12ª Edição da Revista dos Estudantes de Direito da Unb

Share Embed


Descrição do Produto

Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília

Universidade de Brasília Faculdade de Direito

Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília ISSN 1981-9684 (impresso) ISSN 2177-6458 (eletrônico)

Décima Segunda Edição Segundo Semestre de 2016

Editoração e Revisão Conselho Diretor Capa Eduardo Varela Diagramação Eduardo Varela Revisão linguística Eli Carlos Guimarães Leticia Figueiredo Apoio:

Centro Acadêmico de Direito da UnB

34(05)

Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília / Universidade de Brasília. – n. 12 (2016) – Brasília: RED|UnB, 1997Semestral ISSN 1981-9684 (impresso) ISSN 2177-6458 (eletrônico) 1. Direito – Periódicos. I. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília.

CONSELHO DIRETOR A Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília é editada por alunos de graduação em Direito da UnB. O Conselho responsável por esta edição foi composto pelos seguintes membros:

Gabriel Campos Soares da Fonseca João Gabriel Costa dos Santos Luís Carlos Moura Guimarães Pedro Henrique Fachini Lustosa da Costa Valter Pedroso Vitelli Vítor Rabelo Naegele

CONSELHO CONSULTIVO A publicação de artigos na Revista dos Estudantes de Direito da UnB é condicionada à aprovação do Conselho Consultivo, que emite parecer sobre cada trabalho recebido. Nesta edição, o Conselho Consultivo foi integrado pelos seguintes membros: Diretor do Conselho Consultivo: Thiago Luís Santos Sombra – Universidade de Brasília Professor de Direito de Privado e Doutorando na Universidade de Brasília (UnB), Mestre em Direito Privado pela PUC-SP, PósGraduado pela Univerisità degli Studi di Camerino (Itália), Pesquisador Visitante da London School of Economics and Political Science. Foi Procurador do Estado de São Paulo. Advogado. Autor de livros e artigos, revisor de periódicos e consultor de agências de fomento à pesquisa. Alberto de Medeiros – Universidade de Brasília Professor Voluntário pela Universidade de Brasília. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado na área de Direito Tributário. Alexandre Araújo Costa – Universidade de Brasília Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Credenciado nos programas de pós-graduação em Ciência Política e em Direito. Doutor em Direito (2008), Mestre em Direito e Estado (1999) e Bacharel em Direito (1996) pela UnB. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Política e Direito. Ana de Oliveira Frazão – Universidade de Brasília Professora Adjunta de Direito Civil e Comercial da Universidade de Brasília (UnB), com atuação na Graduação e na Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado). Advogada. Ex-Conselheira do Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE (2012-2015). ExDiretora da Faculdade de Direito da UnB. Graduada em Direito pela UnB, Especialista em Direito Econômico e Empresarial pela FGV,

Mestre em Direito e Estado pela UnB e Doutora em Direito Comercial pela PUC-SP. Autora de livros e artigos jurídicos sobre Direito Civil, Direito Comercial e Direito Econômico. Dentre os prêmios já recebidos, destaca-se o de Jovem Comercialista do Ano, concedido pelo IDSA - Instituto de Direito Societário Aplicado em 2015. Camila Cardoso de Mello Prando – Universidade de Brasília Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2000), mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2003), doutorado em Direito penal Universidade Federal de Santa Catarina (2012), tendo realizado estágio doutoral (2010) no Departamento de História e Teoria do Direito da Università degli Studi di Firenze (UNIFI). Atualmente é professora adjunta de Criminologia e Direito penal dos Cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade de Brasília, Coordena o Centro de Estudos de Desigualdade e Discriminação (CEDD) e a Secretaria Executiva da Rede Latino Americana de Justiça de Transição (RLAJT). Realiza pesquisa com foco em Criminologia, História do Direito e do Controle Penal no Brasil, Dogmática Penal Crítica. Cristiano Otávio Paixão Araújo Pinto – Universidade de Brasília Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Concluiu estágio pós-doutoral em Historiografia na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e em História Moderna na Scuola Normale Superiore di Pisa. Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais e Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Líder dos Grupos de Pesquisa Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo e Direito e História: políticas de memória e justiça de transição. Procurador Regional do Trabalho (MPT/MPU). Conselheiro da Comissão de Anistia (Ministério da Justiça). Francisco Javier Ansuátegui Roig – Universidad Carlos III de Madrid, España Es Licenciado en Derecho por la Universidad Complutense de Madrid y Doctor en Derecho (Premio Extraordinario) por la Universidad

Carlos III de Madrid. Ha sido Profesor Titular en la Universidad Carlos III de Madrid (1995-2003), y Catedrático en la Universidad de Jaén (2003-2006). Es Catedrático de Filosofía del Derecho de la Universidad Carlos III de Madrid desde diciembre de 2006. En los últimos años ha impartido docencia en diversas asignaturas de Licenciatura, Grado y Postgrado: Teoría del Derecho, Filosofía del Derecho, Argumentación jurídica y Derechos Fundamentales, Teoría jurídica de los derechos, Historia de los derechos, y Bioética y derechos fundamentales. Gabriela Neves Delgado – Universidade de Brasília Professora Associada de Direito do Trabalho dos Programas de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Líder do Grupo de Pesquisa "Trabalho, Constituição e Cidadania" (UnB-CNPq). Vice-Diretora da Faculdade de Direito da UnB. Doutora em Filosofia do Direito pela UFMG. Mestre em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Advogada. Gustavo Albano Abreu – Universidad Austral, Argentina Profesor de Derecho del Deporte, Universidad Austral, Argentina. João Costa Neto – Universidade de Brasília Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Doutor e Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Doutorando em Direito Constitucional pela Humboldt Universität zu Berlin. Mestre em Direito Romano pela Universidade de São Paulo. Graduado em Filosofia pela Universidade de Brasília. Graduado em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Procurador Da República. Juliano Zaiden Benvindo – Universidade de Brasília Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Brasília e Professor Adjunto III da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) na área de Direito Público, com foco em Direito Constitucional. Doutor em Direito Público pela Humboldt-Universität zu Berlin e pela Universidade de Brasília. Mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Realizou

Estágio Pós-Doutoral no Zentrum für Europäische Rechtspolitik (ZERP), da Universität Bremen, Alemanha. Lilian Barros de Oliveira Almeida – Universidade de Brasília Advogada da União, atualmente em exercício na Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, tendo já ocupado o cargo de Adjunta do Advogado-Geral da União. Doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Portugal. Mestre em Constituição e Sociedade pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Foi professora substituta da área de Direito Público na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Marcelo da Costa Pinto Neves – Universidade de Brasília Bacharel (1980) e Mestre (1986) em Direito pela Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutor em Direito pela Universidade de Bremen, com bolsa do DAAD (1991). Pós-Doutorado na Faculdade de Ciência Jurídica da Universidade de Frankfurt (1996-1998) e no Departamento de Direito da London School of Economics and Political Science (10-11.2007), com bolsa da Fundação Alexander von Humboldt. Livre-Docência pela Faculdade de Direito da Universidade de Fribourg na Suíça (2000). Professor da Faculdade de Direito do Recife da UFPE (19832002), Professor Titular de 1993-2002. Visiting Fellow do Instituto de Federalismo da Universidade de Fribourg, Suíça (1998-2000). Bolsista-Pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Frankfurt am Main, Alemanha (2000). Jean Monnet Fellow no Departamento de Direito do Instituto Universitário Europeu, em Florença, Itália (20002001). Professor Visitante na Faculdade de Direito da Universidade de Fribourg, Suíça (2001). Professor Catedrático Substituto da Universidade de Frankfurt am Main, Alemanha (2001-2002). Professor Visitante na Universidade de Flensburg, Alemanha (20022003). Professor Titular de Direito Público da Universidade de Brasília (UnB) desde 19 de julho de 2011. Editor-chefe da Revista Direito UnB (2013-). Visiting Senior Research Fellow da Fundação de

Pesquisa Adam Smith da Universidade de Glasgow, Escócia (01-04 e 06-07/2014). Marco Florêncio Filho – Universidade Presbiteriana Mackenzie Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra. Presidente da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB/SP. Professor da Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador Geral e Professor do Mestrado em Direito da Escola Paulista de Direito. Membro do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO. Conselheiro da Academia Brasileira de Direito Tributário. Membro e Coordenador Estadual de São Paulo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado. Menelick de Carvalho Netto – Universidade de Brasília Concluiu o doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1990. É Professor Associado da Universidade de Brasília (UnB). Atua na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional e Teoria do Direito. Rafael Campos Soares da Fonseca – Universidade de Brasília Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB. Graduado pela UnB. Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Ex-Membro do Conselho Editorial da Revista dos Estudantes de Direito da UnB. Especialista em Direito Tributário e Direito Financeiro. Roberto Carvalho Veloso – Universidade Federal do Maranhão Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Graduado em Direito pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professor Adjunto da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Atualmente Professor e Pesquisador da UniCEUMA. Juiz Federal no Maranhão. Presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil - AJUFE. Ex-Presidente da Associação dos Juízes Federais da 1ª Região. Membro da Comissão de Juristas encarregada de

elaborar o novo Código Eleitoral. Membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas. Rosa Greaves – University of Glasgow, Scotland Rosa Greaves joined the School of Law at the University of Glasgow in 2006 and was Head of School from 2009 to 2013. Rosa is a Professor II at the University of Oslo and a Visiting Professor at the Catholic University of Lisbon. She has been a Visiting Professor at Universities in Australia, US and Europe. She is Barrister and member of Inner Temple (London). In 2000 she was awarded a Doctores Juris Honoris Causa conferred by the University of Oslo and in 2015 she was elected to membership of the Academia Europaea. Rosa specialises in European commercial law in both her research and teaching interests. Tania Groppi – Università di Siena, Italia Professore ordinario di Istituzioni di diritto pubblico nell’Università di Siena (dal marzo 2001). Delegato del Rettore dell’Università di Siena (prof. Angelo Riccaboni) per il progetto di Ateneo sulla sostenibilità (dal 15 dicembre 2010, biennio 2010-2012, quindi biennio 2012-2014 e biennio 2014-16). Componente del collegio dei docenti del Dottorato di ricerca in Scienze giuridiche delle Università di Siena e di Foggia. Membro fondatore del Gruppo di ricerca in Diritto costituzionale comparato ed europeo dell’Università di Siena (DIPEC) e coordinatore del medesimo Gruppo. Membro dell’Associazione italiana dei costituzionalisti, dell’Associazione italiana di diritto pubblico comparato ed europeo, dell’Associazione italiana di studi canadesi, dell’International Association of Constitutional Law, del “gruppo di Pisa” sulla giustizia costituzionale, socio dell’ISLE (Istituto per la documentazione e gli studi legislativi). Tarcísio Vieira de Carvalho Neto – Universidade de Brasília Professor Assistente da Universidade de Brasília (UnB). Possui graduação em Direito pela Universidade de Brasília (1993), mestrado em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (2002) e doutorado em Direito do Estado também pela Universidade de São Paulo (2015). Exerce os cargos de Subprocurador-Geral do Distrito

Federal - Procuradoria Geral do Distrito Federal e Ministro Substituto do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Advogado. Tatiana Azambuja Ujacow – Universidade Federal do Mato Grosso do Sul Professora da Faculdade de Direito da UFMS. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em Interpretação Constitucional na Universitat de Girona, Espanha. Thiago Matsushita – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Mestre e Doutor em Direito pela PUC/SP. Professor da Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da PUC/SP. Vice-Coordenador da Graduação em Direito da PUC/SP. Assessor da Pró-Reitoria de Pósgraduação da PUC/SP. Membro Titular do Conselho TécnicoCientífico da Educação Superior (CTC-ES) da CAPES/MEC. Consultor Acadêmico e Jurídico.

AGRADECIMENTOS O Conselho Diretor da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB) gostaria de tornar público seus mais sinceros agradecimentos às pessoas cuja colaboração foi imprescindível para o lançamento da 12ª Edição. Augusto Cláudio Ferreira Guterres Soares – Advogado da Caixa Econômica Federal (CEF) Bruno Carvalho Pires Leal – Assessor de Desembargador no TJ/MA Eli Carlos Guimarães – Professor e Empresário Eustáquio Nunes Silveira – Desembargador Federal TRF 1a Região (aposentado) e Advogado no Escritório Silveira, Ribeiro Advogados Associados Gabriel Soares Amorim de Sousa – Advogado do Escritório Amorim & Amorim Advogados Geovanne Soares Amorim de Sousa – Advogado do Viana & Amorim Advogados Jayme Benjamin Sampaio Santiago – Consultor Legislativo do Senado Federal e Advogado Karen Magalhães da Silva – Assessora do Ministro da Agricultura e ex--aluna da FD-UnB Leonardo Campos Soares da Fonseca – Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul e ex-aluno da FD-UnB Luiz Edson Fachin – Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e Professor Doutor da UFPR

Rafael Campos Soares da Fonseca – Assessor de Ministro no STF e Mestre pela FD-UnB Reynaldo Soares da Fonseca – Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Professor da UFMA Vera Carla Nelson Cruz Silveira – Juíza Federal (aposentada) e Advogada no Escritório Silveira, Ribeiro Advogados Associados

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO...............................................................................................................21 ENTREVISTA Professor Mamede Said Maia Filho.................................................................................23 TRABALHOS ACADÊMICOS........................................................................................39 THE CIVIL LIABILITY OF A FOOTBALL PLAYER THAT WOUNDS AN OPPONENT AT A CRITICAL MOMENT OF THE GAME Gustavo Albano Abreu: Profesor de Derecho del Deporte, Universidad Austral, Argentina..........41

TRÊS CONCEPÇÕES DE POSITIVIDADE DO DIREITO: DECISÃO POLÍTICA, ALTERAÇÃO ESTRUTURAL E INCONSISTÊNCIA Pythagoras Lopes de Carvalho Neto: Doutor e Mestre em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo.  Master of Laws (LL.M.) pela Faculdade de Direito da Universidade de Chicago.  Advogado em São Paulo...........................................................................59

A ELOQUÊNCIA DE HARPÓCRATES: ENSAIO SOBRE O SILÊNCIO NO DIREITO BRASILEIRO Rodrigo Fuziger: Bacharel, Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor universitário e advogado.................75

A CONSTITUIÇÃO DE CÁDIS ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE Ariel Engel Pesso: Bacharel e Mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo. Bolsista da CAPES/CNPq........................................................................................................................91

SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO (SOBRE O PRIVADO) E CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO – UMA INCOERÊNCIA PARADIGMÁTICA: CRÍTICA HERMENÊUTICA À TEORIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO TRADICIONAL Guilherme Gonçalves Alcântara: Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal no Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP. Professor assistente de Direito Administrativo no Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP. Advogado..................................103

INDIGNIDADE SUCESSÓRIA E DESERDAÇÃO: ANÁLISE DAS ALTERAÇÕES PROPOSTAS PELO PROJETO DE LEI Nº 867, DE 2011, NO ÂMBITO DA JURISPRUDÊNCIA DOS 27 TRIBUNAIS DE JUSTIÇA BRASILEIROS Ana Paula de Menezes Barros Correia Fonsêca: Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (10º período). Helena da Cunha Martins: Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (10º período). Karine Cysne Frota Adjafre: Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (10º período).....................................................................................................................129

DOCUMENTO ELETRÔNICO COMO MEIO DE PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO Guido Ferolla: Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Instituto de Direito Penal Econômico (IDPEE), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado. Sócio do Nélio Machado Advogados. José Paulo Micheletto Naves: Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - (Largo de São Francisco) em 2014. Mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (Largo de São Francisco). Advogado. Nathália Cassola Zugaibe: Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo - (Largo de São Francisco) em 2014. Pós-graduanda em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Instituto de Direito Penal Econômico (IDPEE), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Mestranda em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo - (Largo de São Francisco). Advogada...............................153

APPLYING THE CONCEPT OF DECENT WORK TO CAMBODIA’S TEXTILE INDUSTRY: THE ILO’S ROLE IN ENSURING STATE COMPLIANCE TO INTERNATIONAL LABOR LAW Danilo Barbosa Garrido Alves: Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)............175

A INTERPRETAÇÃO DADA À LEI DE DROGAS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, APLICAÇÃO E DOGMÁTICA EM PERSPECTIVA Thales Cassiano Silva: Graduando do 7º semestre de Direito da Universidade de Brasília (UnB)........................................................................................................................................185

NANOTECNOLOGIA, SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO: ESPAÇO PARA REGULAÇÃO Janaína Vieira de Castro: Doutoranda e Mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP). Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário (CEPEDISA), da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e Faculdade de Direito da USP parte da Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Brasil, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e do Ministério da Saúde, no projeto de pesquisa sobre a regulação dos cursos de graduação na área da saúde, em parceria com a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e Organização Mundial da Saúde (OMS). Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto: Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. Mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP). Pesquisadora na Escola de Direito de São Paulo-FGV. Bolsista de Treinamento Técnico nível III da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) ......................................................................................................................195

PERCURSOS E PERCALÇOS DOS PROJETOS E LEIS SOBRE CASAMENTO CIVIL NO BRASIL: DO IMPÉRIO À REPÚBLICA Paula Machado Ribeiro: Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Sarah Dam Freitas: Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Vinícius Carloni Cypriano: Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB)....213

PUNITIVE DAMAGES NO DIREITO DO CONSUMIDOR BRASILEIRO Patricie Barricelli Zanon: Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito das Relações de Consumo pela Pontifícia Universidade Católica PUC– SP..............................................................................................................................................229

A ANÁLISE DO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DA REPERCUSSÃO GERAL NOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS PELO STF, DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM O WRIT OF CERTIORARI NORTE-AMERICANO Arthur de Oliveira Calaça Costa: Graduando em Direito pelo Instituto Brasiliense De Direito Público (IDP). Karen França de Oliveira: Graduanda em Direito pelo Instituto Brasiliense De Direito Público (IDP). Mestre e graduada em Engenharia Elétrica pela Universidade de Brasília (UnB)....249

