\" O Queijo da Serra da Estrela – Uma questão de Autenticidade \"

June 3, 2017 | Autor: André Pinto | Categoria: Anthropology, Autenticidade, Patrimonio, Serra da Estrela
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Descrição do Produto

Licenciatura Antropologia

Método Etnográfico Docente Sónia Almeida

“O Queijo da Serra da Estrela – Uma questão de Autenticidade” 2014/2015

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André Pinto 41290 Rita Ribeiro 41493

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Queremos desde já agradecer ao nosso “gatekeeper” Jorge Católico, pois foi por ele que conseguimos falar com a sua mãe e realizar a entrevista. Agradecemos também a disponibilidade, simpatia, atenção que a Dona Maria Ângela teve para connosco e frisar a importância que teve para o trabalho, pois foi graças aos seus depoimentos e à sua sabedoria em relação ao tema, que o nosso projectoo se desenvolveu de forma tão contínua e autêntica. Por fim queremos também agradecer à professora Sónia Vespeira de Almeida pelo apoio, pelo esclarecimento de dúvidas que surgiram ao longo da escrita etnográfica e também pela mobilização de bibliografia relacionada com o tema.

André e Rita

O objectivo principal deste trabalho será então perceber a técnica do pastor e a autenticidade que o artesão consegue conferir ao tão conhecido queijo da Serra da Estrela. Além disso, queremos perceber também o facto de o queijo ser considerado uma tradição de família e se essa tradição da “receita ideal”, passada de geração em geração, torna mais original e “puro” possível, aquele que é considerado por muitos, o ex-líbris do queijo da Serra da Estrela. Para isso, fizemos uso da entrevista etnográfica, onde entrevistamos uma das queijeiras mais reconhecida nesta zona do país. O nosso grupo escolheu este tema, principalmente pela zona geográfica em que se encontra, uma vez que um dos elementos mora na Serra da Estrela. Por isso mesmo, o nosso trabalho terreno e mesmo de pesquisa é facilitado, pois já possuímos conhecimento do nosso objecto de estudo e as redes de relações necessárias para a entrevista.

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Índice

Introdução e Metodologia

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Contextualização

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O que torna um queijo n’O Queijo da Serra – a questão de autenticidade

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A arte de fazer bem o queijo

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Balanço Final

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Conclusões

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Bibliografia

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Anexos

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Introdução e Metodologia “Não há segredo nenhum (…) o meu queijo marca, marca porque há admiração por ter uma pele tão lisinha, tão fininha, a apresentação que ele tem e o sabor.” (Maria, queijeira e proprietária da queijaria Ângela, 2015)

Para conseguirmos realizar o trabalho sobre o Queijo da Serra, consideramos que a base do mesmo obrigaria à realização de uma entrevista com um pastor da zona da Serra da Estrela. A entrevista seria então o primeiro passo a dar no decorrer do trabalho, seria o nosso empurrão inicial. Sem esta entrevista, a visão do pastor em relação à autenticidade e à tradição do Queijo da Serra seria a mais fiável, uma vez que pensamos que só alguém com experiência e uma vida feita de pastos nos mostraria a verdadeira visão e essência do nosso objecto de estudo. Após a entrevista, fica no ar que o nosso etnografado nos daria uma história de vida cheia de pormenores e narrativas bastante importantes à realização de um trabalho cheio. No entanto, e uma vez que o tempo é escasso, decidimos apenas numa entrevista retirar tudo aquilo que seria interessante e importante para a realização do nosso trabalho. A entrevista realizada, ao início, não se assemelhou tanto a um speech event, tal como Spradley considera ser uma entrevista etnográfica, em que refere que “são uma série de conversas com os informantes, nos quais o investigador vai introduzindo questões” (Spradley, 1979:464), mas sim uma conversa formal, em que nós perguntávamos e o informante respondia. No entanto, com o decorrer da conversa e com o quebrar do gelo, chegámos ao ponto em que não perguntávamos aquilo que queríamos, mas apenas referenciávamos certas coisas ou pormenores que gostaríamos que fossem explicados, e o entrevistado (na sua conversa corrida), acabava por nos responder a tudo o que pretendíamos. Ainda assim, apesar do desenvolvimento de uma conversa mais informal, apercebemo-nos que conseguimos incorporar os três elementos fundamentais que, segundo Spradley e o seu Interviewing an Informant de 1979, compõem a estrutura de uma boa entrevista etnográfica – procedemos à explicação do nosso projecto e da nossa pretensão na recolha de dados, explicámos o intuito da nossa entrevista, bem como o cariz das nossas questões. Podemos também dizer que esta

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etnografia como processo (e também um pouco como produto, uma vez que este trabalho só poderia ser considerado etnografia, a nosso ver, se fosse mais extenso e resultasse de uma série de entrevistas e trabalho terreno intensivo), se considera at home já que estamos a trabalhar terrenos familiares, de onde um dos membros têm proximidade, facilidade, acessibilidade de contacto e permissividade (por conhecer os seus entrevistados) para a realização da entrevista. Digamos também que não foi só a facilidade de acesso ao terreno, mas também o desejo de ir e conhecer1, ou melhor, aquilo que João Pina Cabral em “Aromas de urze e lama: reflexões sobre o gesto etnográfico” refere como gesto e engenho etnográfico. O querer sair da zona de conforto, enfrentar novos desafios e temas diferentes, querer conhecer o outro e a sua visão, alcançando a verdade metódica e captando a essência do terreno, aos olhos de quem lá vive. Quanto a dificuldades terrenas ou da realização da entrevista, podemos dizer que tivemos sorte. No entanto, e tal como em tudo, existem sempre imprevistos e situações onde ninguém tem poder de acção. A nossa entrevista apenas foi realizada no dia 2 de Maio, uma vez que o membro que vive na zona só teve oportunidade de ir lá esse fimde-semana (tal mudança fez com que a presença de um dos membros do grupo não tivesse sido possível). Para além disso, o horário marcado para a mesma seria às 9:30h sofrendo alterações para as 14:30h, o que fez com que não houvesse problemas de maior, tanto para nós como para o entrevistado. “Depois de algum tempo perdido (pois não sabia o sítio exacto da quinta) conseguimos encontrar a quinta. À chegada ao terreno, deparo-me com a família Católico, o pai (Manuel), a mãe (Maria, nossa entrevistada) e o filho (Jorge, nosso gatekeeper). Agarrados à enxada no quintal, são a típica família com “origens” pastorícias digamos assim, ordenhar e fazer queijo pela manha, tratar do monte e do gado à tarde. É a dona Maria que se apresenta, recebe-me com dois beijos e após a troca de umas palavras, leva-me para uma sala de estar iluminada – o cheiro a laranja apanhada pela manhã é intenso. Pergunta se quero comer alguma coisa, uma senhora gasta pelo trabalho, mas com uma simpatia enorme. A entrevista demora cerca de 35 minutos e após isso, faz uma visita guiada ao pequeno espaço (não mais que 10 m 2)

