente esta construção que igualmente constitui o fundamento da teoria jurídica do "Estado como pessoa". O elemento de direito natural está situado mais profundamente nas teorias jurídicas do Estado do que parece aos críticos da doutrina· do direito natural. Ele reside no próprio conceito de poder púbiicó, isto é, um poder que não pertence a ninguém em particular, que se situa acima de todos e que se dirige a todos. Orientando-se segundo este conceito, a teoria jurídica inevitavelmente perde o contato com a realidade, A. diferença entre a doutrina do direito natural e o positivismo jurídico moderno consiste unicamente no fato de que a primeira percebeu, muito mais claramente, o vínculo lógico existente entre o poder de Estado abstrato e o sujeito abstrato. Ela toma as relações mistificadas da sociedade de produção mercantil em sua conexão necessária e fornece, assim, um exemplo de clareza clássica. O chamado positivismo jurídico, pelo contrário, não classificou suas própr!as premissas lógicas.

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Afinal, esta teoria foi a bandeira revolucionária sob a qual a burguesia. efetivou as suas lutas revolucionárias contra a sociedade feudal. Isto igualmente determina: o destino da doutrina. Desde que a burguesia se transformou em classe dominante, o passado revolucionário do direito natural começou a gerar apreensões, e as teorias· dominantes .apressaram-se em pô-lo de lado. Certamente a teoria do direito natural não resiste a uma crítica histórica ou socialista, pois a imagem por ela dada não corresponde em hipótese. alguma à realidade. Mas o mais singular é que a teoria jurídica do Estado, que substituiu a teoria do direito natural· e que rejei~ tou a teoria dos direitos inatos e inalienáveis do homem e do cidadão, dando-se a denominação de teoria "primitiva", igualmente deforma a realidade.15 Ela é coagida a deformar· a realidade porque toda teoria jurídica do Estado deve necessariamente figurar o Estado como uma potência autônoma, separada da sociedade.' :É exatamente nisto que reside o aspecto jurídico desta doutrina. ' Por isto, ainda ·que a atividade de organização estatal tenha lugar sob a forma de ordens e decretos emanados de pessoas s~gulares, a forma jurídica admite em primeiro lugar que não são pessoas que dão as ordens, mas o Estado, e; em segundo lugar que estas ordens são submetidas às· normas ge15. Não preciso provar detalhadamente esta proposição, pois posso referir-me à crítica das teorias jurídicas de Laband, Jellinek, etc. feita por Gumplowicz (cf. os seus livros Rechtsstaat und Sozialismus e Gechschite dré Siaat$theorine) ou ainda ao mãrcante ~rabalho de V. V. Adorackij, Gosudarstvo (O Estado), Moscou, 1923.

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16. Devemos pôr em relevo uma pequena contradição. Se não são os homens que agem, mas sim o próprio Estado, por que insistir na submissão às normas deste mesmo Estado? Com efeito, é apenas a repetição da mesma coisa. Aliás, em geral, a teoria dos órgãos do Estado é uma das pedras fundamentais da teoria jurídica. Uma vez vinda a lume a definição do Estado, o jurista que quiser continuar a defender a tese encontra um novo amparo: o conceito de "órgão". Assim, por exemplo, em Jellinck, o Estado não possui vontade, mas os órgãos qo Estado a possuem. ~ preciso indagar-se: como surgem estes órgãos? Sem órgão não existe Estado. A tentativa de atenuar a dificuldade, cone cebendo o Estado como uma relação jurídica, apenas substitui o problema geral por uma série de casos particulares nos quais ela se desàgrega. Toda relação jurídica concreta de direito público contém, em si, o mesmo elemento de mistificação que se encontra no conceito geral de "Estado como pessoa". •

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O Estado jurídico é uma miragem, mas uma miragem muito conveniente para a burguesia, pois ele substitui a ideologia religiosa em decomposição e esconde, dos olhos das massas, a realidade da dominação burguesa. A ideologia do Estado jurídico convém mais do que a ideologia religiosa, porque não reflete inteiramente a realidade objetiva, ainda que se apóie sobre ela. A autoridade como "vontade geral", como ''força do direito", se realiza nll' sociedade burguesa na medida em que esta representa um mercado.17 Deste ponto de vista, os regulamentos baixados pela polícia podem figurar, igualmente, como a encarnação da idéia kantiana de liberdade limitada pela liberdade do outro. Os proprietários de mercadorias, livres e iguais, que se encontram no mercado, não são como na relação abstrata de apropriação e aliena~ão. Na vida real, são vinculados por todos os tipos de relações de dependência recíproca; como, por exemplo, o pequeno comerci~nte e o comerciante atacadista, o camponês e o proprietário fundiário, o devedor arruinado e o seu credor, o proletário e o capitalista. Todas estas -~ inúmeras relações concretas de dependência constituem· o funi';f damento real da organização do Estado. Contudo, para a teo'+\;'~t ria jurídica do Estado, é como se elas não existissem. E mais, \~r a vida do Estado consiste em lutas entre diferentes forças polí~1;~~ ticas, de classes, de partidos, de todos os tipos possíveis de \?,,~grupamento; é aí que se escondem os verdadeiros mecanis-;~os do Estado. Estes permanecem tão incompreensíveis para

';~; ~l7. Lorenz Stein, como se sabe, opôs o Estado ideal, situado acima da s~ciedade, isto é, segundo a nossa terminologia, ao Estado de classe. CorlÍo tal ele designou o Estado feudal absolutista, que protege os privilé· gios 'âa grande· propriedade fundiária, e o Estado capitalista, que garante os privilégios da burguesia. Mas, uma vez tenhamos compreendido estas realid!ldes históricas, não resta mais que o Estado como quimera de um funciol:).áriD prussiano ou o Estado como garantia abstrata das condições das trocas fundadas sobre o valor. Na realidade histórica, contudo, o "Estado de direito", ou seja, o Estado situado acima da sociedade, só se realiza de fato como o seu contrário, como "um comitê executivo dos .. negócios da burguesia".

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a .teoria jurídica como. as relações anteriormente mencionadas. Sem dúvida, o jurista pode prever uma maior ou menor capacidade de adaptação aos fatos, pode, por exemplo, ao lado do direito escrito, considerar igualmente as regras não escritas que surgem progressivamente da prática do Estado, mas isto nada muda em sua posição de princípio em relação à realidade. Uma certa discordância entre a verdade jurídica e a verdade que é o objeto da pesquisa histórica e sociológica é inevitável. Isto não provém apenas do fato de que o dina~ mismo da vida social transborda as margens das formas jurí• dicas e de que o jurista está condenado a estar sempre atrasado em sua análise; pois se o jurista permanece, digamos, à jour 18 com os fatos em suas afirmações, ele os reproduz de forma diferente da sociologia. O jurista, com efeito, se permanece jurista, parte do conceito de Estado como força autônoma que se opõe a todas as outras forçf!s individuais e sociais. Do ponto de vista histórico e político, as decisões de uma organização de classe ou de um partido influentes possuem importância tão grande e, às vezes, ainda maior do que as decisões do parlamento ou de qualquer outra instituição._ do Estado. Do ponto de vista jurídico, pelo contrário, tal tipo de fato não existe. Inversamente, se colocarmos entre parêntesis o ponto de vista jurídico, poderemos perceber em cada decisão do parlamento, não um ato de Estado, mas uma decisão tomada por um grupo ou clã determinados (que agem tão movidos por motivos individuais egoísticos ou por motivos de classe como qualquer outro grupo). O teórico mais externado do normativismo, Kelsen, conclui que, em geral, o Estado só existe -eomo produto de pensamento, como sistema fe· chado de normas ou de obrigações. Tal materialidade do objeto da 'teoria do direito público deve certamente espantar os juristas práticos. Estes percebem, por certo, se não racionalmente, pelo menos instintivamente, o valor indubitavelmente prático de seus conceitos, precisamente neste mundo iníquo e não apenas no mundo de pura lógica. "O Estado" dos ju: . ristas, apesar de sua "natureza ideológica'', é ligado a uma 18.

Em francês, no .. original: em dia, atualizado (N. do T.).

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realidade objetiva, assim como o sonho mais fantástico repous~ sobre a realidade. Esta realidade é, antes de tudo, o próprio aparelho de Estado c.om todos os seus elementos materiais e humanos. Antes de criar teorias. acabadas, a burguesia construiu seu Estado na prática. O processo começou na Europa ocidental pelas comunidades· urbanas.19 Ainda que o mundo feudal ignorasse qualquer diferença entre as fontes pessoais de recursos do senhor feudal e as fontes de recurso da comunidade política, o tesouro municipal comum aparecia,· de início, esporadicamente nas cidades e posteriormente como instituição permanente.20 O espírito dos "negócios de Estado" adquire, então; seu assento material. A· criação de recursos estatais favoreceu o aparecimento de homens que vivam destes recursos: empregados e funcionários. Na época feudal, as funções administrativas e judiciárias eram preenchidas pelos vassalos do senhor feudal. Os serviços públicos, no sentido próprio· do termo, só apareceram nas- comunidades urbanas; o caráter público ·da autoridade encontra então a sua encarnação material. A formàção, no sentido de direito privado, de um mandato. dado para a realização de negócios jurídicos, separa-se do serviço público. A monarquia absoluta não fez mais do que tomar posse desta forma de autoridade pública, que nasceu nas vilas, e aplicá-la a um território mais vasto. Todo aperfeiçoamento posterior do Estado burguês, que se realizou mais por explosões revolucionárias. do que .por uma .adaptação pacífica dos elementos monárquicos feudais, pode ser remetido a um princípio único 19. S. A. Kotljarevskij, Vlast' i pravo, op. cit., p. 193. 20. A· antiga comunidade. alemã, a Marka, não ·era uma pessoa jurídica que dispusesse de propriedade. O caráter público .dos pastos expiimia-se no fato de que eram utilizados por todos os membros da Marka. As contribuições destinadas às necessidades públicas só eram percebidas esporadicamente e. Sempre na estrita proporção da neces·sidade. Se houvesse um excedente, este era destinado à subsistência comum. Este uso mostra quanto era estranha a idéia de rendas 'públicas permanentes.

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segundo o qual nenhum dos dois trocadores pode, no merca· do, regular as relações de troca por sua própria autoridade; nesta hipótese, exige-se uma terceira parte que encarne a garantia recíproca que os possuidores de mercadorias acordam mutuamente, devido a sua qualidade de proprietários, e que personifique, em conseqüência, as regras das relações de troca entre os · possuidores de mercadorias . A burguesia colocou este con.ceito jurídico de Estado na base de mais teorias e tentou transpô-lo à prática. Ela o fez dei1 xandO'-se guiar pelo famoso princípio ''tanto por tantom • Com efeito, a burguesia jamais perdeu de vista, em nome da pureza histórica, o outro aspecto da questão, a saber, que a sociedade de classe não é somente um mercado no qual se encontram

21. A burguesia inglesa, que assumiu antes que todas as outras burguesias a dominação do mercado mundial e que, dada a sua situação insular, sentia-se invulnerável, pôde ir mais longe que todas as outras burguesias na direção da realização do "Estado de direito". A realização mais conseqüente do princípio jurídico nas relações recíprocas entre o poder de Estado e o sujeito singular, como a garantia mais eficaz para que os detentores do poder não ultrapassem o seu papel, o da personificação de uma norma objetiva, são dadas pela subordinação dos órgãos estatais à jurisdição de um tribunal independente (que, entenda-se, não é independente da burguesia). O sistema anglo-saxão é uma forma de apoteose da democracia burguesa. Mas, em outras condições históricas, a burguesia está igualmente preparada, digamos, no pior dos casos, a se acomodar em um sistema que pode ser designado como a "separação· da propriedade do Estado;' ou "cesarismo". Neste caso, a malta reinante, com o seu arbítrio despótico ilimitado (que segue duas direções: ul]la interna contra o proletariado e outra externa sob a forma de uma polí· tica exterior imperialista), criou, aparentemente, o terreno para a "livre autodeterminação da pessoa" na vida social. Destarte, segundo Kotljarevskij, "o individualismo jurídico privado concorda, no geral, com o despotismo político. O códigó civil nasceu em uma época que não só é caracterizada pela falta de liberdàtie política na ordem estatal francesa, mas igualmente por uma certa indiferença com relação a esta liberdade, que já. se manifestava desde o 18 Brumário: Tal liberdade jurídica priva· da não somente dá lugar a uma acomodação em referência a muitos aspectos do Estado, mas, também, confere a este último um certo caráter de legalidade" (Vlast' i pravo, op;· cit., p. 171). Encontramos uma bri· lhante caracterização das relações entre Napoleão I c a sociedade. civil na Sagrada Família, de Marx, p. 150.

