‘- Vejam com os olhos – desprezem a lente.’ criatividade e fotografia

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‘- Vejam com os olhos – desprezem a lente.’ criatividade e fotografia António Barrocas

Este artigo trata do processo criativo1 em fotografia. Analisa os diversos contextos que envolvem a realização de imagens através de procedimentos fotográficos, em Portugal, desde a introdução da fotografia em Portugal até ao final do século XIX. Para o período em questão seguimos a periodização proposta por António Sena, que divide esta fase inicial da história da imagem fotográfica em Portugal – que vai de 1839 a 1900 – em três momentos. O primeiro que se inicia em 1839 e termina em 1849, coincide com o aparecimento das primeiras notícias sobre a fotografia na imprensa portuguesa. De 1850 a 1879, temos a fase que coincide com o início da Regeneração e que assistirá à chegada e experimentação de novidades técnicas. Wenceslau Cifka (1815?1883) e o daguerreótipo, os primeiros calotipistas Barão de Forrester (1809-1861) e Frederick Flower (1815-1889). Em termos de publicações temos três casos marcantes, a de P. K. Corentin, a tradução do livro Maravilhas da Photographia por Osório de Vasconcellos (que lhe acrescenta um capítulo sobre a fotografia em Portugal) e o Tratado de José António Bentes (1866). O início da publicação do O Occidente, em 1878, em que a fotografia começará a ser divulgada, marcará o final desta fase.

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No entendimento do processo criativo seguimos o texto de Manlio Brusatin no seu artigo ‘Produção Artística’ in Enciclopédia Einaudi, volume 3. ARTES – TONAL / ATONAL Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984. Salientamos dois aspectos: "Por produção artística pode indicar-se : a) a atividade artística como prática, no sentido materialista do termo (...) b) os produtos das artes considerados na sua relação com o sistema socioeconómico (...), ao lado portanto, de outros produtos de trabalho; c) um determinado aspecto do facto artístico, pelo qual se torna observável (...) dada a sua necessidade intrínseca de revelar-se (...). Em primeiro plano, encontram-se igualmente envolvidos a criatividade, a imaginação (...) e a projectualidade (...) do artista, bem como os diversos graus da sua intervenção no real (...) . Parte-se assim de problemas relativos ao controlo social da obra - exercido através da encomenda ... e /ou o poder / autoridade expresso pela crítica (...) ou, diversamente, a sanção coletiva de uma comunidade - a outros problemas levantados pelo gosto (...) e pela poética (...), pelos diversos tipos de coleção (...), pelos vínculos da reprodução / reprodutibilidade (...) dificilmente autónomos em certas épocas face aos chamados critérios < estéticos > (...)." pp. 157-158, e "Basicamente, as partes em jogo são: um operador-artista (personagem, segundo os casos, protagonista ou antagonista), uma técnica (enquanto modificação elementar — um trabalho enquanto aumento de valor — da matéria), uma obra (um < lavoriero>, objecto que tende a isolar-se como obra única ou espécie de obra-prima). O objecto final, sobrepondose à técnica, é sobretudo um produto artístico e, subvertendo todas as formas de apreciação, revela-se máquina de maravilha e de fascínio (para se tornar significante), mercadoria (para se tornar válido ou valioso), monumento (para se tornar exemplar e edificante)." p. 120.

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Um terceiro momento decorrerá, de 1880 a 1898, desde o estabelecimento de Emílio Biel no Porto e o arranque da edição fotográfica, com a utilização da fototipia por Biel e Carlos Relvas. De acordo com António Sena devido às suas características (os meios tons e a reprodução dos pormenores) a Fototipia será: “o processo ideal para o levantamento de um país viagem que Emílio Biel faria no campo da engenharia e da arquitectura, que Carlos Relvas faria na paisagem e nas obras de arte, e Cunha Moraes na Àfrica Ocidental.”2. Momento determinante será o da adopção das placas secas, a partir

