► Negação da linguagem e experiência inefável: comparação entre um poema de Leonardo Fróes e Dionísio Areopagita

June 30, 2017 | Autor: Eduardo Losso | Categoria: Christian Mysticism, Mysticism, Literatura Latinoamericana, Poesia Brasileira, Mística
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Qual é o estatuto da reflexão s o b r e a a r t e n o m u n d o c o n t e m p o r â n e o ? Estaria a q u e s t ã o da crítica d e s l o c a d a e submersa pela e n g r e n a g e m d o sistema d e arte d o m i n a d o por feiras e m e r c a d o ? Interlocuções: estética, produção e crítica de arte reúne textos p r o v e n i e n t e s de s e m i n á r i o e m q u e se discutiu a c o m p l e x i d a d e da p r o d u ç ã o e d o p e n s a m e n t o sobre a arte na c o n t e m p o r a n e i d a d e . D e m o d o diverso da arte m o d e r n a c u j o cerne girava e m t o r n o d o p a p e l da arte na sociedade a p a r t i r da n o ç ã o de p r o j e t o n o q u a l reflexão e crítica e s t a v a m e n g a j a d o s , a arte c o n t e m p o r â nea espelha u m a constelação s e m a u n i d a d e de p o n t o d e vista garantida pela r a c i o n a l i d a d e o c i d e n t a l . A p ó s o estilhaçamento de u m m u n d o , a arte d e p a r a - s e c o m outras referências, discute sua a u t o n o m i a , insere-se na experiência d o c o t i d i a n o , p r e s s u p õ e u m a t r a n s i t i v i d a d e entre meios, disciplinas e culturas: passa a c o n s i d e r a r a diferença, o o u t r o . D a m e s m a m a n e i r a , a r e f l e x ã o s o b r e a p r o d u ç ã o artística e n f r e n t a n o v o s i m p a s s e s , até m e s m o aqueles relativos à sua necessidade para s o c i e d a d e . Os textos que c o m p õ e m este livro r e f l e t e m a v a r i e d a de do debate crítico e t e ó r i c o s o b r e a r t e na a t u a l i d a d e a partir de diferentes c a m p o s , c o m o a filosofia, a crítica e, sobretudo, a partir da p r ó p r i a p r o d u ç ã o . A g r u p a d o s e m quatro s e g m e n t o s , investigam t e m a s relevantes, c o m o as relações entre estética e política, arte e e x p e r i ê n c i a , a r t e e cultura e arte e l i n g u a g e m . O p e n s a m e n t o s o b r e a a r t e é a b o r d a d o pela r e c e p ç ã o , pelo f a z e r artístico, pela escrita do artista e t o d o s e n f r e n t a m a q u e s t ã o das relações p o s s í veis entre arte e sociedade. E n c o n t r a m - s e aqui a riqueza do c o n t a t o entre discursos h e t e r o g ê n e o s e a c o m p r e e n s ã o do p e n s a m e n t o da e sobre a arte a p a r t i r d e m ú l t i p l o s universos. A a p r o x i m a ç ã o d o diverso c o n f e r e s i n g u l a r i d a de às relações; i n t e r l o c u ç õ e s q u e p e r m i t e m m a i o r p r o f u n d i d a d e aos i n ú m e r o s p e r c u r s o s d e leitura. Vivia** \(¿teso*, historiadora e crítica de arte, é professerà do Departamento de Arte e do Programa 4Íe Pe««-GrãdUAÇão em Estudos Contemporâneos das Arri® Lrar etmàmáe Federal Fluminense.

INTERLOCUÇÕES

Andrea Copeliovitch B e r n a r d o Barros C o e l h o d e O l i v e i r a Celso Favaretto Eduardo Guerreiro B. Losso Guilherme Bueno Hélio Fervenza J a c i n t o Lageira Jacques Morizot Jean-Pierre Cornetti Luciano Vinhosa Martha D ' A n g e l o Pedro Hussak van Velthen R a m o s Raphael H a d d o c k - L o b o Tania R i v e r a

I3 edição - setembro de 2012 - 1.000 exempl Capa: Cartio supremo 250 g/irr Miolo: Pólen bold 90 g/m 2 Fonte: Bembo - texto Intersate - títulos

coleção PENSAMENTO EM ARTE

INTERLOCUÇÕES Estética, p r o d u ç ã o e crítica de arte

Luciano Vinhosa e Martha D'angelo



·

Rio de Janeiro 2012

(ORGS.)

Copyright © 2012 Luciano Vinhosa e Martha D'Angelo

SUMÁRIO

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em qualquer meio ou fórmula, seja mecânico ou eletrônico, por fotocópia, por gravação etc. - nem apropriada ou estocada em sistema de bancos de dados sem a expressa autorização da editora. Este livro está revisado segundo o Acordo Ortográfico da Lingua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Prefácio Estética, produção e crítica de arte: interlocuções Munita D'Angelo

Editor responsável Rosangela Dias

e Luciano Vinhosa

7

Estética e política

Editores da coleção Jozias Benedicto e Hugo Houayek

Rancière: os regimes da arte e sua ligação com a política Pedro Hussak van Veit I ten Ramos

Capa e projeto gráfico Hugo Houayek

17

A aura está fora do quadro: Benjamin com Freud, Waltercio Caldas e Cildo Meireles Tania Rivera

CIP-BKASIL. C A T A L O G A Ç Ã O - N A - F O N T E SINDICATO NACIONAL D O S E D I T O R E S DE LIVKOS. KJ

27

Arte e experiência

148 Interlocuções : estética, produto e crítica de arte (orgs.).- Led. - Kio de Janeiro : Apicuri, 20J2. 212p. : iL (Pensamento era arte)

Luciano Vinh« > ι e Martha D'angelo

e s c r i t o s de a r t i s t a s

I. Arte - Brasil. 2. Artistas Brasil. 3. Crítica de arte - Brasil. 4. Estética 5. Arte e Vmhosa, Luciano. IL D'angelo. Martha. IL Série. 2-4754.