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os proprietários independentes de mercadorias, mas que é, também; um campo de batalha de uma feroz guerra de classes, na qual o Estado representa uma arma muito poderosa. Sobre este campo de batalha, as relações não se formam no espírito kantiano do direito como a restrição mínima de liberdade individual, indispensável à coexistência humana. Gumplowicz tem plena razão quando explica que tal tipo de direito nunca existiu, pois "o grau de 'liberdade' de uns não .depende do grau de dominação de outros. A norma de coexistência não é determinada pela possibilidade da coexistência, mas pela dominação de uns sobre os outros". O Estado como fator de força na política interior e exterior: esta é a correção que a burguesia deve fazer. à sua teoria e à sua prática do "estado jurídico". Quanto mais a dominação da burguesia for ameaçada, mais estas correções se tomam comprometedoras e mais rapidamente o "Estado jurídico" se transforma em uma sombra material, até que a agravação ·extraordinária da luta de classes force a burguesia a rasgar inteiramente a máscara do Estado de direito e a revelar a essência do poder de Éstado \ como a violência· organizada de uma classe social contra as outras. ·

Capítulo Seis

DIREITO E MORAL

Para que os produtos do trabalho humano possam relacionar-se· uns com os outros como valores, os homens devem comportar-se, uns em relação aos outros, como pessoas independenies e iguais. Quando um homem se encontra subjugado. acr poder de um outro, isto é, quando é escravo, seu trabalho deixa de ser criador e substância de valores. A força de trabalho do escravo só transmite ao produto, assim como a força de trabalho dos animais domésticos, uma parte determinada dos custos de sua própria produção e reprodução. Tugan-Baranovskij conclui daí que só se pode compreender a economia política partindo . da idéia diretriz ética do valor supremo e, portanto, da igualdade das pessoas humanas.1 Marx, como se sabe, chega a concluRão .oposta: ele relaciona a idéia ética da igualdade das pessoas humanas com forma mercantil, ou seja, fa:z derivar esta idéia de equalização prática de. todas as variedades do trabalho humano entre si. Efetivamente, o homem, enquanto sujeito moral, quer dizer, enquanto pessoa igual às· outras pessoas, nada mais é do que a condição prévia da troca com base na lei ificada dos produtos trocados . Se destacarmos estas determinações das relações soc1a1s reais que exprimem, e se tentarmos desenvolvê-las como categorias autônomas (pela via purameri.te especulativa), obteremos por resultado um caos de contradições e proposições que se renegam reciprocamente2 • Mas, na relação de troca real, estas contradições se articulam dialeticamente em uma totalidade. O agente da troca deve ser egoísta, deve ater-se ao puro cálculo econômico, do contrário a relação de valor não pode manifestar-se como uma relação social necessária. O agente da troca deve ser portador de direitos, isto é, deve ter a possibilidade de tomar uma decisão autônoma, pois sua vontade deve, com efeito, "habitar as coisas,.. Finalmente, o agente da troca encarna o princípio da igualdade fundamental das pessoas humanas, pois as trocas de todas as -variedades de trabalho são assimiladas umas às outras. e reduzidas ao trabalho humano abstrato. Assim, os três momentos acima mencionados, ou como antes se gostaria de dizer, os três princípios elo egoísmo, da liberdade e do valor supremo da pessoa, são indissoluvelmente ligados uns aos outros e representam, em sua totalidade, a expressão racional de uma só e mesma relação social. O su2. Os revolucionários pequeno-burgueses, os jacobinos, enredaramse tragicamente nestas contradições ..Eles quiseram submeter o desenvolvimento real da sociedade burguesa às. formas de virtudes cívicas emprestadas da Roma antiga.· Már:X: disse a este propósito: "Ser obrigado a reconhecer e sancionar nOs direitos do homem a sociedade burguesa moderna, a sociedade da indústria, da concorrência universal, dos interesses privados que buscam. seus fins, este regime de anarquia, de individualismo natural e esPiritual; qu~r ao mesmo tempo anular, de um golpe. de tal ou tal indivíduo particular as manifestações vitais desta sociedade, pretendendo apenas fazer à antiga a cabeça política desta sociedade: que colossal .ilusão!" (A Sagrada Familia, p. 1.48).

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jeito egoísta, o sujeito de direito e a pessoa moral são as ttês principais máscaras sob as quais surge o homem na sociedade de produção mercantil. A economia das relações de valor nos fornece a chave para compreender a estrutura jurídica e moral, não no sentido do conteúdo . concreto da norma jurídica ou moral, mas no sentido da própria forma do direito e da moral. A idéia do valor supremo e da igualdade de princípio das pessoas humanas tem uma longa história: da filosofia estóica ela passou aos usos dos juristas romanos, aos dogmas da Igreja cristã e em seguida à doutrina do direito natural. A existência da escravidão na Roma antiga não impediu Sêneca de se convencer de que, "mesmo se o corpo pode ser escravo e pertencer a um senhor, a alma permanece sui juris". Kant, no fundo, não deu um .grande passo à frente em comparação a esta fórmula. Nele igualmente a autonomia prinéipal da pessoa se deixa conciliar muito bem com visões puramente feudais sobre as relações entre o senhor e a vassalagem. Mas, qualquer que seja a forma que possa assumir esta idéia, redescobrimos nela, unicamente, a expressão do fato de que as diferentes variedades concretas do trabalho social útil reduzem-se ao trabalho em geral, desde que os produtos do trabalho são trocados como mercadorias . Em todas as outras relações, a desigualdade dos homens entre si (desigualdade de sexo, de classes, etc.) salta aos olhos de maneira tão evidente ao longo dà história, que causa espanto, não a abundância de argumentos, neste particular, que têm sido apresentados contra a doutrina da igualdade natural dos homens, pelos seus diferentes adversários, mas, sim, que, antes de Marx, ninguém tenha se interrogado sobre as causas históricas que favoreceram o nascimento deste preceito do direito natural. Pois, se o pensamento humano, ao longo de séculos, sempre se tem voltado com tanta obstinação à tese da igualdade dos homens e a elaborou de mi\ maneiras, é porque deve haver por detrás desta tese uma qualquer relação objetiva. Sem nenhuma dú• Vida o conce:to de pessoa moral ou de pessoa igual é uma deformação ideológica que, como tal, não é adequada à realidade. O conceito de sujeito ·econômico egoísta é igualmente uma deformação ideológica da verdade. Contudo, assim mes·

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mo, estas duas determinações são adequadas a uma relação social específica, mesmo que a exprimam de maneira abstrata e, por conseqüência, unilateral. Já tivemos ocasião de indicar que, em geral, o conceito ou a pequena palavra "ideologia" não deveria impedir que a análise fosse efetuada em profundidade. Simplificaríamos muito a nossa tarefa se nos. satisfi~ zéssemos com" a explicação segundo a qual a noção de homem igual a outro homem é unicamente ·Criação da ideologia. Os~ conceitos de "alto" e ''baixo" são conceitos que exprimem a nossa ideologia ''terrestre"; no entanto, são fundados na realidade efetiva, indubitável, da gravitação. Foi precisamente quando o homem reconheceu a causa real que lhe constrangia a distinguir o "alto" do "baixo", isto é, a força de gravidade dirigida em direção ao centro da terra; que ele captou igualmente o caráter limitado destas definições que as impedem de serem aplicadas a todas as reaEdades cósmicas. Assim, a descoberta da natureza ideológica de um conceito não é senão o reverso do estabelecimento de sua verdade.

sua universalidade . A ética kantiana é a ética típica da sociedade de produção mercantil, mas, igualmente, é a forma mais pura e acabada da ética em g»:ral. Kant conferiu a esta forma uma figura lógica acabada, que a sociedade burguesa atomizada esforçou-se em transportar para a realidade, libertando a pessoa dos liames orgânicos das épocas patriarcais e feudais. 3 Os conceitos fundamentais da moral perdem sua significação, se os destacarmos da sociedade de produção mercantil e se tentarmos aplicá-los a uma outra estrutura. O imperativo categórico não é, de forma alguma, um instituto social, pois sua destinação essencial é ser ativo onde seja impossível qualquer motivação natural, orgânica, supra-individual. Onde exista uma estreita ligação emocional entre os indivíduos, que transborde os limites do Eu individual, o fenômeno da obrigação moral não pode ter lugar. Se quisermos compreender está categoria, não devemos partir do vínculo orgânico existente, por exemplo, entre a mulher e seu filho, ou entre a família e cada um de seus membros, mas do estado de isolamento. O ser .moral é um cómplemento .necessário do ser jurídico, e os dois são modos de relações entre os produtores de mercadorias. Todo o pathos do imperativo categórico kantiano reduz-se a que o homem cumpra "livremente", ou seja, por con• vicção interna. aquilo gue ele seria compelido a fazer no âmbito do direito. Quanto a isto, os exemplos que Kant cita, para ilustrar o seu .pensamento, são muito característicos. Eles redu· zem-se. a simples manifestações de conveniência burguesa. O heroísmo e as proezas não encontram lugar nos quadros do imperativo kantiano. Não é necessário sacrificar-se, desde que não exijamos do outro tal sacrifício. As ações "irracionais"

Se a pessoa moral não é outra coisa além do sujeito da sociedade de produção mercantil, então a lei moral deve se manifestar como regra das. relações entre proprietários de mercadorias. Isto confere, inevitavelmente, à lei moral tim caráter antinômico. De uma parte, esta lei deve ser social e. encontrar-se, portanto, acima da pessoa individual; de outra parte, o proprietário de mercadorias é por natureza o portador da liberdade (da liberdade de apropriação e de alienação), de sorte que a regra que determina as relações entre proprietários de mercadorias deve ser igualmente transportada à alma de cada proprietário de mercadorias, ser à s.ua lei interna. O im.perativo categórico de Kant uniu estas exigências contraditórias. Ele é supra-individual, porque não tem nada a ver com impulsos naturais (temor, simpatia, piedade, sentimentos de solidariedade, etc.). Segundo as palavras de Kant, efetivamente, ele não ameaça, não persuade, não lisonjeia. Está situado fora de toda motivação empírica, isto é, simplesmente humana. Ao mesmo tempo, ele se manifesta independentemente de qualquer pressão exterior, no significado direto e grosseiro da palavra . Age exclusivamente pela consciência de

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3. A doutrina ética de Kant deixa-se conciliar muito facilmente com a fé eni Deus, tanto mais que ela é o último refúgio desta fé. Mas um vínculo entre as duas não é logicamente necessário. Aliás, o Deus que busca proteção na sombra do imperativo categórico torna-se uma abstração muito tênue e pouco aprofundada para intimidar as massas populares. Eis por que a reação clérico-feudal se fixou por tarefa polemizar contra o formalismo inerte de Kant, de estabelecer um Deus mais seguro, que "reina", por assim dizer, e que coloca no lugar do impera· tivo categórico os sentimentos vivos de "vergonha, compaixão e de veneração" (Vladimir Solov'ev).

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de abnegação tanto quanto o desprezo de seus próprios interesses em nome da construção de uma vocação histórica, de sua função social, ações nas quais se manifesta a mais alta tep.são do instinto social, sitUam-se fora da ética, no sentido estrito do termo4 •

O universalismo da forma ética (e, por conseguinte, também da forma jurídica) -:- todos os homens são iguais, todos possuem uma mesma "alma", todos podem ser sujeitos de direito,· etc. - foi imposto aos Romanos pela prática de rela.ções comerciais com os estrangeiros, isto é, com pessoas de costumes, de línguas, de religiões diferentes. Talvez tenha sido por isto que, de início, ele teve alguma dificuldade em ser considerado como algo positivo, quanto mais não fosse porque implicava na rejeição dos próprios costumes romanos enraizados: amor a si próptio e desprezo pelo estrangeiro. Maine informa que o jus gentium era uma conseqüência do desprezo que os Romanos dedicavam a todo direito estrangeiro. e da sua hostilidade em conceder aos estrangeiros os privilégios do jus civile de · seu país. Segundo Maine, a Roma antiga gostava tão pouco do jus gentium quanto dos estrangeiros para os quais este era feito. A palavra "aequitas" significava igualdade e, talvez, nenhuma nuance ética fosse, de início, verdaJeiramente inerente a esta expressão. Não existe nenhuma razão em admitir que o processo designado por esta expressão tenha suscitado, no espírito de um Romano primitivo, outra coisa além de Upl sentimento de aversão6 • Todavia, a ética racionalista de sociedade de produção mercantil apresentou-se, ulteriormente, como uma grande conquista e um valor culturál muito alto, do qual temos o hábito de falar unicamente em um tom de entusiasmo. :É suficiente relembrar a célebre frase de Kant: "Duas coisas preenchemme o coração de uma admiração e de uma veneração sempre novas e sempre crescentes à medida que minha reflexão sobre elas se volta e se aplica: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim"7 • Contudo, quando o discurso cita um semelhante "livre" cumprimento do dever moral, são sempre os mesmos exemplos que entram em cena - esmolas dadas a um pobre ou negativa de mentir quando seria possível fazê-lo impunemente. Por

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Schopenhauer e, depois dele, V. Solov'ev definiram o direito como um certo mínimo ético. Pela mesma razão pode se definir a ética como um certo mínimo social. A maior intensidade do sentimento social se encontra fora da ética, no sentido estrito deste termo, e é uma herança transmitida pelas épocas orgânicas precedentes, notadamente pela ordem gentílica, à humanidade atual. Engels, por exemplo, diz o que se segue ao comparar o caráter dos antigos Germânicos · e dos Romanos civilizados: "seu valor e sua bravura pessoal, seu espírito de liberdade e seu instinto democrático, que via em todos os. assuntos públicos um assunto pessoal, em resumo, todas as qualidades que os Romanos perderam, e que só eles eram capazes de modelar com o barro do mundo romano Estados novos e de fazer crescer as novas nacionalidades; ora, o que é isto senão os traços característicos do Bárbaro do estágio superior, fruto da organização gentílica?"5 O único aspecto pelo qual a ética racion'alista eleva-se, efetivamente, acima dos instintos sociais, poderosos e irracionais, é o seu universalismo que se estende a todos os homens. Ela tende a quebrar todas as estruturas orgânicas, necessariamente, estreitas da tribo, da gens, da nação e a tornar~se universal,. Ela, assim reflete as conquistas materiais determinadas da humanidade, notadamente a transfowação do comércio em comércio· mundial. A fórmula "nem ~rego, nem judeu" é reflexo de uma situação histórica real: a unificação dos povos sob o domínio de Roma. 4. ~ por isto que o professor Magaziner, por exemplo, tem razão quando qualifica a ética neste sentido de "moderacão e exatidão" e opõe-lhe o heroísmo que empurra os homens para ações que ultrapassam os seus deveres (J. M. Maga~iner, Obscee ucenie o gosudarstve [Teoria geral do Estado], 2.•, ed., Petrogrado, 1922, p. 50). 5. F. Engels, A origem da família ... , op. cit., p. 143.

