\"Hi no maru manchado de sangue: A Shindo Renmei e o DOPS/SP\"

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Hi-no-maru1 manchado de sangue: a Shindo Renmei e DOPS/SP Rogério Dezem2 “Talvez ela queria ser lembrada após a morte. A flor da cerejeira cai depressa, mas a memória da primavera permanece” (daymio Asano Naganori, 1701) Introdução No centenário da imigração japonesa no Brasil, pode-se afirmar que as singularidades do processo imigratório que consolidaram a presença dos japoneses no Brasil são cada vez mais aparentes. Se comparados aos principais grupos étnicos que aqui aportaram (alemães, italianos, espanhóis, portugueses entre outros), os filhos do solnascente, desde o início, foram vistos com, no mínimo, certa desconfiança. Em sua trajetória de assimilação e integração, uma série de estereótipos foram acionados, criando um extenso léxico para definir o que representava a imagem do “japonês” sob o regime escópico das autoridades e de muitos intelectuais nacionais, além dos próprios brasileiros. Neste contexto, foi que o substantivo “amarelo” tornou-se um dos adjetivos mais comuns para caracterizar os atores de uma das principais correntes imigratórias que aportaram no país entre 1925 e 1935. Maior contingente imigratório de origem asiática no país, os japoneses tiveram de enfrentar nestes 100 anos de história uma série de desafios, como quaisquer outros imigrantes, no entanto o fenótipo oriental foi sempre o mais estigmatizante dos estereótipos associados a este imigrante. Nessa trajetória na qual a cor se torna característica de identificação e elemento acionador de um imaginário controverso par excellence, se consolidou o conceito de “perigo amarelo”. Ser identificado como perigo racial, político e militar foi o fardo carregado pela comunidade japonesa radicada aqui no Brasil, principalmente a partir da segunda metade da década de 1930 e ao longo da década de 1940, quando a Segunda Guerra Mundial (19391945) e os acontecimentos posteriores, contribuíram para dar novas tonalidades ao “amarelo”. A política de caráter nacionalista de Getúlio Vargas, principalmente durante o Estado Novo (1937-1945) , na qual uma série de leis de caráter restritivo e assimilacionista foram decretadas, além de ações repressivas como prisões, contribuíram de forma decisiva para criar um clima de dúvidas, tensão e ressentimentos por parte de alguns grupos étnicos que para cá imigraram, como por exemplo os alemães, japoneses e italianos (em menor grau). 1

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Bandeira nacional do Japão. Literalmente “bola do sol”, “ círculo solar” ou “bandeira do sol”.

Professor do Departamento de Estudos Brasileiros da Escola Graduada de São Paulo e Mestre em História Social pela FFLCH/USP (2003). Autor de Shindô Renmei: Terrorismo e Repressão (Série Inventários Deops; São Paulo, AESP, 2000) e Matizes do “Amarelo”: a gênese dos dicursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908) (São Paulo, Associação Editorial Humanitas/FAPESP, 2005).

2 Pressionada por dois nacionalismos, pois de um lado havia o governo militarista japonês e do outro a ditadura de Vargas, o imigrante japonês que desde o final da década de 1920 consolidava suas bases (núcleos coloniais, associações, escolas, etc) em território brasileiro, sofreu uma espécie de “crise referencial”. Quais valores sociais e culturais deveriam nortear o modo de vida de grande parte dos imigrantes e, principalmente, de seus descendentes? O japonês ou o brasileiro? Reflexo disso foi que em meados de 1939, circulava pela colônia a obra Os japoneses de Bauru (Bauru Kannai no Houjin), de autoria do japonês Shungoro Wako, um relatório sobre a situação dos imigrantes ao longo das linhas Noroeste e Paulista, região na qual se encontrava a maior parte dos japoneses e descendentes no período. Foi a partir desta pesquisa que se pode constatar que naquela região cerca de 85% dos imigrantes desejava voltar para o Japão. A suspensão da imigração japonesa para o Brasil em 1941, quando oficialmente chegou a última leva no navio Buenos-Aires maru, encerra um período. Para muitos imigrantes, que em sua maioria viviam no interior do estado de São Paulo e norte do Paraná, iniciava-se um momento de apreensão e dúvidas. Na época, os imigrantes japoneses e seus descendentes aqui radicados totalizavam pouco mais de 200 mil almas3. Esse período ficou marcado na história dos imigrantes japoneses no Brasil como a “página negra manchada de sangue”. Preconceitos contra o “amarelo” tomam forma de discriminação e repressão. O “Perigo Amarelo” estava na ordem do dia, alimentando a imaginação das autoridades brasileiras. Proibiu-se falar a língua japonesa em público, alfabetizar ou ensinar línguas estrangeiras, publicar jornais, revistas, panfletos em língua japonesa, reunir-se em grupos, criar associações ou sociedades, deslocar-se de uma cidade a outra sem salvo-conduto e sem a prévia comunicação e autorização da polícia política (DOPS – Departamento de Ordem Política e Social), os estrangeiros deveriam portar a famosa carteira de identificação “modelo 19” ou a certidão de registro “modelo 20”. Caso algumas destas interdições fosse descumprida, o imigrante poderia ser preso para averiguação ou, o que era pior, poderia ser acusado de favorecer os “súditos do Eixo” ou mesmo ser espião do Mikado. E muitos foram presos a partir de 1942 até o fim da guerra. As dificuldades sofridas durante o período podem ser vistas a partir de atitudes arbitrárias que podiam ir desde atos de discriminação, vandalismo e prisões, até em ordens de evacuação de áreas consideradas “estratégicas” pelo governo, como a rua Conde de Sarzedas e arredores no bairro da Liberdade na capital paulista, na região litorânea da cidade de Santos em São Paulo e no litoral norte do estado do Paraná, houve também a criação de campos de “internamento” como em Tomé-Açú no estado do Pará. Com relação a ordem de evacuação das regiões litorâneas, começaram a circular boatos de que na verdade esta medida tinha “um caráter estratégico” comandado pelo governo japonês, para “preparar o terreno” para o desembarque de forças militares japonesas4. Aos olhos da polícia política, os japoneses eram vistos como um “perigo em potencial, inassimiláveis, imperialistas, traiçoeiros”, portanto deveriam ser “nacionalizados”, o mais rápido possível, falava-se até em expatriamento dos japoneses não naturalizados. 3

No início da década de 1940 o Brasil era o segundo país a possuir o maior número de imigrantes japoneses e descendentes em seu território. Em primeiro lugar encontrava-se os Estados Unidos com mais de de 300 mil japoneses e descendentes. 4 Vários Autores. Uma Epopéia Moderna – 80 anos de imigração japonesa no Brasil. São Paulo; Editora Hucitec/Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992. p. 262.

3 Aqueles que eram presos após ter cometido infrações como “falar japonês em público”, “promover reuniões sem autorização da polícia”, “viajar sem portar salvoconduto” ou simplesmente, “suspeitos de quinta-colunismo”, ou seja, espionagem, eram levados para a delegacia para averiguação, acabando, na maior parte das vezes, por pernoitar na cadeia sendo liberado no dia seguinte. Ocorreram muitas prisões na cidade de São Paulo e, principalmente, no interior do estado. Em algumas regiões devido a grande quantidade japoneses de presos, as delegacias enviavam para a Hospedaria dos Imigrantes os “excedentes” que ficavam em sua maioria, uns 3 ou 4 dias e depois eram liberados. Aqueles acusados de “quinta-colunismo” e considerados “criminosos políticos” eram enviados nos tempos de guerra para a Casa de Detenção de São Paulo onde aguardavam julgamento. Todo esse clima de apreensão, discriminação e, principalmente, desinformação contribuiu para que se reforçasse entre os imigrantes japoneses e muitos de seus descendentes radicados nas distantes cidade do interior de São Paulo e norte do Paraná, o sentimento de Yamato Damashii, ou Espírito Japonês. União, nacionalismo, patriotismo se tornavam o fio condutor da esperança da vitória militar japonesa na guerra e volta ao DaiNippon (“Grande Japão”). Ser japonês perante aquela realidade beligerante vivenciada naqueles anos, representava a sobrevivência do próprio ethos nipônico. Infelizmente, as prisões e os atos arbitrários por parte das autoridades brasileiras contra os japoneses se tornaram corriqueiros. O preconceito, a falta de preparo e a má-fé de muitos delegados e investigadores, principalmente nas cidades do interior do estado de São Paulo, favoreciam delações, prisões arbitrárias, furtos as residências de imigrantes e até mesmo, agressões físicas. Ao percorrer as cidades do interior do estado de São Paulo várias são as lembranças dos imigrantes japoneses de maus tratos por parte da polícia e de “brasileiros”5. Existem histórias até de mortes de japoneses ocorridas dentro das cadeias causadas por tortura e maus tratos. Como podemos notar, o final da década de 1930 e os primeiros anos de 1940, foram um período muito difícil para a grande maioria dos imigrantes e descendentes aqui radicados. Mas o pior ainda estava por vir, no seio da própria colônia japonesa em frangalhos, teria início uma disputa política, personificada em atentados e atos de terrorismo que calaram fundo na alma de cada imigrante que vivenciou aqueles anos: a Shindo Renmei.