06.07.12

C D D : 709.81 C D U : 7.036(81) 18.07.12

43

F o r m a s da a p r e s e n t a ç ã o : experiência, a u t o n o m i a ,

Inclui bibliografia ISBN 978-85-61022-70-9

1

Experiência estética como método de pensar o mundo Luciano I Ί η liosa

κ dad. I

Hélio Fervenza

53

Oxum, Rosa e o espelho 03708()

A η ihe a Copel i o vi teli

65

Arte e cultura 12012] rodos os direitos desta edição reservados à Editora Apicuri Kua Senador Dantas 75, salas 301 e 507, Centro Kio de Janeiro, KJ - 20031-204 Telefone (21) 2524 7625 (comercial)

editorafí/apicuri.com.br www.apicuri.coni.br http://apicuri.blogspot.com.br/

As falsas sugestões da autonomia artística, as experiências das vanguardas, a arte e a cultura Jean-Pierre Cornetti

77

Prefácio

O valor estético do dom facilito Ligeira

89 Estética, produção e crítica de arte: interlocuções

Tudo é arte, portanto a arte não existe Martha D'Angelo

105

Arte contemporânea e juízo estético

U m a crescente tendência à especialização orienta a formação e a profissionalização em todas as áreas. A busca de alternativas para

Kant e a experiência estética contemporânea? Bernardo Barros Coelho de Oliveira

117

superar o e m p o b r e c i m e n t o cultural decorrente dessa tendência representa u m desafio para as instituições envolvidas com arte e educação. A c o m p l e x i d a d e e a diversidade da arte c o n t e m p o r â n e a exigem uma

A imaginação crítica

c o m p e t ê n c i a cada vez maior do público não especializado. EntretanCelso Favaretto

127

to, o sentido e a f u n ç ã o atribuídos à crítica nos meios de c o m u n i c a ção, nas últimas três décadas especialmente, t ê m restringido signifi-

Negatividade crítica

c a t i v a m e n t e o seu c a m p o de atuação. O rebaixamento da crítica e o c r e s c i m e n t o da indústria cultural estão diretamente ligados. Em c o n -

Guilherme Bueno

141

trapartida, para não se deixar reduzir à f u n ç ã o de julgar e legitimar, n e m ser considerada u m a atividade secundária, é preciso ampliar o

Arte e linguagem

espaço de discussão crítica a tal p o n t o que seja capaz de se gerar uma

Negação da linguagem e experiência inefável: comparação

metacrítica. Trata-se de u m a questão crucial, pois se tornou quase

entre um poema de Leonardo Fróes e Dionísio Areopagita

impossível o e n t e n d i m e n t o d o q u e acontece no m u n d o artístico atual

Eduardo Guerreiro B. JLosso

151

A atrofia da crítica e da reflexão estética favorecem o isolamento da

Literalidade: dificuldades semióticas à liberdade de criar Jacques Morizot

sem algum c o n h e c i m e n t o da literatura específica que a ele se refere.

\ 67

arte e sua desvalorização em face de outras atividades consideradas socialmente necessárias.

"O enigma da c a r n e q u e quis c h a m a r - s e p r o p r i a m e n t e Antonin Artaud" Raphael Haddock-Lobo

Por m e i o da realização de seminários sobre temas ligados a essa problemática, o Programa de Pós-graduação e m Estudos C o n t e m p o \8\

râneos das Artes da Universidade Federal Fluminense v e m travando c o n t a t o c o m a p r o d u ç ã o artística e m diferentes áreas, e também com

Sobre os autores

197

as reflexões produzidas e m t o r n o dela. Nossa última iniciativa neste sentido, o seminário Estética, produção e crítica de arte: interlocuções realizado e m parceria c o m o D e p a r t a m e n t o de Filosofia da Universidade Federal Rural d o R i o de Janeiro, reuniu no M u s e u de Arte C o n t e m porânea de Niterói, entre os dias 22 e 25 de agosto de 201 1, filósofos, artistas, historiadores e críticos de arte, d o Brasil e d o exterior, c o m o

Negação da linguagem e experiência inefável: comparação entre um poema de Leonardo Fróes e Dionísio Areopagita

Eduardo Guerreiro B. Losso

O artigo analisa u m p o e m a de Leonardo Fróes e o compara c o m a p e q u e n a obra de Dionísio Areopagita intitulada "Teologia mística", p r i m e i r o grande texto da chamada teologia negativa, t e n d o c o m o e i x o a negatividade da experiência inefável e n q u a n t o topos paradoxal de negação e potencialização da linguagem na linguagem. Trata-se de u m p r o c e d i m e n t o c o m u m da poesia negar seu próprio m e i o para elevar o indizível. A linguagem poética é a negação da linguagem utilitária e para isso violenta a linguagem e n q u a n t o tal, de m o d o a desafiar seus próprios limites. Se não é raro encontrar tal m o t i v o na poesia, o p o e m a de Leonardo Fróes é, c o n t u d o , especialm e n t e e x e m p l a r para abordar o assunto. L e o n a r d o Fróes recebeu o p r ê m i o Jabuti de poesia de 1996 e é r e c o n h e c i d o c o m o u m dos maiores poetas brasileiros atuais. O poeta vive r e c o l h i d o e m Petrópolis já há mais de 30 anos. Trabalhou d u r a n t e esse t e m p o c o m o tradutor de vários autores, entre eles Mary Shelley, G o e t h e , William Faulkner e Virginia W o o l f , entre outros. Sua obra foi s e n d o reconhecida paralelamente a esse recolhimento e n q u a n t o o p ç ã o de vida, e u m dos elementos importantes da ligação entre obra e vida e m sua p r o d u ç ã o está nessa tensão entre recolhim e n t o d o a u t o r e propagação da obra. É nesse sentido q u e a obra de Leonardo Fróes p r o p õ e uma ascese de distanciamento n ã o só de ideologias, visões de m u n d o e m o d o s de vida ligados a c o m u n i d a d e s e instituições, mas t a m b é m de qualquer f o r m a ç ã o de sentido 110 plano sensorial, emocional e racional. Gostaria de analisar agora c o m o se dá essa operação de despojam e n t o d o m u n d o social e subjetivo c o m vistas a u m esvaziamento d o sentido p o r m e i o da negação.