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6: Summer Maine, Ancient Law, trad. russa de N. Belozerskaia. 1873, p. 40 e 47. 7. I. Kant, Crítica. da Razão prática, 1788.

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outro lado, Kant observa muito justamente que a regra ''considera teu próximo como um fim em si" só tem sentido onde o homem pode ser transformado praticamente em .um meio para outro homem. O pathos moral está indissoluvel~ mente ligado à moral da prática social e dela se alimenta. As doutrinas morais têm a pretensão de mudar o mundo e melhorá-lo, mas, em realidade, não passam de um reflexo deformado de um aspecto deste mundo verdadeiro precisamen~ ·te o aspecto que mostra as relações humanas submetidas à lei do valor. ~ necessário não esquecer que a pessoa moral não é mais do que uma das hipóstases do sujeito trinitário; o homem como um fim em si· nada mais é do que um outro aspecto do sujeito econômico egoísta. Uma ação que é verdadeira e única encarnação do princípio ético contém também a negação deste princípio. O grande capitalista arruína de· "boa fé" o pequeno capitalista sem se importar com o valor absoluto de sua pessoa. A pessoa do proletário é "igual em princípio" à pessoa do capitalista; isto se exprime no "livre" contrato de trabalho. Mas esta mesma ''liberdade materializada" resulta, para o proletário, na possibilidade de morrer tranqüilamente de fome. Esta duplicidade da forma ética não ·é devida ao acaso, e não é uma imperfeição exterior, determinada pelos defeitos específicos do capitalismo. Ela é, ao contrário, um signo distintivo, essencial da forma ética como tal. A supressão desta duplicidade de forma ética significa a passagem à economia socialista e planificada; mas isto significa a edificação de um sistema social no qual os homens podem construir e pensar as relações sociais com a ajuda de conceitos claros e simples de dano e utilidade . A abolição da duplicidade de forma ética no campo mais importante, no âmbito da existência material dos homens, significa a abolição da forma ética em geral. No seu esforço para dissipar as brumas metáfísicas que envolvem a doutrina ética, o puro utilitarismo considera os conceitos de "bom" e ''mau" sob o ângulo do útil e do prejudicial. Mediante isto, ele suprime a ética, ou, mais exatamente, tenta suprimi-la, superá-la, pois a supressão dos fetiches éticos só pode se consumar, na prática, com a supressão simul-

tânea do 'fetichismo mercantil e do fetichismo jurídico. Enquanto este ·estágio de 4lesenvolvimento não for alcançado pela humanidade, ou seja, .enquanto a herança da época capitalista não. for superada, os esforços do pensamento teórico apenas anteciparão esta ·libertação futura, mas não encarná-là-ão praticamente . Lembremo-nos das palavras de Marx sobre o fetichismo mercantil: "a descoberta científica, feita mais tarde, de que os produtos do trabalho, enquanto valores, são a expressão pura e simples do trabalho despendido na sua produção marca uma época na história do desenvolvimento da humanidade, mas não dissipa a fantasmagoria que faz aparecer o caráter social do trabalho como uma qualidade das coisas, dos próprios produtos"8 • Poderão retorquir-me que a moral de classe do proleta· riado liberasse, desde o presente, de todos os fetiches. O que é moralmente uma obrigação e o· que ·é útil à classe. Sob tal perspectiva., a moral não possui nada de absoluto, pois o que hoje é útil pode deixar de 'sê-lo amanhã; . e ela também não tem nada de místico ou de supranatural pois o princípio de u.tilidade é simples e racional. ~ indubitável que a moral do proletariado, ou, mais exatamente, a moral de sua vanguarda, perde seu caráter de duplo fetichismo purificando-se, por exemplo, dos elementos religiosos. Mas mesmo uma moral desvencilhada de qualquer impureza, notadamente de elementos religiosos, permanece- uma moral, uma forma de relações sociais nas quais nem tudo é direcionado .ao próprio homem. Logo que o liame vivo que liga o indivíduo à classe seja efetivamente tão forte, que os limites de seu Eu, por assim dizer, apagam-se, e que o interesse da classe torne-se, de fato, idêntico ao interesse pessoal, torna-se absurdo falar do cumpri· mento de um dever moral, e então o fenômeno da moral será inexistente. Mas onde ainda não tenha ocorrido semelhante fusão de interesses, sur]e inevitavelmente a relação abstrata do dever moral com todas as formas que daí resultam. · A regra: "age de tal forma que a máxima de tua vontade possa ser erigida em princípio de uma legislação universal". 8.

K. Marx, O Capital, L. I, op. cit., p. 86.

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Toda diferença consiste em que nós procedemos no pri- · meiro caso a uma restrição concreta e que damos à lógica · ética um enfoque de dasses9 ; Mesmo no interior deste quadto ela mantém todo o seu valor .. ·O conteúdo de classe da ética ·não aniquila a sua forma em si. Não pensamos apenas em sua forma lógica, mas igualmente nas formas pelas quais ela se manifesta concretamente. Igualmente, no interior do coletivo proletário, isto é, em tim coletivo de classe, nós podemos óbservar os mesmos métodos formais de cumprimento do dever moral constituídos por duas motivações opostas. De uma parte, o coletivo não renuncia a todos os meios de pressão posflíveis para incitar os seus membros a cumprirem seus deveres morais. De outra parte, o coletivo não caracteriza uma c.onduta como moral quando não seja .esta pressão externa que· constitua .sua motivação. É precisamente por isto que, na prática social, a moral e a conduta moral são tão estreitamente ligadas à hipocrisia. Certamente as condições de vi dá do · proletariado constituem as premissas para o desenvolvimento de uma ·nova forma, superior e mais harmoniosa, de relações entre o indivíduo e a coletividade. Numerosos fatos, que exprimem a solidariedade da classe proletária, testemunham-no. Mas, ao lado deste novo, continua a subsistir também o antigo. Ao lado do homem social do futuro, que deixa fuhdir o seu Eu na coletividade, que encontra assim a. grande sa:tisfação e o verdadeiro sentido de sua vida, continua,. igualmente, a existir o homem moral que carrega sobre os seus ombros o fardo de um futuro mais ou menos abstrato. A vitória da ·primeira forma equivale à libertação completa do homem de todas as sobrevivências das relações jurídicas privad~s e à transformação definitiva da humanida-

de na direção do comunismo. Certamente, tal tarefa não é apenas uma tarefa puramente ideológica ou pedagógica. O novo tipo de relações humanas necessita da criação e da consolidação de uma nova base material, econômica. É preciso lembrar, conseqüentemente, que a Moral, o Direito e o Estado são formas de sociedade burguesa. Mesmo que o proletariado seja obrigado a utilizar-se destas formas, isto não significa absolutamente que elas podem continuar a se desenvolver com um conteúdo socialista. Elas não podem assimilar este conteúdo, e deverão desaparecer à medida que este conteúdo se realize. Contudo, no atual período de transição, o proletariado deve explorar, em benefício de seus ipte),"esses, estas formas herdadas da sociedade burguesa, esgotandoas completamente. Mas para isto, antes de tudo, o proletariado deve ter uma representação muito clara, liberta do véu ideológico, da origem histórica destas formas. O proletariado deve ter uma visão friamente crítica, não apenas em relaç,ão ·à Moral e ao Estado burguês, mas também em relação a seu próprio Estado e sua própria Moral. Dito de outra forma, ele deve estar consciente de suà existência, mas também de seu desaparecimento10 • Em sua crítica a Proudhon, Marx indica que o conceito abstrato de justiça não é um critério absoluto e eterno, a partir do qual podemos edificar uma relação de troca ideal, isto é, justa. Seria uma tentativa "para transformar as trocas químicas em função de 'idéias eternas' de 'qualidades particulares' e 'afinidades', ao invés de estudar suas leis reais". O próprio conceito de justiça ·é extraído da relação de troca, e não tem sentido fora dela. No fundo, o conceito de justiça não contém nada de essenCialmente novo em· relação ao

9. Depreende-se que uma ética sem cÓnteúdo de· classe em uma sociedade dilacer-ada pelas lutas de classe só pode existir na imaginação, não na prática. O operário que decide, independentemente das privações às quais se expõe, participar de uma greve, certamente pode formtdar sua decisão como um dever moral qU:e lhe determina subordinar os seus interesses Jilrivados ao interesse geral. Mas é muito claro que este conceito de interesse geral não pode conter os interesses do capita· lismo contra os quais é travada a luta operária ..

10. Isto significa que "não existirá mais moral na sociedade futura?" Absolutamente, se concebermos a moral em sentido amplo, como o .desenvolvimento de formas humanas superiores, como a transformação do homem em um ser gen~rico. No caso presente, .trata-se, contudo, de outra· coisa; trata-se de formas específicas da consciência moral e da conduta humana que, após terem' concluído o seu papel histórico, devem dar lugar a outras formas, superiores, de relações entre 'o indivíduo e a coletividade (nota à terceira edição) . ·

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conceito de igualdade entre todos os homens que analisamos mais acima . :1! por isto que é ridículo ver na idéia de justiça um critério autônomo e absoluto. De qualquer maneira, esta idéia, se for habilmente utilizada, permite interpretar a desi7 gualdade como igualdade, e convém, muito particularmente, para velar pela ambigüidade da forma ética. Por outro lado, a justiça é a marcha que leva a ética em direção ao direito. A conduta moral deve ser ''livre", mas a justiça pode ser obtida pela força. A coação, incitando a conduta moral tenta negar sua própria realidade. A justiça, ao contrário, "cálhou" abertamente na partilha ao homem. Ela autoriza ·a realização exterior e uma atividade egoísta interessada. Aí é que residem os pontos de contato e de discordância mais importantes entre ~ forma ética e a forma jurídica. A troca, ou a circulação de mercadorias, supõe que os agentes da troca reconheçam-se mutuamente como proprietários. Este reconhecimento, que surge sob a forma de uma convicção interna ou do imperativo categórico, é o máximo. concebível ao qual pode se elevar uma sociedade de produção mercantil. Mas além deste máximo existe, igualmente, um certo rp.ínimo, qt,te permite a existência, sem entraves, da circulação de mercadorias. Para realizar este mínimo é necessário que os pr~ prietários se comportem como· se eles se reconhecessem mutuamente enquanto proprietários. ~A conduta moral, aqui, opõese à conduta legal, que é caracterizada como tal, independentemente dos motores que determinam-na, Do ponto de vista jurídico, é perfeitamente igual que a dívida seja paga, porque, "de qualquer forma, o devedor será constrangido a pagá-la", ou porque o devedor sente-se moralmente obrigado a fazê-lo. A idéia de constrição exterior e não apenas esta idéia, mas; também, a organização da constrição exterior são aspectos essenciais da forma jurídica. Uma vez que a .relação jurídica não pode ser construída de uma maneira puramente teórica, como avesso. da relação de troca, sua realização prática exige, então, a presença de modelos gerais razoavelmente fixados, uma consulta elaborada e, finalmenty~ uma organização particular qu~ aplique estes modelos aos casos particulares e que garanta a execução· coativa das decisões. Estas necessidades são mais

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bem satisfeitas pelo poder Estatal, ainda que a relação jurídica também se realize, freqüentemente, sem sua intervenção, graças ao direito costumeiro, à arbitragem voluntária e à justiça pessoal. Onde a função de coerção não está organizada e não possui um aparelho particular, situado acima das partes, ela surge sob a forma da, assim chamada, "reciprocidade"; este princípio de reciprocidade representa, nas condições de equilíbrio de forças até os nossos dias existentes, o único e, por assim dizer, precário fundamento do· direito internacional. Por outro lado, a exigência jurídica, em oposição .à exigência moral, não se reveste da forma de ''voz interior", mas de exigência exterior, proveniente de um sujeito concreto, o qual é, em regra geral, o titular de um interesse material correspondente11. :1! por isto que o cumprimento dos deveres jurídicos é estranho à todos os elementos subjetivos do lado do obrigado e assume forma externa, quase objetiva, do cumprimento de uma exigência. O próprio conceito de obrigação jurídica tor11. Assim se passa no direito privado, que é o protótipo da forma jurídica em geral. "As exigências jurídicas" que emanam dos órgãos do poder público, e fora das quais não se contempla nenhum interesse privado; não são nada mais do que a configuração jurídica da vida política. A característica desta configuração é diferente segundo as circunstâncias; eis por que a concepção jurídica do estado cai irremediavelmente no pluralismo jurídico. Desde que o poder do Estado é representado como a encarnação de uma regra objetiva situada acima dos sujeitos-' partes, ele se funde com a norma e torna-se o ponto mais elevado, impessoal e abstrato. A exigência do Estado surge como lei imparcial e desinteressada. Neste caso é praticamente impossível conceber o Estado como sujeito, seja porque está destituído de substancialidade, seja porque transformou-se em uma garantia abstrata das relações entre sujeitos reais, proprietários de mercadorias. Esta concepção, como a concepção mais pura do Estado, é aquela defendida pela escola normativista austríaca, com Kelsen à frente. Nas relações internacionais, ao contrário, o Estado não surge como a encarnação de uma norma objetiva, mas como titular de direito subjetivo, isto é, com todos os atributos da substancialidade e do interesse egoísta. O Estado desempenha o mesmo papel, quando atua a título de fisco, como parte em um litígio com pessoas privadas. Entre estas duas concepções pode haver numerosas formas intermediárias e híbridas.