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Apesar de nenhum dos membros do grupo gostar ou quase “suportar” o cheiro de queijo, achamos o tema ideal uma vez que o André já conhecia um

pouco do terreno e tem algo que o move na divulgação da sua zona e daquilo que de tão bom têm para apresentar. No caso da Rita isso deve-se a uma visita recente à Serra da Estrela, na qual ficou fascinada com os campos e a forma como as pessoas mais velhas, neles trabalham

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onde ela e o seu marido fazem o queijo e requeijão – assim que entramos sinto o intenso cheiro a queijo e vejo o cardo a secar à lareira. A visita é curta (cerca de 1h 30 min). Despeço-me do Jorge que está limpar os estábulos, agradeço a amabilidade. A dona Maria despede-se de mim. No conjunto, foi uma entrevista enriquecedora e que nos irá ajudar bastante” 2.

Contextualização Considerado por muitos o melhor queijo de Portugal, com o seu sabor intenso e característico, o Queijo da Serra da Estrela é um dos símbolos da gastronomia típica portuguesa e considerado uma das 7 Maravilhas da Gastronomia em Portugal. A área geográfica correspondente à produção do mesmo abrange cerca de 3 119 km2 e compreende os seguintes concelhos: Carregal do Sal, Celorico da Beira, Fornos de Algodres, Gouveia, Mangualde, Manteigas, Nelas, Oliveira do Hospital, Penalva do Castelo e Seia. Aguiar da Beira, Arganil, Covilhã, Guarda, Tábua, Tondela, Trancoso e Viseu. Seja curado, mole ou amanteigado, o Queijo da Serra é produto presente à mesa dos portugueses seja em casa ou numa tasca. A sua suposta origem remonta ao século XII e é considerado o mais antigo queijo Português. Presente nas mesas dos reis portugueses e com destaque na obra de Gil Vicente, o Queijo da Serra é também bastante reconhecido internacionalmente. Actualmente, devido às exigências impostas pelo governo, as queijarias necessitam de certificados e condições de higiene concretas (e dispendiosas) para que possam vender o queijo de forma legal. Deste modo, muitos pastores preferem vender o seu leite às fábricas do que ter produção própria, porque não possuem capacidade económica para tal (no entanto, este não será um negócio rentável, uma vez que, segundo aquilo que pudemos apurar, 1L de leite custa apenas 1€ à fábrica, enquanto um queijo rende entre 12 e 20€ dependendo do seu peso). Também a desertificação humana da zona central do país tem levado a que exista abandono das práticas tradicionais, fazendo com que cada vez menos a genuinidade e autenticidade do produto sejam

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Apontamentos de Diário de Campo (André Pinto)

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postas em causa, uma vez que as versões de produção e venda massificadas que hoje encontramos nas grandes superfícies comerciais nada têm a ver com o fabrico original. No entanto, ainda hoje é possível adquirir localmente um queijo de produção menos intensiva que mantenha as características originais. Na maior parte dos casos, estes queijos são feitos à moda antiga, junto à lareira, e possuem um sabor especial e incomparável. Apesar de todas estas burocracias, no caso da nossa entrevistada, o seu queijo possui certificação, o que já lhe valeu bastantes prémios como melhor queijo, valorizando este produto tradicional e bastante antigo da Serra da Estrela.

O que torna um queijo n’O Queijo da Serra – a questão de autenticidade A questão da autenticidade esteve desde sempre presente na problemática do nosso projecto. Diz-se que ser autêntico é ser-se genuíno, é procurar ser-se melhor. Mas de que maneira isso se iria aplicar ao Queijo da Serra? O que torna o queijo autêntico para o seu produtor? Será o mesmo para o consumidor? Para conseguirmos responder a estas questões e perceber tais pontos de vista, depositámos toda a nossa atenção na obra de Muriel Faure, não acerca do Queijo da Serra, mas do Queijo Beaufort, o emblemático queijo francês que acaba por partilhar características com o serrano. Talvez o ponto de cruzamento entre produtos tão geograficamente distantes seja a noção do que é que faz um queijo ser autêntico, por parte dos produtores, e o valor cultural e monetário que esta autenticidade atribui ao produto. Eis o que realmente determina a autenticidade de um queijo: a antiguidade, que deve ser transportada para os dias de hoje, sem alterar uma característica que seja. É então a ideia de respeito a uma actividade tradicional, passada de geração em geração, que confere ao Queijo da Serra (bem como ao queijo Beaufort) toda a sua genuinidade e o seu sabor distinto (Faure, 1999:85). Para que a tradição seja mantida, são fundamentais dois aspectos, que vão sublinhar a grande diferença entre os nossos dados teóricos sobre o queijo Beaufort e o nosso trabalho de campo sobre o Queijo da Serra. Em primeiro lugar, é privilegiada a adaptação técnica e a especialização nas diferentes etapas de produção do queijo francês, algo que não se verifica de todo na zona serrana. A outra diferença, talvez mais significativa, reside na transmissão do saber

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fazer o queijo da maneira tradicional. Assistimos a um boom de escolas formadoras de queijeiros, fundadas por um conjunto de produtores de queijo, em França. Por cá, a Dona Ângela aprendeu a fazer o emblemático Queijo da Serra através do seu pai e transmitiu este saber, juntamente com o seu marido, ao seu filho – a noção de herança familiar acaba por pesar no fabrico deste queijo português. Ao fim ao cabo, percebemos que cada um dos contextos acaba por ter a sua própria noção de autenticidade. Peguemos agora no que concluímos acerca da autenticidade do queijo para o aplicarmos ao mercado de consumo e ao seu significado cultural. Diz-nos Faure que “a autenticidade é produtora de valor, em particular de valor patrimonial, que justifica, em parte, o preço do queijo” (Faure, 1999: 87). É a partir daqui que, quando a nossa informante nos diz que “Oh na fábrica é sempre diferente, lá eles não coalham com cardo, é outro produto. E mesmo a pele do queijo e o sabor, é muito diferente, muito diferente. Não há cá que se compare ao meu fabrico. Eu continuo a fazer na mesma como antes…” (excerto da entrevista), nos apercebemos da razão que a leva a ter clientes tão fiéis e touristas, portugueses ou estrangeiros, a procurar, única e exclusivamente o seu queijo, pagando o preço que for necessário e que o próprio produtor estabelece.

