Jogo de espelhos: a respeito de A arqueologia do saber, de Michel Foucault

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Texto apresentado em junho de 2007, como requisito para aprovação na disciplina de Estudos Exemplares em Ciências Sociais, do Programa de pós-graduação em Ciência Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ).

Jogo de espelhos: a respeito de A arqueologia do saber, de Foucault Marcelo Henrique Nogueira Diana

Resenha: FOUCAULT, Michel. [1969] (2007), A arqueologia do saber. 7ª edição. Rio de Janeiro, Forense Universitária.

Qual seria, enfim, o objeto e o debate de uma arqueologia do saber? Por qual empresa metodológica uma determinada disciplina poderia ser questionada a partir dos seus próprios domínios de discurso? O que uma arqueologia, conjunto de técnicas e procedimentos a serem tomados na busca de testemunhos materiais e simbólicos que subsistem persistentes à própria sedimentação da cultura e do discurso, poderia nos oferecer como inflexão epistemológica acerca do saber? Como situar, em um método, o saber? São questões que Foucault levanta, aprofunda e expõe em A arqueologia do saber. Logo na “Introdução” do livro, Foucault dedica-se à distinção entre a história por documentos e a história por monumentos. Distinção que todavia não anula o método e o saber de um tipo de história sobre a outra, mas que as relacionam no específico das suas temporalidades, dos seus desdobramentos, das suas positividades. Talvez, como breve notação de uma história de A arqueologia do saber, pudéssemos encontrar o debate em torno da longa duração (tão cara à chamada segunda geração dos Annales, orientada especialmente por Fernand Braudel), com interrogações tão inquietantes quanto compartilhadas a respeito das regras de uma específica continuidade (ainda quando colocadas em um plano geral), do que permite as permanências, da retaguarda das rupturas assim como do adiamento das irrupções, num arranjo temporal quase material – morfológico – da história. Em crítica a essa longa duração,

Foucault pensa a arqueologia como a história das mudanças, das rupturas, das descontinuidades e das várias relações presentes em uma condicionalidade histórica. Outra remissão presente na obra de Foucault (ainda que dela posterior) diz respeito ao modo como os historiadores escrevem a história. A história seria encontrada em suas interpretações, nos desdobramentos dos seus documentos, monumentos agora que pedem uma interpretação, que não são imunes à força do tempo. Isso por suposto de que não existe um documento como fato, exterior ao discurso que o criou e o vinculou ao passado, uma memória, enfim, que marcaria o limite e a possibilidade desse passado em chegar até o presente sob a forma de um monumento; por suspeitar de uma memória cristalina e pura, repassada de maneira sempre conveniente e sem interferências pelo passado para o seu futuro, por colocar em suspenso a própria idéia de uma matriz originária passada, de uma memória do documento plena de si mesma, Foucault sobrepõe, a essa memória, a sua positividade, as suas relações e a sua arqueologia, que é histórica, menos no sentido sistemático ou cronológico da sua sucessão do que pela sua autonomia de dispersão, pelo que aparece intrínseco nessa memória que já não pode ser puramente documental (exegética), por ser então arqueológica, monumental e derivativa. Uma arqueologia “como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo passado” (FOUCAULT: 8). Não são meras interpretações que se lançam, mas sim relações, agrupamentos, séries, encadeamentos e classificações de uma positividade. Jacques Le Goff recupera uma noção semelhante de documento/monumento, já na década de 1980, precisamente para deixar surgir, na força dessa chave, a história como arqueologia que se dá por uma escavação presente e que vai se ramificando e derivando (não necessariamente por uma mesma e única temporalidade ou correlação) em direção a alguma positividade arquitetada de leitura. Interessante também, se for conveniente, e aqui se permite tal conveniência, a proximidade entre A arqueologia do saber e a excursão conceitual e histórica levada a cabo por Jules Michelet em A Feiticeira. Nesse escrito, Michelet nos apresenta os discursos assim como as instituições, os comportamentos, os desvios e as consagrações que extraviaram a feiticeira, enquanto idéia e realidade, de um ambiente de encanto e interdição para uma paisagem de cura e investigação. Paisagem essa que teria seu ápice no século XVIII, com o crescente movimento das Luzes. As idéias assumem um sentido temporal, ainda quando aparentemente possam passar quase à