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na-se, assim, muito problemático. Se formos conseqüentes, é preciso dizer, de maneira geral- como faz Binder em Rechtsnorm und Rechtspflicht - , que uma obrigação jurídica nada tem de comum com o ,., dever", mas só existe juridicamente enquanto ''responsabilidade"; "ser obrigado" não significa nada mais do que "responder com seus bens (e no direito penal com a sua pessoa) pela via do processo e· sob a forma de execução forçada" 12 • As conclusões, paradoxais aos olhos da maioria dos juristas, a qpe chega Binder, e que se deixam exprimir pela seguinte fórmula simplificada: ''o direito não obriga juridicamente a ninguém", são, em realidade, a continuação, conseqüente, da dístinção de conceitos que Kant já havia feito. Precisamente esta definição clara da delimitação entre a esfera moral e a esfera jurídica, uma em relação à outra, é a fonte de contradições insolúveis para os filósofos burgueses do di-· reito. Se a obrigação jurídica não possui nada em comum com o dever moral ''interior", então não se pode distinguir a submissão ao direito da submissão à violência enquanto tal. Mas se por outro lado, admitirmos no direito o momento do dever como característica essencial, mesmo com a nuance objetiva mais fra:ca, então a noção de direito, como mínimo socialmente necessário, perde todo o sentido. A filosofia burguesa do direito se perde nesta contradição fundamental, nesta luta sem fim, com suas próprias premissas . Além disso, .é interessante notar que as contradições, que no fundo são idênticas, se mostram sob estas duas formas diferentes segundo se trata da relação entre o direito e a moral ou da relação entre o Estado e o direito. No primeiro caso, quando se afirma a autonomia do direito em relação à moral, o direito se confunde com o Estado, em razão da forte acentuação do momento de coação externa. No segundo caso, .quando o direito se opõe ao Estado, isto é, à dominação de fato, o momento do dever entra inevitavelmente em cena, no sentido do termo alemão sollen (e não de müssen) e então

12.

J. Binder, Rechtsnorm und Rechtspflicht, Leipzig, 1916.

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temos, se assim se pode dizer, uma frente única do direito e da moral. A tentativa do professor Petrazickij de encontrar no direito um imperativo aboluto, isto é, ético, e que ao mesmo tempo se diferencie do imperativo moral, é deixada sem êxito13 • Como se sabe o professor Petrazickij constrói a categoria de dever jurídico como um dever que incumbe a um sujeito em confronto com os outros que podem pleitear a execução . A obrigação moral, ao contrário, não determina, segundo ele, nada mais que uma cer-ta conduta, mas não concede a terceiros o direito de exigir o que lhes foi tomado. Por conseguinte, · o direito possui característica bilateral imperativo-atributivo, enquanto que a moral possui característica unicamente obrigatória ou imperativa. O professor Petrazickij, apoiando-se em observações pessoais, assegura-nos que pode distinguir, sem dificuldades, a obrigação jurídica que o obriga a ressarcir ao credor a soma mutuada, da obrigação moral que o obriga a dar esmolas a um pobre. Mas, depreende-se que esta capacidade de distinguir tão claramente as coisas pertence exclusivamente ao professor Petrazickij. Pois outros, como o professor Trubeckoj, asseguram-nos que a obrigação de dar esmolas a um pobre é, do ponto de vista psicológico, tão ·ligada a esta última quanto o é a obrigação de pagar as dívidas ao credor14 • (Uma tese que, diga-se de passagem, não é desvantajosa para o pobre, mas que deve ser muito contestável aos olhos do credor.) O professor Rejsner, ao contrário, é de posição de que o .momento emocional de uma obrigação estabelecida · refere-se inteiramente a um ponto de vista psicológico. Se para o professor Trubeckoj o credor, com suas pretensões, está, em conseqüência, posto no mesmo nível "psicologicamente" que o pobre, para o professor Rejsner ele não é nada mais, nada ·menos, do que superior. Em outros termos, a contradição que revelamos, sob sua forma lógica e sistemática, como uma contradição de conceitos, revela-se, aqui, como 13. L. I. Petrazickij, Vvedenie v izucenie prava, op. cit. 14. E. Trubeékoj, Enciklopedija prava (Enciclopédia do direito). Moscou, 1903, p. 28.

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uma contradição resultante da observação pessoal. Mas o significado permanece o mesmo. A obrigação jurídica não pode ter significado autônomo, e oscila eternamente entre dois limites extremos: a coação exterior e o dever moral "livre". Como sempre, e aqui igualmente, a contradição no sistema lógico reflete a contradição da vida real, ou seja, do meio social que produziu a própria forma da moral e do direito. A contradição entre o individual e o social, entre o privado e o público, que a filosofia burguesa do direito não pode suprimir, apesar de todos os seus esforços, é o fundamento real da própria sociedade burguesa, enquanto sociedade de produtores de mercadorias. Esta contradição é encarnada nas relações reais dos homens, que não podem considerar suas ativi· dades privadas (:Orno atividades sociais, senão que sob a forma absurda e mistificada do valor mercantil.

Capítulo· Sete

DIREITO E VIOLAÇÂO DO DIREITO

A Russkaja Pravda, que é o mais antigo monumento jurídico do período de Kiev de nossa história, contém, eril t:\ldo e por tudo, em seus 43 artigos (da ''lista acadêmica") apenas dois que nãó se referem a infrações ao direito penal ou ao direito civil. Todos os outros artigos definem sanções ou regras de procedimentos que devem ser aplicadas em caso de violação do direito. · Em ambos os casos, conseqüentemente, pressupõese umà violação das normas.1 As chamadas "leis bárbaras" das· tribos alemães nos -oferecem o mesmo quadro. Assim, por exemplo, nos 408 artigos da lei Sálica, apenas 65 não possuem aspecto repressivo. O mais antigo monumento do direito romano, a lei das Doze Tá· buas, começa pela regra sobre a demanda judiciária: "si in jus vocat, ni it, antestamino igitur in capito"2 • O célebre historiador do direito, Maine, diz em seu livro Ancient Law: "Em regra geral, quanto mais velho é um código, mais· a sua parte penal é detalhada e completa"3 •

1 . Basta menr.ionar o fato de que, neste estágio primitivo do desenvolvimento, o assim chamado "delito" criminal e o "delito" civil não se distinguem. O conceito dominante era o de que o -dano exigia repa· ração: o roubo, a pilhagem, a morte, e o não pagamento de uma dívida eram, indistintamente, considerados como motivos que permitiam ao indivíduo lesado propor uma ação e obter a reparação sob a forma de uma multa. 2. XII tablic, ed. Nikol'skij, 1897, p. 1. 3-. Summer Maine, Ancient Law, p. 288.

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A não submissão à norma, a violação da norma, a ruptura da forma normal das relações e os conflitos que daí resultam constituem o ponto de partida e o principal conteúdo da legislação arcaica. O normal, ao contrário, não é fixado como tal; ele s!mplesmente não existe. A necessidade de fixar e de determinar de maneira precisa a extensão e o conteúdo dos direitos e dos deveres recíprocos só surgiu onde a existência calma e pacífica foi turbada. Deste ponto de vista Bentham tem razão, ao dizer que a lei criou o direito ao criar o delito. A relação jurídica adquiriu historicamente o seu caráter específico, sobretudo, em relação com a violação do direito. O conceito de roubo surge depois do conceito de proptiedade. As relações derivadas do empréstimo são determinadas nos casos em que o devedor não quer pagar: ''desde qué alguém reclame a outrem uma dívida, mas que o outro refute o pagamento"4. O significado originário da palavra Pactum (pacto) não é aquele do contrato em geral, mas derivado de pax (paz), isto é, representa a regulamentação amigável de uma disputa: o pacto encerra a disputa5 • Se o direito privado reflete mais diretam~nte as condições gerais de existência da forma jurídica enquanto tal, o direito penal representa a esfera na qual a relação. jurídica atinge a maior tensão. O momento jurídico, aqui, destaca-se em primeiro lugar e mais claramente das práticas costumeiras e torna-se totalmente independente. No processo judicial, a transformação das ações de ·um homem concreto em atos de parte jurídica, isto é, de um sujeito de direito, é muito clara. Para distinguir as ações e os desejos quotidianos das manifestações jurídicas de vontade, o direito antigo servia-se de fórmulas e cerimônias solenes, particulares . O caráter dramático do processo judicial criou de maneira sensível uma existência jurídica particular ao lado do mundo real. 4. Russkaja Pravda, Accademik Liste, art. 14. 5 . R. Ihering, Geist des rõmischen Rechts, t.• parte, trad. russa, 1875, p. 118. (Há tradução bra,sileita: O Espfrito do Direito Romano, Rio, Editora Alba, 1943, 4 vols. N. do T.).

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De todos os ramos do direito é precisamente o direito penal aquele que possui o poder de tocar a pessoa individual de modo mais direto e ma:s brutal. E. por isso que o direito penal sempre suscitou o maior interesse prático. A lei e a pena que pune a sua transgressão são, em geral, estreitamente ligadas entre si, de forma que o direito penal desempenha o papel de um representante do direito: é uma parte que substitui o todo. A origem do direito penal está historicamente vinculada ao costume da vingança de sangue. Indubitavelmente, estes dois fenômenos estão genericamente muito próximos. Mas a vingança só é realmente vingança quando é seguida de condenação. e de pena; igualmente aqui são unicamente os estágios ulteriores do desenvolvimento (como podemos observar muito freqüentemente na história da humanidade) que tornam compreensíveis os esboços contidos nas formas anteriores . Se abordarmos o mesmo problema pela extremidade oposta, não podemos ver nada mais do que a luta pela existência, uma realidade puramente biológica. Para os teóricos do direito penal que se limitam a uma época mais tardia, a vingança de sangue coincide com o jus talionis, ou seja, com o princípio de reparação equivalente que exclui a possibilidade de uma vingança ulterior desde que o ofendido, ou sua família, tenham sido vingados. Em realidade, como M. Kovalevskij justamente demonstrou, a característica mais antiga da vingança de sangue era outra. O ofendido e seus parentes tornavam-se, por sua vez, ofensores, e o ciclo prosseguia de uma geração a outra, freqüentemente até a eliminação completa das famílias inimigas6. A vingança não começa a ser regulamentada pelo costume e a se transformar em reparação segundo a regra de talião "olho por olho, dente por dente", mas quando, ao lado da vingança, começa a consolidar-se o sistema de modernização ou reparação em dinheiro. A idéia do equivalente, esta primeira idéia puramente jurídica, encontra novamente suas fon6. M. Kovalevskij, Sovremennyi obycaj i drevnij zakon (Os usos modernos e a lei antiga), li, Petesburgo e Moscou, 188ti, p. 37-8.