DESDEMOCRATIZAÇÃO E NÃO FRUIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: A ATUAÇÃO DO JURISTA CONTEMPORÂNEO EM FACE DO GOVERNO À DISTÂNCIA DAS AGÊNCIAS DE RATING Marcello Lavenère Machado Neto: Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Pós-graduando em Direito Tributário pelo IBET.....................................271

JUDICIAL CREATIVITY, SEPARAÇÃO DE PODERES E O PROBLEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DOS EFEITOS (EXTRA) JURÍDICOS DO HC 126.962 À LUZ DO FEDERALISTA Eloisa Yang: Graduanda do 6º semestre de Direito da Universidade de São Paulo (USP). João Pedro Viegas de Moraes Leme: Graduando do 6º semestre de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Iniciação Científica do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)...............................................................................................295

UM ENSAIO SOBRE O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS Lia Rodrigues Fontoura: Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista de iniciação científica do PIBIC. Raissa Oliveira Carmo: Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora-geral da Revista de Direito dos Monitores da UFF. Thomaz Muylaert de Carvalho Britto: Bacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista de iniciação científica do PIBIC. Coordenador-geral da Revista de Direito dos Monitores da UFF.................................................................................................313

JURISDIÇÃO, CONFRONTOS EPISTÊMICOS E DEMOCRATIZAÇÃO DO DISCURSO JURÍDICO-PROCESSUAL Rafael da Escóssia Lima: Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Teo Faggin Pastor: Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).................339

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

APRESENTAÇÃO O Conselho Diretor da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB), após árduo trabalho e muito empenho, tem a honra de trazer a público a 12ª Edição da Revista. Acreditamos na importância da pesquisa para engrandecer a UnB, por meio do fortalecimento desse importante pilar do tripé universitário. Esperamos, por meio da revitalização da Revista, criar um espaço para que os estudantes de Direito possam atestar suas produções acadêmicas concernentes à cultura jurídica, bem como ter um instrumento eficaz de confluência de discussões e atualizações da vivência universitária. Cientes da importância de nossos objetivos institucionais para a comunidade acadêmica da Faculdade de Direito (FD), trazemos de volta um projeto que não nos concerne apenas, mas abarca todos os discentes, docentes e demais juristas conscientes da frutuosidade de um instrumento como este. A RED|UnB busca dispor um espaço que facilite a publicação de trabalhos discentes e possibilitar a ampliação do espaço para os grupos de pesquisa, proporcionando, assim, um local em que esses possam demonstrar suas produções atinentes aos debates realizados em seus encontros, bem como que os projetos de extensão possam demonstrar seus resultados. Além disso, visando uma forte integração no âmbito da pesquisa acadêmica em um cenário nacional e internacional, possibilitamos, também, o compartilhamento de trabalhos advindos de profissionais da área, professores, membros ou ex-membros das mais diversas Universidades, Faculdades e Centros Universitários. Conscientes das dificuldades enfrentadas pelo discente ao defrontar-se com os primeiros contatos de produção de textos jurídicos, que, muitas vezes, distancia e impede aqueles que não possuem a experiência e a vivência com o vocabulário jurídico – o que se adquire apenas com a prática – nós, da RED|UnB, acreditamos no potencial dos estudantes e incentivamos as suas produções para que se possa sempre aprimorar conhecimentos e progredir. Para tanto, buscando trazer o aprimoramento da experiência jurídica, iremos, além da mera publicação, buscar promover palestras, cursos e aulas para complementar o projeto. Ademais, a vivência diária na Faculdade demonstra inúmeros exemplos de que uma revista dos estudantes viabiliza o crescimento de nossa instituição revigorando nosso empenho e compromisso em consolidar esse importante projeto. A Revista possibilitará que o discente aprenda, na prática, a desenvolver a pesquisa.

21

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

ENTREVISTA A Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília (RED|UnB) retoma suas atividades neste semestre e, para celebrar esse reinício de um periódico que traz consigo tanta história na Faculdade de Direito (FD) da UnB, trazemos um convidado que também carrega uma longa trajetória na Faculdade. Na ânsia por selecionar alguém que pudesse abrilhantar e contribuir com essa edição tão importante para a RED|UnB, tornou-se necessário buscar esse docente que tem sua importância amplamente reconhecida no contexto da construção da memória institucional da nossa Casa. Para tanto, ninguém melhor do que alguém que há tempo frequenta a FD, passou por seus contratempos e realizou seu projeto de vida nela, trazendo uma identificação imediata com os integrantes dos dias de hoje. Em 54 anos de história, o curso de Direito passou por uma série de dificuldades, reformulações e conquistas. Nesse âmbito, o nosso convidado foi inovador, crítico, irreverente e, consequentemente, muito contribuiu para a formação do que são, hoje, o curso e a Faculdade de Direito da UnB. Portanto, na oportunidade em que retornamos nossas atividades, temos a honra de apresentar o entrevistado desta edição: Mamede Said Maia Filho. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília, em 1985, concluiu seu mestrado, em 2002, na mesma instituição; além disso, possui o título de Doutor em Direito, Estado e Constituição, outorgado, também, pela UnB. Durante seu período na Faculdade, foi coordenador do Núcleo de Prática Jurídica entre 2005 e 2008. Possui vasta experiência na área de Direito Público, com ênfase em Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Ambiental, atuando, principalmente, nos seguintes temas: Teoria da Legislação e Processo Legislativo, História do Constitucionalismo brasileiro, Direito à Memória, Administração Pública e Teoria Geral do Direito Ambiental. Mamede é, também, membro do grupo de pesquisa Percursos, Narrativas e Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo (Diretório dos Grupos de Pesquisa – CNPq). O entrevistado carrega, em seu vasto currículo, inúmeras experiências com o Direito, mas encontra pela frente mais um desafio, pois será o novo Diretor da FD. A RED|UnB teve a oportunidade de saber suas expectativas para essa nova empreitada, além de termos sido contemplados com um 23

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

pouco de seu brilhantismo. Destarte, convidamos o leitor a partilhar conosco os ensinamentos do Professor Mamede, que muito nos honrou ao aceitar o convite para esta entrevista. RED|UnB: Professor Mamede, quase toda sua trajetória acadêmica foi traçada na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Como o senhor enxerga sua relação com a Faculdade em si, bem como com a própria Universidade, como um todo? Prof. Mamede Said (MS): A melhor maneira de me apresentar é falando do meu vínculo com a UnB. Eu comecei a cursar Direito na UFRJ, mas concluí a graduação na UnB, em 1985. Depois disso, fiz mestrado e doutorado aqui também. Uma overdose de UnB (risos). Eu costumo dizer que vou fazer pós-doutorado fora daqui, porque é bom você respirar outros ares, outras perspectivas acadêmicas. Mas, enfim, eu tenho um vínculo grande com a UnB, até porque meus três filhos fizeram UnB. Um ainda faz e minha outra filha já está cursando mestrado em Psicologia. Nenhum deles da área do Direito, mas os três estudam ou estudaram aqui. Eu costumo dizer que é nossa “Unibê”, porque ninguém fala “UnB”, é “Unibê” (risos). A minha história com a UnB é antiga e, particularmente na Faculdade de Direito, porque aqui eu forjei meu aprendizado. Eu acho legal ter ex-alunos da Faculdade que, depois, possam colaborar com os destinos dela, como professores, membros da direção da faculdade etc. A gente já vê isso entre os atuais profissionais. Muitos professores da Faculdade fizeram doutorado aqui. A primeira turma de doutorado contou com José Geraldo, Olindo, Fredão, Poletti, Ítalo, Alexandre Araújo Costa. Depois contou com outros, como a Bia, eu, o Scotti e o Evandro. Uma proposta nossa é procurar dialogar; abrir a Universidade para a interação com faculdades de outras federais e estrangeiras. Nós temos um curso de pós-graduação nota 6. Poucos cursos de pós-graduação em Direito no Brasil têm essa 24

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

nota. Essa é uma grande conquista deste corpo docente que nós temos. Nosso curso de graduação também, que está sempre bem posicionado no exame da Ordem, assim como nos indicadores de pesquisa, inovação, internacionalização, ensino e mercado. Enfim, eu acho que nós temos um curso bom. Tem problemas, até porque as Universidades públicas vivem um momento de grande dificuldade – como toda a economia do país – mas eu penso que nós mantemos o nível de excelência, com um bom corpo docente e uma estrutura material razoável. Costumo dizer que o que temos de melhor é o nosso aluno. Porque, tanto pelo vestibular quanto pelo PAS e pelo ENEM, tendem a passar os alunos mais aptos e mais bem preparados. Eu penso que o nosso corpo discente é o que nós temos de melhor, o que, principalmente, mas não exclusivamente, responde pela excelência, pelo conceito, que o curso possui. RED|UnB: Além de Professor da UnB, o senhor agora é Diretor da Faculdade de Direito. Como enxerga esse novo capítulo dessa longa trajetória e como se vê nesse posto? Quais os obstáculos que espera encontrar e o que planeja para ultrapassá-los? MS: Eu penso que ter chegado a Diretor é o desfecho de uma história antiga que eu tenho, pois cheguei aqui na Faculdade em 1983. Fui aluno de graduação, de mestrado, de doutorado e entrei como docente da UnB em 2004. Portanto, é o ponto alto de uma relação antiga que eu tenho com a Faculdade e que eu vejo como um desafio. Não existe o sentimento de vaidade, mas sim um senso de responsabilidade, no sentido de que devemos ser capazes de corresponder às expectativas dos colegas docentes, do corpo técnicoadministrativo da Faculdade e dos alunos, que fazem o dia a dia da Faculdade. Então, estar à altura dessas responsabilidades, procurar dialogar com os diversos segmentos da comunidade acadêmica, eu acho isso imprescindível. Nas questões mais candentes tenho procurado chamar a diretoria do CADir, colocá-la a par e ouvir sua opinião. Os representantes do CADir têm sido protagonistas nas reuniões do Conselho da Faculdade e nas reuniões do Colegiado de 25

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Graduação. Hoje mesmo nós temos uma reunião: a pauta do Colegiado já foi distribuída previamente e os alunos já vão chegar aqui sabendo o que estará em discussão. Portanto, eles interferem na formação do convencimento da maioria do Colegiado e eu acho isso importante. Diálogo, entende? Fazer uma gestão que seja receptiva; que esteja aberta a ouvir as sugestões de todos os segmentos da comunidade acadêmica. Eu acho que isso é fundamental. Agora, os desafios existem. Por que, como eu disse, a Universidade vive diversos gargalos financeiros. Para tanto, nós devemos ter uma voz ativa, mostrando para a administração superior da UnB que somos o curso mais tradicional que a Universidade possui. Ele nasceu quando da criação da UnB, em 1962, e desde o seu início ousou inovar e reformar o ensino do Direito, com nomes como Victor Nunes Leal, Machado Neto, Roberto Lyra Filho. Um curso com 1350 alunos só na graduação e cerca de 300 a 400 na pós; é um curso nota 5. Então, nós temos que nos fazer ouvir, pela importância que a Faculdade tem no contexto da UnB desde o seu nascedouro. A primeira turma de Direito é de 1966, quatro anos depois de fundada a Universidade. Então, é um curso tradicional e, evidentemente, qualquer reitor e qualquer decano deve compreender a importância que nossa Faculdade tem no contexto da Universidade. Além de conseguir viabilizar recursos junto à administração superior, a gente tem procurado estabelecer um diálogo muito bom com a Alumni, a associação dos ex-alunos. A entidade está com uma diretoria nova, que a vem revitalizando e tem se mostrado muito parceira. Nós temos contado com esse apoio, seja na promoção de eventos, seja na manutenção da estrutura física do prédio e na aquisição de equipamentos. A perspectiva que se avizinha é de conseguirmos realizar algumas obras de mais impacto com essa ajuda. Por exemplo, a mudança do piso, que está bastante deteriorado e mais parece um mosaico da forma em que hoje se encontra (risos). Então, realizaremos essa mudança de todo o piso, obedecendo, claro, aos padrões técnicos da UnB, com monitoramento das instâncias competentes da Universidade, mas com a colaboração da Alumni. Da mesma forma, realizaremos a limpeza de toda a 26

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

fachada do prédio, que está muito desgastada e cheia de fungos. Eu acho que nunca houve uma limpeza ou impermeabilização desde que o prédio foi inaugurado no início da década de 80. Então, a nossa ideia é também fazer uma limpeza geral do prédio, do concreto aparente desses brises que são a marca registrada da Faculdade. Há também outras metas, como urbanizar a parte de trás na direção do Pavilhão Anísio Teixeira (PAT). Enfim, é uma gestão que está começando. A professora Gabriela Delgado e eu tomamos posse no dia 26, mas já com algumas coisas em vista. Quando eu falo da minha trajetória, o que acho fundamental para eu ter assumido a direção é o fato de já ter sido vice-diretor. Ter sido vice-diretor da Faculdade durante quatro anos permitiu que eu conhecesse muito mais os problemas da Faculdade e interagisse com os diversos institutos, faculdades e departamentos da UnB. Minha participação nos conselhos superiores, como o Conselho Universitário (CONSUNI), o Conselho de Administração (CAD) e o Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (CEPE) foi muito importante para eu conhecer melhor a Universidade e interagir com dirigentes e professores de outras unidades acadêmicas. Acho que isso foi um aprendizado muito grande que, de certa maneira, me calçou para que eu pudesse assumir a direção da Faculdade. Eu me sinto muito mais a par dos problemas da Faculdade e da Universidade como um todo depois de ter passado pelo cargo de vicediretor. RED|UnB: Atualmente, no Brasil, vivemos momentos de alta tensão na sociedade civil e, consequentemente, nas discussões atinentes à matéria Constitucional. Qual seria o maior desafio para a estruturação do Estado Democrático de Direito, em sua opinião? MS: Eu penso que, passados quase trinta anos da promulgação da Constituição de 1988, nós experimentamos, nos últimos anos, um período de saudável estabilidade democrática, apesar dos percalços e dos impasses político-institucionais pelos quais passamos. Do ponto de vista dos direitos civis e políticos, é um momento singular 27

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

na história brasileira o que vivenciamos de 1985 – com o início da Nova República e o fim do ciclo militar instalado em 1964 – para cá. Acho que os embates que estiveram espelhados na decretação de impeachment da ex-presidenta Dilma são normais na Democracia; essa “queda de braço” existente. Acho também salutar o combate à corrupção e às mazelas crônicas que permeiam a administração pública em todos os seus níveis, e, apesar dos excessos e atropelos cometidos, a Operação Lava Jato tem contribuído para colocar a nú esses esquemas espúrios de financiamento eleitoral e político. A Lava Jato acentuou a necessidade de uma reforma do sistema político-eleitoral, e é inaceitável que nada seja feito visando mudar esse sistema corrompido que caracteriza o nosso “presidencialismo de coalizão”. Por outro lado, me preocupam as ameaças que pairam contra a Constituição e o bom funcionamento das instituições. Há condutas, tanto por parte da magistratura quanto do Ministério Público e da polícia, que exorbitam o papel institucional que lhes cabe. Muito barulho midiático e estardalhaço, quando o momento exige sobriedade e equilíbrio exatamente para tornar mais legítima a ação desses órgãos e instâncias estatais. Por outro lado, vivenciamos um grave momento institucional no que se refere à retirada de direitos conquistados com a Constituição de 1988. Reformas constitucionais casuísticas, como a da famigerada PEC 241, proposta pelo Governo Temer, pretendem suprimir direitos elementares relacionados à saúde e à educação, e nós, como educadores, não podemos ficar inertes frente a esse tipo de iniciativa. A política de acesso e manutenção da Universidade está ameaçada com essas medidas que, a pretexto de combater a crise econômica, na verdade golpeiam profundamente o ensino superior e a educação como um todo. Ao estabelecer a inflação como critério de correção para as áreas de saúde e educação, e não mais a receita corrente líquida, como na atualidade, a PEC 241 joga por terra os dispositivos constitucionais que garantem um limite mínimo de investimento nessas áreas tão vitais. É inacreditável que se queira engessar a despesa pública por um prazo de 20 anos! Quando se corta gastos, se arrocha salários, se suspende bolsas e concursos, o bom funcionamento da 28

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Universidade fica comprometido e quem perde é a sociedade. O tal ajuste fiscal não pode se dar com a supressão de direitos e de garantias duramente conquistados com a redemocratização. Os operadores do Direito não podem ser omissos frente a reformas e alterações legislativas que trazem retrocesso. A UnB, com o protagonismo que sempre teve em prol das liberdades públicas, tem, com certeza, um papel a desempenhar nesse debate. RED|UnB: Em seu doutorado, o senhor realizou uma ampla pesquisa acerca da importância da relação entre a memória e o Direito, acreditando, até mesmo, que essa é um direito fundamental. Sob a égide do contexto brasileiro atual, quais são as suas principais percepções acerca da superação do nosso passado autoritário, bem como da consolidação da Constituição de 1988? MS: Nós só podemos garantir a Democracia e evitar os retrocessos se tivermos muito vivo o debate sobre o nosso passado recente. Se olharmos pra trás, os períodos de estabilidade democrática, no Brasil, foram muito pequenos. Por exemplo, depois da independência, nós tivemos a instalação de uma monarquia absolutista, pois o Poder Moderador dava um poder desmedido ao Imperador. Paulo Bonavides diz que, na América Espanhola, os processos de independência fizeram surgir Repúblicas. No Brasil não; o processo de independência fez surgir uma Monarquia com traços absolutistas muito acentuados. Dom Pedro I fechou a Assembleia Nacional Constituinte, vários membros dela foram para o exílio na Europa e ele impôs a Constituição de 1824. Depois, tivemos o fim da República Velha e o início da República Nova em 1930, período que marca o surgimento do Brasil moderno. Mas, já em 1937, houve a ditadura do Estado Novo, que vai até o pósGuerra. Só com a Constituição de 1946 tivemos a conquista das liberdades democráticas. Aí, de novo, essa interrupção ocorre em 1964, com o golpe que derrubou o governo constitucional de João Goulart. De 1964 até 1985, tivemos um período de exceção, de 29