A arte de fazer bem o queijo Produzido com leite de ovelhas da raça Bordaleira Serra da Estrela e/ou Churra Mondegueira, a altura típica do seu fabrico era durante o inverno, uma vez que o sucesso do sabor dependia não só das mãos das queijeiras, mas também da sua conservação devido ao frio das casas de granito, tipicamente serranas. O seu processo começa, não na ordenha, mas sim na pastagem e no tipo de ervas que as ovelhas comem. O pastor tem de ter bastante atenção ao que elas comem, uma vez que algumas ervas podem conferir mau sabor ao leite. Segundo o que pudemos constatar, o fabrico do queijo começa cedo pela manhã (4/5 da manhã), com o pastor a ordenhar as suas ovelhas. Enquanto isso, a mulher em casa prepara tudo para quando o leite chegar (acende o lume, limpa as bancas, materiais etc.). Após a ordenha, assim que o leite chega, mete-se a coalhar ou melhor dizendo, a filtrar, para que nenhuma impureza vá

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para o produto final. Depois do leite coalhado, é necessário coagular. Para isso mete-se sal e o cardo (proveniente de uma planta) para que o leite passe do estado líquido ao estado sólido. Após isso, mete-se o leite a coalhar, espreme-se (na francela), enforma-se e vai à prensa para retirar todo o soro que poderá conter (também ele utilizado, mas desta vez para o requeijão). Por fim, o queijo vai para a câmara de Cura ou Maturação, onde fica entre 30 a 40 dias mais ou menos, até amadurecer e estar pronto para o consumidor final. Este processo é bastante trabalhoso e demorado, levando cerca de 4 a 5 horas para que tudo esteja pronto. Há uns anos, a Dona Ângela produzia entre 7 a 9 queijos por dia. Hoje, todo este processo apenas se “materializa” em cerca de 3 queijos diários, apesar das suas 140 cabeças de gado. Os tempos mudam, mas os clientes permanecem. Maria Ângela tem o seu “povo que já é de há muito ano” e perante a nossa pergunta pela razão de continuar a fazer queijo, não hesita em dizer que “eu gosto, gosto desta profissão, porque tenho gosto naquilo que eu faço” (excerto da entrevista). Talvez não seja apenas da técnica tradicional e do saber de família que o Queijo da Serra se faz elemento cultural tão valioso: pelo menos o “da Ângela” tem o amor como ingrediente principal.

Balanço Fazendo um “catch up” de toda a nossa experiência etnográfica, não temos dúvidas que a maior dificuldade foi o arranque do projecto, nomeadamente, na escolha da pergunta de partida a partir da qual todo o nosso trabalho se desenrolaria. Foi quando nos decidimos focar nas questões de autenticidade da técnica artesanal do queijo que o nosso trabalho fluiu, não de uma forma linear, mas de uma forma que um etnógrafo que se preze deve procurar seguir – uma forma, um modelo cíclico que, ensinou-nos Spradley, em 1980, os cientistas sociais devem cumprir. Folgámos em perceber que estamos num bom caminho, enquanto estudantes de Antropologia, por termos conseguido cumprir todos os seis passos deste ciclo de pesquisa: após a selecção do nosso problema de pesquisa e da metodologia necessária para a recolha de dados que o pudessem resolver, elaborámos o guião das questões etnográficas precisas para aplicar no nosso método de eleição: a entrevista etnográfica. Entrevistámos, observámos,

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recolhemos e registámos todos os dados que pretendíamos. E foi a partir da análise desses dados recolhidos, juntamente com a pesquisa teórica que já havia sido feita antes de entrarmos para o terreno – e porque Evans-Pritchard nos ensinou que “não podemos ir cegos para o terreno” (1991[1937]:241) – que procedemos à nossa produção etnográfica. Sendo este o segundo trabalho de campo de ambos os membros do grupo, sabemos que existiram falhas. Relativamente à parte teórica do projecto, sentimos a deficiência bibliográfica acerca do objecto central do trabalho – o queijo – e uma relativa dificuldade em lidar com a bibliografia disponível acerca do tema, por estar redigida numa língua que nenhum de nós domina na perfeição. Quanto às dificuldades metodológicas, ao nos ter sido difícil estabelecer o objectivo inicial do projecto, sentimos também a pouca objectividade presente no guião da entrevista. Também durante a mesma, a incapacidade de “quebrar o gelo” logo no momento anterior ao início da gravação e alguns silêncios durante a entrevista, demonstram uma inexperiência que, esperamos nós, se desvaneça com a prática etnográfica. No fundo, fazemos um balanço positivo de toda esta experiência, já que, com o pouco tempo que tivemos, conseguimos ter um “cheirinho” daquilo que é ser etnógrafo: ir para o terreno, sair do nosso mundo e entrar noutro, estar, falar e escrever sobre as pessoas, nunca esquecendo que estamos a lidar com seres humanos e que, enquanto líderes de uma investigação, é nossa obrigação atentar às especificidades e às questões de privacidade dos nossos informantes, bem como ao impacto que a nossa pesquisa vai ter nas suas vidas (Madden, 2012).

Conclusões Entrevistámos a Dona Maria Ângela sem nunca esquecer a questão que nos levou até ela: afinal, o Queijo da Serra artesanal é melhor do que o fabricado industrialmente, por ser feito pelas mãos calejadas de saber, de tradição, de herança familiar e de amor, ao invés de produzido por máquinas? Obtivemos a resposta, de várias maneiras, a várias alturas da entrevista. “A - O queijo da serra é produzido em maiores quantidades nas fábricas, mas não são iguais aos daqui? Nada a ver não é?