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tes na forma mercantil. O delito pode ser considerado como uma variedade particular de circulação, na qual a relação de troca, a relação contratual, é fixada pela ação arbitrária de uma das partes. A proporção entre delito e separação igualmente se reduz a uma proporção de troca. Por isto Aristóteles, ao falar da igualitarização na troca como uma variedade de justiça, distingue dois tipos: a igualitarização nas ações voluntárias e a igualitarização nas ações involuntárias, abrangendo as relações econômicas de compra, venda, empréstimo, etc. nas relações voluntárias, e as diferentes modalidades de delito, que acarretam sanções a título de equivalentes específicos, nas ações involuntárias. ~ também dele a definição do delito como contrato firmado contra a vontade. A sanção surge, então, como um equivalente que compensa os danos sofridos pela vítima. Esta idéia foi retomada, como se sabe, por Hugo Grotius. Por singelas que estas construções possam parecer à primeira vista, elas, entretanto, denotam uma intuição da forma jurídica muito mais fina que as teorias ecléticas dos juristas modernos. Podemos observar muito claramente, nos exemplos da vingança e da pena, por que transições imperceptíveis o orgânico e o biológico se vinculam ao jurídico. Esta conexão é ainda acentuada p~lo fato de que o homem não é capaz de renunciar à interpretação habitual, jurídica (ou ética) dos fenômenos da vida animal. Ew atribui, sem o querer, às ações dos animais, um significado que, a bem da verdade, só lhe foi conferido pela evolução ulterior, pelo desenvolvimento histórico da humanidade.

mas deixa a sua ação para mais tarde, para um momento mais oportuno. Assim, a autodefesa transforma-se em vingança no sentido mais .verdadeiro da palavra. E como a vingança está, para o homem moderno, indissoluvelmente ligada à idéia de reparação equivalente, não é espantoso que Ferri esteja dis· posto a admitir a existência de um instinto "jurídico" entre os animais7 • Com efeito, a idéia jurídica, isto é, a idéia da equivalência, só se exprime limpa e claramente, e só se realiza objetivamente no estágio de desenvolvimento econômico no qual esta forma de equivalência torna-se costumeira como igualitarização nas trocas; por conseqüência, em nenhuma. hipótese no mundo animal, mas apenas na sociedade humana. Para isto não é necessário que a vingança tenha sido completamente suplantada pela reparação. ~ precisamente no caso em que a reparação seja considerada como algo desonroso (tal concep~ão predominou durante muito tempo entre os povos primitivos) e no qual a execução da vingança pessoal é considerada como um dever sagrado, que o próprio ato de vingança assume uma nova nuance que não possuía desde que ele ainda representava uma alternativa: no presente foi introduzida a idéia de que ele representa a única reparação adequada. A refutação da reparação sob forma de dinheiro põe em evidência, em suma, o fato de que o derramamento de sangue é o único equivalente do sangue já derramado. De fenômeno puramente biológico, a vingança se transforma em instituição jurídica desde que se liga à forma de troca equivalente, da troca ·mensurada por valores . O direito penal arcaico demonstra este vínculo de maneira particularmente evidente e grosseira, pondo diretamente em pé de igualdade o dano causado aos bens e o malefício causado à pessoa, com uma ingenuidade à qual as épocas posteriores renunciaram pudicamente. Do ponto de vista do direito romano antigo, não havia nada de anormal no fato de que um devedor insolvente pagasse as suas dívidas com

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A .autodefesa é um dos fenômenos mais naturais da vida animal, e a· encontramos indiferentemente, seja sob a forma de simples reação individual do ser vivo, seja sob a forma de reação de uma coletividade. Os cientistas que estudaram a vida das abelhas demonstraram que elas defendem a entrada da colméia, atacando toda abelha estranha que tentar invadi-la para subtrair mel. Mas se uma. abelha estranha já penetrou na colméia, ela é morta tão logo seja descoberta. Não é raro encontrar no mundo animal casos nos quais as reações são separadas das ações que as provocaram por um certo lapso de tempo. O ani!Jlal não responde imediatamente ao ataque,

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7. . E. Ferri, Sociologia Criminal, trad. russa com prefácio de Drill', vol. 11, p. 37.

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uma parte de seu corpo (in partes secare) e que um culpado respondesse com seus bens a uma ofensa física feita a outra pessoa. A idéia de composição com base em um equivalente aparece aqui com toda sua nudez, e não é dificultada ou mascarada por nenhuni tipo de momento sobreposto . Em conseqüência, o processo penal assume, igualmente, o caráter de um contrato comercial. "Devemos figurar ·aqui, diz Ihering, um mercado no qual uma das partes propõe e a outra éontrapropõe, até que finalmente cheguem a um acordo. Isto era expresso pelos termos pacere, pacisci, depecisci e o acordo propriamente dito pelo termo pactum. E. aqui que aparece no velho dire:to nórdico o ofício de mediador, escolhido pelas duas partes, que determina o montante da soma para a conciliação (o arbiter no sentido romano originário)". 8 No que concerne às, assim chamadas, penas públicas, em sua origem elas foram introduzidas, principalmente, em razão de considerações de ordem fiscal e serviram para ali-. mentar os cofres dos representantes do poder. "O Estado, diz a este respeito Maine, não exigia do acusado uma multa pelo dano que se supunha ter sido por ele causado, mas exigia apenas uma parte da indenização devida ao querelante, a título de justa· indenização pela perda de tempo e por seus serviços".9 A história russa· nos ensina que esta ''justa indenização pela perda de tempo" era tão considerada pelos príncipes que, segundG o testemunho das crônicas, "o território russo era devastado pelas guerras e pelos impostos". E mais, este mesmo fenômeno de pilhagem judiciária pode ser observado não apenas na Rússia antiga, mas, igualmente, no império de Carlos Magno. Aos olhos dos antigos príncipes russos, os lucros proporcionados pelas custas judiciais em nada se distinguiam das fontes ordinárias de receita. Eles ofereciam-nos a seus servidores, repartiam-nos, etc. Era possível subtrair-se aos tri· bunais dos príncipes pagando-se uma certa quantia.10

Aliás, ao lado desta pena pública como fonte de renda, surge, muito cedo, a pena comó meio de manutenção da disciplina e defesa da autoridade do poder clerical e militar. Sabese que na Roma antiga a maior parte dos delitos graves era, ao mesmo tempo, delito contra os deuses.U Assim, exemplificadamente, uma das violações do direito mais importantes, para o proprietário rural, o deslocamento de má fé dos marcos de um terreno, era considerada, em toda a antiguidade, como um delito religioso, a cabeça do culpado era oferecida aos deuses. A casta dos religiosos, que surge como a guardiã da ordem, não perseguia, assim, um interesse unicamente ideológico, mas, tainbém, um interesse material muito sólido, pois em tal hipótese os- bens do culpado eram confiscados em benefício dela. De outra parte, as penas impostas pela casta dos sacerdotes àqueles que causavam prejuízos à sua receita - ao recusar-se às cerimônias ou oferendas estabelecidas, ou ao tentar introduzir novas doutrinas religiosas, etc. - tinham igualmente um caráter público. A influência da organização clerical, ou seja,' da Igreja; sobre o direito penal se manifesta no fato de que, ainda que a pena continue a conservar o caráter de equivalente ou de reparação, isto está mais diretamente ligado ao dano sofrido pela vítima, e não mais fulcrado sobre· as pretensões desta última, mas adquire um significado superior, abstrato, enquanto castigo divino. Assim a Igreja quer associar ao momento material da indenização o motivo ideológico da expiação (expiatio) e, portanto, fazer do direito penal, baseado sobre o princípio de vingança privada, um meio eficaz de manutenção da disciplina pública, isto .é, da dominação de classe. Nesta perspectiva, os esforços do clero bizantino em introduzir a pena de morte no principado de Kiev são reveladores. O mesmo fim de ma-

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8. Ihering, Geist des rõmischen Rechts, trad. russa, vol. I, p. 118. (Ver nota 5 do capítulo sete.) 9. S. Maine, op. cit ., p. 269. 10. Cf. a dikaja vira da Russkaja Pravda.

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e

11. Como o juramento (juramentum) era uma parte integrante e indispensável da relação jurídica (segundo Ihering os termos de "obrigarse", de "constituir um direito" e de "jurar" possuíam,· por longo tempo, o mesmo significado), a relação jurídica, por completo, estava posta sob a proteção da religião, pois o próprio juramento era um ato religioso e o falso juramento ou o perjúrio eram delitos religiosos (cf. Ihering, Geist des rõmischen Rechts, p. 304). (Ver nota 5 do cap. sete.)

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nutenção da disciplina igualmente determina o caráter das medidas punitivas adotadas pelos chefes militares. Estes exercem a justiça tanto sobre os povos subjugados quanto sobre os seus próprios soldados, em casos de motins, complôs ou simplesmente de indisciplina. A célebre passagem de Clóvis, que com suas próprias mãos partiu em dois pedaços a cabeça de um guer· reiro recalcitrante, mostra o caráter primitivo da justiça penal à época do nascimento dos impérios bárbaros germânicos. Nas épocas mais remotas, esta tarefa de manutenção da disciplina militar incumbia à assembLéia popular; com o fortalecimento e a estabilização do poder real, esta função transferiu-se naturalmente aos reis e identificou-se com a defesa de seus próprios privilégios. No que concerne aos delitos crimin~is comuns, os reis germânicos (bem como os príncipes de Kiev) só o viram, durante muito tempo, com interesses puramente fiscaisY Está situação se modificou com o desenvolvimento e a estabilização da divisão da sociedade em classes e em estados . O nascimento de uma hierarquia eclesiástica e de uma hierarquia laica faz da proteção de seus privilégios e da luta contra as classes inferiores e oprimidas da população uma tarefa prioritária. A desagregação da economia natural e a intensificação consecutiva da exploração dos camponeses, o desenvolvimento do comércio e a organização do Estado baseado sobre a divisão em estados e em classes colocam a jurisdição penal à frente de todas as outras tarefas; Nesta época, a justiça penal já não é mais, para os detentores do poder, um simples meio de enriquecimento, mas um meio de repressão impiedosa e brutal, sobretudo dos camponeses que fugissem da intolerável exploração dos senhores e de seu

Estado, assim como dos vagabundos pauperizados, dos mendigos, etc. O aparelho da polícia e da inquisição começa a desempenhar uma ·função proeminente. As penas transformamse em meios de extermínio físico e de terrorismo . I! a época da tortura, das penas corporais, das execuções capitais mais bárbaras. Assim constituiu-se progressivamente o complexo amálgama do direito penal moderno, no qual podemos distinguir sem dificuldade as raízes históricas que lhe deram origem. Fundamentalmente, isto é, do ponto de vista puramente sociológico, a burguesia assegura e mantém ·sua dominação de classe através do seu sistema de direito penal oprimindo as classes exploradas, Sob este ângulo os seus tribunais e suas ()rganizações privadas "livres" e de "fura-greves" perseguem· um mesmo objetivo. Se considerarmos as coisas deste ponto de vista, a jurisdição penal não é nada mais do que um apêndice da polícia e da investigação. Se os tribunais de Paris tivessem realmente que fechar suas portas por alguns meses, os únicos que sofreriam seriam os criminosos presos. Mas se as "famosas" brigadas da polícia de Paris cessassem o seu trabalho, por apenas um dia, o resultado seria catastrófico. A jurisdição criminal do Estado burguês é o terror de classe organizado que só se distingue em certo grau das chamadas medidas excepcionais utilizadas durante a guerra civil. Spencer demonstrou a analogia completa, a própria identidade existente entre as ações defensivas dirigidas contra os ataques externos (guerra) e as reações contra aqueles que perturbam a ordem interna do Estado (defesa judiciária ou jurídica).JJ O fato de que as medidas do primeiro tipo, isto é, medidas penai~ sejam utilizadas principalmente contra os elementos desclassificados da sociedade, e que as medidas do segundo tipo o sejam principalmente contra os militantes mais ativos de uma nova classe que deseja assumir o poder, não muda a natureza fundamental das coisas, mas, apenas, a re-

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12. Sabe-se que no antigo direito russo a expressão "fazer justiça por suas próprias mãos" significava, antes de tudo, que se privava o príncipe das custas judiciais que lhe eram devidas. Igualmente no código do rei Erik, as conciliações privadas entre a vítima, ou seus parentes, e o criminoso eram consideradas proibidas se elas privassem o rei da parcela que lhe era devida. No mesmo código, contudo, a acusàção em nome do rei ou de seu magistrado só era autorizada como uma rara exceção (cf. Wilda: Strafrecht der Germanen, 1842, p. 219).

13. p. 659.

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H. Spencer, Principies of Sociology, 1876, trad. russa, 1883,

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gularidade e complexidade maior ou menor do procedimento utilizado. Não se pode compreender o verdadeiro sentido da Pt"ática penal do . Estado de classe sem partir de sua natureza antagonista. As teorias do direito penal que deduzem os princípios da política penal a partir dos interesses do conjunto da sociedade são deformações conscientes da realidade. "O conjunto da sociedade" só existe na imaginação dos juristas; só existem, de fato, classes com interesses opostos, contraditórios. Todo sistema histórico e determinado de política penal traz a marca dos interesses da classe a qual serve. O senhor feudal executava o camponês insubmisso e os citadinos que se opunham à sua dominação. Na Idade Média todo indíviduo que quisesse exercer uma profissão sem ser membro de um~ corporação era considerado fora da lei; a burguesia capitalista, tão logo surgiu, declarou criminosos os esforços dos operários para se reunirem em associações . O interesse de classe imprime, destarte, em· cada sistema penal a marca da concretização histórica. No que concerne aos próprios métodos de política penal, é usual ressaltar os grandes progressos consumados pela sociedade burgues.a desde a época de Beccaria e de Howard com a àdoção de penas mais humanas: abolição da tortura, das penas corporais e das penas infamantes, das execuções capitais bárbaras, etc. Tudo isto representa, sem dúvida, um grande progresso. Mas, não se pode esquecer que a abolição das penas corporais não ocorreu em todo lugar. Na Inglaterra o açoite é permitido, até 25 golpes de vara para os menores de 16 anos, e até 150 golpes para os adultos, como punição para o roubo e o furto. Também os marinheiros sofrem suplícios corporais. Na França, o castigo corporal é aplicado como sanção disciplinar aos penitenciários. 14 Na América, em dois Estados da União, mutilam-se os criminosos, fazendo-os sofrer emasculação. A Dinamarca introduziu em 1905, para uma série de delitos, castigos corporais. Mais recentemente, a queda da república soviética da Hungria foi comemorada com a introdução do açoite aplicado como pena para uma gama de delitos contra a pessoa

e a propriedade. 15 Além disso, deve ser notado que os últimos decênios do século XIX .e os primeiros decênios do século XX viram nascer, em um certo número de Estados burgueses, um.a tendência característica à restauração de penas aflitivas, cruéis e infamantes. O humanismo da burguesia cede lugar aos apelos da severidade e a uma maior aplicação da pena de morte. Segundo Kautsky isto se explicaria pelo fato de que a burguesia tinha .uma atitude pacifista e humanitária no fim do século XVIII e no início do século XIX, ou seja, até a introdução do serviço militar obrigatório, porque ela não serviu o exército. E muito duvidoso que esta seja a razão fundamental. A transformação da burguesia em uma classe reacionária que possui medo ·do ascenso do movimento operário, que transformou a política colonial em uma escola de crueldade, foram as causas mais importantes . Somente o desaparecimento completo das classes permitirá criar um sistema penal do qual será excluído qualquer elemento de antagonismo de classe. A questão que se coloca é saber em quais circunstâncias tal sistema penal ainda será necessário. Se a prática penal do poder de Estado é em seu conteúdo e em seu caráter um instrumento de defesa da dominação de classe, em sua forma ela aparece como um elemento de superestrutura jurídica e integra-se no sistema jurídico como um de seus ramos. Mostramos precedentemente que a luta aberta pela sobrevivência assume, com a introdução do princípio da equivalência, forma jurídica. O ato de legítima defesa ,perde sua característica de simples defesa e torna-se uma forma de troca, um modo particular de circulação que encontra seu lugar ao lado da circulação comercial "normal". Os delitos ,e as penas transformam-se naquilo que realmente são, ganham característica jurídica, sobre a base de um contrato. Enquanto esta forma se conserva, a luta de classe se realiza pelo direito. Inversamente, .a própria denominação "direito penal" perderia todo o sentido se este princípio de relação de equivalência desaparecesse .