151

maneira n e n h u m a " , e m q u e a nasalidade, já existente nas três ante-

Negação e afirmação

riores, é acentuada nas duas últimas palavras. É c o m o se a nasalidade

Citaremos as frases mais i m p o r t a n t e s d o p o e m a " S m , " . Não sào as frases que indicam movimentos. (...) A experiência entra pelos poros. Os cogumelos nào sào "frutos dourados". Nem são as asas das aspas que os farão voar. Não há sentido definido formado de maneira nenhuma. (...] Também nào sào nossos rugidos c o n c a t e n a t e s de animais. Mas nào convém dizê-lo em público. Melhor nào prová-lo. N à o vão te levar a sério. [...] Não é a nova pista exclusiva para caminhar sobre a pele. Nào complica. Não sedimenta. Nào há como reter. Como não se deixa plasmar, nào se dissolve. Não levanta, nào evola, nào Hui. Nào tem noção de nada. Nào tem nada. Nào acontece na forma afirmativa. Não dá pra pegar e puxar - nem esvaziar. Nem esquecer. N e m fingir que nào.

das últimas reforçasse o mantra d o " n à o " . Rejeitar sentidos é repetir, ritualmente, o " o m " do "não". Trata-se de u m a recusa incondicional que não parte de n e n h u m critério d e f i n i d o para negar, n e m racional n e m estético. C o n t u d o , ela afirma algo. Para tentar e n t e n d e r o que afirma, precisamos atravessar e analisar toda u m a série de negações. Utiliza-se retoricamente uma mesma palavra, negativa, n o c o m e ç o de cada frase, e já a p n m e i r a frase nega a validade das frases em geral para indicar " m o v i m e n t o s " . Fica implícito, então, que se procura " m o v i m e n t o s " . A " b o c a de definições" é cheia de remendos, não é inteira e c o n t í n u a , e é o p r o n u n c i a m e n t o dessas definições falhas, mal compostas, q u e tentam "tapar o sol c o m a peneira", ou seja, não se colocam ao abrigo de u m desmascaramento de sua incapacidade de indicar

O poema faz parte d o livro Argumentos invisíveis, d e 1995, e integra a seção "História oriental da l o u c u r a \ q u e c o n t é m p o e m a s versificados, outros e m prosa, c u n o s c o m o esse e o u t r o s mais longos. A repetição d o " n à o " se assemelha a o u t r o c h a m a d o " C o s t u r a viva (sobre desenhos de Nisete Sampaio)

que repete o verbo " v e j o " .

Esse recurso retórico de repetição da m e s m a palavra n o início da frase

movimentos. Os

c o g u m e l o s " sào vistos c o m a mesma desconfiança,

nào se p o d e dar a eles o epíteto de "frutos dourados". Sendo a segunda e última vez q u e se usa aspas c o m o medida de distanciamento do que se e x p õ e por escrito n o p o e m a , e m seguida aparece u m postulado que nega a capacidade das aspas, de se desatar d o dito e poder "fazer voar". Coisas c o m o " m o n t a n h a s " ou "peixes

são negadas c o m o entidades

- a anáfora - é típico de discursos ideológicos feitos p o r líderes, p o l í -

limitadas pelo sentido q u e a língua as força assumirem. A maioria das

ticos, pastores e profetas. N o caso aqui a p r e s e n t a d o , a l é m d e ser e v i -

coisas expostas r e m e t e à natureza, e toda essa negação da linguagem

dentemente u m p o e m a m o d e r n o e, p o r isso, n ã o v i n c u l a r n e n h u m a

parece recusar aquilo q u e ela é e n q u a n t o fato social e lugar mesmo de

intenção desse gênero, possui propósitos e x p l i c i t a m e n t e c o n t r á r i o s

socialização, de m o d o q u e parece haver u m a negação da humanidade

ao negar a "boca das definições", vocabulares o u d o g m á t i c a s . Assim,

c o m o u m t o d o . Mas e m seguida nega-se a ideia de que "nossos rugidos

o motivo repetitivo serve c o m o e l e m e n t o d e n t u a l i z a ç ã o reflexiva

são c o n c a t e n a ç õ e s de animais", e p o d e m o s entender "rugidos" c o m o

para a negação cada vez mais radical d e u m " s e n t i d o d e f i n i d o f o r -

u m a i m a g e m animalizada da própria negação, de m o d o que é negada a

mado". A frase c o n t é m u m a súmula da o p o s i ç ã o central d o p o e m a

possibilidade de haver u m a linguagem animal submersa em nossos sons

no j o g o d o som e d o sentido;

incompreensíveis. Logo, tal negação incondicional, que nega o cer-

sentido d e f i n i d o f o r m a d o

são três

palavras de caráter participial q u e sào negadas pelas três seguintes

de

1 FRÓES, Leonarda Vertigens: obra reunida (1968 - 1998). R i o de Janeiro: Rocco, 1 WH. p.263. 2 Ibidem p.261. 3 BRAUNCART, Wolfgang. Ritual und Lueraínr. Tübigen: Niemeyer, 1 9 9 6 . p. 1 4 0 . A anáfora e um tipo de ntualização literária das mais evidentes, uma verdadeira estética da repetição ritual (rituelle Wiederholungscisthetik) que pode muito bem servir para um efeito subversivo (p.154). 100