de 1870, que fará aumentar o número de ‘amadores’ ou seja de ‘photographos amadores’. Serão estes que criam, em 1884, a revista A Arte Photographica. Nos anos 90 teremos ainda a criação da Academia Portuguesa de Amadores Photographicos e do Grémio Portuguez de Amadores Photographicos. Este terceiro momento, terminará por volta de 1900, com a generalização de aparelhos fotográficos (Kodak, em 1888, e a Pocket, em 1895) e da película. Poderão então aparecer ‘amadores’ socialmente diferentes daqueles que criaram a A Arte Photographica e daqueles que organizam e participam na Exposição Nacional de Photographia de Amadores inaugurada, em 31 de Dezembro de 1899, em Lisboa e que simbolicamente nos parecer fechar este período. As imagens fotográficas entrarão num processo de ainda maior generalização através de jornais e revistas e a Ilustração Portuguesa, com Joshua Benoliel, abrirá uma outra etapa na história da imagem fotográfica em Portugal. Importa antes de tudo esclarecer a questão da terminologia utilizada no século XIX, em Portugal, nas referências à fotografia, já que os termos utilizados podem gerar alguma ambiguidade. O termo ‘arte’ que é frequentemente utilizado em títulos ‘a arte photographica’, por exemplo, não designa por si uma assunção da fotografia enquanto arte, pois no vocabulário oitocentista ‘arte’ pode designar, por exemplo: “conjunto de regras para fazer bem alguma cousa; methodo de executar alguma obra; officio, profissão; 3

indústria, habilidade; cautela, astucia; compendio da grammatica latina;” . Em 1874,

encontramos a distinção entre as ‘artes mechanicas ou humildes... são as que dependem do trabalho das mãos, taes são todos os officios fabris” e “Bellas artes – são as que nos suscitão ao mesmo tempo sensações, sentimentos e idéas agradaveis, que se propoem imitar a natureza

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António Sena Uma História da Fotografia. Portugal 1839 a 1991, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991, p.29. 3 Cfr. Diccionario da Lingua Portugueza de Fonseca e Roquette, Paris, 1848.

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na sua maior perfeição, taes são a poesia, a eloquencia, a pintura, a estatuaria, etc.” . As

referências a ‘arte’ serão sempre entendidas pelo contexto próximo. Teremos, assim que analisar cada referência já que existem duas zonas claras: a da fotografia ‘industrial’ ou ‘profissional’ e a da ‘arte photographica’ ou dos ‘amadores’. São distinções, por vezes ténues, mas que consideramos fundamentais para uma clara compreensão da ‘ideia’ de fotografia, tanto enquanto prática artística, como enquanto técnica aplicável a várias áreas de actividade. Após a chegada das primeiras notícias sobre ´fotografia’ a Portugal, e dos primeiros daguerreotipistas, poucos seriam os que se podiam ‘espantar’ com o novo tipo de imagens produzidas. Mesmo ao longo do século, a fotografia – já não o daguerreótipo, mas o processo positivo / negativo – introduziu-se lentamente através da gravura. Esta foi gradualmente substituída – e referimo-nos ao uso na imprensa com muito daquilo que ela tinha, dos negros fortes, pouco detalhe e nitidez. Foi esta a imagem inicial, para muitos. Os mais abonados pela sorte viram certamente daguerreótipos e ambrótipos - e esses sim tiveram direito ao ‘espanto’ – e posteriormente poderão ter visto provas em albumina e, mais tarde, em gelatina e brometo de prata. A fototipia substitui a gravura e globalmente assemelha-se a ela. Só para o final do século se generaliza a carte-de-visite. De fotografia, de uma forma mais sistemática, falavam as publicações periódicas que a ela se dedicavam. São claramente produto de um meio restrito, círculo mais reduzido na A Arte Photographica e, mais alargado, no Gremio Portuguez d’Amadores Photographicos5. Uma análise destas publicações permitiu-nos formular conclusões sobre o entendimento da fotografia e sobre o processo criativo na fotografia oitocentista. Entendemos aqui o processo criativo no seu sentido mais comum, ligado às artes - o criar – e, no sentido mais abrangente do 'fabrico' de imagens. Era um processo que partia de uma captação, no daguerreotipo ou no negativo e terminava numa prova que se via ou exibia 6 . O daguerreotipo tinha uma menor latitude de opções na sua