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M- Não nada a ver… A- Portanto esse processo altera a autenticidade, o sabor do queijo? Acha que sim? M- Sim é isso mesmo. Também pode ser bom, mas nada que eu já comi, mas nada que se compare como ao queijo que se faz artesanal. A- As máquinas não fazem aquilo que as mãos já sabem não é? M- Não, não fazem e também deve ser do tempero e também do produto que lhe põem, deve ser” (excerto da entrevista)

“M - pois…apareceu-me aí um senhor. Diz que foi mandado lá pela Aproserra que é o selo que nós temos. E…e depois ele disse ‘olhe, eu venho aqui buscar queijo…dois queijinhos, que é para ver que é pela Aproserra que eu venho aqui buscar o queijo, que eles é que me deram a, a direcção’. Então andava à procura da… ‘olha, nós andamos à procura de uma queijaria que é “Queijaria…”…”Queijaria Tradicional da Ângela”’(…) ’ é que, sabe porquê? Porque nós às vezes andamos enganados, mas muito enganados. Porque nós vamos comprar queijo, dizem-nos que é Queijo da Serra e nós vamos a comer e é uma porcaria e eu quero ver o queijo certificado’ (…) porque eles certificam…e eles devem fazer ali falcatrua. Agora, eles querem…vêm mesmo aqui busca-lo, para terem a certeza que é o queijo verdadeiro de qualidade.” (excerto da entrevista) Concluímos então que, apesar de ser mais fácil a aquisição do Queijo da Serra numa visita ao supermercado ou a uma fábrica serrana, quem quer o autêntico deve procurar os queijeiros artesãos que, donos de uma herança familiar antiga, não desiludem o freguês com o seu produto. Apesar da nossa pergunta de partida ter sido respondida, ficamos com a sensação que faltou algo a explorar. Ouvimos o discurso do artesão, mas não seria de todo inconveniente analisarmos o outro lado: a fábrica, á máquina e o homem por detrás dela. Afinal, se quando produzido na fábrica não é tão bom nem tão verdadeiro como produzido artesanalmente, porque razão é certificado como sendo Queijo da Serra? Fica então no ar a pergunta para um próximo projecto…

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Bibliografia - BURGESS; R., 1997, “As entrevistas como conversas” in A Pesquisa de Terreno, Lisboa, Celta pp., 111-133 - EVANS-PRITCHARD, E.E, 1991 [1937], “Some Reminiscences and Reflections on Fieldwork” in Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande. Oxford, Clarendon Press, pp. 240-254 - FAURE, M., 1999, « Un produit agricole "affiné" en objet culturel. Le fromage beaufort dans les Alpes du Nord », Terrain, n° 33, pp. 81-92 - (Imagem do queijo da serra na capa do trabalho) http://entrepratosecopos.xpg.uol.com.br/storage/receitas/imagem1_5210.jpg - MADDEN, R., 2012, Being Ethnographic. A Guide to the theory and Practice of Ethnography, Los Angels, California, New Dehli, Singapore, Sage, pp. 37- 53 [Cap. 2. “Ethnographic Fields: Home and Away”] - MADDEN, R., 2012, Being Ethnographic. A Guide to the Theory and Practice of Ethnography, Great Britain, Sage [pp. 77-93] - PINA-CABRAL, João de, 2007 « “Aromas de urze e de lama”: reflexões sobre o gesto etnográfico », Etnográfica [Online], vol. 11 (1) | 2007, pp.191-212 - SPRADLEY, J., 1979, “Interviewing an Informant” in Ethnographic Interview. Nova Iorque, Holt, Rinehart & Winston, pp. 461- 474 - SPRADLEY, J. P., 1980, Participant Observation, EUA, Harcourt Brace College Publishers, pp. 27-35 [Cap. 3 – “The Ethnographic Research Cycle”] - Queijo da Serra (online, acesso 05/05/2015) http://oqueijomafs.no.sapo.pt/oqueijo.html -Queijo da Serra (artigo online, acesso 05/05/2015) http://ptqc.drapc.min-gricultura.pt/documentos/queijo_serra_estrela.pdf - Queijo da Serra (online, ultima modificação 07-05-2015) http://pt.wikipedia.org/wiki/Serra_da_Estrela (acesso 4/05/2015)

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- Queijo da Serra (online, ultima modificação 30-10-2014, acesso 04/05/2015) http://pt.wikipedia.org/wiki/Queijo_Serra_da_Estrela -Queijo da Serra (online, acesso 20/05/2015) http://www.cm-covilha.pt/simples/?f=2620

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ANEXOS

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Guião da Entrevista Como alunos do curso de Antropologia, da FCSH-UNL, pretendemos realizar uma entrevista aos pastores no intuito de saber se o fabrico do Queijo da Serra é uma tradição de família, cujo segredo é passado de geração em geração, e perceber a técnica envolvida no processo de produção do Queijo da Serra, assim como entender a questão da autenticidade daquele que é feito “em casa” e do que é feito na fábrica. O ponto central será descobrir se é a tradição familiar, com as suas técnicas características, a responsável pela originalidade e valor do Queijo da Serra. Pretendemos usar, com a vossa permissão, o gravador para ancorar os vossos relatos, assim como achamos que seria fundamental o registo fotográfico, se possível, dos pastos, dos instrumentos técnicos e do fabrico em si. Questões: 1. Como surgiu esta actividade na sua vida? 2. Como aprendeu a fazer o queijo da serra? 3. O queijo da serra é um “negócio de família”? Se sim é esse o segredo para que ele seja tão bom? É a tradição familiar, com as suas técnicas características, a responsável pela originalidade e valor do Queijo da Serra? 4. As técnicas de produção com as quais aprendeu a fazer o queijo são as mesmas que usa agora ou actualmente houve alterações e adaptações no fabrico? 5. Sabe o que mudou (ou se mudou alguma coisa) relativamente processo de fabrico do queijo, comparativamente às gerações anteriores? 6. Sabemos que são impostas burocracias aos produtores para que o queijo seja devidamente certificado e vendido legalmente. É mais fácil para as fábricas conseguir essas certificações ou é igualmente fácil para os produtores ditos caseiros? 7. Se realmente for mais fácil para as fábricas conseguir essas certificações o queijo será então produzido em maiores quantidades e os processos de fabrico não serão iguais aos caseiros. Essa produção em massa altera a autenticidade (o sabor do queijo) ou o queijo que vem da fábrica é tal e qual aqueles que vocês produzem aqui em termos de sabor? 8. Porque é que continuam a fabricar o queijo? O que os move para continuar? 9. Não sei se sabem mas o cante alentejano foi considerado património imaterial, tal como já tinha acontecido com o fado. Sabendo que o queijo da serra é motivo de orgulho para as pessoas desta nossa zona, principalmente para os produtores, bastante apreciado por todo o país e conhecido internacionalmente. Era um desejo vê-lo eleito para Património mundial como um ex-líbris e uma “marca” Portuguesa?