152

ne da l i n g u a g e m - qualquer manifestação de nosso aparelho fonador - terá de afirmar algo de nào animal. N e m animal n e m h u m a n o , n e m linguagem n e m rugido sem sentido, toda essa n e g a ç ã o r e m e t e sem dúvida a u m a experiência, r e m e t e à única frase d o p o e m a q u e n ã o nega, u m a experiência q u e entra pelos poros. Para se provar essa experiência - o p o e m a parece

m e n t e p o r q u e nào se sedimenta, nào se plasma, nào se dissolve, não aconselhar que não se " p r o v e " - sugere-se q u e n à o a e x p o n h a e m p ú blico. Há uma ironia nessa recomendação: a expressão

não c o n v é m "

denota um conselho de bons m o d o s sociais. Nessa frase, " M a s não convém dizé-lo em público", nào se sabe o q u e n à o se c o n v é m dizer, o pronome oblíquo nào está se referindo a nada, logo, a r e c o m e n d a rão nào se contradiz: ela nào diz o q u e nào se deve dizer. R e l a c i o n o o elemento indizível à experiência, p o r q u e a experiência m e s m a não é explicitada, ou seja, se toda experiência é experiência de algo, esse algo permanece indizível. Tal experiência, q u e nega t o t a l m e n t e a estrutura de sentido social, que não é aconselhável q u e se p r o v e , se, apesar de

se evola, nào se dissipa, não se desvanece. Logo, esse algo indizível nào p o d e ser negado c o m o algo determinado, quer dizer, q u e pode tomar p r i m e i r o a f o r m a da afinnação lógica ou da concretude material para depois e n t ã o e n c o n t r a r u m a , e m terminologia hegeliana, negação d e terminada. Se nào existiu antes, nào pode depois deixar de existir e se tornar u m a nào existência. N ã o passa pelo processo de dissolução d o existente ao nào existente, p r ó p n o de t u d o o que é submetido às transformações naturais. Logo, nào é da o r d e m da química n e m da alquimia, n e m da astronomia n e m da astrologia, n e m sensível, n e m intelectual, n e m sobrenatural.

tudo for feita, nào c o n v é m revelá-la e m público t a n t o p o r q u e ela não é socializável quanto porque ela nào é transmissível. D e p o i s dessa i n -

P o r t a n t o , n à o se p e n n i t e ter a m í n i m a noção d o que se trata,

trigante recomendação n o m e i o d o p o e m a , d e p a r a m o - n o s c o m mais

n e m de aspectos, atributos ou elementos apreensíveis. Esse algo é u m

uma seção de negações.

nào existente q u e n e m m e s m o chegou a existir, portanto, nào deixou rastros de ter sido u m dia. Depois de t o d o esse percurso " d o nada ao

Q u a n d o se declara q u e algo não c o n v é m dizer e m p ú b l i c o , é

nada", p o d e m o s e n t ã o dizer q u e é simplesmente o p u r o vazio? N à o ,

possível que se esteja referindo a algo asqueroso o u r e p u g n a n t e c o m o

n e m isso o p o e m a nos permite. A metáfora material evolui aqui para

"bolas de cuspe" ou " v o m i t ó n o s " . O p o e m a nos esclarece q u e n à o

a n o ç ã o de v o l u m e : se nào dá para pegar n e m puxar, nào dá n e m

se trata disso. N ã o é n e m m e s m o algo i n t e i r a m e n t e n o v o , u m a nova

m e s m o para esvaziar. N à o , nào é vazio n e m m e s m o é o puro vazio.

"pista" que nos permita experiências sensoriais extraordinárias o u algo semelhante; enfim, nada que possa estar ligado a u m a droga n e m a uma boa nova de teor religioso. Apesar de ter dito q u e a experiência "entra pelos poros", agora o p o e m a esclarece q u e a i m a g e m " p o r o s " não quer dizer algo necessariamente sensorial e m relação à " p e l e " . Depois de tantas negações, deve-se t a m b é m negar q u e esse algo seja complicado, embora nào se diga q u e ele é simples. A série final de negações é especialmente mais c o m p l e x a , pois é nela que há, ao desenvolver-se o esvaziamento da negatividade, uma negação da negação, ou seja, o m o m e n t o dialético e m q u e a n e gação se transforma em afinnaçào implícita sem deixar de c o n t i n u a r a

D e p o i s de tantas negações e absolutamente n e n h u m a apreensão d o q u e se trata, o m e l h o r q u e fazemos é esquecer. Afinal, para q u e pensar sobre algo q u e nào é nada? Isso é coisa para filósofo, digamos assim, q u e pensa sobre o nada. Mas se passamios para o t e n e n o da filosofia c o r r e m o s o risco de complicar, e isso nào é complicado. Além d o mais, para complicar, isso t a m b é m nào é o nada. A frase N ã o t e m n a d a " , e m português, joga c o m o sentido duplo de ter e não ter nada, p o r t a n t o sugere implicitamente a frase " n ã o é nada", q u e c o n t é m a mesma duplicidade. D e qualquer forma, poderíamos finalmente

decidir q u e isso nào importa, o que importa é que isso nào

nos diz respeito e, p o r t a n t o , nos damos o direito de esquecê-lo.

enunciar negações. Se esse algo nào se sedimenta, n à o há c o m o reter. Até aqui nào se expôs nada do que já n à o se tenha dito, apenas se des-

I )epois de aparecer a hipótese de a b a n d o n o d o algo indizível,

locou toda a imprecisão desse algo para o plano m e t a f ó n c o dos estados

o p o e m a termina n e g a n d o até m e s m o a possibilidade de esquecê-lo.

da matéria. Mas é precisamente nessa nova c o n d i ç ã o metafórica q u e

N à o , nào se p o d e n e m se deve esquecê-lo. N à o adianta fingir que

a negação encontrará uma virada afirmativa. É a própria o b j e t i v i d a d e

o i g n o r a m o s c o m a desculpa de que não o p o d e m o s conceber. Na

maxima da matéria que, ao se tornar metáfora para u m d e s d o b r a m e n -

verdade, é j u s t a m e n t e p o r q u e nào é dizível n e m concebível que é

to lógico, trai sua inconsistência m e s m o n o plano d e n o t a t i v o . Justa-

inesquecível e inevitável. O p o e m a , até o meio, aconselha nào ex-

154

155

périment«· esse algo, mas uma vez feita a experiência n à o há c o m o

no debate universitário laico por causa de dois dos textos mais impor-

Situação difícil: n i n g u é m vai "te levar a s é n o " e, c o n t u d o ,

tantes do filósofo francês Jacques Derrida 4 (em especial o ensaio " C o m -

ignorá-la.

é impossível

esquecer.

Trata-se de algo inalienavelmente í n t i m o .