4 Cfr. Diccionario dos Synonimos Poetico e Epithetos da Língua Portugueza por J. S. Roquete e José da Fonseca, Paris, 1874. 5 A análise sociológica dos produtores de fotografia em Portugal está ainda por fazer. 6 Tal como refere Alfredo de Paz: '(...) a fotografia torna-se um meio de expressão da subjectividade envolvendo não só um grupo restrito, mas toda a comunidade que viu assim instauradas relações novas, e inesperadas entre o próprio ver e a reprodução criativa e subjetiva dos inúmeros fragmentos de que o ver se compõe.(t.n.)' In

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produção, sendo a imagem única definida na própria captação. O processo de negativo positivo era aquele que permitia uma maior intervenção do photographo. Os esforços e pesquisas destes grupos visavam a produção de uma determinada imagem. O modelo apresentaria uma imagem nítida, com grande profundidade de campo, equilibrada e composta, no predomínio dos meios tons e negros profundos nas sombras. O retrato acrescentará o modelado da figura e a pose a três quartos. Outro sonho foi o do instantâneo. Fixar o movimento e o momento. Fotografar na rua, sem tripé, quase como se vê, guardar as imagens e levá-las. O ver ao perto e ver ao longe, mergulhar nas águas (escuras) do oceano, na profundidade da terra ( a luz artificial). A procura da reprodutibilidade foi outra área de interesse. Reproduzir as imagens que tanto esforço dão a imprimir no processo clássico, encontrar a matriz ideal, o processo que imite o resultado o fotográfico. A fototipia e a stanotipia conseguiram-no.

O acto ‘photographico’ O fotografar é neste caso dos ‘amadores’ a realização de uma operação estética, encontramos nos textos esse mesmo vocábulo – ‘o operador’. É uma operação que se decompõe em três momentos:

1º momento (A captura) Indivíduo Educação Cultura Gosto Saber técnico Vontade

Tecnologia

Natureza

Máquina Objectiva

Área

de

possibilidades

Placas

enquadramento, de ‘pose’

de

Pose (tempo)

Fotografia E Società. Della sociologia per immagini al reportage contemporaneo Napoli: Liguori Editore, 2001, p. 6.

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2º momento (A revelação do negativo) Indivíduo

Tecnologia

Cliché

Educação

Revelador

Cultura

Fixador

Nitidez

Gosto

Intensificador

Detalhe

Saber técnico

Redutor

Claro Escuro

Vontade

Domínio do Detalhe e dos Tons

3º momento (A impressão da prova) Indivíduo

Tecnologia

Sociedade

Educação

Impressão da prova

Cultura

Albumina

Gosto

Platinotipia

Saber técnico

Fototipia

Vontade

Domínio do Detalhe e dos Tons

Exibição da Fotografia Revela-se a Natureza Revela-se o próprio indivíduo – ‘o artista’

Os segundo e terceiro momentos da operação são aqueles em que a questão da autoria se dilui mais – a revelação do negativo, a realização da fototipia ou a impressão poderia não ser realizada pelo ‘amador’. O que distingue o ‘amador’ do ‘profissional’, se utilizarmos este modelo de análise da ‘operação estética’, será que enquanto o ‘amador’ se revela a si próprio na imagem – exibe o artista - o profissional desaparece atrás da imagem e deixa esta exibir-se a si própria. Não encontramos uma diferença clara na prática da ‘photographia’ profissional e ‘amadora’. As exigências de qualidade ( nitidez, profundidade, leque de tons, contraste) são as mesmas. A distinção faz-se em duas fases, uma relativa à autoria – o amador é autor, e como tal, dotado de cultura e gosto – e à exibição. A imagem de ‘amador’ rodeia-se de uma ‘encenação’ que a legitima como ‘artística’. Esta legitimação como artística é habitualmente feita pelo remeter a valores exteriores à imagem:a validade cultural ( o seguir da tradição) ou estética ( o educar o gosto ou o exibir uma prática estética). A prática estética é o lugar do ‘sentimento’, do ‘gosto’ e do ‘bello pelo amor do bello’ enquanto área do ócio.