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Transcrição da Entrevista – Dia 2 de Maio pelas 14:30, na quinta da Família Católico em Paços da Serra, Gouveia. Duração 00:34:23 minutos André- Diga-me o seu nome para ficar registado sff? Dona Maria - O meu nome é Maria Ângela Católico dos Santos A- Posso perguntar a idade? M- Vou em 62 anos A- Obrigado. Para começar isto é um trabalhito que nós estamos a fazer sobre o queijo da serra e então queremos basicamente saber como é a tradição, se é de família em família e coisas desse género, e tenho aqui umas perguntinhas. Posso começar? M- Sim A- A primeira pergunta que tenho aqui é como surgiu o queijo da serra na sua vida? M- Na minha vida porque já era, os meus pais já tinham ovelhas e faziam queijo, depois quando conheci o meu marido tinha a mesma profissão e lá começamos. Começamos a fazer queijo, até hoje. A- Há quantos anos então é que já faz queijo? M- Há 41 anos A- É muito ano de queijo. Então aprendeu a fazer o queijo com a sua família? M- Foi A- Pois é isso que nós pretendemos saber, que o queijo da serra é um negócio de família. E há algum segredo, não precisa de contar qual, para que ele seja tão bom? M- Não há segredo nenhum, faz-se que eu às vezes falo com as minhas colegas e elas perguntam como faço pq o meu queijo, parece que é diferente, mesmo nas feiras o meu queijo, vá aliás na feira do queijo de gouveia, o meu queijo marca, marca pq admiração por ter uma pele tão lisinha, tão fininha e a apresentação que ele tem e o sabor. A- E por ser um negócio de família, acha que é isso que faz com que ele tenha umas características tão apuradas e ser original? M- Sim porque é uma queijaria artesanal, não é cá de fábrica, nada, também já lá entra dentro para ver

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A- Pronto é isso que eu queria, pq nós queremos saber como é o original por causa do das fábricas. E então está-me a dizer que por causa da família e de ser de já há muitos anos que confere o valor. M- E prontos, tenho tido boa sorte com ele. A- Bem a sorte procura-se não é? M- É isso mesmo e que a gente madruga muito para a gente levar a vida direita, ele (Jorge) levantou-se às 4:30 para ajudar o pai na ordenha, quando ele chegou já tinha uma caldeira de soro fervida e claro que isto… A- Faz todos os dias? M- Todos os dias A-Quantos queijos fazem por dia? M- Agora faço 3… A-E quanto tempo é que demora? M- Bem depende, em meia hora fazemos bem, também sou eu e meu marido A- Meia hora tudo? M- Não, meia hora a fazer o queijo (processo dentro da queijaria), é meia hora mais ou menos. Às vezes lá custa mais um bocadito, mas o tempo é esse. A- As técnicas que você aprendeu, são iguais às que usa actualmente ou houve alguma alteração ou adaptação ao longo do tempo? M- Não, não tive alteração nenhuma. Porque como faço artesanal, eles (fábrica) põe nas prensas e tal. Eu não conforme faço, é nos acinchos (molde onde se aperta o queijo). Eu ponho lhe logo o tempero, são 8 litros, ponho 7 colheres de sal, meto o que devo meter de cardo, em 3 queijos, ponho assim um bocadinho de cardo (mostra-me o tamanho com as mãos), ele coalha, mas sem ter uma hora (de coalhar) não está pronto para fazer. A- Está então uma hora só dentro do tempero, apurar o sabor? M- Para coalhar A- Exactamente! Então desde os seus…então a senhora faz á 41 anos queijo, desde os seus…20 anitos..

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M- Sim vintes, mas isto já vinha do tempo dos meus pais. Casei-me com 21 anos, foi sempre a minha profissão, eu mesma ainda trabalhei numa fábrica. Ainda lá trabalhei 14 anos. A- E nota alguma diferença? Ou melhor, sabe a diferença da fábrica? M - Oh na fábrica é sempre diferente, lá eles não coalham com cardo, é outro produto. E mesmo a pele do queijo e o sabor, é muito diferente, muito diferente. Não há cá que se compare ao meu fabrico. Eu continuo a fazer na mesma como antes… A- Então e nas fábricas, sabe alguma coisa sobre a produção? M- Não, eu nunca fui a uma fábrica. Eu é aqui na minha vida, prefiro fazer o meu despacho dos requeijões, não vou para lado nenhum nem vejo nada. A- Claro claro… M- É só quando é o, se realiza a feira do queijo em gouveia, mas eu não tenho problemas em vender A- Ah pois, normalmente as pessoas perguntam pelo queijo da Dona Maria M- É mais a queijaria da Ângela sim A- Não precisa então de fazer publicidade? M- Nãooo, às vezes o meu filho (Jorge) diz “Oh mãe havemos de meter ali uma tabuleta” e eu digo “Para que?”, não precisamos de tabuleta, deixa lá estar a tabuleta “descansadinha” que nos também ca estamos. Pq as vezes vinham, ai esta fábrica do Senhor Joaquim Prata, mesmo ali á ponta da Bandoifa…fez muita falta. Olhe que ele dava-me só de cada vez que cá vinha, para dar a clientes, deixava-me aos 400 contos (quase 2000€), ainda em escudos, foi agora á pouco tempo também o funeral dele, já faleceu. Não havia, ainda dizia “O senhor ainda o está a levar verde” e ele dizia “Deixa-o ir que ele cura”. M- Eu ainda assim tenho que basta. Eu já comprei esta quinta que são á volta de 20 hectares, com o lucro que tenho tido da minha vida. E não é só isto. Tenho um prédio, onde vive a minha filha ali na Predonda, isto (sitio onde nos encontrávamos) já fomos nós tudo que construímos. A- Tem o seu rebanho aqui? Sabe ao certo quantas Cabeças de Gado é que têm? M- Passa de 140 e agora querem aumentar, pq o Jorge quer fazer sociedade com o pai, querem aumentar