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margem do tempo. Encontrar nessa historicidade de tempos múltiplos, a serem definidos pela busca arqueológica feita no presente, encontrar a possibilidade histórica justamente nesse entrecruzamento dos tempos pode ser tarefa árdua e ingrata (como bem declara Foucault) mas que, por isso mesmo, pede uma séria dedicação e investigação. Contudo, adentrando a formação discursiva de uma arqueologia do saber, como proceder, por exemplo, com as diversas palavras e a composição de palavras que ao longo do livro de Foucault desempenham uma função conceitual? Como guardar dessas palavras e de suas composições o que seria o essencial, isto é, aquilo que singularizaria um sentido exclusivo e uma condição heurística a cada uma delas, e não a outras, tendo em vista ainda, em referência ao autor, o transbordamento dos sentidos sobre o saber no seu texto? Como lidar com as várias hierarquias, grades, classificações e relações que Foucault estabelece, todas, em torno das práticas discursivas, sem que delas nos afastemos demasiadamente do sentido textual e nos percamos em um sem domínio discursivo? Foucault de alguma forma expressa na sua arqueologia o método e o discurso de uma investigação geral e impura, tanto quanto teórica e crítica. Seu método e seu discurso não se diferenciam, apartados a estágios exclusivos, mas antes se relacionam e quase mesmo se confundem na elaboração do seu texto. Discurso e método são jogos de espelho daquele que busca uma ordem, e assim acaba por produzir uma história monumental. Outra questão que nos vem, a partir da arqueologia de Foucault: como poderia ser a arqueologia histórica da Ciência Política, enquanto uma prática discursiva, um saber e também uma ideologia, no que ela compõe e distende de outras ciências, e mais, acerca do que ela expressa na sua inscrição Política. Em quais territórios buscar as formações discursivas dessa ciência? Sobre quais sedimentos rastrear, a fim de compor uma história singular da disciplina? Sem retirar da ciência a sua cientificidade – por uma ingenuidade ou por uma permissão – e considerando ainda assim o aspecto tão polêmico quanto exclusivo do que se poderia expressar com a inscrição Política, como poderíamos investir, nessa disciplina, uma busca para que ela nos leve a algum tratamento arqueológico das suas práticas, estratégias, limites e relações? Uma busca do que a sedimenta e a floresce como um discurso específico das ciências humanas. De algum modo, Foucault passa ao largo desse investimento – por rejeição ou inaptidão, não importa – ainda que a partir de seus outros investimentos (no campo médico, na história, na loucura e na clínica) possamos adiantá-lo aqui, feito exercício

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de pensamento, numa tentativa ainda frágil e incerta, porém com possibilidades de enfrentar o nosso percurso. Mas antes, o que vem a ser um procedimento arqueológico? “O horizonte ao qual se dirige a arqueologia não é, pois, uma ciência, uma racionalidade, uma mentalidade, uma cultura; é um emaranhado de interpositividades cujos limites e pontos de cruzamentos não podem ser fixados de imediato. A arqueologia: uma análise comparativa que não se destina a reduzir a diversidade dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizá-los, mas a repartir sua diversidade em figuras diferentes. A comparação arqueológica não tem um efeito unificador, mas multiplicador.” (FOUCAULT: 180)

Nesse procedimento, menos que uma história da disciplina tal qual ela poderia ser encontrada atualmente, o que a investigação arqueológica persegue são os vários domínios pelos quais um certo discurso, um determinado saber, uma positividade como relação deu condição histórica para que aquela ciência, ainda desligada dos seus devires atuais, pudesse se formar e receber um status que em todo caso não lhe era natural nem necessário. À Ciência Política, então, poderíamos buscar outras positividades que, pela clausura ou pela transgressão, lhe deram forma e campo de atuação. Essas positividades passam por domínios hoje bastante conexos, como a economia e a sociologia, porém não se reduzem a eles. Adiantam, no seu passado, de igual mão, outras relações que contudo foram (e são – dada a prática discursiva da disciplina) limadas ou permanecem ainda no limite de um discurso, como a estética, a filosofia, as narrativas, a história evolutiva, a etnografia, a demografia, a geografia e a imprensa. Claro está, por enquanto, que o que se arrisca como uma arqueologia da Ciência Política acima pode ser (e é) excessivamente redutor na liberação das diferenças existentes na formação da sua prática discursiva, da historicidade das suas relações e condições de fala. Como indício, menos que uma suspeição, essa investigação arqueológica da Ciência Política deve ainda, e mais, uma incursão que se limite aos conceitos que atualmente nela se enlaçam, se organizam e se envolvem. Procurar nesses domínios dispersos regularidades inéditas e repetitivas que colaboram e coagem junto ao status da Ciência Política, tal seria uma tarefa arqueológica sobre a Ciência Política. Por isso, às regularidades cabe importante marcação nesse texto de Foucault. Isso porque, na presença de uma determinada regularidade, o método arqueológico lança todavia uma nova investida de historicidade, escavando, para além, e ainda mais, as