1. Shindo Renmei: a gênese

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Durante o período da guerra as notícias sobre a situação dos japoneses radicados no interior do Estado de São Paulo eram pouco divulgadas na capital paulista. Entre as várias histórias relatadas no período, citamos aqui a de um imigrante que foi morto por espancamento na cidade de Araçatuba, pairava sobre ele a suspeita de ser um “espião japonês” . Outro relato vinha da região de Araraquara, após uma diligência realizada pela polícia política na casa de uma família de agricultores, foi descoberta (provavelmente estava escondida) certa quantia em dinheiro, foi alegado pelo policial de que aquela atitude era ilegal e dessa forma o dinheiro deveria ser “confiscado”. Essa atitude fez com que o proprietário e o filho reagissem, fato que levou os policiais ao fuzilamento dos dois japoneses. In: Hatanaka, Maria Lúcia Eiko. O processo judicial da Shindo-Renmei: um fragmento da história dos imigrantes japoneses no Brasil. São Paulo, Fundação Japão, 2002. p. 49.

4 A notícia da derrota do “imbatível” Japão em agosto de 1945, causou espanto e tristeza para muitos japoneses aqui radicados, no entanto, para a maioria ela causou confusão e apreensão. Seria propaganda norte-americana? Provocação das autoridades brasileiras? Como o Japão havia sido derrotado? Impossível, pois o Imperador Hiroito ainda vivia. Caso a notícia da derrota fosse verdadeira o Imperador seria o primeiro a cometer suicídio (seppuku). Era desta forma que no Brasil, muitos fiéis “súditos” japoneses raciocinavam naquele momento. Boatos e notícias truncadas eram divulgadas arbitrariamente entre os núcleos coloniais no interior de São Paulo e no norte do Paraná, em sua maioria inverossímeis, mas que devido ao contexto pareciam ser fidedignas. Confiar em quem? O cotidiano da guerra criou uma situação anômica6 dentro da colônia. A ausência de representantes do governo japonês ou entidades de origem japonesa que pudessem guiar os imigrantes e seus descendentes aqui radicados, deu margem para o surgimento de sociedades clandestinas durante os anos de 1942 e 1945. Isso levou a uma disputa interna pela liderança política e espiritual (tornar-se “brasileiro” ou continuar “japonês”?) na colônia, algo que para a polícia política passou desapercebido. Aos olhos das autoridades brasileiras estas iniciativas eram atribuídas a indivíduos inassimiláveis, fanáticos e traiçoeiros. Entre essas sociedades7, se encontrava a sociedade clandestina Taisei Yokusan Doshikai (Associação dos Correligionários da Cooperação da Grande Política), surgida em Bastos no interior de São Paulo e que propagava a volta para o Japão e a superioridade da raça japonesa sobre a brasileira8. Advertia que a assimilação seria o “suicídio” para os japoneses aqui radicados. Outras como a Zaihakuzaigo Gunjinkai (Associação dos Ex-

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“ A anomia é uma situação social na qual faltam coesão e ordem, especialmente no tocante a normas e valores. As suas características são: formulação ambígua ou aplicação arbitrária ou casual de normas; falta de definição das normas vigentes por motivo de guerra ou calamidade social; isolamento e autonomia do indivíduo a tal ponto que as pessoas se identificam muito mais com seus próprios interesses do que com os do grupo ou da comunidade como um todo. (...) Outro exemplo de situação anômica é a utilização consciente de meios ilícitos para se conseguir um resultado almejado. Neste caso trata-se de uma opção por formas de agir condenadas pela sociedade, possivelmente causada pela impossibilidade de sucesso por outros meios. Cabem aqui os grupos terroristas, as organizações mafiosas, que se aproveitam de espaços sem autoridade para agirem segundo seus princípios distorcidos. De acordo com esta definição, há anomia onde as instituições sociais não conseguem fazer valer sua força, seja por encontrar outras práticas mais fortes ou por incompatibilidade com o meio”. (fonte: http://translationpoint.blogspot.com/2007/04/anomia.html. Acessado em: 24/03/2008) 7

“Até certo ponto a formação de sociedades de caráter nacionalista e secreto foi algo comum no Japão a partir do final do século XIX. Elementos formadores do nacionalismo japonês como modo de afirmação em relação ao estrangeiro (Ocidente),como o Espírito Japonês (Yamato Damashii) e o Niponismo (Nihon Shugi), termo que significava patriotismo elevado a um grau intenso de etnocentrismo, serviram de elemento de coesão nacional a partir da década de 1880. No seio da comunidade política japonesa, essa atmosfera levou ao surgimento de entidades ultranacionalistas e de apelo expansionista como a Genyosha em 1881 (Sociedade Sombrio Oceano) e a Kokuryukai em 1901 (Associação do Dragão Negro). A radicalização desse modelo de expressão nacionalista encontrou seu ápice a partir do final da década de 1920 com o surgimento do mesmo modelo de entidades, adicionando-se com muito mais frequência o fator terrorista de suas ações. Deste período destacam-se a Shinshu Gidan em 1921 (Liga da Virtude do País dos Deuses), da Ketsumeidan (Liga de Juramento pelo Sangue) e da Sakurakai (Sociedade das Cerejeiras) em 1931. A derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial desmantelou e silenciou essas organizações, espécie de esteio da identidade nacional japonesa.” In: Dezem, Rogério. Matizes do “Amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo, Associação Editorial Humanitas/FAPESP. 2005. pp. 139-140. 8 Dezem, Rogério. “Realidade Alterada: o poder da Shindo Renmei”. Revista História Viva. Ano III, n° 26. dezembro de 2005. pp. 80-85.

5 Militares Japoneses no Brasil), Tenchugumi (Grupo de Castigo Celeste) e a Sei Aikoku Dan (Grupo dos Verdadeiros Patriotas), surgidas na capital paulista, também propagavam idéias de caráter patriótico e nacionalista no seio da desestabilizada colônia. Em meados de 1945 na cidade de Marília, surgia mais uma sociedade japonesa clandestina a Kiyoukai (Sociedade Amigos da Colaboração), que passaria despercebida no meio de tantas outras se não fosse por um diferencial: era formada somente por japoneses oriundos de Okinawa. Segundo o DOPS/SP eram cerca de 180 associados que tinham como objetivo, além de preservar o “espírito japonês”, combater mediante a ameaças os okinawanos (e somente eles) que aceitassem e propagassem a derrota do Japão. No artigo 4 do estatuto da Kiyoukai havia uma prerrogativa para se fazer parte da sociedade: “As pessoas que se dedicaram a produções do inimigo e aquelas que declaram a derrota do Japão não poderão ser admitidas na sociedade”9 Ainda segundo as investigações da polícia política seus dirigentes eram Kojin Tomiyoshi (presidente), Kanzen Shimabukuro (conselheiro e principal “animador da sociedade”) e Shinso Miyagui (conselheiro).

Imagem 1. Estatutos da sociedade japonesa clandestina Kiyoukai, formada por imigrantes procedentes de Okinawa apreendidas pelo DOPS/SP. (fonte: Dossiê 12B – 453. pasta 2. Doc 8 . fl. 507. DEOPS/SP, DAESP)

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Dossiê 12B – 453. pasta 2. Doc 8 . fl. 507. DEOPS/SP, DAESP