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A intenção inicial, ou o fim a que se destina, introduz também essa distinção feita entre o ‘ócio’ e o negócio. Poderíamos deixar, como hipótese de leitura, esta distinção: a de uma imagem documental que remete para si própria e a uma imagem ‘artística’ que ‘evoca’ outras áreas. Na feitura da ‘photographia’, momento da impressão do negativo, exige-se a simplicidade do processo. Um negativo impresso em cada prova. A ‘combination print’ apenas é permitida para resolver a questão da impressão dos céus, ou das nuvens. Aí pode-se obter uma imagem utilizando dois negativos combinando-os na mesma impressão. O retoque da imagem, no negativo ou no positivo, é permitido mas sem exageros - é um imitare controlado. O acto fotográfico é também lugar do artesanal, do único (embora produto de uma técnica) e aqui acompanha a tendência do Arts and Crafts. No entanto, não há obsessão com o objecto único – apenas o é o cliché, o negativo – pois como vimos estes ‘amadores’ querem revelar ao mundo a sua obra e a sua obsessão será a da perseguição do método fotomecânico ideal. A característica do suporte será também o lugar para a resistência ao tempo, à alterabilidade das espécies fotográficas. As ‘provas a carvão’ serão conhecidas como a ‘photographia inalteravel’. O ‘photographo’ O homem ou mulher que ‘photographa’ apresenta-se em três paradigmas: o ‘estraga chapas’ (‘ambulante’ ou não), o ‘profissional’ e o ‘amador’. É uma distinção social que se assume como distinção cultural. A posse de uma ‘cultura’ - acesso ao gosto e à livre expressão do sentimento - separa estes photographos. A distinção social transmite-se metaforicamente à própria ‘máquina’: “A camara, uma antiga camara de gaveta, escalavrada de todo, coberta de nitrato, escancarava a ferrugenta objectiva anonyma, 7

ameaçadora, e terrivel como um olho de cyclope!” . O anonimato da marca da objectiva

( nestes tempos em que todas se conheciam por nome próprio) conjuga-se com o modelo ultrapassado, num despertar de medos ‘clássicos’. A caracterização que encontramos com mais frequência é a do ‘amador’. Feita, por vezes, por antítese ao ‘profissional’, utiliza um léxico que se repete como vimos nos capítulos anteriores.

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A Arte Photographica, n.º 3 de 1884, p. 71.

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O photographo é caracterizado na tipologia do artista moderno através da atribuição de categorias de subjectividade (o gosto, o sentimento artístico). A lente e o olho A frase de Adriano Pinto é muito clara ‘- Vejam com os olhos – desprezem a lente.’, salientando a subordinação do dispositivo tecnológico à vontade do ‘photographo’. As ‘próteses do visível’, como diria Pedro Frade, são fundamentais, aperfeiçoam-se, mas o ‘olhar’ determina a sua utilização. O dispositivo tecnológico não determina uma prática, pelo contrário, é a intenção de criar determinado tipo de imagem que oriente a pesquisa e a procura no sentido de obter determinados resultados através da utilização da técnica. Ver e guardar A ‘photographia’ é pela sua natureza - indicial – um ‘registrador’. O negativo guarda o ‘transplante perfeito’ da natureza. Esta dimensão está presente nos textos com muita clareza. Vê-se e guarda-se surgindo este segundo momento como a garantia e prova do primeiro. É uma ‘prova’ do nosso ‘flâneur’ de campos e serras. Permite a extensão de uma memória, seja ela, individual ou nacional. É também ‘prova’ porque a photographia é lugar de uma ‘verdade inexcedível’. Constroi-se uma memória visual. Os suportes O suporte novo é aqui o das próprias publicações. Disponibilizam-se as imagens fotográficas na revista ou boletim. É um local distinto da Exposição. Estas imagens destinam-se a um público seleccionado, constituído apenas pelos leitores das revistas – portugueses ou estrangeiros. A sua exibição na revista é a materialização das ideias presentes no texto escrito. Mostrar Não se detecta a presença do ‘anti-fotográfico’8. Todos os textos e todas as imagens apresentadas se situam claramente no âmbito do ‘espelho’ da fotografia naturalista.

