Conflitos políticos e instrumentalização da (falta de) ética na medicina.

September 10, 2017 | Autor: Heleno Correa Filho | Categoria: Medical Education, Bioética, Educação Médica, Bioecthics
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Conflitos políticos e instrumentalização da (falta de) ética na medicina:1 Francisco Hideo Aoki; Heleno Rodrigues Correa filho; Enídio Ilario Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP (Campinas/São Paulo) Universidade de Brasília (Brasília/Distrito Federal) Resumo: [ doi: 10.13140/2.1.1771.8085 ] O ensaio busca localizar conexões entre manifestações de profissionais médicos e líderes de organizações sindicais, científicas e sociais, e de polícia administrativa do estado em relação à prática profissional médica. Interroga por que a conjuntura do conflito entre capital e trabalho se manifesta de maneira a inverter o domínio da ética sobre a prática política dando precedência a esta última e contrariando preceitos históricos desenvolvidos nos últimos quinhentos anos. A distinção entre comportamento ético e princípios políticos é colocada como essência para a análise dos conflitos do início do século XXI com enfoque na realidade brasileira do fim da sua primeira década. O método utilizado é o de confronto histórico e ficcional entre posições políticas baseado na ética com fio condutor de validação de condutas. Termina por não poder prever o desfecho ou devir colocando que a prática profissional depende tanto da ética que pode ser reduzida a papéis sociais de destaque ou de submissão dependendo da escolha que façam os atores sociais e políticos dentro e fora da medicina, desde a formação até a prática de pesquisa, ensino e ação profissional mais enraizada na sociedade brasileira. Summary: Political conflicts an orchestration of the (or the lack of) ethics in Medicine. This essay seeks a connection amongst leading physicians as professionals, union leaders, scientists and social stakeholders, as well as state regulatory deputy physicians’ officers in relation to their role into the medical profession. We addressed an inquiry over the political status of the conflict between capital and work power that redirects the dominance of ethics above politics giving precedence to the last over the former, as well as contradicts the developments of ethics in the last five centuries. We also placed a distinction between ethical and political principles that was taken as a foundation for the analysis of the conflicts into the beginning of the 21st century focusing on the Brazilian reality of its first decade. A historical and fictional confrontation was used as a method to conduct the validation of professional behavior under ethical principles. It declares the impossibility to predict future outcomes after stating that the medical profession will depend on ethics to be reduced to submissive or promoted to outstanding social roles based on the choices that politicians and social stakeholders will carry on. This analysis considers the medical practice, encompassing teaching, research and professional roles that will place roots into the Brazilian society. 1

Poster 754 publicado na p.400 dos ANAIS - X CONGRESSO BRASILEIRO DE BIOÉTICA - II CONGRESSO BRASILEIRO DE BIOÉTICA CLÍNICA - Revista da Sociedade Brasileira de Bioética Vol. 9 Suplemento 2013.

Discussão: Sites de pessoas que se dizem médicos(as) ameaçam jornalistas e outros profissionais de retaliar contra opiniões que desagradam suas correntes políticas que debatem leis, medidas provisórias, mercado de trabalho, serviço civil obrigatório, exames de ordem, e avaliação continuada de profissionais (1, 2). Quem discorda e ousa debater não recebe oposição civilizada. É ameaçado com a sinalização de que um dia poderá precisar de médicos, e como são pessoas conhecidas, o encontro se dará na condição de quem não poderá reagir. Os que ameaçam acenam com a intenção e possibilidade de agravarem o sofrimento ou deixarem morrer os adversários que os procurem no futuro. Existem precedentes consideráveis. Em uma universidade brasileira alguns anos antes do início do Século XXI os estudantes de medicina cursavam o curso básico em aulas conjuntas com todos os alunos de anatomia, histologia, bioquímica, biofísica, farmacologia básica e biologia molecular. Durante dois anos conviviam pacificamente até que ao final do segundo ano eram promovidos para o curso na fase pré-clínica junto ao Hospital Universitário, onde as salas de aula eram exclusivas de alunos do curso médico. Faziam então uma festa denominada “adeus básico” o que ao invés de representar um agradecimento à dedicação dos professores do Instituto de Biologia representava o escárnio dirigido aos professores e alunos de outros cursos que ficavam para trás, destinados a serem esquecidos para sempre. Os excessos dessa festa chauvinista nem se comparavam com os das festas em que calouros(as) eram assediados e eventualmente agredidos por grupos que se orgulhavam de patrocinar a degradação dos novos escravos. Eram festejos coletivos, maiores, com destruição do patrimônio e desrespeito aos colegas e professores cuja convivência desejavam abandonar. Quando o um Professor do instituto lhes pediu silêncio para permitir que transcorresse a prova do último dia de aulas das turmas de outro curso foi empurrado sentado sobre a lama criada por uma mangueira de incêndio que jorrava aberta e os óculos enlameados borraram a cena. A mangueira foi dirigida depois contra as janelas da biblioteca estragando livros e revistas. O professor pediu ao aluno de medicina que o respeitasse e teve como resposta: _ Um dia você vai aparecer no Pronto Socorro e eu estarei lá. A ameaça calou fundo. Os brasileiros aprenderam a levar ameaças a sério desde a época dos jagunços dos coronéis dos latifúndios de gado e cana. Ameaça não é ameaça. É fato consumado. No sul do estado do Pará e norte de Mato Grosso essa ainda é a lei (3). Uma comissão de investigação dos fatos chegou a conclusões contundentes e sugeriu punições. A comissão maior de dirigentes da Instituição preferiu deixar tudo como estava pela “falta de provas” e por acreditar na boa índole dos estudantes envolvidos. Os estudantes investigados intimidaram pela internet que nascia os colegas que ousaram prestar depoimentos e prometeram vingança usando codinomes e pseudônimos conhecidos sem se identificar pessoalmente. Ninguém pagou nada nem para trocar os vasos sanitários entupidos com terra em represália aos gritos do professor ameaçado. Quando mais tarde o mesmo professor precisou de cuidados cirúrgicos dirigiu-se a outro hospital e comentou: _ “Calculei os anos passados e cheguei à conclusão de que aquele