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J. Fojnickij, Ucenie o nakazanii (Teoria da pena); p. 15.

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J. Fojnickij, Ucenie o nakazanii (Teoria da pena),

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p. 15.

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O direito penal é uma parte integrante da superestrutura jurídica, na medida em que encarna uma variedade desta forma fundamental à qual a sociedade moderna está submetida: a forma de troca de equivalentes com todas as suas conseqüências. A realização destas relações de troca no direito penal é um aspecto da· realização do Estado de direito como forma ideal das relações entre. produtores de mercadorias independentes e iguais que'atúam no mercado. Mas como as relações sociais não se· limitam às relaÇões j1,1rídicas abstratas entre proprietários abstratos de mercadorias, a justiça penal não é apenas uma encarnação da forma jurídica abstrata, mas, também, uma arma poderosa na luta de classes. Quanto mais esta luta se torna aguda e violenta, mais a dominação de classe tem dificuldades de se realizar no interior . da forma jurídica. Neste caso o tribunal "imparcial" com suas garantias jurídicas ,é substituído por uma organização direta da violência de classe, cujas ações são geradas exclusivamente por considerações de oportunidade política. Se considerarmos a sociedade burguesa, em sua essência, como uma sociedade de proprietários de mercadorias, faz-se necessário considerar a priori que o seu direito penal é jurídico em seu sentido mais elevado, no sentido mais preciso do termo. Ora, parece-nos que, desde o início, este ponto nos traz diferentes dificuldades. A primeira consiste em que o direito penal moderno não · parte a priori do dano sofrido pela parte lesada, mas da violação da norma estabelecida pelo Estado. Mas, se a parte lesada passar a segundo plano, poderemos nos questionar onde se situa a forma da equivalência. Ainda que a parte lesada não desapareça inteiramente, ainda que ela permaneça em segundo plano: ela representa, ainda assim, o fundo da ação em curso. A abstração do interesse público lesado apura-se, inteiramente, na figura real da parte interessada, seja pessoalmente, seja através de um representante, dando com isto uma significação nova ao processo.16 16. A satisfação dada à parte lesada é considerada, nos dias atuais, como uma das finalidades da pena (cf. F. V. List, Lehrbuch des deuts· chen Strafechts, 1905, parágrafo 15).

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Desta abstração, a propósito, encontramos uma tradução real na figura do promotor público, mesmo nos casos nos quais realmente não existem vítimas e nos quais é somente a lei que "protesta". Este desdobramrnto, pelo qual o xpesmo poder de Estado aparece tanto no papel de parte judiciária (promotor) quanto no papel de juiz, mostra que o processo penal como forma jurídica é inseparável da figura de vitima exigindo "reparação" e, em conseqüência, da forma mais genérica do contrato. O promotor público demanda, como conv.ém a uma ''parte", um "prego" elevado, ou seja, uma pena severa. O réu solicita indulgência, "uma redução", e o tribunal se pronuncia "com equidistância". Se rejeitarmos esta forma de contrato, retiraremos do processo penal toda a sua "alma jurídica". Imaginemos um momento no qual o tribunal só se ocupa com a forma pela qual as condições de vida do réu podem ser utilizadas para condená-lo ou para proteger a sociedade, e todo o significado do próprio termo "pena" rapidamente volatilizar-se-ia. Isto não quer dizer que todo procedimento penal e o processo de execução sejam totalmente destituídos dos elementos simples e compreensíveis mencionados acima; apenas queremos demonstrar que este procedimento possui particularidades as quais não se deixam esgotar por considerações claras e .simples sobre a finalidade social, mas representam um momento irracional, mistificador e absurdo. Queremos demonstrar que, em específico, este momento é o momento jurídico. Existe mais uma outra dificuldade. O direito penal ar.caico só conhecia o conceito de dano. As noções de dolo e culpabilidade, que no direito penal moderno ocupam lugar muito importante, não existiam naquela etapa de desenvolvimento. O ato premeditado, o ato de imprudência e o caso fortuito somente eram avaliados por suas conseqüências. Os costumes dos franceses e dos Ossetas atuais situam-se no mesmo nível de desenvolvimento. Estes últimos não fazem, por exemplo, nenhuma espécie de diferença entre uma morte causada. intencionalmente por uma estocada de punhal e a morte provocada

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pela queda de uma pedra em conseqüência de um passo em falso de uma cabraP Como se vê, o conceito de responsabilidade não era completamente estranho ao direito antigo. Era determinado de forma diferente. No direito penal moderno nós temos, conforme o individualismo radical da sociedade burguesa, o conceito da responsabilidade estritamente pessoal. O direito antigo, ao contrário, era pleno do conceito de responsabilidade coletiva. Puniam-se as crianças pelos delitos de seus pais e a gens era responsável por cada um de seus membros. A sociedade burguesa dissolve todos os vínculos primitivos e orgânicos preexistentes entre os indivíduos. Ela proclama o princípio: "cada um por si" e o realiza em todos os seus domínios - inclusive no direito penal - de maneira bastante conseqÜente. E mais, o direito penal moderno introduziu no conceito de responsabilidade um elemento psicológico, dando-lfu: uma grande complexidade, distinguindo diversos níveis: responsabilidade por uma conseqüência prevista (premeditação) e responsabilidade por uma conseqüência imprevista, mas possível (ato por imprudência). Por fim, constitui o conceito de não-imputabilidade, ou seja, de abstenção completa de responsabilidade. A introdução do elemento psicológico no conceito de responsabilidade significa a racionalização da luta contra a criminalidade. E somente sobre a base da distinção entre ações imputáveis e as não-imputáveis que se pode construir uma teoria das medidas preventivas particulares e gerais. Na medida em que a relação entre o delinqüente e a autoridade penal é constituída como uma relação jurídica e se desenvolve sob a forma de processo judicial, este novo momento não exclui, em hipótese nenhuma, o princípio de reparação equivalente, mas, pelo contrário, cria uma nova base para sua apli17. Desde que um animal de uma tropa de burros, bois ou cavalos derrube uma pedra da montanha, lemos nos costumes escritos dos Ossetas, e que esta pedra fira ou mate um indivíduo, os parentes do ferido ou do morto perseguem, com sua vingança sangrenta, o proprietário do animal, dà mesma maneira que o fariam se a morte tivesse sido intencional, ou então exigem-lhe o preço de sangue (cf. Kovalevskij, Sovremennys obycaj i drevnij zakon, p. 105).

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cação. O que significam estas distinções de graduação na responsabilidade senão que a diferenciação nas condições de um futuro contrato? A graduação da responsabilidade é um dos fundamentos da escala de penas, é um novo momento, ideal ou psicológico se quisermos, que se acrescenta ao momento material do dano e ao momento objetivo do ato para com eles constituir o fund~mento da determinação proporcional da pena. O ato premeditado comporta a responsabilidade mais pesada e assin;t necessita da pena mais severa; o ato praticado com imprudência comporta uma responsabilidade menor e, logo, uma pena mais leve; por fim, no caso de ausência de responsabilidade (o autor é não-imputável), a pena não é determinadã. Se substituirmos as medidas penais pela terapêutica, ou seja, por um conceito médico e profilático, chegaremos a resultados totalmente diferentes. Nesta hipótese não é a prôpoJcionalidade das penas que nos interessará, mas sim se as medidas empregadas correspondem ao fim fixado, isto é, se permitem proteger a. sociedade e agir sobre o delinqüente, etc. Deste ponto de vista pode-se chegar finalmente à conclusão de que a relação esteja invertida: que exatamente em um caso de responsabilidade atenuada as medidas mais intensivas e mais .longas sejam as necessárias. A idéia de responsabilidade é indispensável se a pena se apresenta como um ·meio de reparação. O delinqüente responde com sua liberdade por um delito cometido e com um quantum proporcional. à gravidade de seu ato. Esta noção de responsabilidade é supérflua quando a pena não tem caráter equivalente. Mas se, efetivamente, não mais existe nenhum traço de equivalência, a pena, em geral, deixa de ser pena no sentido jurídico do termo. O conceito jurídico de culpabilidade não é um conceito científico, pois remete-se diretamente às contradições do indeterminismo. Do ponto de vista do encadeamento de causas que determinam um acontecimento qualquer, não há a me· nor razão em privilegiar o nexo causal em detrimento de outros. As ações de um homem psiquicamente anormal (irresponsável) são tão determinádas por uma série de causas (here· ditariedade, condições de vida, meio, etc.) quanto as ações de

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um homem normal (inteiramente responsável) . :1.! interessante observar que a pena aplicada sob a forma de medida pedagógica (ou seja, sem referência à noção de equivalência) não está ligada a considerações sobre· a imputabilidade, liberdade de escolha,. etc. , e que ela sequer as necessita. A racionalidade da pena (aqui falamos, evidentemente. ,da racionalidade em sentido mais geral, independentemente da forma, da clemênc!a ou da severidade da pena) é determinada, na pedago· gia, exclusivamente pela capacidade de um indivíduo captar suficientemente o vínculo existente entre suas próprias ações e lembrar-lhe as conseqüências desagradáveis por elas causadas. As pessoas que a lei penal considera como irresponsáveis, ou seja, os menores, os psicologicamente anormais, etc., sob este ângulo são igualmente imputáveis, isto é, influenciáveis em um determinado sentido.18

tada e tida como natural precisamente no século XIX, ou seja, em uma época na qual a burguesia pôde desenvolver e aprimorar todas as suas características. As prisões e celas existiam na Antiguidade e na Idade Média ao lado de outros meios de exercício da violência física. Mas os indivíduos geralmente ficavam detidos até a morte ou até que pudessem pagar os danos causados .

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A pena proporcional à culpa representa fundamentalmente o mesmo que a reparação proporcional ao dano. Esta expressão aritmética que caracteriza o rigor da sentença: tantos dias, meses, etc. de privação da liberdade; multa de tal ou qual valor; perda de certos direitos. A privação da liberdade, ditada pela sentença do tribunal, por um certo período de tempo é a forma .específica pela qual o direito penal moderno, burguês-capitalista, realiza o princípio da reparação equivalente. Esta forma está inconscientemente, embora profundamente, ligada à representação do homem abstra· to e do trabalho humano abstrato avaliados em tempo. Não foi por acaso que esta modalidade de apenamento foi implan18. O célebre psiquiatra Kraepelin afirma "que um trabalho pedagógico com os alienados, tal qual ele realizou com grande sucesso, seria naturalmente impensável se todos alienados, que não foram tocüdos pela lei penal, estivessem efetivamente privados de sua liberdade de autodeterminação, no sentido adotado pelo legislador" (E. Kraepelin, Die Abschaffung des Strajmasses, 1880, p. 13). Evidentemente, o autor faz uma ressalva no sentido de que ele não pretende propor a responsabilização penal dos alienados. Entretanto, estas considerações mostram com bastante clareza que o direito penal não utiliza o conceito ·de culpabilidade como condição de .culpabilidade no sentido que a definem a psicologia científica e a pedagogia.