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

retrocesso, de tortura e censura, de proibição de eleições diretas, sucessão de generais no poder, exílio, cassação de direitos políticos etc. Os Atos Institucionais atropelavam a Constituição. A Constituição existia apenas formalmente, pois essa espécie normativa esdrúxula chamada “Ato Institucional” é que prevalecia. O pior momento, como se sabe, se deu com a edição do famosos AI-5, em 1968, que levou ao fechamento do Congresso Nacional, à cassação de inúmeros deputados, senadores e ministros do STF, além da suspensão do habeas corpus para crimes políticos, o incremento da censura etc. Em 1985, com o fim do ciclo militar, tivemos a retomada das liberdades democráticas. Então, eu penso que isso tudo mostra que nós estamos ainda aprendendo a fazer Democracia, porque o nosso passado, tanto do Brasil Império como do Brasil República, ainda é cheio de quarteladas, golpes e deposições de presidentes. Isso mostra que nós temos uma Democracia ainda incipiente. O objetivo dessa geração de hoje é exatamente resgatar a autoridade da Constituição, ainda mais a Constituição de 1988, que é, de todas, a mais avançada que o Brasil já possuiu. É uma Constituição que tem prós e contras, mas não tenho dúvidas que ela contém mais virtudes do que defeitos, pois é bastante avançada, prospectiva, que aponta caminhos, programas e metas que devem ser perseguidos pelo poder público para que nós possamos ter essa sociedade livre, justa e solidária – o que está previsto nela como sendo um dos fundamentos da República. Eu penso que a crise econômica que vivemos responde, em grande medida, pela crise política. Na verdade, a crise econômica retroalimenta a crise política e vice-versa. É evidente que se o Governo Dilma não tivesse mergulhado o país na recessão, no ciclo de desemprego e de quebra da indústria que estamos vivendo, dificilmente teria caído, porque o desgaste da base social, parlamentar e política do Governo Dilma se deve, em grande medida, a esse descalabro econômico. Eu acho que várias medidas econômicas colocadas em prática por esse governo, e que seguem com Michel Temer, descumpriram com seus compromissos de campanha, contrariavam o próprio programa de seu partido e isso 30

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

levou ao esgarçamento da própria base social da presidenta Dilma. Isso que fez com que ela se tornasse suscetível de sofrer um processo de impeachment, por mais frágeis que fossem os argumentos jurídicos utilizados. Mas, não há como dissociar uma coisa da outra. Um governo forte só existe se a economia vai bem e se tiver aprovação popular. Aí, naturalmente, a tendência é ter uma base de apoio político sólida. Na hora que falta isso, a tendência é realmente haver uma debandada, como ocorreu com os partidos que, mesmo tendo apoiado a reeleição de Dilma Rousseff e sido da base de sustentação dela, não hesitaram em levar adiante esse processo que redundou na sua deposição. RED|UnB: O grande distanciamento entre a sociedade e a Universidade é um problema frequentemente abordado na discussão quanto ao papel dessa. O senhor foi coordenador do Núcleo de Prática Jurídica (NPJ), entre 2005 e 2008, bem como versou sobre a possibilidade de um “Novo NPJ” na obra “A prática jurídica na UnB: reconhecer para emancipar”. A partir de sua experiência, como a Faculdade de Direito poderia beneficiar e interagir com a sociedade? E quais seriam as atualizações necessárias para aperfeiçoar o NPJ? MS: Uma coisa que devemos procurar reforçar é a prática extensionista na Faculdade. É fundamental que a Universidade esteja em sintonia com o lugar e com o tempo nos quais ela está inserida. Portanto, é fundamental realmente interagir com a sociedade que nos cerca, fazendo com que o conhecimento aqui produzido seja posto a serviço do engrandecimento da cidade, do país e de um mundo mais produtivo. Somos a única Universidade pública do Distrito Federal e, na área jurídica, há muito o que ser feito. Afora o eventual ajuizamento de ações de interesse da coletividade, podemos desenvolver parcerias, consultorias e aconselhamentos com entidades da sociedade civil sobre os mais diversos temas: consumidor, ambiental, proteção da mulher e da velhice, a temática LGBT, a luta do negro etc. Há um vasto campo no qual a questão jurídica pode cumprir um papel de destaque e, nesse processo de interação, seremos capazes de aprender e ensinar ao mesmo tempo. 31

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Eu penso que nós temos que incrementar essa prática de dialogar com a sociedade na qual a Universidade está inserida e, nesse contexto, o Núcleo de Prática Jurídica tem um papel importante, assim como a Clínica de Direitos Humanos que estamos em vias de implantar. Não só no ponto de vista de ajuizamento de ações individuais, mas também de ter projetos, como o Maria da Penha e o Projeto das Promotoras Legais Populares, que se estende já há mais de dez anos; um projeto vitorioso em que a UnB foi pioneira na implementação no Distrito Federal, em parceria com o Ministério Público, a Promotoria de Defesa da Mulher e algumas ONGs que atuam na questão de gênero. Nós temos que institucionalizar a extensão, para que ela deixe de ser uma iniciativa isolada de professores e alunos e realmente passe a ser incorporada pela direção da Faculdade como uma atividade institucional, que possa receber apoio tanto do ponto de vista acadêmico como administrativo. Os projetos e as atividades extensionistas devem estar na pauta, na agenda da Faculdade, no sentido de que a direção, a coordenação de graduação e de pósgraduação acompanhem as atividades extensionistas e que elas não ocorram de forma desconexa uma da outra. O novo projeto político-pedagógico aponta nessa direção. Nós temos enfrentado alguns gargalos para implementá-lo, respondendo a indagações que o Decanato de Graduação tem feito, mas temos que fazer um esforço comum, tanto a direção como os alunos e o corpo docente, para que esse projeto se torne uma realidade. Ele foi objeto de muito debate, de discussões que duraram anos, com um protagonismo muito grande dos alunos na sua elaboração. Então, eu acho importante que a gente possa responder às dúvidas que a administração superior tem sobre a implementação do projeto e torná-lo concreto. Ele é extremamente inovador no contexto nacional, entre os cursos jurídicos do país, não apenas na UnB. Nós temos que arregaçar as mangas e ver se conseguimos implementá-lo, ainda que sua plena efetivação se dê de forma gradual, sem açodamentos, para que inclusive quem já está na Faculdade possa experimentar uma 32

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

transição, e não receber de forma abrupta um novo planejamento no que diz respeito aos créditos e às disciplinas que devem ser cursadas. RED|UnB: O tripé acadêmico já foi exaustivamente discutido, mas gostaríamos de tocar em um dos aspectos que consideramos primordiais: a pesquisa. Como o senhor enxerga esse ponto para a Universidade de Brasília, em especial para a FD? MS: No que diz respeito à pesquisa, a Faculdade de Direito tem uma posição de vanguarda. Nós temos um corpo de professores, principalmente os que estão credenciados no programa de pósgraduação, que desenvolve pesquisas que têm muito a ver com a realidade atual do país. Que discutem, em seus grupos de pesquisa, temas muito candentes dessa realidade, com temáticas as mais variadas, colocando em xeque a própria questão da pesquisa jurídica no Brasil, de seu modus faciendi. Nós temos um corpo docente gabaritado, que desenvolve pesquisas muito significativas, de relevo. Isso oferece ao nosso estudante, seja da graduação ou da pósgraduação, oportunidade de dialogar com os temas mais relevantes do constitucionalismo contemporâneo. Inclusive, temos uma interlocução com professores de universidades estrangeiras, que eventualmente vêm aqui e dão cursos de módulo, principalmente na pós-graduação, ou então participam de seminários. Eu acho que isso é fundamental. Eu por exemplo, mesmo estando na direção, vou orientar três PIBICs e acabei agora a orientação de dois PIBITs. Isso tudo mostra que, por mais que você tenha afazeres de ordem administrativa, não pode se descolar da pesquisa acadêmica e da produção intelectual. Nós temos que ter, amanhã, como mestrandos e doutorandos, principalmente alunos que venham da nossa graduação. Os alunos da graduação devem ser estimulados a fazer, depois, o mestrado ou doutorado. Embora seja um aspecto muito salutar que nosso programa de pós-graduação tenha alunos de todas as origens; pessoas que vêm de Estados distantes para morar em Brasília com o único propósito de fazer o nosso mestrado e doutorado. Isso é muito bom e a gente não deve perder esse aspecto que está relacionado à diversidade, ao pluralismo, de receber alunos de todo o país que vêm aqui participar das diversas linhas de pesquisa existentes no nosso 33

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

programa. Mas, o celeiro básico, de onde devem sair nossos futuros mestrandos e doutorandos, a meu ver, é o curso de graduação. O aluno deve ser estimulado a seguir, aqui na Faculdade, nesses novos patamares. RED|UnB: Na pós-graduação, é mais evidente a atividade da pesquisa; a ideia da revitalização da RED|UnB é reabrir, na FD, a possibilidade da pesquisa aos alunos de graduação. Dessa forma, qual seria, na sua opinião, o papel do graduando na produção acadêmica e de que forma a RED|UnB poderia ajudar nisso? MS: Eu acho muito importante publicar. O aluno deve ser estimulado a isso já desde a graduação. Um artigo que você publique como graduando vai compor seu portfólio para o resto da sua vida e vai acrescentar no seu currículo. Então, é fundamental. Eu acho que a Revista é um espaço de reflexão e é importante que os artigos e as resenhas guardem conexão com o que está acontecendo hoje no país, porque nós temos que ter um Direito que esteja a serviço da sociedade. Um Direito transformador, que colabore para que nós possamos ter um aprofundamento da Democracia e da justiça social. O fato de estarmos situados em Brasília permite que a gente possa vivenciar, mais de perto, esses problemas que dizem respeito à realidade político-institucional do país e faz com que sejamos mais protagonistas nesse processo de debate. O Direito tem um papel emancipador que pode ser colocado a serviço da cidadania. Devemos cumprir um papel de vanguarda enquanto curso de Direito para que os grandes temas de interesse da sociedade brasileira, de alguma maneira, perpassem os grupos de pesquisa, as atividades extensionistas e os debates em sala de aula no âmbito da Faculdade. RED|UnB: Sua trajetória possui um pano de fundo muito interessante: formou-se em Direito antes da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e viu, assim, nascer uma nova Constituição, após já ter estudado uma antiga. Além disso, pôde vivenciar diferentes momentos na história do Brasil, que abarcaram vicissitudes no Estado, na economia e na sociedade 34

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

civil como um todo. Em síntese, o senhor viu um “novo Brasil” crescer, desenvolver-se e chegar até onde está. Essa última parte não é uma pergunta, mas sim um pedido: gostaríamos que o senhor fizesse uma reflexão sobre como foi ter essa experiência e que proferisse uma breve mensagem aos jovens estudantes de Direito de hoje. MS: Eu, antes de decidir seguir carreira acadêmica, fiz muita coisa fora da área acadêmica. Na verdade, a minha opção por seguir a carreira acadêmica foi uma decisão tardia. Eu fiz meu doutorado e fui ser professor em regime de dedicação exclusiva já na minha maturidade, diferente de outros colegas. Valorizo muito o fato de ter desenvolvido outras atividades antes de ingressar na vida universitária, o que me trouxe uma bagagem interessante. Já atuei no Parlamento na condição de parlamentar assim como no Executivo, como secretário de Estado e de município, e essa é uma vivência que me é muito útil, pois quando falo do processo legislativo, por exemplo, falo com conhecimento de causa. Eu vivenciei isso: o processo de feitura das leis, como funcionam as comissões, como se dá o trâmite da lei ordinária, lei complementar, lei delegada, medida provisória, resolução, decreto legislativo, proposta de emenda constitucional. Então, eu tenho essa experiência acumulada que me é muito proveitosa na hora de discutir essas questões, tanto no plano teórico como prático. Na Faculdade, participei do movimento estudantil, fui candidato a presidente do CACO, o tradicional centro acadêmico da velha Faculdade Nacional de Direito (atual UFRJ), mas perdi a eleição; se não teria dito que fui presidente do CACO e não é o caso (risos). Também participei de congressos de reconstrução da União Nacional dos Estudantes e da União Estadual dos Estudantes do Rio de Janeiro no final da década de 70, início dos anos 80. Estive na campanha das Diretas Já, até porque eu trabalhava com o deputado Dante de Oliveira, o redator da emenda das Diretas Já. Nós militávamos na mesma organização política. Quando ele era deputado estadual eu saí do Rio de Janeiro e fui para Cuiabá trabalhar com ele. Em 1982, ele se elegeu deputado federal, e por conta da eleição dele é que fiz 35

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

minha mudança para Brasília e retomei meu curso na UnB. Isso fez eu atrasar três anos o meu curso de Direito (risos). Tive, portanto, quando jovem, uma militância política que permitiu que eu acompanhasse a luta pela anistia, por eleições diretas para presidente, por uma Constituinte livre, democrática e soberana, depois com a eleição do Tancredo e a promulgação da Constituição de 1988, que representou o ápice do processo de retomada das liberdades democráticas. Eu vivenciei muito de perto esses movimentos mais recentes de transformação da vida política brasileira. Isso é bom, pois me permite discutir a Constituição e o constitucionalismo com o pé na realidade. Por isso que eu valorizo o momento que a gente hoje vive, porque eu, como aluno de Direito, estudei pela Constituição de 1967, antes da promulgação da Constituição de 1988, onde não havia liberdade em sala de aula, nos grupos de pesquisa, nos seminários ou simpósios, de externar as opiniões tal qual se faz nos dias de hoje. É importante estar participando. Não só ver o carro da história passar, mas se fazer presente e procurar ser protagonista do processo, por menor que seja esse protagonismo. Acho muito importante estudar a história constitucional brasileira. Para poder valorizar as conquistas do presente, é fundamental conhecer os gargalos do passado recente. Afinal, do ponto de vista histórico, 1964 foi outro dia. O estudante de Direito entra em contato com a História, a Sociologia e a Filosofia. Por isso que estudamos Sociologia Jurídica, Filosofia do Direito e História do Direito. Portanto, o bacharel em Direito tem uma tendência, que o diferencia dos demais cursos, de ter formação mais plural e diversa, o que é muito positivo, a despeito de uma visão bitolada que alguns possuem de estudar a lei dissociada da realidade social. É essencial entender que o Direito só existe a partir do fato social, como instrumento de transformação social, e não como um emaranhado de normas descoladas da realidade fática. É importante estudar a história constitucional brasileira, porque toda interpretação jurídica é, em primeiro lugar, uma interpretação 36

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

constitucional. É fundamental conhecer a Constituição e, a partir daí, se especializar nessa ou naquela área do mundo jurídico, sem perder de vista a ideia de supremacia constitucional, a ideia de Constituição dirigente, voltada não apenas para o presente, mas também para o futuro, no sentido de que ela aponta programas e metas que devem ser perseguidas, não apenas pelo poder público, mas pela sociedade como um todo. Até porque a Constituição, em última análise, rege a vida do Estado e da sociedade nas suas diversas dimensões. Não por acaso, o coração da Constituição são aquelas normas que asseguram os direitos fundamentais da pessoa humana. Tudo o que a humanidade conseguiu acumular em termo de conquistas e direitos está principalmente elencado nas constituições. Qualquer país democrático consagra um rol de direitos fundamentais que representam a própria evolução do homem e expressa a luta da humanidade por mais liberdade e igualdade, por melhores condições de vida e pela plena realização da personalidade humana. RED|UnB: Agradecemos sobremaneira ao Prof. Dr. Mamede pela oportunidade e pelas excelentes respostas; essa entrevista possibilitou conhecer um pouco mais da grande figura que é. Auguramos, nessa nova fase, muito sucesso, assim como já conquistado em toda a sua trajetória.