" N e m fingir que n ã o . " A última frase justifica o título d o p o e ma, "Sim". N ã o há c o m o negar o algo indizível, p o r t a n t o , só é pos-

ment ne pas parler: Dénégations"). 5 Já no texto La différance ele fez uma indicação que prometia chegar a esses dois textos posteriores." O Corpus Dionysiacum,

t e n d o sido produzido entre o ano de

sível afirmá-lo, e o poema a f i r m a - o c a t e g o r i c a m e n t e n o título e e m

484 a 532, é u m dos principais textos de especulação teológica da

roda a sua estrutura e processamento. O p o e m a a f i r m a - o respeitando

idade média, atribuído a (pseudo) Dionísio Areopagita. Nada se sabe

rigorosamente

sua inefabilidade. Por isso, o p o e m a é p e r f e i t a m e n t e

sobre a pessoa q u e escreveu esses textos. O n o m e , sem dúvida, é u m

coerente: não finge, nào esquece, nào ignora; o p o e m a afirma, ainda

p s e u d ó n i m o retirado d o A t o dos Apóstolos 17,34. D e v i d o a seu pio-

que por meio da negação de t u d o o q u e se p e r m i t e negar.

neirismo e m vários aspectos e e n o r m e influência na teologia (em T o -

De certa forma, apesar do fato de que isso nào encontra possibilidade de transmissão na linguagem, a afirmação poética aposta em u m a expressão propriamente poética do indizível, lá o n d e a poesia, e m seus esforços mais radicais e extremos, almeja por m e i o da linguagem o além

más de A q u i n o , por exemplo), filosofia e literatura até hoje, Dionísio é considerado pelos especialistas o pai da teologia negativa e também o pai da mística ocidental cristã. Isso se dá, principalmente, porque tanto o c o n c e i t o de teologia negativa quanto o de teologia mística é pela primeira vez lançado literariamente c o m o proposta terminológica. 7

da linguagem e consegue de certo m o d o uma expansão relativa de seus inefáveis poderes, embora nunca absoluta. Trata-se d o q u e p o d e m o s

Leiamos trechos do Capítulo δ d o livro chamado De mystica tip-

chamar de autossacrifício sublime da poesia, típico esquema masoquista

ologia (Sobre a teologia mística), n o qual Dionísio disserta sobre Deus:

da arte moderna de se querer antiarte e c o m isso renovar-se. As únicas pistas que o p o e m a deixa desse algo indizível é q u e isso advém da experiência q u e entra pelos poros, mas n à o é n e c e s sariamente sensível, que nos faz perceber o q u e há nas m o n t a n h a s e nos peixes (entes concretos) q u e nào se reduz ao q u e a l i n g u a g e m delimita quando nos referimos a tais entes. Isso significa q u e , de c e r t o modo, o algo indizível está nas m o n t a n h a s e nos peixes e m b o r a n ã o esteja somente naquilo q u e c o n m í n e n t e e n t e n d e m o s p o r m o n t a n h a s r

e peixes. E preciso, portanto, uma experiência q u e perceba nas m o n tanhas e nos peixes algo mais d o q u e aquilo q u e a m e r a referência da linguagem c o m u m nos traz, e é apostando n o e x c e d e n t e da l i n g u a g e m poética que se propõe uma maneira de se chegar a tal e x p e n ê n c i a . Herança da teologia negativa e a singularidade da mística moderna Depois de toda mobilização retórica de negação, nào há c o m o nào se defrontar com uma tradição muito específica da teologia e da filosofia chamada de teologia negativa. Tal tradição já é m u i t o conhecida 100 156

(...) afirmamos que ja Causa] não é alma (...) não possui imaginação, n e m opinião, n e m palavra, n e m pensamento, nào é palavra o u pensamento; (...) nào está parada, n e m se move, nào repousa, não possui uma força, n e m é uma força; não é luz, nào vive e nào é vida; nào é essência, nem eternidade; nào é ciência, n e m verdade, n e m reino, nem sabedona; nào é u n o , n e m unidade, n e m divindade, n e m bondade; não é t a m p o u c o espínto, segundo sabemos; (...) nào é n e n h u m dos nào-seres e n e n h u m dos seres, nem m e s m o os seres c o n h e c e m - n a e n q u a n t o existe; (A Causa] t a m p o u c o conhece os seres e n q u a n t o seres. N à o é razão, n o m e ou conhecimento, nào é treva, n e m luz; erro ou verdade; nào se Lhe aplicam afirmações ou negações: q u a n d o negamos ou afirmamos os seres q u e Lhe são posteriores, nào A afirmamos, n e m A negamos. A Causa perfeita e unitária de todas as coisas está acima de toda 4 D I R R I DA, Jacques.

Psyché. Inventions de l'autre. Paris: Galilée, 1987. p.535-95.

5 DER RI DA, Jacques. Sauf le nom. Paris: Galilée, 1993. 6 DI R RIDA, Jacques. Marges de la philosophie. Paris: Minuit, 1972. p.6. 7 STOLINA, Ralf. Niemand hat Gott Je gesehen: Tratakt über negative Theologie. Berlim: de Gruyter, 2000. p. 11-2. j M

.ih mia vão, e a excelência dAquele, que está absolutamente separado de tudo, e acima de tudo supera toda negação. 8

indizível e inconcebível. Só por m e i o da poeticidade que se e n c o n tra o m o m e n t o da transcendência da linguagem na experiência de

Sem dúvida há semelhanças gritantes e n t r e o p o e m a d o L e o nardo Froes e esse trecho, q u e não se limitam s o m e n t e na reutilização de Fróes de u m mero p r o c e d i m e n t o r e t ó r i c o d e n e g a ç ã o infindável. Façamos uma comparação q u e visa n ã o s o m e n t e r e c o n h e c e r semelhanças e diferenças, antes, por m e i o delas, extrair qual a proposta da prática ascética e mística q u e está p o r trás da negatividade radical de Dionísio, n o plano teológico-filosófico (e t a m b é m literário, sem

esvaziamento da sensação e d o conhecimento. 1 2 Por isso Dionísio, e n q u a n t o filósofo teólogo, e Leonardo Fróes, e n q u a n t o poeta, esc r e v e m . Assim, e m a m b o s há u m primeiro m o m e n t o de afirmação implícita dos entes e dos atributos n o uso linguagem, u m segundo m o m e n t o d e negação explícita de todos os atributos e da linguagem e u m terceiro m o m e n t o de afirmação d o indizível para além da linguag e m p o r m e i o da experiência sem sensação n e m c o n h e c i m e n t o , nada