6 No entanto, a sociedade que conquistou maior destaque foi a Shindo Renmei (Liga dos Seguidores do Caminho dos Súditos) que embora surgisse durante a guerra, só veio à luz nacionalmente a partir de 1946. A própria gênese da Shindo Renmei é um tema ainda controverso. Existem no mínímo três versões sobre a fundação da sociedade: uma delas coloca que a Shindo surgiu no ano de 1942 em Marília (interior de SP); outra (mais provável) que surgiu entre os anos de 1944 e 1945, recebendo o nome de Kodôsha (Movimento Unificador) em fevereiro de 1944, pouco antes de tornar-se Shindo Renmei; e a versão “oficial” propalada por alguns dirigentes da sociedade de que ela havia surgido logo depois do fim da guerra, ou seja, em agosto de 1945, na tentativa de legalizá-la perante as autoridades brasileiras. A partir de relatórios da polícia política do período da guerra e do pós-guerra é possível mapear a gênese da Shindo Renmei. Um aspecto importante que deve ser ressaltado é a presença da figura do ex-militar japonês, “o velho” Junji Kikkawa, como fundador da sociedade clandestina em todas as versões até agora divulgadas. Em 1945 Kikkawa já era conhecido pela polícia, ex-militar que imigrou para o Brasil em 1933, já havia sido preso algumas vezes. A primeira prisão ocorreu em abril de 1942, logo após o rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Japão, sob acusação de ter feito “ameaças de represálias contra o Brasil”, foi fichado e logo depois posto em liberdade. Preso novamente em setembro de 1944, foi processado pelos incêndios em galpões de criação de bicho-de-seda e plantações de hortelã nas cidades de Paraguaçu Paulista e Marília, no interior de São Paulo e Assaí no norte do Paraná. Neste contexto uma versão que acaba por reforçar a tese de que a Shindo surgiu efetivamente entre 1944 e 1945, a partir de distensões políticas no seio da desamparada colônia japonesa no período, pode ser averiguada a partir de documentos, prontuários e dossiês, sobre as investigações do DOPS/SP no caso. Na tentativa de angariar donativos entre a colônia japonesa, principalmente nas famílias católicas de origem japonesa, Keizo Ishihara, Margarida Watanabe (que veio a se tornar figura ímpar na história da imigração japonesa no Brasil) e Massaru Takahashi, fundaram em maio de 1942, com a autorização da Cúria Metropolitana de São Paulo e da Superintendência de Segurança Política e Social, a Caixa Beneficente denominada “Pia”, com o principal intuito de auxiliar os japoneses pobres, doentes e também as famílias de japoneses que estivessem detidos nas delegacias do Estado de São Paulo10. Segundo investigações de agentes do DOPS/SP, no mesmo mês de fundação, a sociedade recebeu das firmas de origem japonesa K.K.K.K. (Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha), Bratac (Banco América do Sul), Casa Tozan, Brascot e Casa Hashia a contribuição total de Cr$ 250.000,00, sendo cinquenta mil cruzeiros de cada firma. Além disso, cada uma delas contribuía mensalmente com o valor de Cr$ 5.000,00. Somado a esse dinheiro havia a quantia deixada pela representação diplomática japonesa aos cuidados da Cúria Metropolitana de São Paulo. A distribuição era feita aos imigrantes japoneses pobres, doentes e que estavam presos, perfazendo um total de cerca de 4 a 5 mil famílias. Esse auxílio era reservado para a manutenção do trabalho, principalmente na lavoura e no amparo ao chefe da família caso estivesse doente. Margarida Watanabe, da Liga das Senhoras Católicas, estava encarregada de mandar comida, cigarros e o que mais necessitassem os japoneses que estivessem presos. Houveram algumas reclamações por parte de algumas famílias japonesas beneficiadas por 10

Depoimento de Keizo Ishihara. Dossiê 10J-1; Doc. 54. fl.. 68. DEOPS/SP, DAESP.

7 causa da má qualidade da comida distribuída. Um padre ligado à “Caixa Pia” explicou aos agentes do DOPS que não se distribuía uma comida de melhor qualidade devido à insuficiência dos valores arrecadados. Outra dificuldade se encontrava na distribuição de donativos aos pobres e presos sem recursos, que colocados em liberdade regressavam para sua famílias.Essa tarefa ficava a cargo de Shibata Miyakoshi, diretor da firma K.K.K.K., que esteve sob suspeita de desviar dinheiro da sociedade sendo substituído nessa função em dezembro de 1943 por Keizo Ishihara11. Dentre os colaboradores autorizados na tarefa de arrecadar donativos em benefício da “Caixa Pia”, estavam o ex-militar Junji Kikkawa (um dos fundadores da Shindo Renmei e seu principal dirigente), Shizuo Sugano ( professor de língua japonesa da Escola Akama), Zempati Ando (funcionário do Consulado Espanhol) e Takeo Tomita. Segundo um comunicado preparado pelo Serviço Secreto do DOPS/SP estes japoneses, por volta do mês de fevereiro de 1944, se desligaram da sociedade “Caixa Pia”. Embora em depoimento dado a polícia, Junji Kikkawa afirmou ter se desligado da sociedade em maio de 1944, alegando que os diretores da mesma (Margarida Watanabe, Keizo Ishihara e Massaru Takahashi) se recusaram a auxiliar financeiramente o falso (sic) padre Shimba. Todo dinheiro arrecadado por Kikkawa até aquele momento (num total de cerca de Cr$4.000,00) havia sido entregue a Shibata Miyakoshi12. Segundo as investigações dos agentes da polícia política, o motivo para que ocorresse a cisão na “Caixa Pia” foi que a diretoria da mesma não concordava em aconselhar os lavradores japoneses a abandonar suas lavouras e destruir as plantações de hortelã e cultura de bicho-da-seda13, mas a sociedade incitava seus beneficiados e a colônia japonesa a colaborar com o governo brasileiro no desenvolvimento e no incremento da produção agrícola paulista. Após a cisão, Kikkawa (que já havia sido preso por alguns dias pelo DOPS em abril de 1942) e outros dissidentes, fundaram a Sin Kiu Sai Kai (Sociedade Japonesa de Mútuo Socorro de Guerra), que supostamente tinha a mesma finalidade da “Caixa Pia”, além de fazer campanha contra esta última, propagando que a mesma fazia campanha contra o Japão, pois aceitava que os imigrantes cultivassem hortelã e criassem bicho-da-seda. A Sin Kiu Sai Kai convocava toda colônia japonesa a não contribuir mais com a “Caixa Pia”, dirigindo seus donativos para a “nova e patriota” entidade, auxiliando dessa maneira “verdadeiramente” o Japão. Dentre os membros da sociedade se encontrava o japonês, naturalizado brasileiro, Tsuguo Kishimoto, figura obscura dentro dos acontecimentos no seio da colônia japonesa naqueles anos difíceis14. As reuniões da sociedade ocorriam de forma clandestina na Escola Akama, situada na rua Vergueiro, 2625, suposta sede. Além disso, um comunicado redigido pelo Serviço Secreto da Superintendência de Segurança Política e Social do DOPS/SP em 2 de maio de 11

Tradução de documento escrito em língua japonesa. São Paulo, 12/09/1944. Dossiê 10J-1; Doc. 39, fl. 48. DEOPS/SP, DAESP. 12 Declaração de Junji Kikkawa. São Paulo 14/09/1944. Dossiê 10J-1. Doc. 76. fls. 101-102. DEOPS/SP, DAESP. 13

Em meados de 1944 propagava-se na colônia japonesa o boato de que a seda produzida pelos agricultores japoneses “traidores” e exportada para os Estados Unidos, era utilizada na produção de pará-quedas, enquanto que o mentol serviria para refrigeração dos motores dos aviões aliados. 14

Comunicado sobre investigações em torno da Sociedade Japonesa de Mútuo Socorro de Guerra. 30/08/1944. Superintendência de Segurança Política e Social/S.S.. Dossiê 10J-1. Doc. 37. fl. 45. DEOPS/SP. DAESP.

8 1944, afirmava que a sociedade em questão visava unicamente sabotar toda e qualquer produção de guerra15. Os donativos e o dinheiro arrecadados pela Sociedade Japonesa de Mútuo Socorro de Guerra, na realidade, serviriam para a manutenção das famílias japonesas que abandonassem a lavoura e que colaborassem com as diretrizes impostas por Kikkawa e seus comparsas. Dessa forma, pode-se afirmar que após a “breve experiência” obtida na direção da Sociedade Japonesa, que estava sendo investigada ostensivamente pelos agentes do DOPS, o “bom velhinho” Kikkawa tinha em mente organizar uma outra sociedade, chamada Sokoku Aikoku Seki Sei Dan (Terra Natal de Amor da Pátria de Nascimento), de maior amplitude e bem mais organizada que, como estava redigido em língua japonesa nos documentos apreendidos em posse de Kikkawa e traduzidos pela polícia em setembro de 1944, tinha como objetivos: “Por isso organizamos filiais em todos os lugares, onde houver colônias japonesas, para liquidar todo aquele que contrariar todos os interesses do Mikado. (...) Artigo 3° - os associados que se distinguirem na defesa da Organização, receberão medalhas de mérito, mas os que trabalharem contra a mesma serão eliminados e liquidados. (...) Artigo 10° -os associados não podem intervir em favor de ninguém, que está condenado pela Organização, nem que seja parente ou amigo”16. Kikkawa permaneceu preso na Casa de Detenção de São Paulo até novembro de 1945, quando foi posto em liberdade, devido ao seu estado de saúde precário. Mais tarde, a polícia descobriu que o nacionalista Kikkawa era o presidente e um dos fundadores da Shindo Renmei. No momento em que saiu da prisão ele avaliou dessa maneira a situação: “Desde então vivi contando os dias, esperando a ofensiva das forças japonesas, a partir do dia 10 de setembro que, segundo ouvi, seria a data comemorativa (Dia da Vitória). Uma viagem direta de navios de guerra do Japão levaria mais ou menos vinte dias, mesmo via Cabo da Boa Esperança ou Canal do Panamá. Mas mesmo passados 20 dias, 30 dias nada aconteceu. Considerei estranho o fato. Contudo, uma vez fora da prisão, sintetizando as mais diferentes versões que ouvi, cheguei à inesperada conclusão de que se tratava da mais ilimitada magnanimidade de Sua Majestade: a fim de evitar transformar este Brasil em grande campo de comoção, já foi concluído, secretamente, entre as mais altas autoridades dos dois países um tratado de paz. No momento, parece-me que a situação se esclarecerá em seu devido tempo. Fico cada vez mais grato diante da profunda generosidade da Sua Majestade. Mesmo brasileiros de classe inferior ao verem o grande espírito imperial, reverenciarão(sic) o Japão, com lágrimas nos olhos”17 O pensamento do principal fundador da Shindo, reflete como a facção mais fanatizada dos membros da sociedade enxergavam a situação do imediato pós-guerra. 15

Comunicado sobre investigações em torno da Sociedade Japonesa, fundada com o fim de sabotar produção de guerra. 30/08/1944. Superintendência de Segurança Política e Social/S.S.. Dossiê 10J-1. Doc. 38. fl. 46. DEOPS/SP. DAESP.