37

TRABALHOS ACADÊMICOS

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

THE CIVIL LIABILITY OF A FOOTBALL PLAYER THAT WOUNDS AN OPPONENT AT A CRITICAL MOMENT OF THE GAME Gustavo Albano Abreu1 Submetido(submitted): 14 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 15 de outubro de 2016 SUMMARY: I – Introduction. II – Historical evolution of the civil liability as regards wounds between sportsmen. III – The most known decisions in Argentine Jurisprudence in the matter of wounds between sportsmen at a critical moment of the game. Cases “Cottroneo vs Banfield”; “Berman vs Goldin”; “Telechea vs Beldrio”; “Gil Osvaldo vs Sociedad de Fomento”; and “Pizzo vs Camoronesi”. IV – The State authorization in football. V – The assumption of risks in football. VI – By way of conclusion. INTRODUCTION When a sportsman suffers an injury in the course of a sportive competition, there arises the issue of whether or not he is entitled to an indemnification and, if that is the case, who is in charge of the obligation. As a general principle, the natural characteristics of sport have determined that the eventual subjective liability of the participants cannot be judged with the same criterion with which the general liability is appraised (art 1109 Argentine Civil Code)2 where, according to some authors, there is no “illicit action on part of the player that proceeded in a way that could commit his responsibility out of a game”3. The jurisprudence in the matter of grave injuries produced among sportsmen in the middle of the game, is scarce. This may be due to the fact that, since ancient times, the general principle has been criminal impunity and civil irresponsibility of the injurer, provided he had acted within the rules of a sport authorized by the State4. 1

Profesor de Derecho del Deporte, Universidad Austral, Argentina. Trigo Represas and López Meza wonder whether there is a “sportive liability” and conclude that there are not essential liabilities but different ways of breaching the duty of care requirable of a person and that configurates liability. There is neither a sportive liability or a medical liability but some peculiarities of liable acting within the frame of a sport which should be taken in consideration at the moment of evaluating the diligence that the injurer owed. Cfr Tratado de la responsabilidad Civil L.L.TII pp. 800/801. Mosset Iturraspe, in a similar sense, sustains that the sportive liability undeniably has its peculiarities that cannot be set aside when appraising the sport activity: the aims of sport in general and of the kind of sport at issue in particular, the administrative authorization, the sports rules, the usages and customs regarding its practice, etc. To conclude, determining the existence or inexistence of liability in the intervening person but pointing out that in the subject of sportive liability there is no annulment of the general rules of appraisal of liability. Cfr Responsabilidad por daños, Editorial. Rubinzal Culzoni S.C.C., 6/11/1980 Sta. Fe T II B p 93. 3 Cfr Bustamante Alsina “Teoría General de la Responsabilidad Civil” Abeledo Perrot Octava Edición ampliada y actualizada, Bs As 1993, p. 537. 4 According to Orgaz, the state authorization means the existence of a special regime, different from the ordinary one. In contrast to the latter that presumes that every injury caused to another person is illicit (art 2

41

Revista dos Estudantes de Direito da UnB It should be pointed out that the jurisprudence in the matter of grave injuries produced among sportsmen during the game is scarce. This may be due to the fact that since Ancient Times, the general principle has been that as long as the injurer sportsman acted within the rules of a sport authorized by the state, he would be entitled to criminal impunity and he would not be civilly liable. According to the authors that postulate5 the above the State authorization as a justification cause comes from ancient times, more precisely from Greece or the Hellas that consisted of city- states called polis, each one with its own legislation and sovereignity but where the panhellenic competitions were regularly organized among the citizens of different cities. In the inception of organized sport in contrast to nowadays, there was neither a centralized state that could eventually give an administrative authorization to sports, nor rules of the game as they are currently conceived6. However, as the authorities of the most 1109 of the Civil Code) . The regime of the authorized sport creates a presumption of lawfulness as regards the practice of the sport and the consequences that result from it due to the naturel and ordinary cause of events(art 901 Civil Code)That includes the predictable mediate and immediate consequences: thus the injuries or damages derived from the inherent risks of the normal practice of an authorized sport are justified in advance the same as the activity they precede. (cause of justification). Cfr., “Lesiones Deportivas”, LL 151P1055. Some important doctrine and jurisprudence think that this notion is only applicable to violent or dangerous sports but not to those that by nature are not normally risky. For example, Mosset Iturraspe, in his comment to the decision in the “Cottroneo case”, points out that when Borda speaks of “surpassed liability, irresponsibility and permitted activity” regarding the sportsmen that expose themselves to the risks of sports stimulated and protected by the State, he exclusively refers to dangerous sports whose practice requires an expressed authorization of the state; where the participants expose themselves “voluntarily to the risk” of damage, and where the causing of harm is within the rules of the game. Borda refers to boxing, to the boxing match, as he explicitly states in his notes. But he hasn’t wanted to include other sports that are either not dangerous in themselves, or entail risks to the participants, or contain rules that allow damage or need an express authorization for their practice as football or rugby. Ob cit p 386., In the same vein, Mayo JA “Daños sufridos por deportistas en la práctica de su actividad” in Revista de derecho de Daños 2010-2, Daño Deportivo, Rubinzal Culzoni editores, Buenos Aires- Santa Fe, p 40. See C N Civil y Comercial, Sala D 2/24/87, “Fernández de Lopez Dora N y otro c/ Asociación Civil Club Atlético News Old Boys” E D , 125-512. 5 Among others, Orgaz (ob cit), Llambías (“Responsabilidad Civil proveniente de Accidentes Deportivos”. ED.47; p947. , Núñez (“Tratado de Derecho Penal”; Lerner, Córdoba, 1987) and Jiménez de Asúa (Tratado de Derecho Penal, Losada, Buenos Aires,1961). 6 The rules of the game applied in the Olympic Games were far from uniform and universal, on the contrary, they were of oral tradition; some judges called nomofilaces were in charge of transmitting the rules from one generation to another and to instruct other judges called hellanodika on applying the rules to the organization and development of the Games with the help of the Rabducos or cane carriers who were in charge of keeping order during the competition. These games were known as Olympiad which was one of the time measures of Ancient Greece. In this organization the first to be celebrated were the Olympic Games with headquarters in Olympia, in honour of Zeus in the first year. During the second year, the Nemean Games, honoring Zeus in Nemea, Corinthia and the Isthmian Games, honoring Poseidon in different months; during the third year the Pythian Games, of political character, were held in Delphi, in honor of Apollo and the Muses, and in the fourth year both the Nemean Games and the Isthmian Games were celebrated. Then the cycle was repeated beginning with the Olympic Games. The Games were organized in such a way that a professional athlete could take part in all of them. For a further analysis of this issue, see “El deporte en la Grecia Antigua, la génesis del Olimpismo”. Centro cultural de la Fundación “La

42

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

important cities of the Hellenic world attended and participated in the Panhellenic Games, it can be inferred that there was a certain kind of “State authorization”. On the other hand, the theory of “assumption of risk” that Camoranesi used for his defense, occasionally operates unconsciously in the sportsmen victims of injuries, persuading them that the harm suffered must be accepted as a “misfortune of Fate, no matter how serious”. This theoretical construction postulates that the “tacit consent” that the victim seems to give in all the cases in which he assumes the risk of being injured, would be a tacitly understood agreement with another person by which the victim waives the right to claim an indemnification for eventual damages7. The predominant jurisprudence regarding wounds between rivals in football,from the “Cottroneo” case to the Pizzo vs Camoranesi case is mainly based on the thesis that states that the state authorization creates two kinds of infringements to the sports rules of the game: the common ones in where the irresponsibility8 is the rule; and the extraordinary ones that would be illicit in themselves without any possibility of justification on part of the injurer sportsman9. The purpose of this article will be, then, to

Caixa”, Barcelona, 1992. “El Olimpismo” Cátedra Olímpica marqués de Samaranch, Universidad Camilo José Cela, Madrid, 2004; “Olimpia y los juegos Olímpicos antiguos”, Pamplona, 1975 volumen 2, by Conrado Durantez and “Los Juegos Olímpicos y el Deporte en Grecia”, Ansa Editorial, Barcelona, by Fernando García Romero. 7 According to Trigo Represas and López Mesa, this idea of the acceptance of risk results in the fact that in Argentine Justice, the indemnification for sports injuries is not as usual as it is in Europe. They quote Spanish and French jurisprudence that do not give priority to the assumption of risk on part of the victim but analyse the sportsman’s training, the control on part of the sports event organizer and whether the novice sportsman was exposed to unnecessary risks or to risks he was not prepared to run to determine his liability. Cfr., ob. cit,, p.796. For a deeper study of the notion of “Assumption of risks” in general to see the excellent work of Mayo and Prevot “La idea de la aceptación de riesgos en materia de responsabilidad civil” L.L. T 2009- E, p. 992 and ss. 8 Bueres in his vote “Cottroneo” called such conduct “objective illegality” and identified two situations in which the injurious party must respond: a) when there is an excessive action that openly and blatantly violates the rules of the game and b) when there is an intent to cause the harmful outcome either during the development of the game or when the game is detained. Cfr CNApel. Civil Sala D 12/17/1982, “Cottroneo Ricardo c/ Club Atlético Banfield y otros” LL (1983), with a note from Mosset Iturraspe. 9 The first fatal accident dates from 554 BC in the pancratium test (a kind of fight where everything but biting and eye gouging is allowed), in which Arriquion was proclaimed posthumous victor because after he was proclaimed loser his adversary died of asphixia (apparently his neck had been broken). A case of simultaneous death of two contenders in combat, due to the equality of forces, an improbable but not impossible fact, since other cases in different times and cultures are also known. Among many others, the cases in which the athletes died, not during the combat itself, but little afterwards, as the pentoathlete Eneto of Amiclas who fell dead at receiving the honours of the victory, must be added. Cfr García Romero, F., Los juegos Olímpicos y el deporte en Grecia, Editorial Ausa Barcelona, pp. 98/99. On the deaths in ancient Olympic Games, R H Brphy “Deaths in the Panhellenic Games Arrichion and Ceyas” AJPH XCIX1978, pp. 363390; C A Forbes “Accidents and Fatalities in Greek Athletics, Classical Studies in honor of W.A. Oldfather” Urbana 1943, pp. 50/59 and M Poliakoff “Deaths in the Panhellenic Games. Addenda et Corrigenda”, AJPH, 1943 CVII, 1986, pp. 400/402.

43

Revista dos Estudantes de Direito da UnB analyse if such foundation is juridically appropiate and whether the “theory of risk” is applicable to the cases of injury between sportsmen of nonhazardous sports as football. HISTORICAL EVOLUTION OF THE CIVIL LIABILITY IN THE MATTER OF WOUNDS AMONG SPORTSPEOPLE Going over the cases in which the injured sportspeople sued the injurious party for damages caused during the game, it can easily be observed that, since ancient times, the jurisprudence is very scarce, mainly due to the fact that there is no awareness among the actors of the sport system that in case of injury or death produced during a sports competition, the sportsman who caused the damage may be held responsible. In the Olympic Games of Ancient Times, (776 BC to 395 AD) there was a kind of legal immunity for athletes who accidentally injured or killed their rivals10. This is probably due to the fact that, at that time, in disciplines such as pugilism, wrestling and pancratium, the risks of grave injuries and death were considerable and the legislators, assiduous attendants and participants of the Panhellenic games may have been influenced to set the irresponsibility for the death of the adversary11. In Rome, in the matter of damages caused between people, they resorted to a penal figure, the injuria12 to refer to damages caused between people. The Law of the XII Tables (round about the middle of the V century BC) did not include more than attacks to the physical person, blows and wounds more or less serious but without distinguishing whether there was intent to harm or simple imprudence. In the Classic Law, the notion of injuria, on one hand was extended, as regards the facts it comprised, attacks to personality in different ways: blows or injuries, oral or written Defamation, unauthorized entry in a domicile, outrages to decourum, and in general, all the actions that compromised the honor or reputation of the victim were included. On the other hand, the concept of injuria was restricted: The intent to harm was deemed necessary for the crime to take place. 10 In all the periods of the Games the legal immunity of the athletes that accidentally killed their rivals has been verified. The lack of responsibility for the death of the adversary appears in texts of Classical Times such as Plato (Laws- 865 BC), Demosthenes (25,35), Pseudo Xenophon (Constitution of the Athenians 53.3), the same rule is taken up in Roman law, as Gualazzini (Premesse storiche al diritto sportivo. Pubblicazione: Milano: Giuffre, 1965, pp. 18-19), both in public competitions and training sessions, which as to legal purposes held the same status as the certamina licita even when there was no audience. The presence of the public was taken into account by the legislator, in order to prevent the commission of murders disguised as accidental deaths. Idem, pp. 99/100. 11 With the word injuria in a broad sense, they named every act against the Law in the first times. A more restricted construction, limited it to an attack to a person 12 With the word injuria in a broad sense, they named every act against the Law in the first times. A more restricted construction, limited it to an attack to a person.

44

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Notwithstanding the advance of Roman Law compared to other civilised people of Ancient Times in the matter of liability for damages, there is no theoretical development13 of a general principle of responsibility but in the matter of accidents in sport there are antecedents that originated the answers of the iurisprudentes14 and the praetorian decisions that in short, clearly state that the sportsman’s consent, provided he was a Roman citizen, that is, he had the three status: libertatis, civitates and familiae prevented any claim with the exception of intentional damage or damaged caused by violating the rules of the game15.

13 According to Bustamante Alsina, “The casuistry, so characteristic, not only of the Roman legislation but also of the mind of the jurisconsults itself, is expressed here in the lack of a general principle of liability” (responsibility Cfr., ob. Cit. P. 27. Mosset Iturraspe, in the same sense, adds “The word responsibility is lacking in Roman Law, which doesn’t mean that there wasn’t a wide catalogue/list of delictum whose commission originated obligation to compensate the damages suffered by the victim (…) there are no traces of a distinction between contractual responsibility and criminal or extracontractual responsibility. However, this circumstance did not exert in itself any influence in the sanction regime”. Cfr., Responsabilidad por Daños, Tomo I, Rubinzal Culzoni Editores, Santa Fe, 2004, pp. 18/19. In the Same sense, Sanz states Villey (“En torno al Contrato, la Propiedad y la Obligación”, p. 69) shows that in legal language, the term “responsibility” does not exist. There is an antecedent notion that will be used by medieval cult jurists and by the ones preceding the revolutionary movement. This prerevolutionary use demands to link the notion – responsible – with the latin verb respondere and its origins: sponzio and spondere. Cfr “Apostillas en torno al tema de la Responsabilidad” Prudentia Iuris XI, pp.26/27. 14 Ulpian states that “If, while throwing javelins for fun, a slave is killed, the Aquilia Law is applied. But if when others are throwing javelins in the field a slave crosses the field of reference, the Aquilia Law ceases because he shouldn’t have crossed inopportunely the field where javelins were being thrown. However, whoever deliberately threw a javelin against him is obliged by the Aquilia Law” (Ulpian 18 ed) Digesto, D, 9,2,4, p.381. Wacke “Accidentes en el Deporte y Juego según el Derecho Romano y el vigente Derecho Alemán” sustains that as regards Aquilian responsibility, the fact that the javelin throwing had taken place in a public place, where it is not legal to generate potentially risky situations by practicing a dangerous sport is not indifferent since in that way the diligence to preserve the traffic is breached. Out of the specifically alloted places for the practice of the sport, whoever causes the damage cannot allege the victim’s guilt for an eventual compensation of culpabilities and a lessening of the responsibility of the perpetrator of the damage. Cfr Trigo Represas, F., López Mesa, M. J., “Tratado de la…” ob. cit. pp. 781/782. A deeper study of the theme can be seen in “Explicación histórica de las Instituciones del Emperador Justiniano” by M Ortolán, translation by Francisco Pérez de Anaya, Tomo II, 3ª edition. Establecimiento tipográfico D Ramón Rodríguez de la Rivera, Madrid, 1847, p 497 and ss. In 2012, confirming the danger that the sport entails, the French athlete, Salim Sdiri, when impacted in the back by a javelin at the Golden League Tournament, paradoxically in Rome (in 2007), sued the International Association of Athletics Federations(IAAF) and the Italian Federation of the sport at issue. Sdiri who beat the French record in the long jump was out of action for about a year after the Finn Tero Pitkamaki impacted him in the back with a javelin (With a launching of approximately 80 metres) causing serious damage to his liver. At the moment of the accident, Sdiri was warming up to compete, next to the javelin launching zone. 15 Regarding the injuries produced at the pancratium, of Greek origin, the Digest states: “If in a fight or free pugilism one of the two fighters kills the other, if he kills him in a public competition, the Aquilia Law ceases because the damage is not deemed done with malice but due to glory and valour. This does not happen in the case of the slave, because the ones that participate in these fights are those who are born free. But the Aquilia Law is applied if a son of a family is injured. Of course, if the person who loses the fight is injured or a slave is killed in a private fight except when the slave was ordered to fight by his owner, in that case the Aquilia Law ceases”. Digest 9,2,7,4 (Ulpian 18 ed) p.381.

45

Revista dos Estudantes de Direito da UnB In the Middle Ages there were no significant advances in the matter of responsibility for damages caused among sportspeople even though both tournaments and contests yielded a great number of injured people and many deaths16. There were no relevant changes in the Modern Age either, may be due to the fact that the sports that had reached a higher degree of development and organization since the Greek Olympic Games up to those times were practiced by the members of the higher social classes that viewed the practice of their favourite sports as a way to socially relate to peers with whom they shared a moral code that was above the simple rules of the game rather than just a means to social promotion or making a living. In the twentieth century, with the coming of professionalism and the acknowledgment of the labour relationship of the professional sports person with the club, specially in football, as of the case “Eastham vs Newcastle” in England17 in 1963 the values changed substantially. Amateurism demanded that sports be practised only by the members of a particular social club, thus their rules were created to keep the members of other social classes away18 from the sport practice. Within that social structure if injuries 16 The medieval tournament was, in essence a combat on horseback among different teams that battled among themselves turning around to pursue the adversary (hence the origin of the name tournament). It was, in short, the imitation of a battle. The weapons used generally did not cause either serious injuries or death. It was practically a war exercise subject to certain rules made by ancient knights. The rules of the tournament were essentially six : 1- Not to hurt the adversary with the sharp end. 2- Not to fight out of the lines.3- Not to fight several knights at the same time. 4- Not to hurt the rival’s horse.5- Strike blows only on the face and chest of the adversary.6-Not to hurt the knight who has put up the visor. Occasionally, in some tournaments, all kinds of weapons were used and when there was a national or particular enmity, the deaths per team were numerous. For instance in the Neuss Tournament in 1240, 60 people died. Cfr. Monroy Anton, a J and Saez Rodríguez, G., “Historia del Deporte de la Prehistoria al Renacimiento” Wanceulen Editorial Deportiva, Sevilla, 2007, pp. 152/159. Diem, C. “Historia de los Deportes” Vol I Luis de Caralt Editor, Barcelona, 1966, pp. 435/441. 17 For a deep study of the aim of the “retain and transfer” system since the “Eastham vs Newcastle” case that brought about the acknowledgement of the labour relationship of the professional football players, first in England and then in the whole world, see chapter 12 headed “Sports and Contracts of Employment” of the book “Sports Law”(Cavendish Publishing London, second Edition, 2001, pp. 527-572) and “Professional Sport in the EU: Regulation and Reregulation” (Caiger and Gardiner Editors, TMC Asser Press, The Hague, 2000) where the cases “Eastham vs Newcastle” and “Bosman” are analysed in detail. An analysis of the restraint of trade doctrine in the cases “Eastman vs Newcastle” in football, “Grieg vs Insole” in cricket, and “Adamson vs New South Wales Rugby” can be seen in “Sports Law” by Beloff, Kerr and Demetriou, Hart Publishing Oxford,1999, p. 83. 18 Vinnai, quoting Meisel (“The importance of being amateur”) in “Sport and Society” A Natan Ed, p.129) sustains: “The rules of amateurism were created last century for the first time, a task that was in the hands of members of the superior English Stratum”, not so much for idealism but to keep the common masses away from their exclusively private entertainment, the sport”. Then, he adds “The members of the lower stratum of the population could only compete with the members of the upper class who, due to their wealth had a lot of time to practice sports. They had financial compensation in exchange for their athletic performance, compensation that enabled them to miss work without economic loss and to cover the sports costs. IF with the rules of amateurism all payment was forbidden, every sportsman who depended on such retribution would automatically be excluded from the sports competition”. Cfr “El fútbol como ideología”. Siglo 21 Argentina Editores SA, trad L Mamés, Bs As 1975.