Assim c o m o Fróes nos diz q u e esse algo indizível n ã o c o m p l i -

q u e seja descritível, passível de expressão. Esse terceiro m o m e n t o , e m a m b o s - n ã o há c o m o negar - é nada mais nada menos d o que uma experiência mística.

ca, não sedimenta n e m se dissolve, n ã o dá para pegar n e i n esvaziar,

Haveria, inclusive, u m a aproximação duvidosa, embora possí-

Dionísio diz dessa Causa q u e nada se p o d e acrescentar n e m retirar.

vel: L e o n a r d o diz q u e não são artimanhas d o acaso, Dionísio nos diz

Assim c o m o Fróes nos diz q u e o algo indizível n ã o se dá na

q u e se trata da causa suprema e não d o acaso.

dúvida), e de Fróes, n o plano poético.

forma

afirmativa, d o mesmo m o d o não há c o m o " f i n g i r q u e n ã o " , D i o n í s i o diz que nada se pode afirmar n e m negar da causa s u p r e m a . L e o n a r d o Fróes nega a capacidade da linguagem o u das palavras frente ao indizível, assim c o m o Dionísio.

N a verdade, é aqui q u e c o m e ç a m as diferenças: Dionísio introduz na tradição ocidental a operação retórica da negação i n c o n dicional d e t o d o o e n t e e t o d o o ser s o m e n t e para afirmar, n o fim, q u e o q u e é inconcebível é a causa suprema, Deus. Logo, Deus não

A principal aproximação q u e se evidencia e n t r e a m b o s é q u e

é n e g a d o , n ã o é posto e m dúvida. O q u e ocorre é o contrário: é

a fronteira da linguagem não é a fronteira da e x p e r i ê n c i a " , 9 c o m o

a existência indubitável e inconcebível de Deus q u e nega todos os

nos instrui Ralf Stolina. Dionísio escreve q u e :

atributos, pois D e u s é, e m terminologia medieval, o ens reaíissimum, o q u e há de mais real, o q u e , inclusive, c o n t é m a realidade, e não uma

Quanto mais olhamos para cima, mais os discursos se contraem pela contemplação das coisas inteligíveis; assim também, agora, ao penetrarmos na treva superior ao intelecto, já não encontramos discursos breves, mas uma total ausência de palavras e de pensamentos. 1 "

ideia duvidosa. A certeza da existência de Deus é, paradoxalmente, a certeza d o mais incerto, inconcebível e indeterminado. Toda a série de negações serve para nos aproximar da inefabilidade de Deus e não para duvidá-la. A negação de t o d o atributo e imanência é o c a m i n h o para se chegar à experiência da fe n o transcendente. Logo, t e m o s três m o m e n t o s dialéticos a diferenciar:

Logo, há uma experiência para além da inteligência, da linguagem, dos sentidos e das emoçòes que, desapegando-se e d e s p o j a n d o -

1 - m o m e n t o da afirmação positiva existente

se de todas as noções objetivas e subjetivas," c o n s e g u e " p r o v a r " o

2 - m o m e n t o da negação de toda positividade existente

Areopagita. Teologia mística. Trad. Marco Lucchesi. R i o de Janeiro: Fissus, 2005. p.35-6. 9 STOLINA, Ralf. Op.cit., p. 1 8 .

3 - m o m e n t o da afirmação da transcendência

« DIONÍSIO.

1 0 DIONISIO,

Arcopagita. Op.cit.,

p.26.

Π Κ κ HART, Meister. Sobre o desprendimento e outros textos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 17. 158

Isso significa q u e há uma experiência da participação do h o m e m e m D e u s q u a n d o Deus o presenteia e se revela e m sua graça. 12

STOLINA, R a i f .

Op.cit., p.21-3.

' 159

Essa revelação oferece a experiência da graça, mas mantém velado o conhecimento objetivo da esfera divina. A^ora podemos precisar melhor o caso de Leonardo Fróes. N à o há nenhuma remissão direta à fe cristã, nem a Deus, nem a qualquer outra religião. O algo indizível de Fróes pode ser Deus, pois ele não escreveu "Não é Deus", mas pode também nào o ser. Portanto, a inefabilidade do Deus da teologia negativa está comparativamente mais determinada do que a inefabilidade do algo indizível de Fróes, ainda cjue ambos sejam essencialmente inefáveis. Para a fé cristã da teologia negativa a inefabilidade de Deus possui consequências concretas na

N ã o podemos dizer que a experiência indicada no poema de Leonardo Fróes seja mais ou menos intensa ou decisiva do que a de Dionísio, mas podemos dizer que ela mantém todas as incertezas de uma dúvida hiperbólica. Apesar disso, ela afirma, tào categoricamente quanto Dionísio, a experiência mesma do inefável c o m o inegável e inalienável. N à o se trata de uma certeza cartesiana nem de um postulado neopositivista de validação do mundo empírico. Trata-se de uma afirmação poética - e o fato de ser "artística" não diminui seu c o n t e ú d o imperativo, ao contrário, acentua - da inevitabilidade de uma experiência mística, mesmo que não haja nenhum pressuposto

crença, na ética e na conduta cristã, pois se trata de uma doutrina

religioso, e do destino "trágico", fatal, implacável que ela impõe a

monoteísta. Em Fróes, a única conseqüência de se ter experimentado

partir d o m o m e n t o em que é feita. Ela exige um momento decisivo

o algo indizível é nào ser conveniente dizê-lo e m público, pois nin-

de solidão e uma confrontação nada confortável com a mais radical

guém vai levar a sério uma tentativa de expressão d o inexpressável

falta de expressão. Se na teologia de Stolina essa experiência é uma

fora de uma doutrina religiosa definida. Vale lembrar que o p o n t o de

participação do h o m e m em Deus e um verdadeiro encontro das duas

dissensão de Dionísio em relação à doutrina cristã posterior a ele é jus-

naturezas, n o poema de Fróes o que se expõe é a solidão do homem em m e i o a outros homens, mesmo que, por meio da poesia, haja uma incerta transmissão posterior.