8 Paul Spencer Sternberger Between Amateur & Aesthtete. The Legitimization of Photography as Art in America 1880-1900, Albuquerque, University of New Mexico, 2001. “I introduce the term ‘antiphotographic’ in order to underscore the fact that these effects were not just the result of altering the focus of the camera but rather were formal manifestations of several distinct theoretical approach’s. More important, I believe ‘antiphotographic’

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Não encontramos também apetência pelas ‘combination prints’, as imagens construídas através da utilização de vários negativos ( ao gosto de Robinson). Admitese apenas o recurso à sobreposição de negativos para a impressão das nuvens, ou seja, para a reprodução de um ambiente de acordo com o natural. Compensava-se as ‘falhas’ do dispositivo técnico já que os negativos não conseguiam captar a diferença de luminosidade entre a terra e o céu. Por isso talvez não se opte por nenhuma das chamadas ‘técnicas artísticas’ (as gomas bicromatadas, os bromóleos)9. As técnicas de impressão centram-se no papel de gelatina brometo de prata, na platinotipia, ou nos processos fotomecânicos da fototipia e da stannotipia. Predomina assim a tentativa de obtenção de um efeito de realidade. Este efeito é levado ao extremo na utilização de um tipo de imagem que apenas aparece uma vez – o estereótipo. Obtido com uma câmara especial que duplica o negativo, tem que ser visto utilizando um dispositivo que recria visualmente a profundidade ou o relevo.

O vocabulário e a tradição O pensamento sobre fotografia construiu-se com base numa cultura artística que precede o invento e utilização do novo médium. Uma cultura artística que formalizou estruturalmente na longa duração uma série de conceitos e ‘modos de ver’ que suportam a prática dos artistas e, podemos mesmo dizer, de todos aqueles que produzem discursos visuais, sejam gravadores, pintores ou escultores. Esta cultura legitima e justifica determinados campos semânticos – o retrato e a paisagem – e uma determinado modo de os representar. Os conceitos em jogo, em termos estéticos, são os do pensamento clássico, a mimesis nas suas vertentes de imitare e ritrare. A relação com a natureza é o paradigma englobando nela a relação com o seu elemento humano. As práticas e o pensamento sobre ‘photographia’ partiram desta tradição e transferiram-na para as práticas com o novo dispositivo. Um dos conceitos centrais, daquilo que será uma posterior teoria da fotografia nos tempos do modernismo, o de pré-visualização, está presente e assenta na antiga teoria

makes explicit these photographer’s intent to subvert qualities that most photographers considered inherent to the medium.”, op. cit. p.34. 9 Relembramos que nos cingimos ao período que vai até 1900.

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do disegno, do ver com ‘os olhos invisiveis’10. Este conceito será fundamental na legitimação da prática da ‘photographia’ enquanto arte. A presença do criador faz-se na prévia criação mental daquilo que quer produzir. É o esboço que uns faziam no papel, ou na tela, e estes - os photographos - farão no ‘vidro despolido’. A ‘composição’ enquanto elemento fundamental na construção da imagem é um dos pontos centrais das preocupações dos ‘photographos’. Presente claramente no texto de Robinson, que formaliza toda uma tradição da pintura e do desenho, ela passa para a ‘photographia’. A teorização de Robinson e a sua tradução para a língua portuguesa dotaram os ‘amadores’ de um poderoso receituário artístico. Existia um conhecimento muito actualizado da informação internacionalmente disponível sobre ‘photographia’, a apresentação das bibliografias o demonstra, assim como das publicações periódicas, habitualmente lugar de maior actualização. Este conhecimento permitia certamente a existência de uma sensação de pertença a uma comunidade internacional. O léxico utilizado reportava-se à tradição, seja na descrição de processos, nos atributos dos ‘photographos’ ou no comentário dos ‘specimens’. A natureza é representada enquanto ‘locus amenus’ ou ‘pleasant pictures’ na tradição inglesa11. O ‘bello’ e o ‘pitoresco’ são como vimos os dois conceitos fundamentais12, como o referiu Adriano Pinto: ‘Para mim, o pitoresco em toda a sua simplicidade, é a mais brilhante creação de Deus’. Os campos semânticos propostos na tradição estética europeia são aqueles que encontrámos como preferenciais no tratamento da Natureza13. 10