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Para que a idéia de possibilidade de reparar o delito com a privação de um quantum de liberdade pudesse nascer, foi necessário que todas as formas concretas de riqueza social estivessem reduzidas à forma mais abstrata e mais simples - o trabalho humano medido em tempo. Indubitavelmente, estamos diante de um exemplo de interação entre os diversos aspectos da cultura. O capitalismo industrial, a Declaração dos Direitos do Homem, a economia política de Ricardo e o sistema de detenção temporária são fenômenos que pertencem a uma mesma época histórica. Se o caráter de equivalência da pena, . sob sua forma grosseira, brutal, materialmente sensível de coação física, conserva, precisamente devido a esta brutalidade, sua significàção elementar, acessível a todos, em contrapartida, sob a forma abstrata de privação de líberdade por um certo tempo, desaparece a evidência de seu significado, ainda que tenhamos o costume de caracterizar a pena como proporcional à gravidade do ato. Eis porque tantos teóricos do direito penal, particularmente os que se pretendem progressistas, esforçam-se por suprimir totalmente o momento de equivalência como uma manifestação absurda e concentram a sua atenção sobre as finalidades racionais da pena . O erro dos criminalistas progressistas é de acreditar que estão em presença - ao criticar as teorias absolutistas do direito penal - de concepções falsas, de equívocos de pensamento que podem ser refutados pela simples crítica teórica. Em realidade, esta forma absurda de equivalência não é uma conseqüência do equívoco de alguns criminalistas, mas uma conseqüência das relações materiais de produção mercantil nas quais se nutre. A contradição entre os fins racionais da proteção à sociedade ou da reeducação dos delinqüentes e o princípio da reparação equivalente não

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existe apenas nos livros e nas teorias, mas na própria vida, na prática judiciária, na própria estrutura da sociedade. Por igual, a contradição entre as relações recíprocas que os homens, enquanto tais, mantêm no trabalho e a absurda forma de expressão destas relações, o valor mercantil, não reside nos livros e nas teorias, mas na própria prática social. Para demonstrá-lo, será necessário fixarmo-nos em alguns momentos. Se na v:ida social a pena fosse efetivamente consideracta unicamente do ponto de vista de seu fim a execução da pena e seus resultados deveriam gerar grande interesse. Contudo, ninguém poderá contestar o fato de que o centro de gravidáde do processo penal se situa, na imensa maioria dos casos, no interior da sala de audiências e no exato momento no qual a sentença é proferida. O interesse demonstrado pelo método de ação terapêutica sobre os delinqüentes é insignificante se comparado com o interesse suscitado pelo impressionante instante de prolação da sentença e determinação da "medida penal". As questões da reforma penitenciária só interessam a um pequeno grupo de especialistas. Ao contrário, a questão que, para o público, se o encontra no centro de suas atenções é a de saber se a sentença corresponde ou não à gravidade do delito. Para a opinião pública, desde que o tribunal tenha determinado corretamente o equivalente, tudo está regulamentado, e o destino ulterior do delinqüente não interessa a quase ninguém. "A execução da· sentença, diz Krohne, um dos espe• cialistas mais conhecidos do mundo, é o ponto mais delicado do direito penal';, quer dizer, é relativamente negligenciado. "Se tiverdes, prossegue, as melhores leis, os melhores juízes, as melhores sentenças, mas se os funcionários encarregados da execução penal forem incapazes, podeis jogar as leis no / lixo e queimar as sentenças".l9 . Mas a predominância do princípio da reparação equivalente não se manifesta apenas nesta parcela da opinião pública. Ela se manifesta também na própria' prática judiciária. A que fundamentos se referem de fato as sentenças citadas por

Aschaffenburg em seu livro Das verbrechen und seine Bekampfung? T~memos alguns exemplos dentre tantos outros: um delinqüente reincidente que fora ccndenado 22 vezes por estelionato, roubo, chantagem, etc. foi condenado pela 23." vez a 24 dias de prisão por desacato a autoridade. Um outro, que passou 13 anos em penitenciárias e prisões, 16 vezes condenado por roubo e chantagem, foi condenado pela 17 .• vez a quatro meses de prisão por chantagem. Nestes casos não se pode falar em função de defesa ou de reeducação. ~ o princípio formal da equivalência que, no particular, triunfa: à crueldade igual, pena iguàl.20 Aliás, o que mais o tribunal poderia fazer? Ele não pode esperar recuperar ein 3 semanas um reincidente contumaz, mas, por outro lado, não pode encarcerar por toda a vida o indivíduo em questão por um simples desacato a autoridade. Não lhe resta nada, a não ser pagar, o delinqüente, com a mesma moeda (algumas semanas de privação da liberdade). Aliás, a justiça burguesa zela cuidadosamente para. que o contrato com o delinqüente seja concluído dentro de todas as regras da arte, de forma ·que cada um possa convencer-se de que o pagamento é igualmente determinado (publicidade do processo judicial), e de que o delinqüente pode negociar livremente sua liberdade (processo contraditório), e que pode utilizar-se de um profissional tecnicamente preparado (admissão de advogados de defesa), bem como que · cada um possa controlar a aplicação da lei. · Em uma palavra, as relações entre o Estado e o delinqüente situamse nos quadros de um negócio comercial lea1mente estabelecido. ~ nisto que constituem as garantias do processo penal. O delinqüente deve saber por antecipação do que 'está sendo acusado e em.que implica esta acusação: nullum crimen, nulla poena sine lege. O que isto significa? ~ necessário que cada delinqüente saiba exatamente quais os métodos de correção que lhe são aplicados? Não, a coisa é muito simples e muito mais brutal. Ele deve saber que quantum de libevdade ....

19. Citado por G. Aschaffenburg, Das Verbrechen und seine Be· kiimpfung, Heidelberg, 1906, p. 216.

20. Este absurdo não é nada mais do que o triunfo da idéia jurídica, pois o direito é precisamente a aplicação de uma medida igual, e nada mais do que isto.

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deverá pagar em conseqüência do contrato concluído com o tribunal. Ele deve conhecer, por antecipação, as condições em que quitará seus débitos. Este é o sentido dos códigos penais e dos prccedimentos penais. Não se deve imaginar que inicialmente no direito penal reinasse a falsa teoria da reparação e que esta foi suplantada pelo justo ponto de vista da defesa social. Não se deve acreditar que o desenvolvimento ocorreu apenas no plano das idéias. Em realidade, a política penal, tanto antes quanto depois do aparecimento da tendência sociológica e antropológica na criminalidade, tinha um conteúdo de defesa social (ou, mais exatamente, de defesa da classe dominante). Mas ao lado disto continha, e contém, elementos que não provinham desta finalidade técnica e que assim não permitiam ao processo penal exprimir-se inteiramente sob a forma racional e não injustifi" cada de regras técnicas sociais . Estes elementos cujas origem não deve ser procurada na política penal enquanto tal, mas mais profundamente, dão às abstrações jurídicas do delito e da pena sua realidade concreta e conferem-lhe uma significação prática no âmbito da sociedade burguesa, apesar de todos os esforços em contrário realizados pela crítica teórica. Um representante notório da escola sociológica, van Hammel. declarou no congresso de criminalística de Hamburgo, em 1905, que os principais obstáculos que se apresentavam à criminologia· moderna eram os tais conceitos de culpabilidade, de delito e de pena. Tão logo nos desvencilhemos destes conceitcs, acrescenta, tudo irá melhorar. Podemos retrucar estas considerações, dizendo que as formas de consciência burguesa não se deixarão suprimir unicamente por uma crítica ideológica, pois constituem um todo com as relações materiais que exprimem. O único caminho para dissipar estas aparências tornadas realidade é o da abolição prática destas rela· ções, a luta revolucionária do proletariado e a realização do socialismo . Não basta, apresentar a culpabilidade como um precon· ceito, para que possamos .introduzir na prática uma política . penal que a torne efetivamente supérfh1a. Enquanto a forma mercantil e a forma jurídica que dela decorre continuarem

a imprimir a sua marca na sociedade, a idéia absurda, do ponto de vista não jurídico, de que a gravidade de cada delito pode ser pesada e expressa em meses ou em anos de encarceramento conservarão sua força e significação reais na prática judiciária . Naturalmente pode-se evitar a proclamação desta idéia sob forma tão brutal e chocante, contudo tal não significa que escapemos definitivamente de sua influência na prática. A modificação tecnológica nada muda na essência das coisas . O Comissariado do Povo para a Justiça de URSS* publicou, em 1919, os princípios diretores de direito penal nos quais repousa o princípio da culpabilidade como fundamento da pena e onde a própria pena é caracterizada não como reparação-de um erro, mas, exclusivamente, como medidas de defesa. O código penal da URSS, de 1922,. também adota o conceito de culpabilidade. Por fim, "os ·princípios fundamentais de legislação penal da União Soviética" excluem totalmente a deno· minação de "pena" e a substituíram pela seguinte designação: "medidas judiciário-corretivas de defesa social". Tal modificação de terminologia certamente possui valor demonstrativo. ·Todavia a questão não será resolvida, de maneira satisfatória, por meras demonstrações. A transformação da pena de reparação em medida adequada de· defesa social e de reeducação de indivíduos socialmente perigosos exige a so· lução de uma enorme tarefa de organização que permanece não apenas fora do domínio da atividade puramente judiciária, mas que, em caso de sucesso, torna totalmente inúteis o processo e a sentença· judicial. Com efeito, desde que tal tarefa esteja resolvida,. a ação de reeducação não será uma· simples "conseqüência jurídica" da sentença que pune um "delito" qualquer, mas transformar-se-á em função social autônoma, de natureza terapêutica ou pedagógica. Nosso desenvolvimento vai, e irá sem nenhuma dúvida, nesta direção. Provisoriaménte, contudo, enquanto for necessário _acentuar o termo "ju-

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* Utilizou-se a sigla URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) por ser mais atual. ·Em realidade, trata-se da República Socialista Soviética Federal !la Rússia (RSSFR) (N. do T.).

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diciário" quando falamos das medidas de defesa sccial, enquanto persistirem as formas materiais do processo judicial e do código penal, a modificação da terminologià~ em grande medida, será uma reforma puramente formal. Obviamente, tal fato não poderia escapar das atenções dos juristas que analisaram o nosso código penal. Cito apenas algumas opiniões. N. Poljanskij observa na parte especial do código penal "a negação do conceito de culpabilidade .é puramente exterior" e que "a questão da culpabilidade e de seus graus é sublinhada na prática cotidiana dos tribunais"~"-. M. Isaev22 diz que o conceito de culpabilidade "não é ignorado pelo código penal de 1922, e uma vez que ele distingue a premeditação da imprudência, opondo as duas hipJ. teses, distingue igualmente a pena da medida de defesa sociàl no sentido estrito" 23 • Em sendo assim, tanto o código penal em si, quanto o procedimento judiciário para o qual foi criado, são penetrados em todo o seu interior pelo princípio jurídico da reparação equivalente. O que é a parte geral de qualquer código penal (inclusive do nosso), com seus conceitos de cumplicidJ!de, de co-responsabilidade, de tentativa, de preparação, etc., senão que um método de avaliação mais precisa da culpabilidade? O que significaria o conceito de inimputabilidade, se não existisse o conceito de culpabilidade? E finalmente para que ser· viria a .parte especial do código penal, se se tratasse apenas de medidas sociais (de classe) de defesa? Uma aplicação conseqüerite do princípio de defesa da sociedade não exigiria a determinação de corpos de delito distintos (aos quais se ligam logicamente as medidas penais fixadas pela lei ou pelo tribunal), mas uma descrição precisa dos

sintomas que caracterizam o estado socialmente perigoso e uma elaboração precisa dos métodos a serem aplicados em cada caso particular para proteger a sociedade. O ponto crucial não está, como pensam alguns, no fato de que a medida de defes·a social está vinculada, em sua aplicação, a momentos subjetivos (forma e grau de perigo social), ainda que a pena repouse sobre um ponto objetivo, um delito concreto definido na parte especial do código penal 24 • O ponto crucial reside no caráter deste vínculo. Com efeito, é difícil separar a pena de sua base objetiva, porque não podemos rejeitar a forma de equivalência sem negar a característica fundamental da pena. Logo, é apenas o corpo de delito concreto que possui certa margem de uma grandeza mensurável e, por conseguinte, de um certo tipo de equivalência. Pode-se con·strapger um indivíduo a expiar uma certa ação, mas .é absurdo forçá-lo a expiá-Ia porque a sociedade o considera (a ·pessoa em tela) perigoso. Eis por que a pena supõe um corpo de delito* fixado com precisão, ainda que a medida de defesa social não necessite tal· suposição. A expiação forçada é uma coação jurídica que se exerce sobre o sujeito no interior da formalidade processual da sentença e de sua execução. A coação, enquanto medida de defesa social, é um ato de pura oportunidade em conformidade com um objetivo, e, como tal, pode ser determinado por regras técnicas. Tais regras podem possuir maior ou menor complexidade, se o objetivo for a eliminação mecânica do indiv~duo perigoso ou a sua recuperação. Em cada caso os fins fixados pela sociedade encontram nestas regras uma expressão simples e clara. Nas normas jurídicas, ao contrário, que e~tabelecem penas determinadas para delitos determinados, a finalidade social encontra-se mascarada. O indivíduo que está sendo submetido a uma ação de reeducação é posto na situação de um devedor que deve reembolsar suas dívidas. Não é por acaso que o termo "execução" é usado tanto para o cumprimento coativo das obrigações jurídicas privadas, como para as penas disciplinares. Exatamente a mes-

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21. N. N. Poljanskij, "O código penal da URSS e o código penal alemão", in: Pravo i Zizn, 1922, 3. 22. M. M. Isaev, "O código penal de L""de junho de 1922", in: Sovestkoe pravo, 1922, 2. 23. Cf., "também, Trachterov, "a fórmula da irresponsabilidade no código penal da República Socialista Soviética da Ucrânia", in: Vestnik Sovetskoj justicii, órgão do Comissariado do Povo para Justiça da República da Ucrânia, n.o 5, 1923. ·

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24. Cf. Piontkovskij, "A medida de defesa social e o código penal", in: Sovetskoe pravo, n.o 3 (6), 1923. * Antiga denominação de crime. (N. do T.).