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Documento em língua japonesa apreendido pela polícia e traduzido em 13/09/1944. Dossiê 10J-1. Doc. 3. fls. 4-6. DEOPS/SP. DAESP. 17 Vários Autores. Uma Epopéia Moderna – 80 anos de imigração japonesa no Brasil. Op. Cit... p. 274

9 No início de 1946, uma comissão formada por seis japoneses tentou junto ao DOPS/SP, legalizar a sociedade que até aquele momento, se encontrava na clandestinidade e registrá-la oficialmente nos moldes da legislação brasileira. Mário Botelho de Miranda, tradutor juramentado de língua japonesa da polícia, atendeu a comissão e descreveu o episódio da seguinte forma: “Vinham protestar, disseram-me, contra a prisão de inocentes japoneses, seus companheiros. Vinham pedir para que as autoridades fizessem cessar a propaganda de alguns de seus patrícios, verdadeiros culpados por todos os acontecimentos havidos, e por haver na colônia, faziam inutilmente dentro da comunidade nipônica, pregando o derrotismo. Que, assim os lavradores não podiam trabalhar, tendo em mente esta propaganda judáica (sic), inescrupulosa, de pregar a derrota do Japão”18 Miranda informou a essa comissão de japoneses que a Shindo era considerada uma sociedade ilegal porque atuava secretamente e sua direção era formada por estrangeiros, não podendo desse modo, ser registrada. Pedia ainda que voltassem ao trabalho e aguardassem a oportunidade de serem esclarecidos da realidade da situação. Essa resposta revoltou os japoneses ali presentes que insistiam em entregar o documento a polícia. Exaltados, começaram a pedir para ser presos (!). A cena inusitada pode ser sintetizada no diálogo que se seguiu entre o tradutor e o grupo: “Como não havia ordem nem para atendê-los, fomos botando os lunáticos para fora, não sem dizer-lhes no mesmo tom: - Não nos interessa prender só esta comissão. Que venham todos, os cento e tantos das comissões. O requerimento não foi recebido oficialmente; é só para saber que vocês dizem nele - Então entregaremos o memorial à autoridade suprema. - A quem, ao Presidente da República...? - Sim! Se for preciso, ao Presidente da República, General Dutra. - !?”19 Foi dessa forma que as autoridades tomaram “oficialmente” conhecimento da Shindo e de suas pretensões em relação aos membros da colônia denominados de “derrotistas”. Nessa época vários japoneses “esclarecidos” ou “derrotistas” em várias cidades do interior e na capital paulista já haviam sofrido alguma ameaça ou estavam jurados de morte. O memorial entregue a polícia ajuda a esclarecer em parte dos ideais e objetivos da sociedade, um dos principais seria a manutenção do Yamato Damashii (Espiríto Japonês): “Todos os japonezes deve munir este espírito quando nascem e enquanto vivem e enquanto existir um japonez. O “SHINDÔ REMMEI” do Brasil nasceu no dia 15 de agosto de 1945. Por que razão? Surgiu “SHINDÔ RENMEI” para repelir os Japonezez derrotistas que espalham falsas notícias de rendição incondicional do NIPPON e fazem os atos deshumanos e uzam palavras vergonhosas. Isto, enfim constitui uma situação indesejável para produção da lavoura pelo motivo já explicado anteriormente. Por esse 18

Miranda, Mário Botelho de. Shindo Remmei: Terrorismo e extorsão. São Paulo, Editora Saraiva, 1948. p. 56. 19 Idem.

10 motivo nasceu “SHINDÔ RENMEI” para corrigirmos estas derrotistas e encaminhar aqueles que não reconhecem a verdadeira situação”20 Assinavam o documento Junji Kikkawa (Presidente-São Paulo), Ryotaro Negoro (Diretor-Gerente – São Paulo), Teiji Kimura (Superintendente – São Paulo), Shosuke Tanaka (Fiscal – Lins), Kiichiro Yoshii (Diretor – Lins), Tokujiro Ohata (Sub-Diretor – Lins) e Noriyasu Seto (Superintendente – Lins). A polícia perdeu uma boa oportunidade para prender alguns dos principais integrantes da Shindo Renmei da cidade de São Paulo e do interior. Esse descaso e arrogância por parte dos agentes do DOPS/SP contribuiu para que os dirigentes da sociedade, poucos meses depois, dessem continuidade aos seus planos iniciando uma segunda fase de intimidação: os atentados e os assassinatos. Os acontecimentos do imediato pós-guerra propiciaram um terreno fertílissimo para o desenvolvimento da Shindo Renmei. Confusão e descrença, falta de informações seguras e boatos, acabaram por reforçar as diferenças existentes entre os japoneses aqui radicados. De modo, até certo ponto simplista, de um lado havia os katigumi (“vitoristas”), que devido a falta de fontes de informação em língua japonesa e pela maioria ser obrigada a viver quase que isolada no interior do Estado de São Paulo, passaram a acreditar e propagar a crença na vitória do Japão na guerra, alguns de forma “ fanática”. Este grupo perfazia quase 80% da colônia. Acredita-se também que boa parte daqueles que formavam o grupo katigumi eram imigrantes que não conseguiram se adaptar a realidade brasileira, muitos recém-chegados ou que acabaram por “fracassar” em seus objetivos iniciais (amealhar certa quantia de capital e voltar para o Japão em pouco tempo), muitos não obtiveram o sucesso almejado e desse modo passaram a alimentar a esperança na crença “ quase cega” da vitória do Japão e do retorno à pátria. Essa crença era reforçada por um background cultural alicerçado no culto ao Imperador (Xintoísmo), no ideal de Imbatividade do Japão e na necessidade da manutenção do Yamato Damashii (Espiríto Japonês) a qualquer custo. Referenciais vitais que mesmo nas situações de “fracasso” vivenciadas por muitos imigrantes japoneses acabavam por reforçar sua identidade como grupo. De posição contrária se encontravam os makegumi (“derrotistas” ou “esclarecidos”), grupo mais bem estabilizado socioeconomicamente, formado por aqueles que tinham acesso aos meios de comunicação em língua portuguesa, possibilitando assim a formação de uma consciência da verdade e que, por esses motivos, passaram a divulgar a notícia real de que o Japão havia perdido a guerra e consequentemente o Imperador Hiroito deixava de ser uma figura “divina”. Havia um terceiro grupo, bem menor, chamado pelo memorialista Tomoo Handa de “lero-lero”, aqueles que não se definiam nem por um lado nem por outro. Muitos tinham no comércio varejista seu sustento, de modo que se tomassem posição, principalmente ao lado dos “derrotistas”, perderiam a freguesia ( na maioria das vezes quase toda japonesa), além de vir a sofrer ameaças. A Shindo Renmei foi em grande parte produto deste universo confuso pelo qual passava a colônia japonesa no pós-guerra. Como foi mencionado, entre várias sociedades clandestinas (e efêmeras) surgidas ainda na guerra, a sociedade se destacou por sua organização, liderança e capacidade de aglutinar cerca de 120 mil japoneses e descendentes 20

Idem. p. 60

11 em torno, a princípio, dos ideais da manutenção do Yamato Damashii e da convicção de que o Japão não havia se rendido na guerra. A Shindo tinha sua sede na Rua Paracatu, 96, no bairro do Jabaquara, na capital paulista e outras 64 filiais espalhadas pelo interior do Estado de São Paulo. Entre os documentos apreendidos na sede da sociedade pelo DOPS/SP que investigava o caso, havia um mapa e uma lista das principais cidades e de seus sócios-contribuintes. A cidade de Marília encabeçava a lista com cerca de 12.000 associados, logo depois vinham Pompéia (10.000), Tupã (8.500), Mirandópolis (5.700), Três Barras (5.500), Valparaíso (5.000), Birígui (4.500) entre outras. A maior parte dos associados se encontrava nas regiões da Alta Paulista (37,72%) e da Noroeste (34,25%) no Estado de São Paulo. 2. A guerra que ainda não terminou... Foi a partir do final da década de 1990 que o tema Shindo Renmei passou a ser mais especificamente estudado. Seja em pesquisas de cunho acadêmico (HATANAKA, 1993; DEZEM, 2000; KIMURA, 2006; MIWA, 2006; BAHIENSE DA SILVA, 2006) ou jornalístico (MORAIS, 2000), como também em artigos de revistas especializadas. Análises de caráter histórico, sociológico, antropológico e até psicanalítico tem sido publicados objetivando compreender melhor este tema tão complexo, quanto importante não só da história da imigração japonesa no Brasil, como também da história contemporânea nacional. Fato único que acabou por envolver praticamente toda a colônia japonesa radicada, principalmente, nos estados de São Paulo e Paraná, os acontecimentos relativos a Shindo Renmei representaram um “divisor de águas” na história dos japoneses e descendentes. Essas recentes pesquisas e publicações só vem confirmar a observação feita pelo japonês Hiroshi Yamanaka, representante dos japoneses “esclarecidos” da cidade de Bastos (SP), em carta enderaçada ao DOPS/SP em 7 de agosto de 1946: “Trata-se sob, todos os pontos de vista, de um acontecimento sem precedentes na história humana, particularmente na história da imigração, encarando-se esta do ponto de vista político-social e cultural, gerando uma tal confusão que nada podemos dar como explicação no momento presente, até que com o tempo possa o problema ir ser estudado em suas raízes psíquicas” 21 A atemporalidade e alucidez das linhas escritas pelo senhor Yamanaka, surpreende mais ainda ao se averiguar que o autor ainda estava convalescendo de um atentado sofrido em sua residência há pouco menos de um mês antes, no dia 16 de julho de 1946, na cidade de Bastos (SP). Hiroshi Yamanaka quase foi morto com dois tiros por tokkotais, sua esposa acabou sendo ferida no pé.