Cfr. Francisco de Holanda “... se pudera estar o mesmo desenhador só, sem ninguém, e ter na fantasia e memória a pessoa que há-de pôr em obra e pintar, crêde que muito melhor seria que tê-la diante dos olhos visíveis se a visse com os invisíveis...” in Tirar polo natural, Introdução, notas e comentários de José da Felicidade Alves, Lisboa, Livros Horizonte, 1984, p. 18. 11 Como na teorização de William Gilpin do pictoresco: “(...) while a particular motif might appear neither Sublime nor Beautiful, it might yet be higly suitable material for an artistic picture.” Art in Theory 1648-1815. An anthology of changing ideas, Oxford, Blackwell Publishers Ltd, 2000, p. 739. 12 Valeriano Bozal define claramente a concepção de ‘pitoresco’ que coincide com aquela que detectámos na análise dos textos, é uma citação um pouco longa, mas esclarecedora: “«Pintoresco» tiene dos acepciones que se confunden en el uso del término y que le dan un peculiar aspecto. Lo pintoresco es, en primer lugar una cualidad formal, aquello que tiene que ver con la cualidad de lo pictórico. En pintura, lo que se refiere al color, la luz y la sombra, o el contraste entre ellos, en lugar de aquello referido a la línea o el dibujo. En segundo lugar, pintoresco es también aquel objeto, visión o perspectiva de la naturaleza, que merece ser pintado. Se refiere pues a lo natural, al paisaje que, en virtud de alguna cualidad, preferentemente su singularidad, su variedad o su irregularidad seduce a los sentidos. Se busca en la naturaleza aquello que, porque parece escapar a la regularidad de las leyes naturales, parece artístico y a la vez gusta en el arte lo que parece escapar a la regia, a la unidad formal, y se acerca más a la naturaleza. De esta manera se relacionan en la categoría de lo pintoresco los ámbitos de la naturaleza y el arte.” Historia de las ideas estéticas y de las teorias artísticas contemporáneas, Barcelona, Alianza Editorial, 1996, p.44. 13 “Senderos retorcidos, maleza, cabañas en los claros del bosque, puentes sobre riachuelos, ruinas y cascadas son los objetos preferidos por la paisagistica pintoresca. La naturaleza es percibida bajo contrastes de luz y sombra, en los que resaltan las irregularidades del terreno, de la vegetación, etc., sin que nunca, sin embargo, se sienta el temor de lo desconocido o lo infranqueable. La naturaleza que descubre lo pintoresco no es uniforme como la belleza, tampoco atemorizante como lo sublime.” e “En cuanto a su contenido, lo pintoresco no se identifica solo