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A- Há bocado nem lhe perguntei, disse-me que faz 3 queijos por dia, lembra-se de quantos é que fazia, na altura em que tinha mais? M- Então não sei, tinha alturas de fazer 6, 7 e 8 queijos. Com 180 ovelhas. Este ano foi mesmo um ano fraco de queijo. Eu não passei dos 4, 5, 4, 5e agora só 3. A- Mas foi fraco por causa das ovelhas que não davam leite? M- Não sei se foi o tempo, só sei que deram pouco, e agora mantenho os 3, pq foram as que pariram mais tarde, pq se não já não dava, pois há as lá que já secaram mesmo. A- Normalmente uma velha dá-lhe leite para um queijo? M- NÃOOO, muitas. Então eles estão a ordenhar algumas, 60 ou mais, pq algumas já não dão, pq se lhe tiraram os borregos mais e já não dão o mesmo que dá uma que pariu…em agosto ou Setembro. As que pariram agora nos fins de Fevereiro, tiramos ainda á pouco tempo os borregos. E a minha queijaria anda a ser seguida, a controlar. A- Pois é isso que tenho aqui também a perguntar. Sabemos que são impostas burocracias aos produtores, que há muitos certificados… M- EU NÃO, eu já certifiquei há muito ano, ainda ali tenho os selos da certificação, selada pelo Francisco Fraga (proprietário da queijaria Tavares, bastante conhecida), para um senhor que tem essa fabrica para não sei onde, tinha no Sabugueiro. O meu filho mais velho, andou na tropa com o filho dele e quando era aos fins de semana que eu certificava o queijo para ele, ele vinha e ia lá comigo levar o queijo. A- Então a senhora vendia o seu queijo, para eles venderem na fábrica? M- Eu vendia para ele, para ir para o Continente, para esses mercados grandes… A- Era o seu distribuidor… M- Só que o meu queijo ia todo com o selo, pois tinha de levar mesmo o selo de garantia, e atão eles mesmo do Continente pediam-me eles queijo a mim. Mas quem o ia levar? Tinha de ser assim um intermediário. Ele pagava-me o queijo na mesma, ao preço que tava estabelecido, mas ele é que levava, depois é que vendia lá. Tinha de mo pagar a 15, é como ainda o estou a vender, 15€. Depois ele podia-o vender a 17,5€ ou até mais, pq ele ainda fez falcatrua no…Luxemburgo, porque eu tenho lá dois filhos e também lá ponho queijo, pq o meu genro tem lá um estabelecimento. Vem a carrinha ele pede “minha sogra, mande-me uma caixa de queijo para baixo “ e eu atão pronto.

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A- E esse queijo vai curado? M- Vai, para ele têm de ser todo curadinho e amanteigado, todo amanteigado. A- Como estava a dizer, é fácil arranjar esses certificados e esses selos ou é complicado? Porque há sempre a ASAE e essas coisas… M- Nãooo, eu ainda assim respeito disso não tenho problemas nenhum com a coisa que vêm ca por. Ainda á pouco tempo, vieram cá, começaram a ver as coisas… A- Mas isso quer dizer então que não é difícil para si, ter as coisinhas todas organizadinhas e na lei M- Não, a mim não me faz diferença nenhuma e elas quando vêm fazer o controlo, dizem se está tudo bem, se não está elas dizem-me “olhe o dona Ângela tem de ser assim, desta maneira ou daquela”, pronto e então a gente faz pelo melhor. Basta que o meu queijo, tiveram de oferecer aos grandes lá para a feira do queijo, mas isso já é de há muito ano. E depois dizem “oh dona Ângela, você quer comercializar o queijo? A câmara dá-lhe a selagem, não tem de você estar a fazer, que a câmara dá-lhe, para isto a ver se anda para a frente, que é uma pena você para com o lindo queijo que vocemessê tem”. Pq vieram ca (na feira do queijo), os da câmara, lá na mesa onde eu estava e viram lá, o Tadeu (actual presidente da câmara de Gouveia) foi lá e deu força ao Jorge, para ele seguir esta vida, que não é fácil, mas para não deixar parar e ele gosta disto e disse “Não pare, nem mude a sua qualidade, nem que lhe digam, faça desta maneira ou daquela, você não mude, pq queijo como o seu não se encontra no mercado”, dizia o Tadeu para mim. Basta o facto de tirarem para as provas, e nos podíamos certifica-lo e foi o meu que ficou á frente de todos quanto estavam, dos que certificaram…porque havia muitos que não quiseram. Não quiseram pq não têm qualidade. A- Pois, são muitos queijos, mas depois não os vendem. M- Então e ainda tem mais alguma pergunta? A- Sim ainda faltam duas perguntitas. O queijo da serra é produzido em maiores quantidades nas fábricas, mas não são iguais aos daqui? Nada a ver não é? M- Não nada a ver… A- Portanto esse processo altera a autenticidade, o sabor do queijo? Acha que sim? M- Sim é isso mesmo. Também pode ser bom, mas nada que eu já comi, mas nada que se compare como ao queijo que se faz artesanal.

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A- As máquinas não fazem aquilo que as mãos já sabem não é? M- Não, não fazem e também deve ser do tempero e também do produto que lhe põem, deve ser, que às vezes diz. A- Mas isso também vem ao encontro de a senhor ter muitos anos de experiência e de passagem do ensinamento. M- Pois porque isto já vem desde pequena. O meu pai foi para frança, fiquei eu e a minha irmã e a minha mãe, a tomar conta de um rebanho e nós já fazíamos queijo. Nós ordenhava-mos e fazíamos queijo. A - O seu pai já tinha…já era…já tinha ovelhas? M - Já. A - E o seu avô também, não? M - Não, os meus avós não me recordo. A -Então o primeiro foi o seu pai. M - Era do meu pai, ainda nós eramos miúdas e miúdos, depois foi quando eu conheci o meu marido, que eu nem sou de cá, eu sou de Linhares, não sei se conhece. A - Conheço, conheço. M - Conhece? Então, eu sou daí. Que é viemos para aqui com uma irmã, a minha mais velha veio para cá servir, que antigamente era uma tristeza. A - Eu sei, a minha avó também. M - Vieram para cá servir, depois o meu pai não se calava, tinha falta daquela filha, prontos, sentia ali um vazio, e depois atão, a minha irmã arranjou-nos cá uma quinta e nós viemos todos para cá. E prontos, e cá nos casámos todas, casámo-nos todas cá na terra (risos) A: (risos) está cá tudo…também é bom! M - E agora também já vinha desse tempo e depois o meu homem também andou à sociedade com o pai, dividíamos o leite, o meu sogro fazia os dele e eu fazia os meus e eu cheguei aí, fui aprendendo melhor, e depois conforme o tempero, eu via. Será partia um queijo? Será que era mais um bocadinho de sal? Será que era menos? A - Foi aprendendo com a experiência…