46

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

were caused to sports people in the sports dispute, there was no possibility of starting legal action for damages. Both in Ancient and Modern19 legislations, the general principle has always been the criminal impunity and civil irresponsibility of the injurious player provided he has acted correctly and the sport has been previously authorized by the state. This distinction is essential: If there is no state authorization, the damages caused are regulated by the general rules of liability20. THE MOST KNOWN DECISIONS OF ARGENTINE JURISPRUDENCE IN THE SUBJECT OF WOUNDS BETWEEN SPORTSMEN AT A CRITICAL MOMENT OF THE GAME. CASES “COTTRONEO VS BANSFIELD”, “BERMAN VS GOLDIN”, “TELECHEA VS BELDRIO”, “GIL OSVALDO VS SOCIEDAD DE FOMENTO” AND “PIZZO VS CAMORANESI” Among the scarce judicial precedents on this subject in football, the first and most important one because of its influence on national jurisprudence is the case of “Cottroneo vs Banfield and other”21 in 1982 , where the Court decided that “The obligation to respond for sports injuries originates in the following cases: 1- when there is an excessive action that openly and blatantly violates the rules and regulations of the game; 2 - when there is intent to cause harm either during the game or when the game is detained”22. The doctrine of the sentence “Cottroneo was followed and extended by the Cámara Nacional Civil in 1995 in the Court decision Berman Gerardo R vs Goldin Jorge N” 23 but making a distinction with the precedent by not adhering to any doctrine in 19

See Jiménez de Asúa, L., “Tratado de Derecho Penal”, ob. cit., p.1466. Orgaz, A., “Lesiones deportivas”, ob cit., p. 1055. 21 The Cámara Nacional de Apelaciones en lo Civil, Sala D, had to resolve the claim filed by Cottroneo that, as a Banfield Club player, went to fetch the ball in the rival team’s area and, as he couldn’t pitch it with his head, he touched it with his hand. Therefore, the umpire stopped the game and set forth “hand”. Notwithstanding, the goal keeper of Almirante Brown Club, Domingo Violi, continued what he was doing/ running and hit Cottroneo in the renal area with his knee. As a result of the blow Cottroneo lost a kidney. The Chamber resolution on December 17, 1982, confirmed the decision of First Instance in all its parts, thus imposing both Violi and Almirante Brown Club the obligation of paying Cottroneo an indemnification. C.N. Apel. Civil, sala “D”, 12/17/1982, “Cottroneo Ricardo D. c/ Club Atlético Banfield y otros”L.L. (1983), D, 385, with comment by Jorge Mosset Iturraspe. 22 As to the facts, the Tribunal deemed that the defendant’s behavior had transgressed the normal limits; as it was proved that he had violated the rules. In that respect, it clearly stated: “… one thing is for the goalkeeper to forward the knee in a defense of his corporal integrity attitude, as it is usually done, notwithstanding the natural or normal violation of the rules, and another thing is to strike a blow with violence enough to tear a rival player’s kidney to pieces…” Ibidem. 23 The Tribunal had to decide on the events produced during an amateur football match. The goal keeper of one of the teams, Gerardo Berman, by a blow of the ball stricken by the forward player of the rival team, Jorge Goldin, who was launching forth. The blow produced, among other physical consequences, the 20

47

Revista dos Estudantes de Direito da UnB particular, pointing out that whatever the doctrinal position, in the matter of wounds due to sports accidents, it should be concluded that the liability would originate from at least an excessive action or notorious imprudence or clumsiness, adding that even assuming that the football sport’s normal practice has inherent risks, and that according to Orgaz, the state authorization creates a presumption of legality as regards the consequences of its practice according to the natural and ordinary course of events (art 901 Civil Code), so that the injuries derived from such actions would be justified in advance the same as the activity they come from, it should be concluded that the case at issue is within the frame of those hypothesis that, according to the author himself, cause civil liability24. In both cases, the sportsmen were held liable for injuries produced during the sports event but not at a critical moment of the game since in “Cottroneo” a fault had been sanctioned seconds before the blow and in “Berman” the ball was in the plaintiff possession when he was injured. In none of the afore mentioned cases the possession of the ball was in dispute, that is the reason why the decision issued by Sala I of the Cámara Civil y Comercial of Azul in the case “Telechea c/ Beldrio” in 2005 that partially confirmed the decision of First Instance and convicted a football player who wounded another one at a critical moment of the game, when the possession of the ball was in dispute25, is extremely interesting. In this case, the Court adhered the state authorization thesis to justify the presumption of legality of all sports injuries and set forth that this postulation comprises all the harmful consequences caused by the game within the rules and regulations and every breach of the rules and regulations that is “normal” or “inevitable” according to the characteristics of the activity at issue substantially sharing the position set in the “Cottroneo” case and the thesis of Alfredo Orgaz which was expressly referred to.

exposed fracture of Berman’s right shin bone. C. N. Apel Civil, Sala “A” “Berman Gerardo R c/Goldin Jorge N”, L. L.(1996), C, 701, with a note by Jorge Adolfo Mazzinghi (h); DJ 1996-2, 400. 24 According to Mazzinghi, “The decision refers – with justice – to ‘An excessive action or of notorious imprudence or clumsiness” on part of the defendant that in no way could be deemed Force Majeure’. The sentence is founded on the liability and does not need- which is undeniably right , to qualify the defendant’s action as intentional or deceitful” , Cfr Mazzinghi (h), J. A.ob cit, p. 702. 25 The claim originated in what happened during a football match organized by the Asociación de Fútbol Argentino between the amateur teams of first Division: “El Fortín de Olavarría” and “Defensores del Este” of Pehuajó. Fernando Germán Telechea, player of El Fortín de Olavarría, instants before being passed the ball by a team mate, is hit in his left knee by a break/ “plancha” made by Beldrio. The impact caused a grave injury, he had to undergo two operations on one knee and was left with a partial permanent injury that put and end to the victim’s sportive career. CC Azul, sala I, 3/31/2005 “Telechea Fernando G c/Beldrio, Carlos y otro” L.L. Buenos Aires, 2005 p. 695 and ss.

48

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

In the case “Gil Ezequiel Osvaldo y otro c/ Sociedad de Fomento Deportivo y Cultural Siglo XX y otro. Daños y Perjuicios”26. The Suprema Corte de la Pcia de Buenos Aires, (Supreme Court of Provincia de Buenos Aires), focused on the risks of sports and their limits, stating that in every football match, the players lay themselves open to all the risks of the sports activity at issue that many times turn into injuries. When the aforementioned injuries arise from the normal risk imposed by the rules of the game, they are covered by the “legitimacy” of the activity. It also added that the irresponsibility in sports accidents arises from the concurrence of several elements: the legality of the game or sport itself; the consent of the victim to lay himself/ herself open to the inherent risks of the sport he/she practices; the lack of intent to harm, negligence, imprudence or other circumstances that entail the liability of the damage doer and finally the observance of the rules either pragmatic or canons of the game or sport at issue27. Finally, the Tribunal acknowledged that the practice of all sports activities requires more that habitual physical and/or intellectual effort and, at the same time entails a risk for the contenders and adhered to the position that stipulates that the state authorization is a justifying cause to exclude the illegality as a requisite for civil liability but expressely excluding the assumption of risk as an exoneration cause provided that no fault of the victim has been proved28. With special reference to “Cottroneo”, the Tribunal concluded that the sport legality comprises the harmful consequences that the game entails within the rules and regulations, the same as those infringements to the rules that are normal or inevitable according to the characteristics of the game at issue. That’s the reason why the sports injuries suffered by a player only originate the obligation to indemnify when the rules and regulations of the game are violated and the injuror is liable either by negligence or imprudence, or there is dolo, that is, intent to harm.

26 It was a case of injuries of a minor who, as a goal keeper of a team of infantile football, category 82 of the “Centro Cultural y Social Florentino Ameghino” received a blow with the ball in his left eye which produced injuries. The Suprema Corte de Justicia de la Provincia (Supreme Court of the Province) ratified the position of the majority a little time later, on November 24, 2011 in the case 95.241, “Z.O.A. c/ Club San Marcos/ Daños y Perjuicios” Available on http://www.scba.gov.ar/jubanuevo/integral.is 27 From the vote of Dr Kohan that quoted Rezzonico, L.M. “Estudio de las Obligaciones” T II 9 Ed. Depalma, 1961, p. 1579. 28 Vote of Dr Soria, Dr Genoud and Dr Pettigiani adhered to it.

49

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Lastly, in the “Pizzo vs Camoranesi”29 case it was decided, following the jurisprudence of the Cottroneo case, that the obligation to indemnify damages derived from sports injuries originates when: a) the injury has been caused by an excessive action that blatantly violates the rules and regulations of the game. b) The dolus or intent to harm either in the development of the game or when the game is detained is evident in the action. Even if the deliberate intention to cause harm on Camoranesi’s part was doubtful, there was no reason to doubt that the conduct of the defendant fitted the concept of excessive action that blatantly violates the rules and regulations of the game30. STATE AUTHORIZATION IN FOOTBALL As it has already been said, a part of the doctrine headed by Orgaz, has sustained that the legal authorization of a sports practice acts as a justification cause. Therefore, due to the intervention of the State, the injuries that result from the practice of authorized sports as long as they are typical actions of the game will not generate either civil or criminal liability for the illegal act. In that case, the actions wouldn’t be guiltless but legal31. The thesis is based on art 2055 of the Civil Code32, that, tacitly acknowledges the legality of the sport games. As of 1904, Law 4.345 Fostering of athletic games and football was enacted, in 1969 Law 18.247 of fostering and development of Sport was added and finally in Ley Nacional del Deporte 2065533 of 1974, still in force and in many

29 In this case, the player Pizzo received the ball on the left strip of the middle sector of his own field, when on his right appeared the player Camoranesi who, with his left leg extended, impacted Pizzo’s left knee with the sole of his half boot. As a result of the blow, the plaintiff suffered injuries in the crossed ligaments, both anterior and posterior, in the external lateral ligament, in the internal and external meniscus, in the knee capsule, in the biceps’ tendon, plus bruises and lacerations, the femoral artery being on the verge of being sectioned. In those circumstances, the umpire of the match immediately suspended the game, called the paramedics and expelled Camoranesi. 30 Chamber Judge Lustanau stated: “I have seen thoroughly, step by the step and at normal speed the moment of the game, no less than twenty five times and I keep on doubting if Camoranesi went for the ball or deliberately intended to hurt his rival. In doubt I have to say that there was no dolus in the terms of art 1072 of the Civil Code”. For a deeper analysis of the “Pizzo vs Camoranesi case” it is advisable to see the excellent note to the sentence by Márquez and Calderón headed “Lesiones en el fútbol” published in L.L. on 09/03/2010 and the Comment of the suscriptor published in the Revista Digital de Derecho del Deporte de la Universidad Austral (number 4, March 2013). La responsabilidad civil del futbolista que lesiona a un contrincante en un lance de juego. Comentario al caso “Pizzo c/ Camoranesi”. 31 Orgaz, A, La ilicitud ( extracontractual) Lerner, Córdoba,1973, p. 178. 32 Art 2055 states: “It is forbidden to sue for gambling debts or bets that have not originated on exercises of strength, arms skills, races and other games or similar bets as long as no law or police regulation has been breached”. 33 For a deeper study of this Law, Vittar Smith, E, “El Derecho Deportivo en la Argentina. Una visión esquemática”. Revista Jurídica del Deporte N 6, Aranzadi,, Navarra, 2001.

50

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

national and provincial laws of fostering and promotion of Sports34by virtue of the fact that the sport is not a matter expressly delegated to the Federal State. According to the professor from Córdoba, the injuror sportsman would only be liable for damages caused when breaching the rules of the game with manifest imprudence or clumsiness (excessive or brutal actions): Civil and criminal liability for “excess” in the practice of the sport (art 35 of the Penal Code)35. Another part of the doctrine based on the different hierarchy of the administrative norms that authorize the sport’s practice and the ones that criminally sanction or determine the liability for damages36, dispute the above mentioned position. Apart from the aforementioned jurisprudence, it has also been decided that the “legality” of the sport practised with a state authorization comprises all the harmful consequences that the game causes within the rules and regulations and those infractions pertaining to the bylaws that are “normal” or “unavoidable” according to the characteristics of the activity at issue37 and the state authorization to practise a risky sport constitutes cause of justification enough to exempt both the club and the civil association that organises the event from civil liability as to the injuries suffered by a player as a consequence of a normal and habitual move in the game38.

34 A detail of the many provincial laws on that matter can be found in ”La licitud de las prácticas deportivas y la responsabilidad Civil” by Schmoisman, M. and Dolabjian, D. A. , en RC y S, 20120-V,24. 35 Carlos M. Bosso has carried out the following classification based on the doctrine of Orgaz: a) Damage caused while observing the rules of the game, if the damages are not commonplace, they aren’t indemnifiable or punishable because it was force majeure; b)Damages caused in violation of the rules of the game, but a natural and common violation (sports culpa): there is cause of justification ; c) Damages caused violating the rules of the game and notable imprudence : Criminal liability( crime by culpa ) and civil liability(art 1109 Civil Code) and d) damages caused in violation of the rules of the game and with intent to harm: criminal responsibility (crime by dolus) and civil liability (art1072 Civil Code) Cfr., “La responsabilidad civil en el deporte y en el espectáculo deportivo” Editorial Némesis, Buenos Aires, 1984, p. 72. 36 Brebbia sustains that it is inconceivable for a municipal ordinance to determine the justification of an action that the Penal Law deems punishable and gives an example: “The municipal authorization for a combat of gladiators to take place wouldn’t either have the effect of rendering the Penal Code inapplicable to the case or prevent the injured from starting the pertinent legal actions” Cfr “La responsabilidad en los accidentes deportivos” Abeledo Perrot, Bs As , 1962, p. 22. 37 C6aCCom of Cordoba, 2-7-2008, “Cáceres, Leonardo Javier c/ Instituto Atlético Central Córdoba. Ordinario. Daños y Perjuicios. Otras formas de responsabilidad extracontractual. Recurso de apelación. Expte 506.447/36”, quoted by Márquez, J.F. and Calderón, M: R. in “Daños sufridos por el futbolista profesional” in Revista de Derecho de Daños 2010-2, Daño Deportivo, Rubinzal Culzoni Editores, Buenos Aires- Santa Fe, p.112. 38 C8aCom. De Córdoba, 3-1-2001, “Z., G. F. c/ Asociación Cordobesa de Fútbol y otros”, L.L.C. 2001799, AR/JUR/1083/2001. Quoted by Márquez, J.F. and Calderon, M. R. in “Daños sufridos por el futbolista profesional” Revista de Derecho de Daños 2-2012, Daño Deportivo, Rubinzal Culzoni Editores, Buenos Aires- Santa Fe, p. 112. In Rugby, the same jurisprudence is observed: CCCom of Morón, Sala II, 5-18-99, “P., J.L.c/ Club Curupaytí”, L.L. B.A.2000-1262.

51

Revista dos Estudantes de Direito da UnB New doctrines consider that according to the current doctrine of liability, the authorization of the state to develop a determined activity does not intercede in the concretion of the obligation to indemnify the damage. Such obligation would be under specific rules which will determine, in each case, whether the activity, authorized and therefore legal, depending on its characteristics, generates the obligation to repair the damage caused. The above mentioned position has set up the premise according to which, the legal activity even if authorized, turns into illegal when it causes damage, that being a violation to the general duty of not to harm, implicit in art 19 of the national Constitution39. But, may be the most important criticism received by the “state authorization” thesis is the one that finds an error of principle in the legal positivism that sustains the thesis at issue: it aims to solve the sports injuries issue only through positive law precepts, from which it can be deducted that that to cause injuries or death in sports, within certain limits, is a permitted act40. In order to do this, examples of activities authorized by the state, and thus, legal that don’t mean that whoever carries them out is exempt from indemnifying the damages caused by them41.