estudante que me ameaçou deveria estar fazendo residência médica no segundo ano. Achei melhor procurar outro hospital”. Turmas anteriores da mesma universidade protagonizaram brigas de gangues entre faculdades da cidade motivadas por desafios e disputa por troféus esportivos que saiam das quadras de esporte e partiam para invasões dos Centros Acadêmicos, Associações Atléticas, perseguições de rua e espancamentos com depredação, arrombamento, destruição de móveis e troféus. Também nada acontecia do ponto de vista de represálias institucionais em decorrência de leniência corporativa com as transgressões “juvenis”. A ameaça à ética da medicina começou no Brasil seriamente anos antes, entre 1965 e 1975, quando um psiquiatra chamado Amílcar Lobo, entre outros médicos, avaliava os presos políticos que eram levados para a Casa da Morte em Petrópolis. O “médico” ajudava os torturadores a dosar a pancadaria permitindo que prosseguissem os suplícios sem que o preso morresse antes de dar a informação que desejavam. Médicos que ajudam torturadores são condenados desde sempre. O marco jurídico internacional do século XX foi o tribunal de Nuremberg contra os criminosos nazistas após 1946, de onde se originou o código de pesquisa médica que as multinacionais de medicamentos querem derrubar para poderem conduzir experimentos sobre populações pobres sem obrigações de tratar os doentes que fazem parte de grupos expostos ou que tomem placebo. A ética traçou fronteira intransponível entre a profissão médica e a tortura. Médicos que participam de disputas políticas são obrigados a preservar o nível compatível com as obrigações que assumem na profissão. Políticos que são médicos costumam esgrimir a origem profissional como argumentos de verdade ou de coerção intelectual vestidos com roupagem ética. Diplomas e certificados médicos são exibidos como certificação de validade para proposituras que nada tem a ver com salvar vidas ou preservar direitos de autonomia, beneficência ou não maleficência. Preceitos religiosos e fundamentalismos políticos são associados com argumentos supostamente baseados em ética que em geral o público, a imprensa e a própria política desconhecem. Nesse caso o uso da ética está em contradição com seus fundamentos e representa embuste, simulacro, falsificação. A política por outro lado exige uma ética, em parte derivada das guerras, onde não se mata adversários por que não são inimigos. Não se pune suas famílias ou sua descendência embora tenha sido hábito entre colonizadores de todos os impérios. A ética militar preserva os comandantes embora fuzile a infantaria. Troca gentilezas entre dominadores e cobre de honra os vencidos enquanto massacra os peões e a ralé. Nesse ponto a política do século XXI torna-se cruel nas guerras por encomenda, por exércitos mercenários, nas tecnologias de combate por telecomando em que o inimigo é atacado por quem não pode ver, e volta-se a matar mulheres, velhos e crianças. As guerras pré-medievais, sob vários aspectos, foram mais éticas que os combates com modernos aviões sem piloto que assassinam os que comparecem a um casamento motivando depois um “pedido oficial de desculpas” pelo mandante do crime. Não expõe o manejador do telecomando ironicamente chamado de joystick na língua de quem mata.