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O retrato apresenta-se na conformidade da tradição clássica, desde o ‘terçado’ de Holanda às noções de ‘decorum’ de Leonardo da Vinci14 que são rigorosamente seguidas na seriedade da pose. Retrato memorial – social ou afectivo – na clara identificação do representado. Uma abertura ao mundo do visível que poderia ser ‘realismo’, mas não o é pela opção por um ‘filtro clássico’. O retrato será só de alguns e a paisagem pitoresca. As ‘vistas’ ou o ‘género’ poderiam aproximar-se de um realismo, tal como Eça o descrevia, mas essa aproximação não seria feita ainda15. A teorização da fotografia que descrevemos é romântica no ver – o tipo de paisagem, o indivíduo que se revela através do sentimento e do gosto – e clássica no fazer – cumprimento da regra, do tema e da feitura. Na opção por uma tendência estética dentro da fotografia – como vimos os paradigmas seriam os do academismo, naturalismo, pictorialismo e simbolismo segue-se o naturalismo fotográfico, tal como o deixámos formalizado. Embora se situe no quadro do entendimento como arte – e aí acompanha o pictorialismo – não se verifica a prática do ‘anti-fotográfico’, pelo contrário, exploram-se as potencialidades do médium no quadro de uma maior proximidade com uma determinada visão do real16. As imagens fotográficas analisadas estruturam-se, como vimos, em termos de ‘estrutura profunda’17 na utilização da perspectiva (efeito decorrente da utilização da lente e da câmara, mas facilmente alterável, se o quisermos), do claro escuro, da busca do detalhe e da nitidez. Segue-se uma tendência de longa duração na cultura con la naturaleza deshabitada; lo rural, el lugar en el que la naturaleza y el hombre colaboran, es escenario favorito de lo pintoresco: el río cruzado por un puente, la casa que se levanta en el bosque, la s ruinas de un antiguo molino. A pesar de sus antecedentes en la poesía pastoral o de la componente ideológica que en el mundo moderno urbano recurre a la nostalgia del campo, lo pintoresco no se complace en idealizar la visión de la naturaleza. Antes bien, no renuncia a la representación de la diversidad o al contraste por el ideal, ni a la oscuridad y lo inacabado por la claridad y perfección de la belleza.”op. cit. 14 A ruptura com os cânones do retrato clássico – na fotografia - será feita, por exemplo, com Carlos Relvas. Este fotógrafo, em alguns dos seu auto-retratos, rompe com o ‘decorum’ presente numa pose definida na longa duração do classicismo. 15 A fotografia naturalista ao olhar o outro social não teria o mesmo efeito suave das tintas a óleo. Se a tinta e a tela remetiam o representado para o universo da arte, a fotografia remetia para o universo do quotidiano. Eduardo Vidal sabia-o bem: “Ser d’um realismo chato, para quê? Então mais vale olharmos para o que nos rodeia; temos os olhos para ver e bons ouvidos para ouvir(...)”, Sandra Leandro, Teoria e Crítica de Arte em Portugal (1871-1900), p. 353. 16 Sérgio Mah refere que “No século XIX, os discursos à volta da fotografia, os seus usos e efeitos sociais ou a sua possibilidade de expressão artística ... eram consensuais na seguinte concepção geral: a fotografia é a objectivação máxima desse percurso histórico marcado pela afirmação do naturalismo nas artes representativas e, nesse sentido, afigura-se como a imitação perfeita da realidade.”, A fotografia e o Privilégio de um Olhar Moderno, Lisboa, edições Colibri, 2003, p. 17. 17 Utilizamos aqui o conceito operatório apresentado por José Augusto França no seu artigo ‘Le «Fait artistique» dans la sociologie de l’art’ in La sociologie de l’art et sa vocation interdisciplinaire. Francastel et après. Paris, Éditions Denoel-Gonthier, 1976, pp. 129-130.

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visual. O detalhe é aqui entendido como o pormenor, não como o enquadramento do particular18. Segue-se o modelo da imagem como ‘janela aberta’ no mundo19.

Palavras e imagens O confronto com as novas imagens que deixam a textura e opacidade das tintas e cada vez mais surgem na pureza do espelho desencadeia a procura de um novo léxico. Anteriormente, nada existia de semelhante senão o reflexo da água tranquila ou o espelho. A produção de imagens fotográficas veio fixar as imagens fugidias e fugitivas que se conheciam. Distinguia-se claramente da pintura, que de história, de retrato ou de paisagem, era ‘a cores’, ou da gravura (sem detalhes na imprensa, artificialmente colorida nas publicações periódicas mais exclusivas). Ao princípio, as imagens dizem-se, repetem-se nas palavras que antecedem, ou procedem, a imagem, numa mistura de palavras e imagens. As palavras surgem como justificação do que mostra e o que se mostra como prova do que se disse. Esta tendência, que é muito forte na primeira publicação, desaparecerá quase completamente no Boletim do Grémio Portuguez d’Amadores de Photographicos. É algo marcante, o desaparecimento do discurso de legitimação e afirmação teórica da imagem persistindo apenas a informação relativa à sua concretização – os dados técnicos. Que alterações levaram a esta mudança nos discursos? O triunfo da técnica, do instântaneo e da facilidade? O aumento de ‘amadores’? Também Demachy avaliava a fotografia artística apenas pelas suas características formais. O modernismo e a sua centração nos aspectos específicos da linguagem – lugar de distinção e afirmação – também irá proceder do mesmo modo. Por outro lado, pensamos que a proliferação de imagens documentais poderá ter levado a esta tendência em que a fotografia ganha autonomia em relação a um texto justificativo. No entanto, ela também vai aparecer como simples ilustração do texto