tamente o fato de ele afirmar em outro texto que certos ensinamentos nào podem ser entendidos pelo povo, somente pode ser dirigido a poucos. Esse esoterismo em Dionísio nào condiz c o m o ensinamento de Paulo de que Cristo deu a conhecer a toda e qualquer pessoa a boa nova e nào privilegiou ninguém, os escolhidos só o sào por seus méntos morais e nào méritos inatos. Esse era, aliás, um dos grandes

Estabelecendo de m o d o claro as diferenças, observamos não só uma semelhança, antes, um íntimo parentesco em um ponto nuclear: a experiência mística c o m o meta orientadora de toda a prática da esenta. N à o se trata dizer que a teologia em Dionísio ou a poesia

pontos de disputa entre os gnósticos e Paulo enquanto apóstolo ba-

em Leonardo Fróes nào sào maiores que a expenência sem discurso e

sal da Igreja. Logo, o único ponto que separa Dionísio da Igreja, o

portanto são dela secundárias. A meta e m ambos é abandonar o dis-

aproxima de Leonardo Fróes. Mesmo assim, fora esse dado notável,

curso e m um determinado m o m e n t o dialético de superação do mes-

Dionísio afirma por meio da inefabilidade de Deus a doutnna e Fróes

mo. C o n t u d o , essa superaçào nunca é absoluta e retoma para a neces-

ahmia somente a inefabilidade do indizível e nada mais. Enquanto

sidade da prática discursiva e reflexiva, seja teológica, seja poética. A

obra poética moderna, o poema de Fróes pòe e m suspenso qualquer

relação conflitante entre poesia, experiência mística e comunicação é

conteúdo ético, moral ou doutnnãrio definido.

muito complexa e nào se pode dar conta dela aqui, mas concluiremos

Isso nos leva à seguinte constatação: a experiência d o indizível nào pressupõe salvação nem redenção, tampouco, abre a possibilidade de inferir algo semelhante, nem diz que a experiência d o indizível é agradável, nem desejável, nem benéfica. Apenas afirma que é inegável e - tora de um poder relativo e incerto da poesia o u da arte ^transmissível:-condena o beneficiário à mudez e ao recolhimento.

a análise considerando c o m o a ascese da escrita se relaciona c o m o desejo de experiência do indizível. Em ambos, a ascese da prática reflexiva (poética ou teológica) é o m e i o privilegiado, enquanto meio que deve já conter em potência o seu fim, para a experiência mística. A dialética de meio e fim aqui nào consegue definitiva e simplesmente fundir um no outro, embora haja sim u m estado indeterminado de fusão lá onde o prazer poéti-

160

103

CO. filosófico e teològico e n c o n t r a m , p o r m e i o d e seu exercício, a

acha q u e r e c o n h e c e u os limites. Mas nào sabe,

"çraça" parcial de uma alegna ou "festa" d o p e n s a m e n t o (Valéry).

ainda, q u e agora tem de aprender a descer. 14

Nesse encontro de formulações filosóficas o u poéticas iluminadoras há momentos de parcial superação dialética n o interior de problemas

Esse m o v i m e n t o de retomada da linguagem, da cotidiamda-

existenciais, experimenta-se u m a centelha de e s c l a r e c i m e n t o o u de

de e da m u n d a n i d a d e depois da imersão na experiência sublime e

prazer estético. Há inclusive u m a pletora de ideias, a v e r t i g e m extáti-

mística de revelação é corrente, seja 11a metáfora da Montanha, seja

ca de um excesso de produtividade. C o n t u d o , o místico se alimenta

11a alegoria da C a v e r n a , de Platão. C o n t u d o , parece-nos que, nesse

desse prazer-gozo estético e reflexivo para a b a n d o n a r toda e q u a l q u e r

p o e m a , é mais plausível q u e Leonardo Fróes esteja mais aparentado a

ideia, linguagem, ação, produção.

Dionísio d o q u e a Platão, pois em Dionísio a multiplicação produtiva

Ε o poeta? M a n t é m - s e entre o excesso e o silêncio, g o z a n d o

da exposição é t a m b é m u m a experiência vertiginosa, e em Platão é

de ambos os êxtases antinómicos de m o d o q u e a elipse, 110 caso desse

mais u m a operação de r e c o n h e c i m e n t o da relação entre o verdadeiro

poema, se toma a verdadeira musa d o excesso d e possibilidades. P o r

e o falso, a coisa m e s m a e sua sombra. M e s m o assim, essa lógica nào

isso o não nega que as possibilidades sejam o indizível, mas n ã o nega

está ausente e m Dionísio, já q u e sua influência principal, n o plano

sua entrada no poema, que está de portas abertas para sua p r o f u s ã o . A

filosófico,

abertura é a negação, pois é ela q u e , ao negar e p e n n i t i r a entrada e m

o m o m e n t o d e s c e n d e n t e depois d o ascendente, mostra, n o término

cena do possível, aponta e m direção ao impossível.

d o texto, q u e o p o e m a n ã o poderia ter sido escrito se o "animal"