39

Cfr Márquez ,J. F. and Calderón, M.R., Ob. Cit.,p113. Cfr Tale C., “Accidentes deportivos: Responsabilidad por daños causados por un deportista a otro”, in “Daños sufridos por el futbolista profesional” in Revista de Derecho de Daños2- 2010, Daño Deportivo, Rubinzal Culzoni Editores, Buenos Aires- Santa Fe, p.224. 41 Among them, Civil Code art 2618 that sets forth the obligation of indemnifying on part of those establishments whose activities caused prejudice to their neighbours even though such activities had been authorized by the Public Administration. The art states: “The inconveniences occasioned by the smoke, heat, smells, light, noise, vibrations or similar damages due to activities in neighbouring immovables, shouldn’t exceed the normal tolerance taking into account the conditions of the place and even in the case of administrative authorization for them. According to the circumstances of the case, the judges may decide the compensation of the damages or the end of such inconveniences. In applying this disposition, the judge must balance the demands of the production and the respect due to the regular use of the property. He should also take into account the priority in the use. The trial will proceed summarily”. 40

52

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

THE ASSUMPTION OF RISKS IN FOOTBALL The so called assumption of risks doesn’t arise from Argentine Positive Law, if we add the great variety of criteria both in national42 and international43 doctrine, it can be inferred that its conceptual demarcation is impossible to reach. The acceptance of risk as a factor that allows to impute the damage to the victim himself, is a creation of French jurisprudence about the middle of XIX44 and it happens when a person, consciously and voluntarily, lays himself open to a specific danger created by another one45. If the injury is caused during a practice of a sport, with total fulfilment of the rules of the game, the injuror does not have to indemnify the victim. The basis of this theory is the acceptance by the participants of the risks inherent in each game46. In our country, 42

In Argentine, Pizarro and Vallespinos sustain that “the acceptance of risks is a crafty form/ figure that has no justification in a legal system such as ours that acknowledges the liberation of the alleged responsible when the action of the victim is proved. To know a risk doesn’t mean to accept it and even less to submit to it meekly, without the possibility of making any claim for the future. harmful consequences.”, Instituciones de Derecho Privado. Obligaciones. T3, Hammurabi, Buenos Aires, 1999, 116/117 and following.. 43 In Compared Law, it has been said that the assumption of risks is a hazy figure (Proenca José, “A conducta do lessado como pressupostoe criterio de imputacao do daño extracontractual” Editora Almedina., p.615, Coimbra, 2008, reimpressao da edicao de Novembro de 1997) heterogeneous (Cavanillas Migica Antonio “La asunción del riesgo por la víctima” in Reglero Campos, Fernando Herrador Guardia, Mariana(Coord.), “Ponencias sobre la responsabilidad civil y su prueba” p. 62, Sepín Editorial Jurídica, Úbeda 2007) dogmátically inaccurate (Medina Alcoz María, “La asunción del riesgo por parte de la víctima. Riesgos taurinos y deportivos.” , Madrid, Ed Dickinson, 2004,p.40) and with oscillating boundaries (Solé Feliú , Josep “Los perfiles borrosos de la asunción del riesgo en el derecho comparado” in Estudios jurídicos in honour of Professor Luis Diez Picaso t.II Derecho Civil. Derecho de Obligaciones, p.3097and following. Editorial Thomson Civitas, Madrid, 2003) and generally we tend to abuse it ( Deliyannis Jean, “La notion dácte illicite. Considere en sa qualite d’element de la faute delictuelle”, p. 177, LGDJ, Paris, 1952), which no doubt turns it into a changing and indeterminate notion (Piñeiro Salguero, José, “Responsabilidad Civil. Práctica Deportiva y asunción de riesgos”, p. 117, Civitas Thomson Reuters; Madrid 2009). Cfr., Mayo and Prevot, ob. cit., pp. 992/993. 44 According to Mayo and Prevot it has been elaborated fundamentally by the French jurisprudence(Flour, Jacques, prefacio a la tesis doctoral de Jean Honorat, “L ideé d’aaccceptacion des risques dans la responsabilité civile”,P. XV, Ed. Librairie Génerale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1969), more specifically as of a set of decisions issued by tribunals in the middle of XIX century( Deschizeaux; Jean, “Influence du fait de la victime sur la responsabilité civil delictuelle”, p. 79and following, Imprimerie Guirimand, Grenoble, 1934), ob. cit., p.992. 45 Its application extends to other hypotheses, among which: 1- the exposition to risks entailed by the participation in transport activities that, depending on the means used are intrinsically dangerous. 2- The exposition to the risks that entering another person’s rural property entails. 3- The exposition to the risks entailed by the use of another person’s movable and inanimate thing.4- The exposition to the risks derived from the participation in leisure activities that by virtue of the animals involved become intrinsically dangerous., 5- The exposition to the risks derived from the use of one’s own thing that has been manufactured and traded by others among which tobbaco smoking related risks can be mentioned 6- The exposition to the risks consequential to the participation in leisure fair activities that depending on the artefacts used are intrinsically dangerous7- The exposition to risks derived from the participation in pyrotechnical spectacles. 8-The exposition to risks derived from participating in taurine spectacles. 9- The exposition to the risks that the public activity facing the journalistic informative activity entails.(Medina Alcoz, Ob Cit p.93 and following. Idem p. 993. 46 In the Foreign doctrine, this theory has been applied to sports by Lalou (Traité practique de la responsabilité civile Libraire Dalloz, Paris, 1949), Savatier (Traité de la responsabilité civile en Droit

53

Revista dos Estudantes de Direito da UnB there is no agreement in doctrine on this issue, some authors state that it is an autonomous exemption, others opt for the opposite stance47. The Project of Civil and Commercial Code 2012 stipulates that the voluntary assumption of risks on part of the victim will be determinant in cases in which such conduct implies a causal contribution to the harmful outcome, 48but, notwithstanding the lack of positive legislation up to now, the courts have applied this legal construction to free the tortfeasor sportsman from the duty to indemnify the damage caused to the victim49. francais, First Ed. Librairie General de Droit et de Jurisprudence, Paris,1939), Visintini ( Tratado de la responsabilidad Civil, trad Kemelmajer de Carlucci, Astrea, Buenos Aires. T2) and Esser (Lesiones deportivas y derecho Penal. En especial la responsabilidad del futbolistas de una perspectiva alemana, La Ley, Madrid6-9-1) Cfr., Tale, ob. cit. p.230. 47 Aciarri, González Rodríguez and Tolosa carry out a complete synthesis of the topic: some authors sustain that it is an autonomous exemption (Mazzinghi, J., “La víctima del Daño y la Aceptación de los Riesgos”, ED, 76-876; “Responsabilidad Objetiva: uso de la cosa contra la voluntad del dueño y la asunción del riesgo”, La Ley, 1995-E, 205. Some of them say that it is an autonomous exemption of liability in the contractual liability field( See Agoglia, MM;Boragina,J. C. and Meza,J.A., Responsabilidad por Incumplimiento Contractual, Hammurabi,2nd edition, Buenos Aires, 1993.), whereas others, the majority, think the opposite( Zavala de González, M.,Resarcimiento de Daños, Volume 4, Hammurabi, 1999, p.287; Pizarro, D. “Causalidad adecuada y factores extraños” in Derecho de Daños, collective work directed by F.A. Trigo represas and R. Stiglitz, “Homenaje a Mosset Iturraspe”, Buenos Aires, La Rocca,1989,p.269; Prevot, J:M: and Mayo, J. cit., p. 992; Mosset Iturraspe, J. “La Responsabilidad Civil por Aceptación de Riesgos. Retroceso en la Responsabilidad Civil por Actos Ilícitos” in Estudios sobre la Responsabilidad por Daños, v1, Rubinzal Culzoni, Santa Fe, 1980, p.115). Within this last approach, some think that the assumption of risks is an exemption located in the causality orbit: that it is verified when the behaviour of the victim, at assuming a risk, determines its contribution, total or partial- to the production of the damage. (Marchand, S., Parellada ,C. and Burgos, D. “La asunción del Riesgo: Causa Eximente o Causal de Justificación?”, La Ley, 2009-E, 1065; Bustamante Alsina, J.; Teoría General de la Responsabilidad Civil, cit.,p. 141 et seq; Pizarro, D. “Causalidad Adecuada y Factores Extraños”, in Derecho de Daños, collective work directed by Trigo Represas and R. Stiglitz, “Homenaje a Mosset Iturraspe”, cit.; Prevot, J.M. and Mayo, J. ,cit.; Marcellino, L., “Algunas Ideas sobre la Teoría de la Aceptación o Asunción del Riesgo”, LLC , March 2010, p.123). As it generally happens, when judging the influence of the victim in the causation of injury, some authors demand that the victim´s behavior (an action, omission or group of facts) be also guilty, whereas the more modern positions focus on the causal influence of the victim´s actions regardless of their classification in terms of guilt. Cfr., “Daños en el Deporte. Su tratamiento en el marco de la teoría general de la responsabilidad civil y la eficacia de los instrumentos probatorios” in RCyS, 2013 II, p.4 48 Art 1719 states: “Assumption of risks. The voluntary exposure by the victim to a situation of danger neither justifies the harmful event, nor exempts from liability unless that, due to the circumstances of the case, it would qualify as an act of the victim that either totally or partially interrupts the causal link”. 49 In football: “Gil Ezequiel Osvaldo vs Sociedad de Fomento Deportiva y Cultural Siglo XX y otro s/ Daños y Perjuicios”, JUBA SUM B2002222; “Rodríguez Carlos c/ Moriset, Rosendo s/ Daños y Perjuicios” CCCom de Quilmes Sala I, 15/12/2008, JUBA SUM B 2904190. In car Racing: “Angelakis, Nicolás G vs Tamagno, Sergio C s/ Daños y Perjuicios” JUBA SUM B 2550490; RC y S 2005-V-37, with a note by Barbieri Pablo; L.L.B.A. 2005 (February), 83. In cycling: “Fernández Julia Irene y otros c/ Agrupación Ciclista Azuleñay otros s/ Daños y Perjuicios” CCCom de Azul Sala II, 27/2/2009,LLBA 2009-305; La Ley Online: AR/JUR/479/2009. In horseracing: “D.Y.B. c/Fisco de la provincia de Buenos Aires/Daños y Perjuicios”; C 2da Com de la Plata, Sala III, 18/9/2008, JUBA SUM B355008. In hockey: “G.J.M. c/Pcia de Buenos Aires y otro s/Daños y Perjuicios” CCCom de mar del Plata, Sala II, 8/8/2009, LLBA, 2010,504, with a note by Fernández Puente, M. Estela, L.L. Online: AR/JUR/72054/2009. According to Prevot, in rugby, the assumption of risks is irrelevant because the risks of the activity are absorbed by the legality of it and not by the victim´s consent, but points out that the injuries turn into illegal when the tortfeasor incurs

54

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

In practice, in most cases there is no agreement of irresponsibility, but, as the assumption of risks may be unilateral, what generally happens is that, without any statement in this respect, there is a tacit acceptance of the risk derived from the sport activity and the actions of each player50. Anyway, when the damages are suffered in one´s own person or physical integrity, the acceptance of risks is not apt to make the wrongfulness of the tortfeasor´s action disappear, since people lack power of disposition over such items that are of public interest and out of Commerce51. Some authors believe that the acceptance of risk as a factor that allows to attribute the injury to the victim, only takes place when somebody assumes an abnormal or extraordinary risk, and such conduct is suitable for damage52. And in football, the players are not exposed to an abnormal or extraordinary risk53, thus the liability of the protagonists of the game should be assessed according to the performance of each player in the damaging event54.

either in serious culpable conduct or intent to harm as it happens with the culpa with representation or prevision and conscious guilt in the sense that the normal limits of the rules of the activity have been overcome to cause damage out of the normal context as long as it wasn´t a consequence of the victim´s predisposition or a fortuitous event. Cfr “Daños ocasionados en la práctica de rugby” Revista del Derecho de Daños 2010{2. Daño Deportivo, Rubinzal Culzoni Editores, Buenos Aires, Santa Fe, p. 104 50 Cfr Tale ob. Cit. p.231, who adds that it does neither include the risks derived from the conditions of the stadium or premises where the activity takes place, nor the concentration of the public, that is, it does not exempt the organizer of the sports competition. Mosset Iturraspe in reference to the tacit irresponsibility clauses, states: ”Apart from the resource being fictitious and forced, it is well known that the irresponsibility pacts or clauses are, as a rule, incompatible with the responsibility for illicit acts” (“La aceptación de los riesgos” in Estudios sobre la Responsabilidad por Daños, V. 1. Ed. Rubinzal Culzoni, Sta Fe, p.119), Mayo adds “Apart from pointing out that in most cases the tortfeasor is a third party stranger to the victim, so it is not clear how a previous agreement of that kind could have generated between them”. Cfr “La denominada aceptación de los riesgos en un fallo de la sala penal del Superior Tribunal de Justicia de Córdoba”, LLC, 2005 (June)489, p.1 51 Among others, Trigo Represas and López Mesa…, ob. Cit., p.810. 52 Cfr Zavala de González, M., resarcimiento de Daños, v 4, Presupuestos y Funciones del Derecho de Daños, Hammurabi, Buenos Aires, 1999, p.287. 53 Unlike the case of sports where the participant accepts to play being aware that necessarily, with a very high probability, he is to suffer some damages that are connatural to the sport due to the physical contact it supposes according to the rules of the game or other circumstance of the practice´s own alea .This is seen with crystal clarity in box, since it cannot be deemed that the blow that the victim receives from his opponent is an illicit action, or that the consequences of such blow constitute unfair damage that has not been assumed by the victim. In those cases the situation is equivalent to the damnified´s consent, even if the damage is not actual, because the participation in the game cannot be conceived without consenting in advance the damage that is a consequence of the licit blow under the rules of the game as long as there is not dolo, negligence or abuse of rights. 54 Cfr Orgaz,A.,La Culpa…ob. Cit., p. 242.

55

Revista dos Estudantes de Direito da UnB BY WAY OF CONCLUSION The Camara Nacional Civil, sala D, in the “Cottroneo” case has set a doctrinal orientation in the subject of injuries between football players, that has been kept up throughout the years in each of the most transcendent cases and has been confirmed in the last of them, “Pizzo c/ Camoranesi”. The central grounds can be summarized in the following words: “When the infractions do not exceed the normal, they are covered by the arising legality of state acquiescence (…), under it the obligation to respond for sport injuries arises in the following cases: a) when there is an excessive action that grossly and openly violates the rules and regulations of the game. b) when there is intent to harm, be it in the middle of the game or when it is stopped”55. As it has been mentioned, those grounds were followed by Sala A of Cámara Nacional Civil in the sentence “Berman Gerardo c. Goldin Jorge N” on April 6, 1995; were shared by Cámara Civil y Comercial de Azul Sala 1in “Telechea Fernando G. c. Beldrio, Carlos D y otros”, have also supported the decision of the Suprema Corte de la Provincia de Buenos Aires in “Gil, Exequiel O. y otro c. Sociedad de Fomento Deportivo y Cultural Siglo XX y otro. Daños y Perjuicios” and finally by Cámara Civil y Comercial de Mar del Plata “Pizzo c. Camoranesi”56. Out of the five judicial precedents quoted, in more than half (“Berman”, “Telechea” and “Pizzo”) the serious injuries suffered by the victims were produced by a “plancha” (a football player hitting an opponent with the sole of the shoe) that reached its objective. By the way the specific rules and regulations of the activity sanction the conduct at issue (with the longest suspensions) it can be inferred that due to the high degree of danger of the action, the purpose is to make the players desist from employing that resource.57 If the football players who resorted to “plancha” were punished with the 55

From the vote of Dr. Bueres. The minority vote of Judge Menendez in the “Pizzo c. Camoranesi” case may have been surprising: He proposed to reject the claim on the grounds that the action by which the defendant injured Pizzo “was one of the frequent or habitual actions in football matches”. According to the judge” the fact that the injury suffered by the plaintiff was caused by an excessive, brutal or imprudent action of the defendant was not proved. It was rather a common action with the velocity and momentum typical of football. It is remarkable for the magistrate not to deem “excessive, brutal or imprudent” the maneuver of going to dispute the possession of the ball to a rival, hitting the knee of the opponent with the sole of the gym shoe (“Plancha”), with great violence , when there was no material possibility, the ball was too far from the defendant , to otherwise take possession of the ball; when it is well known that the grave injuries originated in this activity have, as a common cause an action in particular , the “plancha”. 57 Since 1886,the maintenance or modification of the rules of football is in the hands of one institution: The International Football Association Board composed by eight members, four representatives of the national federations of England, Scotland , North Ireland and Wales and four from the International Federation of Associated Football. In practice this organism is controlled by FIFA, since both the President and Secretary of IFAB are chosen among the representatives of the former and at the moment of voting the amendments 56