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Exceptuamos o retrato e a reprodução em que se verifica uma maior aproximação ao objecto. Fazemos esta afirmação em termos globais, pensando particularmente no caso da fotografia de paisagem e de ‘vistas, já que relativamente ao retrato e à prática de atelier, a leitura poderá ser diferente. A questão para nós será a de entender o papel das imagens fotográficas na alteração, ou não, da concepção de espaço visual, ou seja, na continuação de um modelo renascentista, ou na opção por aquilo que Bernardo Pinto de Almeida refere como ‘um espaço restrito da representação em que a cena se organiza como uma representação teatral’, cfr. O Plano da Imagem, Lisboa, Assírio e Alvim, 1996,p.60. 19

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(lembremo-nos da reportagem de Joshua Benoliel sobre o presidente Teófilo Braga). São áreas a aprofundar. Da descrição que acompanhava os specimens da A Arte Photographica – equivalentes verbais da imagem fotográfica – passámos, em 1886, à ‘crítica’ de Manuel Rodrigues sobre a Exposição de 1886. Um ensaio de primeira crítica fotográfica, presa ao léxico da pintura, mas onde se ensaiam novos conceitos. Conceitos que respondem a uma nova realidade constituída por manchas numa escala do negro ao branco lidas como ‘effeitos’.

A ‘photographia’ e a política A photographia tinha associada uma componente política. Desde o realçar da oferta do invento ao mundo – o caso Arago – até à associação com o moderno, com o progresso ou com uma vertente de democratização do ver. A relação com o poder surge também na questão da propriedade da ‘obra’ e do direito de ‘photographar’. São questões que permitiram, ou obrigaram, à afirmação do direitos do photographo justificados não pela apropriação de fragmentos de um real, mas como apropriação de uma visão do real por si criada. O indivíduo enquanto criador é definido neste confronto. É a mediação do autor que retira a imagem do circuito do público / privado e a consagra como pertença daquele que a criou. Não podemos também esquecer a importância das questões da propriedade e do que significaria em termos de poder – antropologicamente entendido – a possibilidade de possuir a imagem do mundo ou do ‘outro’, que ficam agora à mercê de um novo observador20. A legitimação A criação destas três publicações periódicas portuguesas sobre fotografia enquadra-se perfeitamente no movimento de legitimação da fotografia, tal como foi acontecendo ao longo do final do século XIX na Europa e nos E.U.A..

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Jonathan Crary refere esta questão no seu livro Techniques of the Observer. On vision and modernity in the nineteenth century, Massachussets, MIT, 2001, p.3: “Problems of vision then, as now, were fundamentally questions about the body and the operation of social power.(…) beginning early in the nineteenth century, a new set of relations between the body on one hand and forms of institutional and discursive power on the other and redefined the status of an observing subject.”. Este autor analisa ainda a questão da mimesis como lugar de poder ‘ a power founded on the capacity to produce equivalences’(op. cit. p.12), salientando a importância de se compreender a fotografia como componente de uma nova cultura económica – a economia de mercado.

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Como vimos não se tratou de tarefa fácil. A Arte Photographica encontrava-se bem escudada – uma casa editorial a Photographia Moderna – mas não resistiu mais de dois anos, desaparecendo a seguir à concretização de um dos seus objectivos que foi o da realização da Exposição Internacional de Photographia de 1886. A segunda publicação não passou dos dois números. O boletim do Grémio Portuguez de Amadores de Photographia ‘sobreviveu’ a crises sucessivas liderado por Arnaldo Fonseca e termina com uma fusão inesperada: ‘amadores’ e ‘profissionais’ unem-se distinguindo-se do último actor a entrar em cena – ‘o amador vulgar’. Tendencialmente, a legitimação passou da referência ao suporte teórico das belas artes, ou da estética (na A Arte Photographica), ao predomínio da divulgação de conhecimentos

técnicos

(no

Boletim

do

Gremio

Portuguez

d’Amadores

Photographicos). Sobre a dimensão criativa presente no acto de fotografar não havia dúvidas no pensamento dos homens de oitocentos. Seja com uma intenção artística, ou documental, o aspecto de controle do processo e de criação estava sempre presente. ‘Não esboça elle primeiro, por assim dizer, na camara escura do objectivo?’ Teixeira Guimarães

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