é o n e o p l a t o n i s m o . Fróes, ao acentuar nesse último poema

não tivesse a p r e n d i d o a descer. Depois da expenência de "alguma

Dionísio exemplifica m u i t o b e m esse processo c o m a clássica

liberdade' na panorâmica de cima, falta a ligação dessa liberdade c o m

metáfora da escalada da m o n t a n h a :

as mesmas obrigações e necessidades anteriores. Essa liberdade só será Ao c o n t r á n o , seguindo de cima para b a i x o , o discurso sc-

realmente " c o n q u i s t a d a " (nunca totalmente) n o posterior contato

ampila na p r o p o r ç ã o da descida; agora, todavia, e l e v a n d o - s e

c o m o m u n d o da vida, da sobrevivência: nas condições concretas de

de baixo para cima, contrai-se na p r o p o r ç ã o da subida, t o r -

existência, logo, t a m b é m , de c o m u n i c a ç ã o c o m o m u n d o social. O

nando-se p r o f u n d a m e n t e m u d o , para unir-se t o t a l m e n t e ao

fato é q u e n ã o há c o m o " m o r a r

inefável. 1

pensar s e m p r e e m nada, e m absoluta solidão ininterrupta e p e r m a n e -

n o c u m e , o u seja, não há c o m o não

cer s e m p r e u n i d o ao inefável. Logo, o m o v i m e n t o descendente é o O m o v i m e n t o descendente é d e e x t e n s ã o expositiva, e o

m o v i m e n t o p r o d u t i v o , u m a segunda vertigem q u e nào volta resig-

movimento ascendente é de progressiva d i m i n u i ç ã o até o silencio

nada ao estágio anterior, antes, p r o d u z resultados concretos - éticos

completo e improdutivo. Lendo o p o e m a mais f a m o s o de L e o n a r d o

e / o u estéticos, teóricos e / o u práticos - resultantes da experiência de

Fróes, "Introdução à arte das m o n t a n h a s " , p o d e r í a m o s pensar q u e

revelação e m seu c o n t a t o c o m o inefável.

não havena necessariamente nele a valonzação d o m o m e n t o ascen-

A descida, tradicionalmente, nào é tão b e m vista assim. N o

dente sobre o descendente, c o m o há e m D i o n í s i o . O animal depois

cristianismo, aquilo q u e separa o h o m e m de Deus é o pecado, e o que

de uma radical dedicação à escalada:

os u n e é, 110 p l a n o moral, a virtude parcial q u e o h o m e m p o d e c o n quistar sem n e n h u m tipo de recompensa e m vida e, 110 plano místico, a experiência da graça. Nesse sentido, a vida cotidiana é sempre 11111

Conhece alguma liberdade, q u a n d o chega ao c u m e .

Sente-se disperso entre as nuvens, 14 FRÓES, Leonardo. Vertigens: obra reunida (1968-1998). Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 1 3 DIONÍSIO,

162

o Areopagiu. Op.cit., p.26-7.

|

p.243.

M

i

H

M · · 163

sacrifício e uma luta contra uma miséria inevitável, inseparável da

u m a sensibilidade estética e extática, distancia-se m u i t o da negação

natureza humana e de cada nova tentação q u e brota d o c o n v í v i o so-

da sensibilidade na teologia e na metafísica, d o puritanismo cristão e

cial, e os pequenos m o m e n t o s de graça são alívios t e m p o r á r i o s . Mas

burguês, p o r é m deve m u i t o à mística mais tradicional, precisamente

mantém-se a esperança da salvação absoluta depois da m o r t e . N o caso

p o r q u e ela c o n t é m u m excesso de desejo e experiência q u e o d o g m a tismo religioso sempre freia e evita.

do lado esotérico de Dionísio, a f i m a u m a tradição anacoreta, há u m a ascese para poucos iniciados q u e a u m e n t a r á a q u a n t i d a d e e a qualida-

A negatividade estética da identidade negativa possui nào u m

de dos m o m e n t o s de graça e exigirá e m contrapartida u m a b a n d o n o

p o d e r e m p í r i c o , antes, u m desligamento radical de toda ideologia

mais radical dos elementos d o m u n d o q u e levam ao p e c a d o .

c o m p o d e r e m p í r i c o para alcançar u m poder negativo, uma potência

Em Leonardo, não há pecado, mas sim u m i m e n s o esforço

de intensidade extática só acessível c o m o despojamento de poderes

bem semelhante de desapego d o m e r o p l a n o sensível e inteligível e

empíricos. O p o d e r da negatividade, d o exercício de desligamento, é

de despojamento dos pensamentos, p r e o c u p a ç õ e s e desejos i n d i v i d u ais para finalmente se ter acesso à experiência d o indizível. O mais

o p o d e r da intensidade da potência, da força da experiência estética e extática n o isolamento ascético d o poeta.

importante de ser observado aqui é q u e e m L e o n a r d o n ã o há salvação

C o m isso p r o c u r a m o s contribuir para o esclarecimento de uma

depois da morte, apenas a dúvida n o c e r n e d o " s i m " , t ã o inabalável

potência afirmativa da experiência artística. Trata-se de sua capacida-

quanto a fe do crente fiel, e tão insolúvel q u a n t o a inefabilidade d o

de d e extração dos traços utópicos indetenninados de uma sociedade e de sua a f i n n a ç ã o f o r m a l m e n t e elaborada n u m a ascese e mística secular estética.

indizível. Conclusão De qualquer m o d o , constata-se o d e s p o j a m e n t o d e L e o n a r d o Fróes para a experiência d o inefável. Agora fica mais explícito o q u e entendo por negatividade. O t e r m o " n e g a t i v o " n ã o t e m u m s e n t i d o de depreciação, antes, de desligamento e e s v a z i a m e n t o para se chegar a uma afirmação nào positivista. A categoria d e i d e n t i d a d e negativa é usada por análises psicológicas de m i ñ o n a s para explicar c o m o q u e o preconceito, por exemplo, contra o n e g r o , influencia a c o n s t i t u i ção de identidade d o sujeito a p o n t o de ele se considerar i n f e n o r , internalizando o preconceito. M i n h a n o ç ã o de i d e n t i d a d e negativa, aplicada especificamente na arte brasileira (mas p o d e valer t a m b é m para outros países que nào c o n t ê m a forte d e t e n n i n a ç à o d e ideologias dominantes para a constnição da identidade), é d e u m a i d e n t i d a d e vazia que se serve de sua liberdade extrema para u m a c n a ç ã o artística desligada de qualquer c o n t e ú d o positivo e direcionada a u m a e x p e nencia mística secular de religamento c o m o inefável p o r m e i o da forma, da aparência e do prazer da sensorialidade estética. Esse prazer da fonna sensível e da aparência elaborada, e m b o r a seja u m exercício de parcial desligamento da mera sensibilidade cotidiana para alcançar 164

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