21

Prontuário n° 6389. Doc. 6, fls. 18-20. DEOPS/SP, DAESP.

12

Imagem 2. Radiotelegrama da polícia comunicando o atentado ocorrido na cidade de Bastos em 16 de julho de 1946 contra Hiroshi Yamanaka. (fonte: Dossiê 12B – 453. pasta 3. Doc1. fl. 522. DEOPS/SP, DAESP)

A primeira vítima da Shindo Renmei a tombar foi Ikuta Mizobe, Diretor Superintendente da Cooperativa Agrícola de Bastos, tradutor e divulgador do termo de rendição japonesa na cidade de Bastos. Sua filha Aiko Higuchi, que na época tinha 25 anos, relembra aquele trágico 7 de março de 1946 com pesar. Apesar de não ter testemunhado o acontecimento, ela o havia “presentido”. A Sra. Higuchi teve um estranho sonho naquela noite, no qual uma cobra picava as costas de sua prima. Acordou assustada, presentindo que

13 algo havia acontecido ao seu pai. Não dormiu mais... Na manhã seguinte recebeu a “repentina” visita do marido de uma prima, achou estranho e guiada pelas lembranças do sonho ruim que teve perguntou: “Meu pai está bem?”. “Ele levou um tiro na perna”, respondeu o marido da prima. Um pouco mais aliviada, mas ainda apreensiva pensei: “Tiro na perna não morre, né?”22 A sra. Higuchi no mesmo momento viajou para Bastos cidade vizinha a Pompéia onde ela morava. Chegando a casa de seus pais, lá presenciou uma cena que a deixou chocada. Um caixão em cima da mesa da sala com o corpo de seu pai sendo velado. Ao se aproximar do corpo: “Eu cheguei perto, levantei o pano que cobria seu rosto. Parecia que ele estava dormindo, mas seu nariz começou a sangrar. No Japão, dizia-se que quando as filhas chegam perto de um pai morto, o nariz dele sangra”23. O mais estranho foi que o tiro que matou Mizobe entrou pelo mesmo local onde, no sonho de sua filha, a cobra havia picado as costas de sua prima e o assassinato ocorreu no mesmo momento em que a sra. Higuchi acordava assustada: por volta das 23 horas do dia 07 de março. Descobriu-se depois que o assassino de Mizobe, o jovem Satoru Yamamoto, fazia parte do braço armado da Shindo. O grupo de assassinos vestidos de capa amarela fazia parte da Tokkotai (abreviação de Taiatari Tokubetsu Kogekitai) ou “pelotão dos moços suicídas”. O fato dos tokkotai representarem o braço armado da Shindo Renmei, só foi descoberto tempos depois pelo DOPS/SP quando da prisão de alguns de seus integrantes, geralmente jovens “fanáticos” de vinte e poucos anos, “liderados” por alguém mais velho e “mais fanático” ainda... Havia a orientação para que caso fossem presos, os tokkotais não deveriam mencionar em hipótese alguma sua filiação a Shindo. Esse ato deu início ao momento mais sombrio e violento da história dos imigrantes japoneses no Brasil. Acontecimento único na história das imigrações que para cá vieram, as ações da Shindô ocorreram apenas no Brasil, nenhum outro país que recebeu imigrantes japoneses em seu território (ex. Estados Unidos, Peru, México, Argentina etc.) presenciou fato parecido. Acabando por se tornar um dos grandes tabus da comunidade japonesa aqui radicada. Foram registrados pela polícia mais duas mortes de japoneses “esclarecidos” em abril, uma das vítimas foi Chuzaburo Nomura, ex-redator chefe do jornal Nippak Shimbun e ex- Secretário Geral da Divisão de Difusão da Associação Cultural (Nipponjin Kyôiku Fukyû-kai). Nomura foi um dos que divulgaram na colônia a Ordem Imperial de Rendição do Japão, na tentativa de esclarecimento sobre os rumos do fim da guerra .Ocorreram ainda uma morte em maio e outra em junho. O mês de julho de 1946 ficou marcado como o mais sangrento, foram registradas onze mortes de “esclarecidos”, concentradas na região da linha Noroeste no interior do estado de São Paulo. Além dos assssinatos uma série de ameaças e atentados com bombas caseiras ocorreram em várias regiões dos estados de São Paulo e Paraná.

22

Arai, Jhony. Viajantes do Sol Nascente. Histórias dos imigrantes japoneses. São Paulo; Editora Garçoni, 2003. p. 98. 23 Idem.

14

70

60

50

40

Feridos Mortos "Esclarecidos"

30

"Vitoristas" Terroristas

20

10

0 mar. 1946

abr. 1946

mai. 1946

jun. 1946 jul. 1946

ago. 1946

set. 1946 out. 1946

nov. 1946

dez. 1946

jan. 1947 fev. 1947

1) Total de de casos registrados de ferimentos e mortes relacionados a Shindo Renmei. (Fonte: Nakadate, Jouji. O Japão venceu os aliados na Segunda Guerra Mundial? O movimento social Shindo Renmei em São Paulo (1945-1949). Vol. I-III. Dissertação de Mestrado em História. PUC/SP, 1988)

Na capital paulista o DOPS agiu rápido. No dia 2 de abril de 1946 agentes da polícia fizeram uma batida na sede central da Shindo, no bairro do Jabaquara. Ali prenderam, sem nenhuma resistência, alguns dos principais dirigentes da sociedade entre eles Ryotaro Negoro (vice-presidente), Masanobu Sato e Teiji Kimura (diretor-geral). Foi apreendido também 26 pacotes de material “comprometedor”, dentre os quais estavam estes objetos: uma fotografia do altar da pátria armado na sede da Shindo Renmei com a reprodução adulterada da foto do encouraçado Missouri; dinheiro japonês usado durante a ocupação das ilhas do pacífico, mapas esquemáticos do estado de São Paulo com as cidades do interior, onde estavam instaladas as filiais da Shindo; manuscritos e cartas em japonês; bandeiras do Japão, entre outros objetos.24 No mesmo dia foi expedida uma ordem de prisão em massa. Os japoneses que se encontravam hospedados em pensões e hotéis foram considerados suspeitos e presos para averiguação. Houve uma vedadeira “caça às bruxas” contra os japoneses a partir do mês de abril. Faltava prender a principal figura da sociedade, o “bom velhinho” Junji Kikkawa. Em 8 de maio de 1946, o líder da Shindo foi novamente preso. Desta vez Kikawa, que já tinha a saúde fragilizada, parecia estar mais enfraquecido, com dificuldades para andar e falar. Quando interrogado pelos investigadores, entre eles o intérprete Mário Botelho de Miranda, sobre qual seria a solução para a luta fratricida entre os japoneses, Kikawa 24

Dezem, Rogério. Shindô-Renmei: terrorismo e repressão. Inventário DEOPS. Módulo. III. São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2000. p. 72

15 respondeu que a “mais justa” seria prender todo mundo, katigumis e makegumis, pois desta forma “a polícia não teria tanto trabalho e os makegumi salvariam sua pele...”25

Imagem 3. Manchete do jornal A Gazeta, de 04 de abril de 1946 sobre as prisões de japoneses efetuadas pelo DOPS/SP na sede da Shindo Renmei na cidade de São Paulo.

(fonte: Acervo do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil)

A partir destas prisões a polícia começava a desmantelar o núcleo central da sociedade, mas mesmo assim por quase um ano as ameaças e os atentados continuaram a ocorrer. Milhares de japoneses se encontravam presos em várias delegacias do estado de São Paulo, quando em abril de 1946, 81 japoneses considerados os principais envolvidos (destes 14 eram tokkotais) no caso Shindo Renmei foram enviados para Casa de Detenção enquanto aguardavam julgamento. Dois meses depois foram enviados ao Instituto Correcional da Ilha Anchieta, um presídio político localizado no litoral norte do estado de São Paulo. Em 10 de agosto o presidente da república, General Eurico Gaspar Dutra, decretou a expulsão dos 81 japoneses que se encontravam na Ilha Anchieta, todos acusados de planejar ou cometer atos de terrorismo. No entanto a expulsão nunca ocorreu efetivamente, pois o processo preescreveu e boa parte dos presos japoneses foi colocada sob liberdade vigiada entre os anos de 1948 e 1949.