Os jovens profissionais formados nas universidades do século XXI acham normal ‘matar inimigos’ em jogos eletrônicos. Acham correto eliminar seres vestidos em roupas rasgadas, famintos e sujos por que são seres sub-humanos. Toda sub-raça pode ser eticamente eliminada, como pensaram os inquisidores católicos quando disseram que os índios e pretos não tinham alma. Podiam ser mortos e torturados. A ética da inquisição revive contra índios, africanos, pobres, migrantes, doentes mentais, bêbados, drogados, todos os seus descendentes e todos os que façam sua defesa política. A ética jovem do século XXI apoia o extermínio (4, 5). Dentro dessa “nova ética” cabe tudo inclusive corporações como os profissionais da medicina falarem pelo povo e escolher os modelos assistenciais que devem ser praticados pelo país. A capacidade do estado para dispor as leis, a ordem social, os direitos, fazem o voto popular valer menos que a ética de direitos profissionais exigidos pela corporação médica que não teve nenhum problema ético quando a medicina passou a ser monopólio de corporações que subcontratam e escravizam o trabalho médico assalariado. No entanto quando o estado põe regras ao trabalho profissional aí surgem argumentos da nova ética que põe a política como critério e não da politica que pauta suas táticas e estratégias pela ética. Inverte as determinações de tal modo que fariam um general de Napoleão estranhar por que não se preservariam a honra de um comandante em chefe de forças armadas inimigas. Talvez um general romano tivesse o mesmo espanto se fosse colocado na máquina do tempo e chegasse aos dias atuais. Segundo a nova ética a conveniência corporativa se sobrepõe aos poderes do estado. Qualquer coisa que lhe seja contraposta é autoritarismo, ainda que esteja previsto pelas leis. Quem faz as leis, quem veta e sanciona, quem aplica pouco importa. Importa que as decisões sejam pautadas pela inversão em que a política determina a ética do momento. Estamos vivendo um período agudo dessa polarização contraria à ética em momentos em que massas populares demandam direitos e os detentores de poder interpretam o que dizem as pessoas nas ruas, frequentemente com o sentido contrário das manifestações (6). Conseguirá a ética médica sobreviver a essa polarização e inversão? O conflito será resolvido à moda de Átila o Huno ou à moda de Napoleão? A sociedade será militarizada ou será tratada com equidade dando a cada um segundo suas desigualdades? A proposta do SUS sobreviverá à ética invertida? Será possível dar formação ética verdadeira aos jovens médicos do século XXI que lhes permita usarem a ética e não a vingança como padrão de comportamento? Qual será o destino da profissão que deve respeitar o homem como ser destinado a buscar sua melhor posição e a maior felicidade dentro de sua realidade? Aliviar a dor e prolongar a vida continuarão sendo objetivos principais da Medicina? Quantos alunos saídos das escolas médicas sabem que são esses os objetivos que a profissão deveria ter como meta enquanto preserva a dignidade de seus praticantes? Quando as fronteiras entre a política e as opções de trabalho profissional médico são transpostas corre-se o risco de carregar para a disputa o peso do sistema tradicional de conflitos, ameaças, boicotes e retaliações. O alvo podem ser médicos e mesmo usuários de serviços em posições conflitantes. A população assiste ao debate sobre melhores maneiras de reforçar o Sistema Único de Saúde perplexa com acusações e atitudes incompatíveis com

quem diz defender a saúde. Médicos brasileiros foram para as ruas com cartazes e palavras de ordem prometeram punir e retaliar futuros usuários caso os oponentes recorram ao sistema público, xingando adversários políticos e usando linguagem que não dá suporte nem credibilidade pública a suas exigências. Corremos o risco de passar a ver a corporação profissional desacreditada e desprestigiada junto ao povo na medida em que médicos não sejam capazes de manter o nível eticamente adequado à defesa de políticas sociais conflitantes que em última análise deverão ser objeto de escolha não pelos médicos, mas pelos que lhes pagam os serviços. Legitimidade é coisa que não se impõe e uma vez perdida é como poeira lançada ao vento. Não dá para recolher.

Bibliografia

1. BRASIL - Presidência da República. Lei 12.842/2013 - Dispõe sobre o exercício da Medicina, 12842/2013. Sect. 1 (2013): Available from: http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?data=11/07/2013&jornal=1&pagina=1&totalArquivo s=352 ; http://blog.planalto.gov.br/wp-content/uploads/2013/07/Raz%C3%B5es-dos-vetos.pdf 2. BRASIL - Presidência da República. Institui o Programa Mais Médicos e dá outras providências - Medida Provisória No. 621 de 8 de Julho de 2013, ANO CL - Seção I. Sect. 1 (2013): Available from: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato20112014/2013/Mpv/mpv621.htm ; http://www.in.gov.br/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=09/07/2013 3. Machado I. Ameaçada desde 1996, Regina sonha viver em paz. Diário do Pará [serial on the Internet].DOI:2013: Available from: http://www.apublica.org/2013/07/regina-sonha-viverem-paz/ 4. Saviano R. Gomorra: a história real de um jornalista infiltrado na violenta máfia napolitana. 6 ed. Mondadori A, editor. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil Ltda.; 2009. 5. Clark N. Devaneios megalômanos de Kátia. GreenPeace - Blog do [serial on the Internet].DOI:2013; (11 jul 2013 às 18:13): Available from: http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Blog/devaneios-megalmanos-de-ktia/blog/45914/. 6. George S. O Relatório Lugano: Sobre a manutenção do capitalismo no século XXI (The Lugano Report - 1999). São Paulo SP: Boitempo Editorial - Jinkings Editores Associados Ltda. SP 2002.

A partir da Pagina 169. Tópico “outros temas” – página 402 da editoria – página 400 da edição

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