56

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

penalty of expulsion58, perhaps the above mentioned action would not be so frequent in the practice of football, but anyway, that should not be casting in determining the duty to indemnify the victim59. Having analized both the theory of the “state authorization” and the thesis of the “assumption or acceptance of a risk”, it can be remarked that it is not necessary to resort to legal constructions created by either doctrine or jurisprudence to decide on the duty to indemnify of a football player who injuries another one at a critical moment of the game. Football is a legal activity in which damages are habitual contingencies of the activity that, in principle, have no juridical relevance (except for the sport sanctions), because the characteristic risks of the activity, are absorbed by the legality of the latter60. Thus, the injuries caused to the opponent become illicit when the tortfeasor acted either with dolus or “intent to harm” or grave negligence as it happens with culpa with representation or prevision and conscious culpa61 in the sense that the normal limits of the rules of the activity have been overcome to cause damage out of the normal context62, of the Rules of the Game have double vote. The Rules of football amount to 17. In Rule 12, fouls and misconduct, the “plancha” has not been typified as such, but the “grave brisk game” for the cases where the football player employs “excessive force or brutality against his rival at the moment of disputing the ball of the game” is mentioned. Besides, the association members of FIFA have Discipline Rules and Regulations that should set the sanctions on each case, based on the decisions taken by the umpire in the field and his report. In Argentina it is called Reglamento de Transgresiones y Penas and under the heading “Sanction to a player for an action violent and prohibited by the Rules of the Game., art 200/8 punishes with suspension from 3 to 15 matches the player who performs a ‘plancha’ that reaches its target, no matter whether the ball is being disputed between the two sportsmen”. And art 201/5 sets forth a suspension of two to twelve matches to the player who attempts a plancha that does not reach its target whether or not the ball is being disputed between both players. 58 As it happened, for instance, with the introduction in the Rules of the Game of Football, of the so called “law of the last resource” that punishes with expulsion the football player that commits a fault to prevent the conversion of a goal. 59 It would only be an important element to be taken into account by the judge. 60 The legal activity even if it is authorized, turns into ilegal when it causes damage by violating the general duty of no to harm another one, implicit in art 19 of the National Constitution. Cfr Márquez, J. F. and Calderón, M. R., ob. cit., p.113. 61 Mayo sustains that “Even if the notion of culpa comprises disimilar hypothesis whose common feature is the foreseeability, it is justified, to differentiate it from dolus, to carry out the following distinction: a)Unconscious culpa/ negligence: the agent, having the obligation to foresee it and being able to do it, has not foreseen the possible illegal result; b) Culpa with representation or foresight: the author foresees that the unwanted result will not happen because he trusts his skill no to let it happen, he does not act at random; c) Conscious culpa: the agent foresaw the result and only hoped that the illegal result would not happen at random”. Cfr Mayo, J.in Belluscio Zannoni, Código Civil Comentado, Astrea,v.2., p.629, n=29. 62 As regards what should be deemed “normal context”, Eduardo Galeano sustains: “There currently exists a competitive recrudescence among the rivals that is expressed in very frequent physical contacts, more rigorous marking/ following up and more narrowing spaces for personal display. A quicker game with high athletic preparation has been incorporated, which leads to confront technical skill with physical rigour, which gradually results in a more frequent contact game with an increase of very quick moves, not exempt from violence, this is the current natural and ordinary course of things” (art 901CC). This is not the ideal “fair play” but it is the reality where competitive football has lead us, and both Law and its doctrinarian construction have to adapt to that reality and not the other way round. It is a gradual return to the harshness

57

Revista dos Estudantes de Direito da UnB as long as it had not been the outcome of the victim´s predisposition or force majeur. Therefore, the legitimating fact is given by the Law and not by the state authorization or the so called acceptance of the risk63 and it is the law itself that sets the limit that divides the lawful from the unlawful.

of the games in the Ancient Times (…) in which the assumption of risk was so stressed as to become the tacit consent of the injured sportsman Cfr. class given in Diplomatura de Derecho del Deporte of Universidad Austral, Argentina,2013. 63 As it has been said from the Ancient Times, the consent is contrary to a legal prohibition or the good customs or ineffectual for other reasons, when the legal right at issue, for instance, human life, is substracted from the norm; to kill someone who consents is also illicit; the consent to the injury on one´s own body is also immoral except for insignificant injuries, unless they have been inflicted for a rational purpose, as a medical action according to Law, Medical Science and the Codes of Ethics; that is what EnneccerusLehman said ( Derecho de Obligaciones. Trad. Cast., Bosch, v2, 2 part, p. 1041) Cfr Mayo, ob. cit., “La denominada aceptación…” p.3.

58

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

TRÊS CONCEPÇÕES DE POSITIVIDADE DO DIREITO: DECISÃO POLÍTICA, ALTERAÇÃO ESTRUTURAL E INCONSISTÊNCIA Pythagoras Lopes de Carvalho Neto1

Submetido(submitted): 10 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 17 de outubro de 2016 SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Positividade como decisão política sobre o Direito; 3. Positividade como alteração estrutural do direito; 4. Positividade como inconsistência no direito; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas. RESUMO Este artigo analisa três concepções de direito positivo formuladas no âmbito da teoria positivista do direito. Para a primeira, o direito positivo é a decisão política do soberano. Essa concepção foi criticada por não destacar o processo autorreferencial de criação de normas no direito positivo. A segunda concepção indica como característica da positividade a capacidade de alteração estrutural do direito por si próprio. Ela falha em não reconhecer a diferença específica da alteração legislativa, quando contraposta à alteração do direito por interpretação. A terceira concepção propõe definir a positividade como a possibilidade de incorporação de inconsistências de conteúdo no direito. PALAVRAS-CHAVE: positividade; alteração do direito; interpretação jurídica; decisão jurídica; decisão política. ABSTRACT This paper analyses three conceptions of positive law within a positivistic approach to law. For the first, positive law is the political decision of the sovereign. This conception has been criticized for not indicating the self-referential process for creating norms under the positive law. The second conception highlights as characteristic of positivity law's ability of changing its own structures. It fails in acknowledging the specific difference of change by statute, as opposed to change by interpretation. The third conception proposes to define positivity as the possibility of incorporating inconsistencies in law's content. KEYWORDS: positive law; change of law; legal interpretation; legal decision; political decision.



1

Doutor e Mestre em Teoria Geral e Filosofia do Direito pela Universidade de São Paulo. Master of Laws (LL.M.) pela Faculdade de Direito da Universidade de Chicago. Advogado em São Paulo.

59

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

INTRODUÇÃO O tema da definição do conceito de positividade do direito parece ter saído de foco no debate jurídico. Enquanto a teoria jurídica contemporânea ocupa-se de entender e explicar a interpretação e a argumentação jurídicas, nas suas diversas manifestações, recorrendo a expedientes hermenêuticos, utilitários e até mesmo empíricos, o problema da especificação conceitual do caráter positivo do direito, associado à discussão positivista sobre a validade, parece ter perdido relevância. Este artigo busca retomar o tema da positividade sob nova luz. Pretendo analisar e criticar dois conceitos de positividade desenvolvidos pela teoria jurídica positivista durante o século XX: a positividade como fundamentação da validade da lei em decisão política e a positividade como alteração estrutural do direito. A partir da insatisfação com tais formulações do conceito, apresento um terceiro conceito de positividade, compreendida como a incorporação de inconsistências materiais no sistema jurídico. O tema da positividade está tipicamente associado à teoria positivista do direito, que buscava delimitar seu objeto de estudo frente a outras disciplinas, entre as quais a teoria moral e seus conceitos de direito natural. Para contrastar o direito positivo com outras concepções de direito, os juspositivistas clássicos, dentre os quais J. Austin, destacavam que seu objeto de estudo é o direito posto ("positus", do que deriva "positivo") por decisão do soberano de acordo com as regras estabelecidas pelo direito para tanto. Como pretendo mostrar neste artigo, ao longo do século passado, tal concepção de positividade foi questionada pelo positivismo moderno de H. Kelsen e H.L.A. Hart, bem como, no campo da sociologia do direito, por Niklas Luhmann, seguido, no Brasil, por Tercio Sampaio Ferraz Jr. Esses autores destacaram que um ordenamento jurídico é direito positivo não somente se nele a validade é adquirida por meio de decisão, mas também se a validade é mantida por meio de decisão – especificamente, por meio da decisão de não o revogar. Com esse argumento, enfatizavam, na fórmula positivista tradicional, menos a decisão do soberano que os procedimentos internos para modificação do direito. Um sistema de direito positivo, então, para esses autores, seria aquele capaz de modificar a si próprio por meio dos processos legiferantes por ele regulados. Essa concepção, contudo, parece explicar demais. Se é verdade que o direito

60

positivo pode ser alterado por procedimentos próprios, auto-estabelecidos, não é menos

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

verdade que os direitos tradicionais, pré-positivos, como o direito romano ou a common law até o século XVIII também eram alterados por meio de procedimentos internos ao direito, ainda que tais procedimentos tivessem natureza diversa do processo legislativo moderno. Para definir a positividade a que se refere o positivismo jurídico moderno, representado particularmente por H. Kelsen e H.L.A. Hart, torna-se necessário detalhar como se dá o processo de alteração estrutural do sistema jurídico. No que segue, pretendo discutir esses três conceitos de positividade, na sequência acima apresentada. Dessa discussão, parece resultar que, ao invés de ruptura, o conceito de positividade passa por pequenos ajustes, buscando uma descrição cada vez mais precisa do fenômeno em análise, a fim de refletir as conclusões dos novos temas do debate jurídico. POSITIVIDADE COMO DECISÃO POLÍTICA SOBRE O DIREITO A definição do direito positivo era um problema fundamental para as primeiras formulações do positivismo jurídico. De modo geral, é possível afirmar que, até o surgimento dessa escola teórica, a tradição do pensamento jurídico europeu concebia o direito a partir da distinção entre direito natural e direito positivo. Enquanto o direito natural era, ao menos a partir da Idade Média, tido como hierarquicamente superior e, portanto, merecedor de especial atenção teórica e filosófica, o direito positivo era visto como manifestação local dos princípios naturais, gozando, assim, de status teórico e filosófico de menor relevância (N. Bobbio, 1995, pp. 15-26; J.N. Heck, 2008; G.C.M. Cabral, 2016, pp. 154-5). No início do século XIX, porém, o fenômeno da codificação e a prevalência do direito legislado decorrente da centralização do estado nacional moderno nos séculos anteriores (P. Grossi, 2005, pp. 31-5) leva os teóricos do direito a buscar abandonar a distinção clássica e concentrar suas atenções em apenas um de seus dois lados. O direito positivo, especialmente os grandes códigos, passa a ser, então, o problema a ser explicado (N. Bobbio, 1995, pp. 25-42). Nessa linha, já não basta reduzi-lo à categoria genérica de direito feito pelos homens. Era preciso entender como os homens fazem essa forma de direito, e o que a diferencia de outras formas sociais, como a moral, o costume e a religião. Esse se tornou um problema central para o positivismo jurídico (M.C. Queiroz, 2004, pp. 98-103). Dentre as três principais correntes que N. Bobbio indica como formadoras do positivismo clássico (N. Bobbio, 1995), a saber, a Escola da Exegese francesa, a

61

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Pandectística alemã, e a Jurisprudência Analítica inglesa, é nesta última, especialmente nos trabalhos de J. Austin, que se pode encontrar um tratamento mais explícito do problema da positividade. O objetivo central dos trabalhos de J. Austin é determinar o campo da jurisprudência, entendida como a ciência do estudo do direito positivo. Busca, portanto, distinguir o direito positivo de figuras assemelhadas, como a moralidade positiva (na qual o autor inclui o costume) e as leis divinas (J. Austin, 1954, pp. 1-3, 9-10; 1954b, pp. 365-6). Para esse efeito, o autor elege como central o conceito de comando (J. Austin, 1954, pp. 13-24), que considera ser a chave para a ciência do direito e da moral. Comando é concebido por J. Austin como a expressão, por um superior a um subordinado, de um desejo de que o subordinado faça ou deixe de fazer algo, sob pena de punição. A noção de comando implica aquela de sanção, uma vez que não há comando sem sanção, bem como a noção de dever, já que todo dever emana de um comando. Por meio da noção de comando, J. Austin busca distinguir o direito de campos sociais correlatos. Isso é feito por meio da distinção entre leis próprias, que são comandos, e leis impróprias, que apesar de não serem comandos, porque não foram emitidas por pessoa alguma, a eles se assemelham em diferentes graus. Dentre as leis impróprias, encontram-se as leis naturais (que guardam uma semelhança remota para com as leis próprias) e algumas regras morais (que mantêm semelhança próxima para com as leis próprias, porque decorrem não de uma autoridade específica, mas da opinião pública). Já dentre as leis próprias, isto é, dentre os comandos, a distinção é feita com base no emissor. As leis emitidas por Deus são as leis divinas, que podem ser reveladas ou implícitas. Já as leis emitidas por autoridades sociais, como o pastor para seus fiéis ou o pai para seus filhos, formam parte da moralidade positiva. Por fim, o direito positivo decorre de uma forma específica de autoridade humana, a autoridade política, ou seja, o soberano. Este é definido em termos políticos, como aquele que é habitualmente obedecido pela comunidade política, sem estar em relação de obediência a ninguém. O direito positivo consiste, segundo o autor, nos comandos emitidos por essa autoridade (J. Austin, 1954, pp. 191-361).

62

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Dessa forma, é possível notar que, para J. Austin, a característica definidora da positividade do direito é sua determinação pelo soberano. O direito seria, sob sua concepção, uma espécie do gênero comando, que se diferenciaria das demais espécies apenas em decorrência de seu emissor. Direito positivo, portanto, é direito que decorre de uma decisão do soberano. O positivismo clássico formula, assim, uma primeira noção de positividade desvinculada da tradição jusnaturalista. Essa noção abandona a distinção entre direito natural e direito positivo, que caracterizara o pensamento jurídico até então, e formula uma descrição do direito assentada na ideia de decisão política. Apesar de simples e, de certo modo, intuitiva, tal formulação foi considerada insatisfatória pelos positivistas que se seguiram. Suas críticas e suas tentativas de reformulação do conceito de positividade serão objeto da próxima seção. POSITIVIDADE COMO ALTERAÇÃO ESTRUTURAL DO DIREITO Na seção anterior, apresentei a concepção de positividade formulada por J. Austin, autor representativo do positivismo clássico, que vinculava o direito positivo à decisão da autoridade política. Nesta seção, pretendo mostrar como essa concepção foi criticada e reformulada, ao longo do século XX, resultando em uma nova concepção do direito positivo, a saber, aquela da positividade como alteração estrutural do direito. A crítica mais conhecida ao modelo austiniano provém de H.L.A. Hart. (2001, pp. 23-92). Em sua tentativa de reconstruir os fundamentos do positivismo de forma a responder às críticas dos realistas norte-americanos, H.L.A. Hart conduz uma análise profunda da teoria de J. Austin, e aponta quatro insuficiências principais. A primeira delas consiste no fato de que, no direito moderno, as leis, ao contrário dos comandos, aplicam-se não só a seus destinatários, mas também a seus emissores. A segunda insuficiência refere-se à existência, no direito, não só de regras que impõem condutas, mas também daquelas que conferem poderes para julgar casos e criar novas regras. A terceira limitação do modelo austiniano é representada por normas jurídicas que não assumem a forma de uma prescrição. Por fim, a quarta insuficiência decorre da incapacidade de explicar a continuidade do direito para além do soberano, cujo papel, nos sistemas políticos modernos, é exercido de maneira cada vez mais difusa. Nesses termos, H.L.A. Hart declara o modelo de direito de J. Austin, aí incluída sua concepção de direito positivo, insatisfatório.

63

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Na mesma linha, 19 anos antes da publicação de The Concept of Law, já em 1941, H. Kelsen trazia ao público norte-americano o resumo de sua crítica à jurisprudência analítica austiniana (H. Kelsen, 2001). Nesse texto, apesar de reconhecer diversos pontos de aproximação com a teoria de J. Austin, H. Kelsen destaca como a teoria pura do direito ultrapassa o modelo positivista clássico. Nesse sentido, o autor sublinha as dificuldades trazidas pela noção de comando, superada, na teoria pura, pela noção despsicologizada de norma como dever ser. Na mesma linha, ressalta que a jurisprudência analítica limita-se a uma teoria estática do direito, já que não fornece uma explicação aceitável para o processo de criação de normas, enquanto a teoria pura constitui-se como uma teoria dinâmica do direito, uma vez que põe em evidência o fato de que a criação de normas jurídicas é também ela regulada por normas. Além desses pontos, que interessam diretamente ao objeto deste artigo, H. Kelsen também critica como insuficientes as formulações de J. Austin para os conceitos de dever jurídico e de direito subjetivo, a relação entre norma e coerção, o status jurídico do direito internacional e o conceito jurídico de estado. A jurisprudência analítica revela-se, assim, na perspectiva kelseniana, uma descrição bastante limitada do direito positivo. Posterior às análises de H.L.A. Hart e H. Kelsen, a crítica de N. Luhmann (1985, pp. 7-9; 2002, pp. 93-7; 2013, pp. 126-30), endossada por Tercio Sampaio Ferraz Jr. (1994, pp. 73-6), põe em relevo, de forma talvez mais clara, as dificuldades apresentadas pela concepção de positividade proposta por J. Austin. N. Luhmann destaca que a decisão do legislador, por si só, não pode caracterizar o direito positivo, visto que essa também é admitida, em diferentes graus, nos modelos jusnaturalistas. Para o autor, um modelo teórico que, a exemplo das pretensões dos juspositivistas, pretenda superar a distinção entre direito natural e direito positivo, abandonando o pressuposto de um direito natural e concentrando sua construção teórica exclusivamente no direito positivo deve propor uma concepção mais aprofundada da positividade. A concepção austiniana do direito positivo como decisão política arbitrária não permitiria ver, segundo a perspectiva sociológica luhmanniana, que a positividade requer condições sociais específicas para funcionar, as quais somente seriam encontradas na sociedade moderna, funcionalmente diferenciada. O modelo de J. Austin, nesses termos, dificulta uma compreensão mais profunda da positividade do direito. Nessas três críticas, é possível notar que a concepção de positividade como instituição do direito por decisão política é entendida não exatamente como errada, mas

64

certamente como insuficiente para explicar, em sua plenitude, as características que