25

Morais, Fernando. Corações Sujos. São Paulo, Companhia das Letrsa, 2000. p. 182-183

16

2) Meses em que foram presos os 81 japoneses que tiveram sua expulsão do Brasil decretada em agosto de 1946: (fonte: Prontuários DEOPS/AESP) 60

50

40

30

20

10

0

Antes de 1946

jan/1946

fev/1946

mar/46

abr/46

mai/46

jun/46

jul/46

ago/46

Em meados de 1946, mesmo com toda a liderança da Shindo presa, havia um revezamento nas funções da direção da sociedade. Mas, naquele momento, a sede central da Shindo Renmei em São Paulo já havia perdido o controle sobre a situação das outras filiais. Isso reforça a hipótese de que o aumento da violência por parte dos “vitoristas” em relação aos “derrotistas”, como verificado em julho de 1946, foi uma atitude desesperada e de certa forma desorganizada, pois não partia mais do núcleo central da Shindo, mas sim das lideranças das filiais que acabaram por adquirir uma certa “autosuficiência” em relação as atitudes contra os “derrotistas”. Em novembro de 1946, o japonês Shinekiti Horikawa em depoimento ao DOPS/SP, informou que foi Shojiro Imai, que se encontrava preso na Ilha Anchieta, o autor intelectual das ações dos tokkotais e das cartas de ameaça aos “esclarecidos”. Antes de ser preso, Imai propagandeava por meio de panfletos e folhetins que, no dia 7 de novembro de 1946, chegaria ao Rio de Janeiro uma comissão militar japonesa para soltar os chefes presos e condecorar aqueles que mais haviam se destacado na campanha da Shindo Renmei, além de “condenarem ao fuzilamento todos os makegumis”. No dia 3 de novembro, deveria começar a matança dos japoneses “esclarecidos” constantes em um lista feita por Seiti Tomari ( mentor do grupo tokkotai), pois a “ordem era matar o maior número de makegumis no menor prazo, a fim de confundir as investigações da polícia”.26 Das mais de 60 filiais registradas pela Shindo, a maioria se enfraqueceu e em janeiro de 1947, quando ocorreu oficialmente o último assassinato no bairro da Aclimação, 26

Dezem, Rogério. Shindô-Renmei: terrorismo e repressão. Op. Cit... p.. 80.

17 na capital paulista, a Shindo Renmei como entidade não existia mais, passando a fazer parte da memória da comunidade japonesa, cuja ordem era administrar o esquecimento dos tristes fatos ocorridos entre 1946 e 1947. Oficialmente o saldo trágico, entre março de 1946 e janeiro de 1947, foi de 23 mortes e 147 feridos, a maior parte das vítimas foi de makegumis. O “caso Shindo Renmei” como ficou conhecido entre as autoridades policiais e jurídicas é considerado um dos processos com o maior número de indiciados na história do Brasil com 390 japoneses. Ecos dos acontecimentos daquele fatídico período ainda podiam ser sentidos não só na colônia japonesa aqui radicada, mas também pela sociedade brasileira. No dia 21 de maio de 1950, o periódico Folha da Noite publicou em sua edição de capa notícias de que supostos integrantes da extinta Shindo Renmei, agora sob a denominação de Zenpaku Seinen-Renmei (Liga dos Moços do Brasil), haviam procurado Masanori Yusa, chefe da delegação japonesa campeã olímpica de natação (1948), conhecidos como os “PeixesVoadores” e que estavam em visita ao Brasil, interrogando-o sobre a situação do Japão naquele momento. Não satisfeitos com a verdade, o grupo de “fanáticos” começou a propagandear a absurda notícia de que aqueles nadadores eram, na realidade, coreanos a serviço da propaganda norte-americana... 3. Fragmentos de uma história a partir do olhar do DOPS/SP Baseando-se em material pesquisado a partir dos 81 prontuários do primeiro grupo de japoneses que tiveram sua expulsão decretada do Brasil em 10 de agosto de 1946, mediante a decreto presidencial27, foi possível aventar algumas importantes informações sobre o perfil dos principais líderes e envolvidos no caso Shindo Renmei. A partir das investigações e do olhar da polícia política, situações e relatos importantes podem ser resgatados, contribuindo dessa forma dar uma dimensão melhor de quem seriam aqueles (usando o linguajar da imprensa da época) “perigosos e fanáticos terroristas da Shindo Renmei”. Na tentativa de dar uma dimensão mais humana e menos sensacionalista daqueles que se consideravam os portadores da verdade, os katigumis ou “vitoristas” , foram selecionados alguns personagens que de certa forma nos fazem refletir sobre a representatividade dos acontecimentos relativos a Shindo Renmei naqueles difíceis anos. Não se pode esquecer dos japoneses (associados a Shindo ou não) que aproveitandose dessa confusão, criaram artifícios para ludibriar os patrícios mais incautos como também muitas famílias, propagando não só a vitória do Japão, mas também a história da chegada de um navio no porto de Santos que levaria os imigrantes de volta para a terra do sol nascente, a venda de terras “fertilíssimas” em áreas conquistadas pelo “vitorioso” exército japonês na Àsia e a venda de yen falso e/ou desvalorizado, entre outros boatos. Não é nosso objetivo aqui enveredar por esses tristes fatos ocorridos no período, apesar de

27

Em junho de 1947, 155 japoneses ainda se encontravam presos no Instituto Correcional na Ilha Anchieta, aguardando a expulsão do país. Contra eles havia sido instaurado, a pedido da Secretaria dos Negócios de Segurança Pública de São Paulo, um processo de expulsão do território nacional com base em dois artigos: o art. 2° do Decreto-Lei n° 383, de 18 de abril de 1938 e o art. 1° do Decreto-lei n° 554 de 12 de julho do mesmo ano. Basicamente as acusações se baseavam na proibição de estrangeiros exercerem atividades políticas e formarem sociedades e associações sem prévia autorização; acusação de crimes de terrorismo; ameaça de segurança contra o Estado e da ordem política e social, sendo considerados “elementos nocivos aos interesses nacionais”. In Prontuário n°°6467. Seiti Tomari. DEOPS/SP. DAESP.

18 não estarem totalmente elucidados, os mesmos seriam objeto para outro artigo sobre a colônia japonesa no Brasil entre os anos de 1945 e 1955. Cito aqui três personagens a partir do resumo dos seus prontuários que podem servir de exemplo da realidade vivenciada pelos japoneses enviados ao Instituto Correcional da Ilha de Anchieta. Diferentes histórias de uma mesma realidade. O japonês Magosaburo Osaki (pront. 6384) foi preso em abril de 1942 na cidade de Lins, interior de São Paulo, para averiguação. Logo depois foi posto em liberdade. Em setembro do mesmo ano, a polícia apreendeu um aparelho de rádio de sua posse, que lhe foi devolvido em outubro de 1943, com o botão de ondas curtas lacrado. Novamente preso na cidade de Lins, dessa vez em setembro de 1945, juntamente com os japoneses Takashi Yamada, Makoto Miyajima, Kishiro Yoshi e Shizuo Koiki, todos acusados de fazer propaganda da vitória do Japão. Foram postos em liberdade em outubro do mesmo ano. A polícia ao prendê-lo em abril de 1946, descobriu que Osaki era um dos líderes da Shindo na cidade de Lins. Foi então encaminhado para a Casa de Detenção de São Paulo. No mês de julho do mesmo ano, foi posto em liberdade vigiada em virtude de habeas corpus concedido pelo Superior Tribunal Federal. O japonês Fusatoshi Yamauchi (pront. 6447) foi preso no início do mês de abril de 1946 na cidade de Tupã, interior de São Paulo. Ficou preso no Instituto Correcional da Ilha Anchieta entre julho de 1946 e agosto de 1948, sendo o único, dentre os japoneses lá presos e que aguardavam a execução da expulsão do território nacional, que recebeu atestado de boa conduta do Diretor do Instituto que elogiou seu comportamento exemplar enquanto lá esteve preso. Em agosto de 1948, foi colocado sob liberdade vigiada. O japonês Fukuo Ikeda (pront. 6382) foi preso em 26 de abril de 1946, na cidade de Pompéia, interior de São Paulo, acusado de fazer parte da Shindo. Mandado para a Ilha Anchieta, adoeceu. Segundo informações do seu prontuário constatou-se que sua doença era pleurite exsudativa residual no pulmão direito. Em novembro de 1947, foi transferido para o Sanatório São Francisco Xavier28 em Campos do Jordão, para tratamento médico. No dia 9 de julho de 1948, tentou suicídio, ingerindo soda cáustica diluída em água. Veio a falecer duas semanas depois. Segundo o atestado de óbito, Ikeda morreu por envenenamento através de soda caústica associada a tuberculose. O resumo do prontuário de Magosaburo Osaki, uma das lideranças da Shindo na cidade de Lins (SP) narra uma história muito comum vivenciada pelo japoneses durante o período da guerra. Preso pela primeira vez para averiguação, foi preso novamente ainda duas vezes antes que a polícia descobrisse sua ligação com a Shindo Renmei. O procedimento do DOPS/SP, quase que corriqueiro, era o seguinte: após a primeira prisão para averiguação, a polícia abria um prontuário e passava a investigar mais “de perto” o elemento suspeito. Baseando-se na “lógica da desconfiança”, ou seja, a partir de estereótipos associados ao “perigo amarelo”, os japoneses são vistos como “súditos do Eixo”, “inassimiláveis” e “traiçoeiros”, portanto a vigilância deveria ser redobrada. Relatórios de investigação eram confeccionados com informações importantes do suspeito como dados pessoais, residência e os locais para onde o prontuariado viajava, entre outras informações, dessa maneira durante os anos de 1942 e 1945 a polícia de forma efetiva

28

Criado em 1931 pelo Dojinkai (Sociedade Japonesa de Beneficência no Brasil) para atender vítimas de tuberculose pulmonar.