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ma coisa é expressa pelo termo "purgar suas penas". O delinqüente que purgou sua pena retoma ao ponto de partida, ou seja, à existência indiv1dualista dentre a sociedade, à "liberdade" de contratar obrigações e de cometer delitos. O direito penal, assim como o direito em geral, é uma forma de relação entre sujeitos egoístas isolados, portadores de interesses privados autônomos ou proprietários ideais. Os mais persPicazes criminalistas burgueses perceberam muito bem este liame entre o direito penal e a forma jurídica em geral, a saber, as condições fundamentais sem as quais uma sociedade de produtores mercantis é impensável. :É por isso que os representantes extremados da escola sociológica e antropológica, que convidam a pôr ad acta os conceitos de delito e de culpabilidade e terminar em geral com a elaboração jurídica do direito penal, respondem, muito razoavelmente, assim: neste caso, o que ocorre com o princípio da liberdade civil, das garantias da legalidade do processo, do princípio "nullum crimen sine lege", etc.? Esta é precisamente a posição de Cubinskij, em sua polêmica contra Ferri, Dorado e outros 25 • Aqui vai uma passagem característica: ''Mesmo apreciando sua (a de Dorado) bela crença na onipotência da ciência, ainda assim preferimos permanecer em terreno sólido, contar com a experiência histórica e c~m fatos reais; nesta hipótese devemos reconhecer que não é um arbítrio 'ilustrado e racional' (e quem garante que este arbítrio será assim?) desejável, mas uma ordem jurídica sólida cuja manutenção exige que seja realizado o seu estudo jurídico". Os conceitos de delito e pena são, como ressai do que foi dito precedentemente, determinações necessárias da forma jurídica, da qual não poderemos nos desembaraçar até que comece o desaparecimento da superestrutura jurídica em geral. E tão logo comece realmente a desaparecer - e não apenas nas declarações - , estes conceitos tornar-se-ão inúteis, então esta será a melhor prova de que o horizonte limitado do direito burguês enfim se alarga à nossa frente. 25. Cf. M. Cubinskij, Kurs ugolovnogo prava (Curso de direito penal), 1909, p. 20..33.

rNDICE ONOMÁSTICO

ADORACKIJ, V. V. 52, 120 '(nota) ALEKESEEV, I. 72 (nota) ARISTóTELES 146 ASCHAFFENBURG, G. 160 (nota) BECCARIA, C. B. 36, 152 BENTHAN, J. 144 BERBOHM, K. 35, 36 (nota) BIERLING, E. R. 68 (nota), 69 (nota) 140 BINDER, J. BOUKHARINE, N. 20 (nota) BRINZ 89 (nota)

J•

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CARLOS MAGNO 148 CLOVIS 150 COHEN. H. 12 CUBINSKIJ, M. 166 DERNBURG, H. 89, 95 (nota) DORADO 166 DUGUIT, L. 67, 68, 69 (nota), 70 (nota) 22 (nota), 43, 46 (nota), 97 (nota), 114, 132 ENGELS, F. 150 (nota) ERIK, rei

168

íNDICE ONOMÁSTICO

E. B. PASUKANIS

KOVALEVSKIJ, M~ 145 (nota), 156 (nota) KRAEPELIN, E. 158 (nota) KROHNE 160

FERNECK, A. H. V. 56 (nota) FEUERBACH, L. A. 116 · FERRI, E. 147 (nota), 166 FICHTE, J. G. 87 (nota) FRANKLIN, B. 88 (nota) FOJNICKIJ, I. J. 152 (nota)

LABAND 76 (nota), 120 (nota) LASSALE.. F. 29 LENIN (VLADIMIR ILICH ULIANOV) LIST, F. V. 154 (nota)

GIERKE, O. 91 (nota), 92 (nota), 101 (nota), 112 (nota) GROTIUS (HUGO VAN GROOT) 119, 146 GOJCHBARG, A. G. 69 (nota), 70 (nota), 76, 77

MARX, K.

KANT, I. 129, 130, 131, 133 KELSEN, H. 15, 16, 37, 44, 55, 56, 123, 139 KARNER, J. (pseudônimo de KARL RENNER) 13, 20 98 (nota) KAUTSKY, K. 153 KAVELIN, K D. 66 (nota) KORKUNOV, N. M. 71 (nota) KOTLTAREVSKIJ, S. A. 76 (nota), 110 (nota), 124 (nota), 125 (nota)

3. 6, 7, 10, 21, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 32

. MAGAZINER, J. M. . 132 MAINE, S. 133, 143, 148 MERKEL, A. 71 (nota) MUROMCEV, M. A. 72 (nota)

73 (nota), 78, 144 (nota), 148, 149 (nota). 78, 79 164

JABLOCKOV, T. 50 (nota) JELINEK, G. 75 (nota), 120 (nota), 121 (nota)

28

(nota), 34, 37, 38, 42, 47, 52· (nota), 61, 62, 67 (nota) 73,.. 81, 82, 83, 84, 86 (riota), 92, 94, 96, 102, 106, 109, 116, 117, 118 (nota), 127, 128 (nota), 129, 13.5, 137

HAMMEL, V. 162 HÀURIOU, M. 96, 97, 109, 112 (nota) HARRIMAN, E. A. 104 (nota)· HEGEL, G. W. F. 61, 83, 100 HEYSE, H. 99 HEIZEN, K. 62 HOWARD 152 IHERING, R. IL'INSKIJ, T. ISAEV, M. M.

169

NAPOLEÃO

q!·:;-

·~

88 (nota)

PETRAZICKIJ, L. 44, 55, 68, 71, 141 PIONTKOVSKIJ 165 (nota) POLJANSKIJ, N. N. 164 PROKROVSKIJ, M. N. 19 (nota), 117 PROUDHON, P. J. 97 (nota), 137 PUCHTA, G. F. 83 (nota), 113 (nota)

RAZUMOVSKIJ, I. P. 78, 79, 80, 81, 82, 115 REJSNER, M. 41, 43, 44, 45, 46 (nota}, 53 RENNER, K. ver KARNER RICARDO, D. 159 RÓUSSEAU, J. J. 88 (nota) ROZHDESTVENSKIJ 83 (nota)

170

E. B. PASUKANIS

SAVAL'SKIJ 12 SCHLOSSMAN 95 (nota) 46 (nota) SCHMIDT, C. 132 SCHOPENHAUER, A. SSNECA (LUCIUS ANNAEUS) 129 SERSENEVIC . 56 (nota) 28 SHILOCK (de Shapespeare, A Morte em Veneza) SIMMEL, G. 14 SPENCER, H. 87 (nota), 151 {nota) 12, 15, 37 STAMMLER, R. STEIN, L. 122 STEPANOV-SKVORCOV, I. I. 21 (nota) 58 (nota) . STINZING, S. 8, 9, 17 (nota), 41, 46 (nota), 52, 53 STUCKA, P. I. SOLOV'EV, V. 131, 132

TRUBECKOJ, E. 141 TUGAN-BARANOVSKIJ

BREVE NOTrCIA BIOGRÁFICA DE ALGUNS AUTORES CITADOS

r

ARISTóTELES (384 - 322 a.C.) - Filósofo grego. Contrapunha-se a Platão pois possuía uma concepção tendente ao materialismo. BECCARIA, CESARE BONESANA (1738-1794) italiano, panalista. Humanista.

BENTHAN, JEREMY (1748~1832) -Filósofo e jurista inglês. Teórico da liberalismo e do utilitarismo. 127

VOLTAIRE (FRANÇOIS MARIE AROUET)

BUKARINE, NICOLAI (1888-1938) ;_ Economista e Político russo, bolchevique, companheiro de Lenin, assassinado nos. "processos de Moscou" por ordem 4e Stálin . Recentemente foi reabilitado pelo .governo soviético, tendo sido consideradas falsas todas as acusações que lhe foram imputadas por Stálin.

36

WILDA 150 (nota) 95 (nota) WINDSCHEID: B.

COHEN, HERMANN (1842-1918) kantiano. (.{~''}~

ZIBER, N. I.

Jurista

20 (nota)

'~·~

DUGUIT, LEON (1859-1928) cionalist~:~. e administrativ:ista .

Filósofo alemão. Neo-

Jurista francês. Constitu·

Filósofo alemão, ENGELS, FRIEDERICH (1820-1895) companheiro de Marx. Político da classe operária; dirigente da Primeira Internacional. Escrevetl \ várias obras em parceria com Marx. FEURBACH, LUDWIG ANDREAS (1804-1872) '- Filósofo materialista alemão, um dos precursores do. materialismo de Marx.

172

E. B. PASUKANIS

BREVE NOTICIA BIOGRÁFICA ...

GROTIUS -(HUGO VAN GROOT) (1583-1645) - Filósofo holandês, adepto da teoria do Direito Natural de base racionalista . GUMPLOWICZ, LUDWICK (1808-1909) -

Jurista polonês.

HAURIOU, MAURICE (1856-1929) - Jurista francês, fun· dador do institucionalismo. HEGEL, GEORG WILHELM FRIEDERICH (1770-1831) .Filósofo alemão. Principal pensador ·burguês e idealista. Organizador da moderna dialética idealista. Precursor da filosofia marxista . HEfZEN, KARL (1809-1880) - Escritor alemão. Pólítico de tendência liberal e individualista . IHERING, RUDOLF VON (1812-1892) - Jurista alemão. Romanista. JELLINECK, GEORG (1851-1911) -::::::- Jurista alemão. Publi~ cista. KANT; IMANNUEL (1724-1804) - Fundador da filosofia clássica alemã. Precursor do Positivismo. KAUTSKY, KARL (1854-1938) - Economista, político e es· critor alemão. Dirigente do Partido Social Democrata Alemão. KELSEN, HANS (1881-1973) ,....- Jurista e filósofo austríaco. Norma tivista. LA&SALE, FERDINAND (1824-1864) - Escritor e político alemão. Fundador do Partido Social Democrata Alemão, LENIN (VLADIMIR ILICH ULIANOV) (1870-1924) - Filósofo, jurista, economista e político russo. Fundador da URSS. MARX, KARL (1818-1883) - Filósofo. Político e economista alemão. Fundador do- marxismo. PROUDHOM, PIERRE JOSEPH (1809-1865) - Filósofo e sociólogo francês. Militante poliíico anarquista. PUCHTA, GEORG FRIEDERICH (1798-1846) -Jurista alemão, teórico da Escola Histórica. ·

173

RENNER, KARL (1870-1950) - Jurista austríaco. Ex-Presidente da Áustria._ RICARDO, DAVID (1772-1823) - Economista clássico in· glês. Teórico do valor trabalho. Um dos precursores da economia marxista. SCHOPENHAUER, ARTHUR (1778-1860) - Filósofo idealista alemão. Adepto do irracionalismo e do voluntarismo . S:E:NECA, LUCIUS ANNAEUS (c. 4-65) - Filósofo estóico. SHYLOCK - Personagem shakespeariano (0 Mercador de Veneza) . Serviu de base para Rudolf Ihering desenvolver as idéias centrais de sua famosa conferência A Luta pelo Direito. · SIMMEL, GEORG (1858-1918) tiano.

Filósofo alemão. Neokan-

SOLOVEV, VLADIMIR SERGUEIEVICH (1853-1900)- Filósofo russo . SPENCER, HERBERT (1820-1903) ~ Filósofo inglês. Positivista. STAMMLER, RUDOLF (1856-1938) mão. Neokimtiano.

Filósofo e jurista ale·

STUCKA, PIOTR (1887-1932) - Jurista soviético, Presidente do Supremo Tribunal da URSS, Comissário do Povo para a Justiça. Escritor. TRUBECKOSJ, NICOLAI SERGUEIEVICH (1890-1938) Lingüista membro do Círculo Lingüista de Praga. VOLTAIRE (FRANÇOIS MARIE AROUET) (1694-1778) Filósofo e escritor francês da Ilustração, precursor da Rev. Francesa.

TERMOS LATINOS CITADOS

·'·

A PRIOR! -'- Em primeira lugar, em princípio. AD HOC - Para o fim específico. CORPUS DELICTI - Corpo de delito; antiga denominação para crime. DE IURE ~ De direito. IN PARTES SECARE - Com parte do corpo. IUS CIVILE - Direito aplicável ao~ cidadãos romanos. IUS FORI - Direito do foro .. IUS GENTIUM -.Direito das gentes, aplicável aos estran· geiros. Precursor. do moderno direito internacional. HlS MERCATORUM - Direito dos mercadores. IUS TALIONIS - Direitc;> de Talião. MANCIPATIO PER AES ET UBRAM- Título de proprie· d~de Romana. · NULLUM CRIMENN, NULLA POENA SINE LEGE- Nenhum crime e nenhuma pena sem lei. PACTUM - Pacto. PAX- Paz. PER GENUS ET PER DIFFERENTIAM SPECIFICAM Por gêneros e espécies diferentes . SI IN JUS VOCAT, NI IT, ANTESTAMINO IGITUR IN CAPITO - .. Se alguém chamar outrem a juízo, vá; se não vai, tome tes,temunhas: elll; _seguida a detenha. .SUl IURIS - Direito Romaria, pessoa não sujeita ao poder de outrem. ·

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