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conexões e as relações, as distâncias e as aproximações, os desvios e adaptações de uma prática discursiva. Na formação dessa prática, a investigação arqueológica que se dedica a saber o porquê da sua formação, quais foram as estratégias metodológicas, as escolhas teóricas, as disposições de outras regularidades presentes na delimitação de um campo conceitual, de uma prática discursiva que se internaliza não apenas no campo da episteme, mas dos discursos gerais, propriamente ditos, localizados de igual modo em outros domínios que não somente os da ciência ou da história, com funções institucionais, de análise e diagnóstico prenhes de historicidade, práticas discursivas que se regulam em descontinuidades, constitui um desafio. Tirar daí uma historicidade que se coloca na instância de interpositividades dispersas e conjuntas. Recusando qualquer conciliação imediata entre essas positividades, o método arqueológico não busca a remontagem global e totalitária de uma prática discursiva; antes, opera precisamente sobre as dissensões que alimentam as rupturas e, por outro modo, aproximam determinadas regularidades. “Regularidade não se opõe, aqui, à irregularidade que, nas margens da opinião corrente, ou dos textos mais freqüentes, caracterizaria o enunciado desviante (anormal, profético, retardatário, genial ou patológico); designa, para qualquer performance verbal (extraordinária ou banal, única em seu gênero ou mil vezes repetida), o conjunto das condições nas quais se exerce a função enunciativa que assegura e define sua existência.” (FOUCAULT: 163)

Essa regularidade da prática, aliás, é o que pode por fim fazer o discurso (FOUCAULT: 83). Dessa forma, Foucault não busca a genialidade menos que a regularidade com que se a anuncia; não visualiza os enunciados senão a partir da sua formação, da sua derivação, da sua relação com outros campos que, por fim, lhe emprestam e acabam por afirmá-lo enquanto um fato discursivo. A essa instância do discurso – o seu fato e a sua prática – a arqueologia do saber pode se interessar (FOUCAULT: 28). “Aparece, assim, o projeto de uma descrição dos acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se formam” (FOUCAULT: 30). A questão que permanece é a de como circunscrever um campo, uma região, um território que compõe assim uma unidade de enunciados. Nesse ponto, podemos pensar que as disciplinas, como unidades (científicas ou não, sistemáticas ou não), são reagrupamentos retrospectivos de enunciados (FOUCAULT: 36), enunciados por sua vez que deixam aparecer, desse entrecruzamento, objetos, sujeitos, diagnósticos, quadros de identidade e diapasões, séries, grades de séries. Dessa maneira, como

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pensa Foucault, a unidade dos discursos sobre a loucura consistiria precisamente em “descrever a dispersão desses objetos, apreender todos os interstícios que os separam, medir distâncias que reinam entre eles – em outras palavras, formular sua lei de repartição”. A historia arqueológica dedica-se, nessa unidade de discurso, a perscrutar e esquadrinhar os pontos de soltura, desligamento e dissensão que permite à loucura ser objeto, e mais do que isso, receber uma historicidade. Essa descontinuidade interna ao objeto loucura, cessão intrínseca à sua formação, é o que suspende a sua permanência enquanto identidade de si e a repõe ininterruptamente, de maneira clandestina ou deliberada, junto ao seu fato (discursivo, de história). O objeto loucura não pode ter uma anterioridade histórica, uma coisa ou uma origem ôntica que lhe daria sentido, a não ser na história; e precisamente, por fazer sua aparição na história, por dever a essa a sua unidade e repetição enquanto prática, uma regularidade que se compõe de uma série de outros elementos para designar o que é loucura, por essa dispersão é que a loucura não pode ser buscada senão no seu relacionamento histórico, ou seja, em sua vertical historicidade. Esses objetos de discurso, de algum modo, estão no limite do discurso, superficiais; se assim se entender que não estão nem aquém de uma circunstância transcendental alcançada pela consciência e a inteligência, nem além do fundo das coisas, oculto e segredado por uma verdade ainda não revelada. Eles se limitam no discurso. Por isso não se tem um interesse maior pela história e seu contexto do que pelo campo dos enunciados de uma regra, de uma unidade, em atenção às dispersões que formalizam a sua regularidade. Antes de negá-la, as contradições fazem parte dessa regularidade discursiva, dessa prática, ainda que a história das idéias, ao eliminá-las do conjunto da obra, como impureza ou parte mal-resolvida de um discurso, não doe atenção devida a elas. A arqueologia busca justamente descrever as contradições junto às formações discursivas, às regras que identificam um discurso. (FOUCAULT: 176) É preciso tocar na aspereza que delimitam os discursos, no cacoete e na incoerência que, por fim, dá a um enunciado uma certa unidade e uma regularidade no conjunto de um determinado saber. De alguma forma, o texto de Foucault nos apresenta esse mesmo toque, ou pelo menos uma sensação semelhante ao áspero, ao permitir uma unidade (que pode ser de obras, tanto àquelas anteriores do autor quanto as que estão por vir, quanto a de outros autores contemporâneos ou não a Foucault, interessados ou não

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no debate de uma arqueologia do saber, ligados ou não a esse tema), suspendê-la em várias arestas, retomá-la, e contradizê-la, tornando-a possível como uma regra e uma unidade em um lócus de dispersão que, enfim, poderia ser a mais interessante reflexão que se pode derivar de sua A arqueologia do saber. Como um pintor barroco, Foucault se reflete na sua obra, disperso em seu discurso e em seu método.

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