19 realizou um mapeamento daqueles japoneses suspeitos ou “vistos como mais perigosos”29. Em 1946 quando os acontecimentos relativos a Shindo Renmei vem à luz, esse mapeamento a partir de uma série de prontuários produzidos durante a guerra se torna um dos principais elementos para se efetivar com sucesso as investigações e prisões de suspeitos e envolvidos. Esse fato não isentou o DOPS/SP de cometer muito deslizes e atos arbitrários, prendendo muitos japoneses que vinham para capital ou iam para o interior e que não tinham nenhuma ligação com sociedades clandestinas. Caso das prisões de Sumioka Gohara de Itapecerica da Serra que veio até São Paulo para vender tomates ou de Tetsugoro Kawasaki de Rancharia, interior de São Paulo, que veio ao oftalmologista. Os outros dois resumos dos prontuários de Fukuo Ikeda e Fusatochi Yamauchi narram duas histórias diferentes. No Instituto Correcional da Ilha Anchieta, Yamauchi se torna modelo de bom comportamento, não sendo um caso isolado pois a maioria dos japoneses para lá enviados tiveram um comportamento exemplar. Fato este que desde início veio a surpreender os políciais e militares que eram encarregados de vigiá-los. Por outro lado temos a história de Fukuo Ikeda que dois anos após ser preso e estar doente veio a cometer suicídio. Mesmo vindo a falecer em um sanatório, esse fato reforça alguns relatos que precisam ser investigados mais efetivamente pelos pesquisadores do tema, pois existem algumas histórias de que alguns japoneses que estiveram presos na Ilha Anchieta sofreram constrangimentos e maus tratos, alguns ficaram doentes e outros entraram em depressão. Da primeira leva de 81 japoneses enviados para a Ilha Anchieta, apenas 14 eram tokkotais, ou seja elementos que haviam participado diretamente de alguma tentativa de assassinato bem sucedida ou não. Segundo o pesquisador Jouji Nakadate as autoridades do Instituto Correcional sabiam disso e dessa forma os únicos entre os japoneses que eram efetivamente mantidos encarcerados eram estes 14 tokkotais30. Outras informações foram levantadas a partir da leitura dos prontuários, cito aqui algumas delas: a) Ano de chegada ao Brasil: 1910-1915 1916-1920 1921-1925 1926-1930 1931-1935 1936-1941 Não consta

03 04 08 22 30 07 07

Com relação ao ano de chegada ao Brasil pode-se averiguar que 52 dos 81 japoneses chegaram entre 1926 e 1935, exatamente no momento em que ocorreram as maiores entradas de imigrantes japoneses no Brasil. Fato este que levou a Assembléia 29

Sobre este aspecto ver: Takeuchi, Márcia Yumi. O Perigo Amarelo em tempos de guerra (1939-1945). Inventário DEOPS. Módulo. III. São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2002

30

Nakadate, Jouji. O Japão venceu os aliados na Segunda Guerra Mundial? O movimento social Shindo Renmei em São Paulo (1945-1949). Vol. I-III. Dissertação de Mestrado em História. PUC/SP, 1988. p. 278.

20 Constituinte de 1933/34 a aprovar a ”lei dos 2%”31 como ficou conhecida entre os imigrantes japoneses. Cerca de três quartos dos imigrantes estavam no Brasil a menos de 20 anos, fato esse que pode ser uma informação importante para se compreender o processo de assimilação do imigrante, pois mais da metade chegou ao Brasil durante a Era Vargas (1930-1945) período no qual, uma política de caráter nacionalista estava sendo colocada em prática. b) Idade (1946): Até 35 anos Até 50 anos Até 65 anos Até 75 anos Mais jovem: 19 anos

35 33 12 01 mais velho: 69 anos

As principais lideranças da sede central da Shindo no Jabaquara, na capital paulista como ex-militar Junji Kikkawa, Ryotaro Negoro e Seiiti Tomari tinham todos mais de 50 anos, sendo Kikkawa o mais velho com 69 anos. As outras lideranças das filiais espalhadas pelo interior do estado de São Paulo tinham mais de 35 anos, os abaixo desta idade geralmente eram elementos subordinados a sociedade ou jovens tokkotais (braço armado) como os japoneses Hiromi Yamashita e Tokuiti Hidaka que tinham menos de 25 anos. Isso demonstra uma hierarquização baseadada em elementos de caráter militarista e neoconfucionista (uma das bases do nacionalismo japonês), cuja a obdiência e lealdade aos mais velhos (mais experientes) era um dos pilares. c) Estado Civil: Solteiro Casado Viúvo Não consta

27 48 05 06

A grande maioria dos presos era casado e possuía filhos. Eles só poderiam receber visitas de parentes e conhecidos mediante a autorização prévia da polícia política. Antes que a visita ocorressse, todos os antecedentes políticos e sociais do(s) requerente(s) eram investigados pela polícia. Caso não fosse encontrado nenhum fato ou motivo que impedisse a visita, o requerente recebia autorização. No presídio da Ilha Anchieta, a visita deveria seguir as orientações de conversar somente em língua portuguesa e na presença de um 31 Em 24 de maio de 1934, foi aprovada por 146 votos contra 41, a emenda final, que veio a se tornar o artigo 121, parágrafo 6, da Constituição de 1934. O artigo restringia qualquer entrada de contingente imigrante em território nacional em número superior a 2% sobre o total de imigrantes de cada nacionalidade entrada no Brasil nos últimos cinqüenta anos. Apesar de englobar todas as etnias que imigraram para o país, essa medida tinha o objetivo de atingir o grande fluxo imigratório japonês que atingia seu ápice, cerca de 140.000 imigrantes japoneses entre 1924 a 1935 A drástica diminuição do número de imigrantes japoneses que para cá vieram a partir de 1936 foi um reflexo direto do artigo 121.

21 funcionário de confiança do estabelecimento. A partir de abril de 1948, foi proibida a entrega de jornais editados em língua japonesa aos presos. Na maior parte dos prontuários pesquisados, notamos que boa parte das pessoas que vinham ao DOPS/SP pedir permissão para visita eram as esposas, filhos e familiares mais próximos dos presos. Em algumas cartas de pedido de permissão para visita enviadas previamente a polícia pode-se notar que muitos destes familiares (a maioria mulheres) enfrentaram sozinhos dificuldades para sobreviver e criar os filhos enquanto seus maridos e filhos se encontravam presos. d) Grau de instrução: Analfabeto Primário Secundário Superior Não consta

01 70 01 04 05

Com relação ao grau de instrução pode-se notar que a quase totalidade dos detidos era alfabetizada em língua japonesa, no entanto a maior parte tinha grandes dificuldades em se comunicar em português, necessitando durante os interrogatórios de intérpretes. Aqueles que fizeram ao menos o primeiro grau tiveram uma educação baseada no Edito Imperial sobre Educação (1890), que por sua vez tinha como base o ensino da língua japonesa e da história do Japão em moldes nacionalistas, incutindo na maior parte dos imigrantes japoneses que para cá imigraram os ideal do Dai-Nihon (Grande Japão). Entre os termos de caráter nacionalista está a seguinte orientação: “Se surgir alguma emergência, ofereça-se corajosamente para o Estado, e assim guarde e mantenha a prosperidade de Nosso Trono Imperial coevo de céu e terra”. Não só o background cultural, mas também a educação de caráter nacionalista e depois (a partir de 1930) militarista recebida pelos imigrantes que para cá vieram, influenciaram diretamente a ótica sobre a qual eles enxergaram o desenrolar e o desfecho da guerra. e) Profissão: Setor primário (lavrador) Setor secundário (indústria) Setor terciário (comércio)