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M - Fui aprendendo com as minhas experiências, não que ninguém me ensinasse… A - Exactamente, foi tudo a olho, a mão, foi ver o que é que…foi errar, experimentar… M - Foi …alguém disse…ai, e deram-me um termómetro para fazer a temperatura do leite. Eu não preciso cá de termómetro! Tenho-o ali…errr…o termómetro é a minha mão…é a minha mão. A - Nada que os anos … M - O queijo é aquecido em banho-maria. A: err…ia-lhe perguntar, estava a falar do leite…eu conheço alguns produtores que vendem o leite para as fábricas e assim… M - Vendem por que não têm rasgo… A - Pronto, mas a senhora não o faz? M - Não. Eu não o faço. A - Senão não tinha para si, não é? M - Eu não faço, porque depois não me chega. Eu até à Páscoa, agora está lá um bocadinho, que ainda é o de…já vendi o da primeira fase de Abril e de Março já não há nada. O que está agora é o do mês de Abril. Começámos, é o que está. Mas agora mais umas encomendas, a toda a hora estão sempre , querem dois, querem três, querem quatro. Eu tanto vendo um, às metades é que não. A - Pois, claro. A senhora tem guardados, não é? Congelados… M - Isso tenho, mas este ano congelei poucos, porque não tive para congelar. A - Para vender depois. M - Não tive para congelar. Eu é que…depois vem o casamento do Jorge, vem tudo, eu é que tirar queijo, porque senão fico sem nada! A – Pois… M - Depois vêm…ah ainda há lá daquele amanteigado, e eu tenho já algumas encomendas dali. Mas congelei poucochinho. Porque não tinha para congelar! Porque vendi tudo. A - Claro, mas também nunca o tinha feito, não é? Porque nunca veio cá uma fábrica a dizer-lhe ‘olhe, não quer que eu deixe aqui uma…?” Nunca lhe aconteceu isso?

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M - Não, isso não. Já vieram cá se queríamos vender o leite…e até me deixaram um cartão! A – Pois, é isso e depois para deixarem cá uma bilha…para guardar o leite. M - É, uma bilha para guardar o leite. Eu não, eu como não vendo, não preciso. A - Claro, não precisa. M - Agora, esse, quem vende, esse tem muitas. Quem vende é que vão carregar lá, deixam as bilhas e levam…é isso…mais…enquanto puder, e o meu homem também me ajuda muito, enquanto puder não vendo o leite, porque o leite não vale nada a vender-se. Paga o litro a um euro. O que é que dá isso? Anda ali uma pessoa ali tanto tempo de rastos para ordenhar as ovelhas e depois vai a gente dar e depois está dependente, pois só o requeijão, quase que se faz o desgaste para casa. A - Também faz requeijão? M - Faço, faço. Por acaso, hoje se mais houvesse, mais iam. Eu tenho já a freguesia toda. Quarta e quinta é para Gouveia, à quarta e à quinta-feira. Depois tenho o meu povo que já é de há muito ano. Morrem uns, metem-se outros, morrem uns metem-se outros…e já aconteceu eu ir levar o requeijão, aconteceu um ano, até fazia a minha filha…conhece o Gonçalo Fernandes? Aquele, o toureiro? O de Seia? A - Sim, sim, o de Seia. M - Tenho uma filha casada com o Gonçalo Fernandes. E aconteceu que eu vinha com a ferrada do leite, tropecei, ainda tinha aqui o…a loja das ovelhas. Nós é que mudamos porque depois aqui à porta aquilo era uma porcaria quando chovia, isto ficava ali tudo sujo. Eu disse ‘oh Manel olha, agora quando pudermos, vamos fazer ali o pavilhão das ovelhas para além, a ver se as tiramos aqui da porta. Fica depois isto aqui para os carros e está aqui uma entrada mais limpa, que é uma porcaria, ainda tenho que sempre a varrer. Depois mudámos para além, fizemos para além o pavilhão, mas caí a sair da loja…eram cinco da manhã. Tropeço ali, foi leite, foi tudo, e fiquei aqui com um “matoma”…mas como foi ele! Só que depois o Jorge logo telefonou à irmã a dizer ‘olha, vê lá se vens aqui ajudar a mãe, que a mãe caiu’. Eram cinco horas fui com ela ao hospital, mandaram-me para a Guarda, depois o padeiro também veio trazer pão, logo alertou a minha irmã. Depois apareceu aqui a minha irmã, para ajudar o meu homem se precisava de alguma coisa, mas o meu homem desenrasca-se. A - Lembrou-me uma coisa: a que horas é que acorda?

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M - Eu levanto…errr…vamos a ver…nós fazemos à noite e de manhã. Prontos, às vezes demora…são três…err…fazíamos os três de manhã. Eu fazia um e o meu homem fazia dois, porque ele tem a mão mais larga e espreme melhor do que eu. Mas como às vezes tenho que ferver o soro, porque para ferver só numa caldeira é muito, que depois fica salgadito, a gente é que vir por o leite, mais um bocadinho de água para ficar as coisas em condições. E, atão, nós levantamos-nos às quatro e meia da manhã. Nós acordamos, o relógio está a despertar para as quatro horas, àquela hora ninguém pode estar na cama. Depois, ele ainda para o despertador e apaga o candeeiro e ainda se deita mais um bocadito, aí mais um quarto de hora. Aí às quatro e um quarto, levanta-se, vestir, não vestir, sair daqui, quatro e meia, mais ou menos, às vezes ainda não está. Depois, vai. Eu levanto-me logo também, tenho aí a minha mãe… A - O seu marido vai… M - Vai logo para a ordenha, leva as ferradas, e o Jorge depois vem de além, que ele já vive além e vai lá ajudar. Quando ele chega, eu levanto-me logo, acendo a luz, para aquecer a água, tenho o soro que saiu do queijo à noite, fervo, eu é que o fervo. Quando ele chega para coalhar os dois queijos, já tenho o soro fervido, já ando lá dentro a virar o queijo de um lado para o outro, depois coalha-se. Está então uma hora a coalhar, nesse tempo que está a coalhar, lavo as ferradas, ele ainda lava uns queijos, eu depois limpo-os, cinto-os…depois chega-se o tempo…ainda vai fazer o café, a dar tempo que o queijo chegue aquele tempo. Vai fazer o café, traz o café para baixo. Eu já ponho as duas francelas para mim e para ele. Ele faz um e eu faço outro de manhã e depois ao fim de estar fervido, torno a ferver o soro, fervo o soro daqueles dois queijos, ferve, apanho o requeijão, lavados. Sei que até às oito horas, eu tenho que estar despachada na queijeira, já com o queijo lavado. A - São três, quatro horinhas, ali sempre a… M - Sempre ali a bater naquilo, sem a gente fazer mais nada. A – Exactamente. M - Sem fazer mais nada…depois temos durante o dia. Eu depois pego, tenho aí a minha mãe, que a tenho no centro de dia em Lagarinhos. Depois, ponho-a aqui em baixo, vem a carrinha, mas eu não saio daqui sem a meter na carrinha. Ao fim de a meter na carrinha, já estou preparada, aí vou eu levar requeijões à minha freguesia que é pelo povo. Por exemplo, à segunda-feira, é para um lado, à terça é para o outro, à quarta e à quinta é para Gouveia, sexta é outra vez para onde vou à segunda-feira, mas é outra…é outras pessoas, porque só para dar ali volta não dava para, para todas. Ora, sábado é para outro lado, domingo é para outro lado e depois começa outra vez a roda…