41 01 39

Desmistificando a idéia de que a maior parte dos katigumis era formado pessoas na grande maioria ligada a lavoura, “gente da roça”, pouco informada e incauta, pode-se notar pelos números averiguados pelo DOPS/SP de que havia um equilíbrio, ao menos por parte das principais lideranças da Shindo e de elementos importantes dentro da hierarquia da sociedade. Entre aqueles que exercem ocupações no setor primário, a maior parte é formada por lavradores, seguida de pequenos proprietários de sítios ou chácaras; no setor terciário encontramos a maioria formada por comerciantes como tintureiros, peixeiros, mascates, donos de bares e de estabelecimentos de “secos e molhados” e fotógrafos. Com relação ao

22 setor secundário encontramos o japonês Ryotaro Negoro, vice-presidente da Shindo Renmei e que em depoimento ao DOPS/SP disse ser engenheiro de minas.

f) Religião: Budista Católica Não consta

61 10 10

Com relação ao aspecto religioso a grande maioria se considerava budista, mas um fato curioso deve ser mencionado. Mais da metade dos 81 prontuariados já havia sido preso ao menos uma vez pelo DOPS/SP, portanto eles já haviam sido interrogados para abertura do prontuário. Ao compararmos as informações apresentadas pelo prontuariado na primeira vez em que havia sido detido (a maioria durante o período da guerra), em termos de informações pouca coisa mudava, no entanto o quesito “religião” chama atenção. Na primeira vez em que eram presos apenas para averiguação (geralmente acusados de falar japonês em público ou de se reunirem em grupos de mais de três pessoas), a maioria dos japoneses interrogados dizia ser “católico”, artifício usado na tentativa de evitar ou atenuar o tempo de prisão, no entanto caso fossem presos novamente, geralmente sob acusações ou atos mais graves e vendo que a detenção seria iminente, os japoneses detidos acabavam por dizer a verdade sobre a sua religião: “budistas”. g) Nacionalidade: Japonesa Brasileira

81 0

A totalidade dos 81 japoneses que tiveram decretada sua expulsão do Brasil eram de nacionalidade japonesa, fato este que reafirma a tese de que os acontecimentos relacionados ao caso Shindo Renmei afetaram mais diretamente o universo da colônia japonesa radicada no Brasil naqueles anos. A quase totalidade dos indiciados no processo eram de japoneses. A resistência a naturalização nos leva a crer que ainda pairava uma esperança muito grande de voltar a terra natal, ou seja, na ótica dos katigumis, o “vitorioso” Japão. Apenas como um exercício para reflexão, a partir de informações dos 81 prontuários aqui expostas podemos traçar um perfil deste imigrante japonês que foi preso por estar associado a Shindo Renmei e ter cometido ou incitado algum ato de caráter terrorista e teve sua expulsão do Brasil decretada: - Japonês (homem), casado, budista, com menos de 50 anos, lavrador, alfabetizado em língua japonesa (com grandes dificuldades em compreender a língua portuguesa) e que chegou ao Brasil entre 1925 e 1935.

23 Pode-se afirmar que os acontecimentos associados a Shindo Renmei no imediato pós guerra, fazem parte de um processo de agudização de uma crise de caráter ideológico, sociopolítico e econômico que se delineava no seio da colônia japonesa desde o final da década de 1930. Crise esta, que teve nos acontecimentos da guerra (discriminação, interdições, prisões) os elementos catalizadores que levaram ao momento mais crítico e difícil vivenciado nestes 100 anos de história da comunidade nikkei radicada no Brasil. Anexo: Relação de prontuários dos 81 japoneses que tiveram sua expulsão decretada por decreto presidencial em 10 de agosto de 1946. (fonte: Dezem, Rogério. Shindô-Renmei: Terrorismo e

Repressão. Inventário DEOPS. Módulo. III. São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2000)

Pront. 6726 6463 6376 6382 6456 6447 6365 6414 6465 6417 6426 70081 6370 6386 6910 6361 6355 6364 6423

Nome Azuma Samejima Daisaburo Sassatani Eichi Shiozaki Fukuo Ikeda Fumio Ueda Fusatoshi Yamauchi Handa Juta Haruo Izumissawa Haruo Watanabe Hiroaki Izumi Hiromi Yamashita Hiroshi Ogazawara* Ichisaburo Chida Ishin Iwanaga Itsushigue Otsuki Jonejiro Kokubo Junji Kikkawa Junji Shimizu Kamegoro Ogazawara

Pront. 6360 6373 6460 6458 378 6375 6421 6368 6357 6367 6436 6372 6462 6452 6420 6366 6469 6402 6384

Nome Kioschi Kawashima Koi Suzuki Kotaro Komaba Kozonori Yoshida Kunichiro Amazawa Makoto Iwata Masakiti Taniguti Massachi Kunii Massaichi Kaneko Massaki Yunoki Massanobu Sato Massao Eguti Massao Honke Massao Sato Mitsuro Ikeda Nakashima Manyoshi Nobuyoshi Ozaki Noriyoshi Sakamoto Osaki Magosaburo

Pront. 6466 71071 6371 6459 6380 6408 6389 6457 6356 6450 6419 6401 6404 6403 6449 6416 6451 6359 6446

6346 6444 6453 6413 6363 6379 6400 6362

Kanekiti Shiotsu Kanji Aoki Kanji Waki Kauemon Kawabata Kazuo Miyahara Kenjiro Yamauchi Kenkuro Yonomata Kitiro Kikawa

6358 6471 6415 6467 6454 133.602 6418 6438

Ryotaro Negoro Saijiro ou Kenzo Tanita Sakuzo Kawashima Seiichi Tomari Seijiro Mihara Shiguechi Murakami Shimpei Kitamura Shizutaro Monden

6455 6369 6383 6390 6377 6412 6450 6468

Nome Shogoro Ogura Shojiro Inoue Shozaemon Shoji Tadamune Maeda Tadao Takayasu Takanori Izumi Takashi Watanabe Tatsuo Watanabe Teiji Kimura Teizo Takashima Tokuiti Hidaka Tokujiro Ohata Tomoyuki Kawamorita Toragoro Ninose Torao Goto Torato Fujihara Toyohei Negoro Tsuneyoshi Sawada Tsurutaro Ushisawa ou Kenjo Sawai Wasaburo Hiraoka Yonosuke Asakura Yoshihide Goto Yoshio Tamura Yoshitsugo Sonoda Yoshiy Kitiro Yoshiuki Kondo Zensaku Ogawa

* A própria polícia atesta que devido a um erro de datilografia ou de confusão de nomes, o japonês Hiroshi Ogazawara não teve seu nome incluído na primeira lista (mais divulgada) com os expulsandos, posteriormente ele foi incluído na lista final oficial e mandado para o Instituto Correcional da Ilha Anchieta onde aguaradav sua expulsão.

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Bibliografia: Arai, Jhony. Viajantes do Sol Nascente. Histórias dos imigrantes japoneses. São Paulo; Editora Garçoni, 2003. Dezem, Rogério. Matizes do “Amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo, Associação Editorial Humanitas/FAPESP. 2005. ____________________ ., Shindô-Renmei: terrorismo e repressão. Inventário DEOPS. Módulo. III. São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2000 ___________________ ., “Realidade Alterada: o poder da Shindo Renmei”. Revista História Viva. Ano III, n° 26. dezembro de 2005. Hatanaka, Maria Lúcia Eiko. O processo judicial da Shindo-Renmei: um fragmento da história dos imigrantes japoneses no Brasil. São Paulo, Fundação Japão, 2002. Miranda, Mário Botelho de. Shindo Remmei: Terrorismo e extorsão. São Paulo, Editora Saraiva, 1948. Morais, Fernando. Corações Sujos. São Paulo, Companhia das Letrsa, 2000. Takeuchi, Márcia Yumi. O Perigo Amarelo em tempos de guerra (1939-1945). Inventário DEOPS. Módulo. III. São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial, 2002 Vários Autores. Uma Epopéia Moderna – 80 anos de imigração japonesa no Brasil. São Paulo; Editora Hucitec/Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992 Prontuários e Dossiês do Acervo DEOPS/SP. DAESP: Dossiê 12B – 453 (7 pastas) Dossiê 10J –1 (2 pastas) Prontuário n° 6389 Prontuário n°6467 – Seiti Tomari

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Dissertações: Bahiense da Silva, Carlos Leonardo. “Em nome do Imperador: reflexões sobre a Shindo Renmei e sua campanha pela preservação da etnicidade japonesa no Brasil (19371950)”. Dissertação de Mestrado em Ciências Humans e Sociais no ICHS/UFRRJ. Sob a orientação do Prof. Dr. Hector Alberto Alimonda. 2006 Kimura, Rosangela. “Políticas Restritivas aos Japoneses no Estado do Paraná: 19301950 (de cores proibidas ao perigo amarelo)”. Dissertação de Mestrado em História apresentada na UEM. Sob a orientação do Prof. Dr. João Fábio Bertonha. 2006. Miwa, Marcela Jussara. “Narciso no Império dos Crisântemos. Interpretando a Shindo Renmei”. Dissertação de Mestrado em Ciência Política apresentada no IFCH/Unicamp. Sob a orientação da Profa. Dra. Amnéris A. Maroni. Julho de 2006.

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