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A - Todos os dias faz, não há cá fins-de-semana nem feriados… M - Nada, nada. Todos os dias faço, todos os dias… A - E porque é que continua, o que é que a move a fazer? É o gosto? M - Gosto, gosto. É uma…eu gosto, gosto desta profissão, porque tenho gosto naquilo que eu faço e não ando a aturar ninguém. Aturamo-nos a nós próprios…porque para a gente ter esta profissão, tem que a gente gostar mesmo, porque nem toda a gente cria ‘ eu não sei como é que aguentas e isto e aquilo’, põem-se assim para mim…eu tenho lá que aguentar, quem gosta, gosta! Porque às vezes vêm aí…vêm aí e dizem ‘oh Jorge atão tu gostas disto?’, ‘gosto’, ‘olha que tu para gostares disto, tens que gostar mesmo!’, porque é uma prisão…é uma prisão! O rebanho…ainda agora está o pai um dia que o pai não possa, que se agarre a isto, ele tem que arranjar alguém para o ajudar, porque ele sozinho não se vai…a ver… não é fácil! A - Claro, ainda por cima com tanta ovelha… M - Porque o meu homem também já foi operado à anca e depois tenho que cá meter um homem para ajudar, para cortarem mato, para isto, para aquilo, para o meu homem não se cansar tanto a andar nestas… A - Pois, porque o queijo não é só chegar aqui e fazer… M - Não chegar e fazer, não! Há muito trabalho… A - Não sei se sabe, o cante alentejano foi considerado património Imaterial, não sei se viu as notícias… M - Não, por acaso, não vi. A - Há uns tempos, já há uns tempos. Como o fado, que é uma marca portuguesa, mas pronto. E sabendo que o Queijo da Serra é um orgulho para as pessoas e então principalmente para quem o produz e muito conhecido internacionalmente. M - Oh o meu já anda para ai. Então, eu já fui à Praça da Alegria! Eu já…o meu queijo anda espalhado por todo o país aí do mundo…você pode acreditar, não estou a falar por falar. Ele já foi para a América, Brasil…olhe que uma vez uma mulherzita quis levar, foi ao Brasil, tem lá as filhas, quis levar sete queijos e não se podia. ‘ Oh dona Augusta será que você pode levar esses queijos todos na mala?’, ‘Não te preocupes que eu embrulho na roupa, e meto na mala, meto na mala’ A: (risos)

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M - ‘Olhe, eu não quero responsabilidades com isso. Eu já o preparei, já vai aqui todo com a selagem, já vai aqui tudo, agora se você ficar apreendida com o queijo, eu não tenho nada a ver com isso’ (risos) A: (risos) já está vendido… M - E levou requeijões, todos…arranjou logo umas caixinhas tudo à maneira, para enfiar tudo ali. A - Então gostava que ele fosse considerado como um ex-libris, como uma marca portuguesa, porque o fado…toda a gente fala ‘ah Portugal, o fado, o futebol, Fátima’. Agora temos o cante alentejano que é só nosso…pronto, e depois Queijo da Serra há muito… M - Há muito, mas às vezes vão enganados e bem enganados! A - Mas é só…o Queijo da Serra é tipicamente daqui! M - Pois…apareceu-me aí um senhor. Diz que foi mandado lá pela Aproserra que é o selo que nós temos. E…e depois ele disse ‘olhe, eu venho aqui buscar queijo…dois queijinhos, que é para ver que é pela Aproserra que eu venho aqui buscar o queijo, que eles é que me deram a, a direcção’. Então andava à procura da… ‘olha, nós andamos à procura de uma queijaria que é “Queijaria…”…”Queijaria Tradicional da Ângela”’, ‘Olhe, veio bater à porta certa’, disse-lhe o Jorge, que andava lá em cima numa pinha, mesmo à beira da estrada, e ele atão disse assim ‘Olhe, eu queria ir a uma queijaria que a queijaria Tradicional da Ângela’, ‘Veio bater à porta certa’. Lá lhes tiveram a dar as dicas, eles não vieram com ele. Lá lhe esteve dar as dicas, e ele cá veio. Aparece-me aí, lá me deu as dicas que trazia…’ é que, sabe porquê? Porque nós às vezes andamos enganados, mas muito enganados. Porque nós vamos comprar queijo, dizem-nos que é Queijo da Serra e nós vamos a comer e é uma porcaria e eu quero ver o queijo certificado’… A - Certificado? M - Certificado, porque eles certificam…e eles devem fazer ali falcatrua. Agora, eles querem…vêm mesmo aqui busca-lo, para terem a certeza que é o queijo verdadeiro de qualidade. Pronto, está tudo? Quer ir lá dentro? (à queijaria) A - Está tudo, muito obrigado!

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Ilustração 1 - Queijo da Serra "Ângela" com o selo de certificação oficial para venda ao público

Ilustração 2 - Francela utilizada para retirar todo o soro do queijo, utilizado para o requeijão

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Ilustração 3 - Zona onde é feito o queijo, de notar o cardo a secar à lareira.

Ilustração 4 - Selo metido no queijo que não é vendido mas sim para consumo próprio ou caseiro

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Ilustração 5 - Sala de cura do queijo

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