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

fazem do direito moderno um direito positivo. Esses autores partem, então, cada um a seu modo, na tentativa de superar a concepção austiniana da positividade. H. Kelsen desenvolve sua teoria pura como uma teoria jurídica do direito positivo, que busca explicá-lo de forma objetiva e exata (H. Kelsen, 1999, p. 1). Para tanto, parte do conceito de norma como dever ser, em oposição aos fatos, que pertencem ao mundo do ser. A distinção ser/dever ser, que é entendida pelo autor como um dado imediato da consciência humana (H. Kelsen, 1999, pp. 5-7), estabelece uma separação estrita: uma norma (dever ser) só pode originar-se de outra norma. As normas organizam-se, assim, em uma cadeia de produção normativa, cuja unidade decorre de possuírem todas o mesmo fundamento de validade: a norma fundamental. (H. Kelsen, 1999, pp. 33, 215-7). As normas, portanto, relacionam-se entre si não por seu conteúdo, mas apenas por sua validade. O fato de a unidade do conjunto de normas – o ordenamento jurídico – decorrer de seu fundamento de validade põe em evidência que o direito moderno caracteriza-se pela prevalência do princípio dinâmico sobre o princípio estático, ou seja, da explicação formal, conforme o processo de criação, sobre a explicação material, conforme o conteúdo das normas (H. Kelsen, 1999, pp. 221-24; 2000, pp. 165-7). Nesses termos, para H. Kelsen, a característica central da positividade consiste em o direito regular sua própria produção e aplicação (H. Kelsen, 1999, p. 80). A exemplo de H. Kelsen, também H.L.A. Hart procura reformular o conceito de positividade de acordo com seu arcabouço teórico. Para tanto, parte da percepção de que, além das regras de conduta, a que chama de regras primárias, o direito moderno também se compõe de regras secundárias. Essas teriam por objetivo estabelecer mecanismos de identificação, alteração e aplicação das regras primárias (H.L.A. Hart, 2001, pp. 101-3). A mais discutida das regras secundárias é, certamente, a regra de reconhecimento, que permite a identificação das regras do ordenamento, por meio do critério da validade. Mas, além dela, H.L.A. também concebe as regras de adjudicação, que possibilitam a imposição forçada do direito, e as regras de alteração, que permitem ao direito regular sua própria alteração. Nesse sentido, a concepção hartiana do direito como união de normas primárias e secundárias também se refere à capacidade de o direito positivo modificar a si próprio, mantendo controle de tais modificações por meio de mecanismos de identificação e adjudicação. O elemento autorreferencial do direito positivo também é posto em evidência na concepção de positividade esposada por N. Luhmann. Para esse autor, assim como

65

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

para H. Kelsen e H.L.A. Hart, a característica demarcatória do direito positivo deve ser buscada não no fato de o direito passar a valer por decisão, mas de ele continuar a vigorar por decisão (de não o revogar). Segundo o autor, a positividade do direito na sociedade moderna deve ser compreendida a partir da distinção entre expectativas normativas (ou normas), que são mantidas mesmo após a frustração, e expectativas cognitivas (ou cognições, conhecimento), que são abandonadas, se frustradas. Assim, se um motorista pretende estacionar seu carro em uma vaga do estacionamento e a encontra ocupada, ele abandona sua expectativa inicial e procura uma nova vaga (ou seja, sua expectativa inicial é cognitiva, porque não resiste à frustração). Mas se o motorista vê um carro atravessar o sinal vermelho, continua a esperar que outros carros não façam o mesmo (isto é, a expectativa é normativa, porque se mantém apesar dos fatos). Para N. Luhmann, a positividade consiste na formação de expectativas cognitivas a respeito das expectativas normativas do direito (G.L. Gonçalves, 2013, pp. 103-7). Em outros termos, a sociedade moderna passa a aceitar que o conteúdo do direito pode ser alterado. Essa aceitação decorre da especificação de procedimentos para aplicar e alterar o direito. Nesse sentido, N. Luhmann designa como programadas as decisões que são tomadas a partir de premissas decisórias já definidas. De outro lado, decisões programantes são aquelas que estabelecem premissas para decisões futuras, sem partir de critérios já definidos. Um bom exemplo das primeiras são as decisões judiciais, que partem dos critérios vigentes para julgar os casos. Em contraposição, as decisões legislativas são exemplos de decisões programantes, pois definem critérios para as decisões judiciais (programadas), sem ter seu conteúdo definido por decisões anteriores. Nessa linha, a aceitação de que o conteúdo do direito pode ser alterado só é possível porque o direito positivo conta com procedimentos específicos para aplicar e alterar o direito, isto é, para tomar decisões programantes e decisões programadas. Essa especificação permite que as tentativas de alteração da lei não se confundam com sua violação, tornando-as, desse modo, toleráveis. Sob essa perspectiva, o direito positivo é entendido como direito que possui procedimentos internos para promover sua própria alteração (N. Luhmann, 1985, pp. 717; 1990; 2013, pp. 126-130). A positividade consiste, pois, na legalização da modificação estrutural do direito. Em linha com sua pretensão de descrever

66

sociologicamente o direito como os juristas o descrevem, N. Luhmann recria, assim, em

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

seu quadro referencial teórico, a mesma concepção de positividade de H. Kelsen e H.L.A. Hart. Assim como adotaram postura similar contrária à concepção decisionista da positividade por J. Austin, tanto H. Kelsen e H.L.A. Hart quanto N. Luhmann apresentam uma concepção de positividade igualmente centrada na capacidade de o direito positivo regular juridicamente os procedimentos para alterar suas próprias regras. Esse modelo, contudo, apesar de bem mais complexo e sofisticado que aquele da jurisprudência analítica, também parece merecer refinamentos. É o que será explorado na próxima seção. POSITIVIDADE COMO INCONSISTÊNCIA NO DIREITO A seção anterior mostrou como, a partir de suas críticas ao modelo austiniano da positividade como decisão política, H. Kelsen, H.L.A. Hart e N. Luhmann formularam, em diferentes contextos teóricos, uma concepção do direito positivo como automodificação do sistema jurídico. Esta seção pretende seguir o exemplo desses autores e buscar aprofundar a noção de positividade por meio do reconhecimento das limitações da concepção atualmente dominante. Para tanto, parto da distinção entre textos normativos e normas. Caso seja admitido que a norma não é o texto legal que a veicula, mas antes o sentido desse texto, é forçoso reconhecer que a mudança do direito não se dá apenas pelo modificação do texto. Ela também ocorre por meio da modificação da interpretação do texto. A cada nova interpretação do direito, o sistema jurídico como um todo é alterado – e isso ocorre de acordo com as regras (interpretativas) do próprio direito. Um exemplo disso é a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamento 132/RJ (rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. 5.5.2011), julgada em conjunto com a Ação Direita de Inconstitucionalidade 4.277, em que se discutiu a proteção jurídica às uniões estáveis homoafetivas à luz do art. 226 da Constituição Federal e do art. 1.723 do Código Civil. Antes da decisão do STF, a regra prevalecente era de que somente a união estável entre pessoas de sexos diferentes seria considerada família no ordenamento jurídico brasileiro. Nessa linha, os cartórios recusavam-se a registrar contratos de convivência entre pessoas de mesmo sexo, e casais homossexuais sofriam dificuldades em ter reconhecidos direitos recíprocos para uma série de efeitos, inclusive sucessórios, securitários e previdenciários. O tribunal constitucional, no entanto, entendeu essa regra em desacordo com a Constituição, e

67

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

determinou que também as uniões homoafetivas deveriam ser protegidas como família. Desde então, os casais homossexuais passaram a contar com os benefícios correlatos que lhes eram antes negados. Já no âmbito administrativo, pode-se citar o entendimento da Comissão de Valores Mobiliários a respeito da interpretação do art. 115, § 1o, da Lei das Sociedades por Ações (Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, conforme alteração). Esse dispositivo legal proíbe o voto do acionista que, entre outras situações, tiver interesse conflitante com a companhia. O texto é interpretado, de modo geral, em dois sentidos: enquanto a corrente do conflito formal afirma que basta a simples contraposição contratual entre acionista e companhia para estabelecer um conflito (o conflito seria definido, portanto, por critério jurídico-formal), a corrente do conflito material insiste que o conflito caracteriza-se apenas à luz do conteúdo do negócio jurídico proposto (o conflito seria definido, nesses termos, por critério econômico-material). Em sua primeira manifestação relevante sobre a matéria, no caso Tele Celular (IA CVM no TA/RJ2001/4977), a CVM alinhou-se com a corrente formalista. Logo em seguida, porém, alterou seu entendimento para a tese material, no caso Previ (IA CVM no TARJ2002/1153). Finalmente, no caso Tractebel (PA CVM no RJ 2009-13179), decidido no final de 2009, a Comissão mudou mais uma vez de posição, retornando à tese formal, que prevalece até o momento. Nesses dois exemplos, durante todo o período pertinente, não houve qualquer alteração legislativa ou regulamentar. Os textos normativos pertinentes permaneceram idênticos. No entanto, a regra aplicável aos casos em questão foi efetivamente alterada, com modificação clara na forma como os casos passaram a ser decididos após a definição dos precedentes. Houve modificação estrutural do direito sem alteração dos textos normativos. Em princípio, a modificação do direito por interpretação não é contraditória com a concepção de positividade do positivismo moderno. Ao contrário, sendo a aplicação do direito também um procedimento juridicamente regulado, é possível afirmar que tal modificação enquadra-se na definição de positividade descrita na seção anterior. A falha a ser apontada, nesse passo, não é de falta, mas de excesso de abrangência. Com efeito, a alteração por interpretação não é característica exclusiva do direito positivo. Ela pode ser observada na evolução do direito romano por obra dos pretores, ou ainda na evolução da Common Law na Inglaterra medieval. No entanto,

68

dificilmente essas formas de sistema jurídico seriam reconhecidas como direito positivo

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

por H. Kelsen, H.L.A. Hart ou N. Luhmann. Em outros termos, ao se admitir a mudança de normas por interpretação como mudança autorregulada do direito, o conceito de positividade esposado pelo positivismo moderno passa a incluir ordenamentos jurídicos que os próprios positivistas não reconhecem como direito positivo. Nesse sentido, para prosseguir com o projeto positivista de conceber o direito positivo não a partir de sua oposição ao direito natural, mas como objeto com dignidade teórica própria, é preciso refinar ainda mais o conceito de positividade, a fim de excluir a possibilidade de modificação do direito por interpretação e restringi-lo à modificação por legislação (ou regulamentação). Em outros termos, a descrição do sistema jurídico como uma prática social desvinculada de um controle de conteúdo inalterável requer uma definição de positividade que explicite a diferença entre mudança legislativa e mudança interpretativa. De outra forma, a ideia de mudança estrutural poderá ser aplicada tanto ao direito natural quanto ao direito positivo, e já não servirá para indicar a característica específica de um sistema jurídico que, na modernidade, opera sem limites à alteração de seu conteúdo. Para buscar esse refinamento, vale retomar a diferença luhmanniana explicada na seção anterior entre decisões programadas e decisões programantes. Enquanto decisões programadas, tais como as decisões interpretativas do direito, são tomadas sob critérios de decisão já estabelecidos, que lhes servem de parâmetro, as decisões programantes, como as decisões legislativas, estabelecem critérios novos, sem ter de ater-se àqueles eventualmente existentes. Em outros termos, enquanto as decisões programadas (interpretativas) alteram o direito mantendo algum grau de consistência com o conteúdo dos textos e decisões que lhe são anteriores, as decisões programantes são livres para alterar o direito inclusive de forma inconsistente com o passado. O que essa distinção mostra é que a positividade do direito moderno reside não só no fato de existirem procedimentos específicos juridicamente regulados para alterálo, mas de o resultado desses procedimentos não depender de justificação argumentativa baseada no conteúdo imediatamente anterior do direito. O direito positivo, assim, não só pode ter qualquer conteúdo, mas pode passar de um conteúdo a outro sem precisar apresentar justificativas internas. Ainda uma outra forma de apresentar essa mesma concepção é afirmar que o direito positivo contém mecanismos pelos quais é capaz de atribuir a mudança de seu

69

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

próprio conteúdo para fora do ordenamento jurídico, especialmente 2 para o sistema político, responsável pela decisão legislativa. Ao fazê-lo, livra-se, com relação a tal modificação, o ônus de justificar o conteúdo de suas próprias decisões. A decisão política é suficiente, bastando ao sistema jurídico controlar os aspectos formais do procedimento que levou a ela. Por contraste, compare-se essa situação com aquela gerada por uma modificação interpretativa, em que o sistema jurídico vê-se sob a exigência tanto de controlar os aspectos formais da decisão, quanto de apresentar argumentos suficientes para fundamentar a modificação de entendimento do julgador. A positividade, assim, não exatamente permite a mudança estrutural do direito, mas a facilita sobremaneira, ao diminuir o ônus argumentativo para ela exigido. Nesses termos, é possível reformular o projeto positivista de construir uma teoria jurídica baseada exclusivamente no direito positivo. De um lado, a concepção jusnaturalista defende que toda alteração no sistema jurídico depende, em variados graus, de algum grau de consistência entre o conteúdo do direito antes e depois da alteração. A distinção entre direito natural e direito positivo serve, então, para demarcar os conteúdos alteráveis e aqueles inalteráveis. O modelo jusnaturalista pressupõe algum grau de consistência material em todas as mudanças no sistema jurídico. De outro lado, a concepção juspositivista afirma que não há qualquer relação necessária entre o conteúdo do direito antes e depois da alteração. É claro que, de forma pontual, é possível que as normas vigentes exijam algum grau mínimo de consistência. Bom exemplo disso são as cláusulas pétreas da Constituição. Essa exigência, contudo, é contingente, não necessária – depende de decisão. Nessa linha, a distinção entre direito natural e direito positivo torna-se irrelevante, já que não é mais preciso preservar um núcleo de sentido que controle a modificação do direito no que tange a seu conteúdo. Sob essa perspectiva, o direito é, todo ele, direito positivo e sempre direito positivo. Um desdobramento dessa concepção de positividade é que não mais se torna plausível esperar que o direito positivo possa ser representado por qualquer unidade material. Sob essa concepção, é inescapável concluir que, a qualquer dado momento, é altamente provável que o direito positivo contenha conjuntos de regras cujo conteúdo

70

2 Os positivistas, de modo geral, tenderiam a dizer que a mudança no direito ocorre exclusivamente por meio de decisão política. Contra essa posição, destaco não só a possibilidade de mudança estrutural por meio de interpretação, já discutida no corpo do texto, mas também as mudanças normativas resultantes de atos privados (contratos, casamentos, testamentos, etc.), que alteram as regras aplicáveis às partes e, em algumas situações mais limitadas, até mesmo a terceiros. Dificilmente se poderia caracterizar esses atos como políticos. Não obstante, ninguém contestará seriamente que tais atos são corriqueiros na sociedade moderna. Ainda assim, por sua abrangência, a mudança estrutural do direito pela política permanece tendo papel de destaque para o sistema jurídico.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

não pode ser racionalmente conciliado. Nesse sentido, como alerta H. Kelsen, o direito torna-se uma ordem formal capaz de aceitar qualquer conteúdo. Para estabelecer e manter padrões argumentativos, a dogmática jurídica precisa, então, recorrer a dicotomias e distinções, como explicado por Tercio Sampaio Ferraz Jr. (1994, pp. 8593), ou à formulação de microssistemas, no sentido proposto por N. Irti (1999). De qualquer forma, tentativas de organizar o ordenamento jurídico sob o império de um valor ou princípio soberano parecem condenadas ao fracasso, ou, na melhor das hipóteses, a um âmbito temporal e material de aplicação extremamente limitado. CONCLUSÃO Neste artigo, procurei retomar o problema da positividade do direito moderno, tema central para a teoria positivista do direito. Partindo do conceito de direito positivo formulado pelo positivismo clássico, representado por J. Austin, mostrei que as críticas a ele dirigidas por H. Kelsen, H.L.A. Hart e N. Luhmann levaram a uma concepção mais profunda da positividade, que destaca a capacidade de o sistema jurídico regular suas próprias alterações. Essa concepção, contudo, não se mostra precisa o suficiente, uma vez também seria aplicável a sistemas de direito natural, em que as normas jurídicas são modificáveis por meio de interpretação. Propus, então, que a positividade do direito passe a ser concebida como a possibilidade de alteração do direito sem controle da consistência de conteúdo entre o novo direito e as regras anteriormente vigentes. Essa nova concepção parte do caráter argumentativo da prática jurídica, e põe em destaque como a positividade permite a modificação do sistema jurídico sem que se incorra no ônus de apresentar fundamentos jurídicos para essa alteração. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUSTIN, John. Lectures on jurisprudence or the philosophy of positive law. London: John Murray, 1913. _________. The province of jurisprudence determined. In: Austin, John, The province of jurisprudence determined and The uses of the study of jurisprudence, Indianapolis: Hackett, 1954, pp. 1-361.

71

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

_________. The uses of the study of jurisprudence. In: Austin, John, The province of jurisprudence determined and The uses of the study of jurisprudence, Indianapolis: Hackett, 1954b, pp. 363-93. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. CABRAL, Gustavo César Machado. Thomasius e o direito natural. Revista Sequência, Florianópolis, n. 72, abr 2016, pp. 145-68. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão, dominação. 2a ed. São Paulo: Atlas, 1994. GONÇALVES, Guilherme Leite. Direito como sistema de controle: para uma atualização da crítica da forma jurídica a partir da teoria dos sistemas. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 6, 2013, pp. 99-111. GROSSI, Paolo. O ponto e a linha. História do direito e direito positivo na formação do jurista do nosso tempo. Revista Sequência, Florianópolis, n. 51, dez 2005, pp. 31-45. HART, Herbert Louis Adolph. O conceito de direito. 3a ed. Lisboa: Calouste Gulbekian, 2001. HECK, José N. Origens e aporias do jusnaturalismo moderno. Revista Ethica, Florianópolis, vol. 7, n. 2, dez 2008, pp. 215-232. IRTI, Natalino. L’Età della decodificazione.4a ed. Milano: Giuffrè, 1999. KELSEN, Hans. A teoria pura do direito e a jurisprudência analítica. In Kelsen, Hans, O que é justiça? 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 261-83. ________. Teoria geral do direito e do estado. 3a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ________. Teoria pura do direito. 6a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. LUHMANN, Niklas. El derecho de la sociedad. Guadalajara: Iberoamericana, 2002. _________. Kontingenz und Recht. Frankfurt am Main: Surkhamp, 2013.

72

_________. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1985.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

__________. La positività del diritto come presuposto di una società moderna. In: Luhmann, Niklas, La differenziazione del diritto: contribute alla sociologia e alla teoria del diritto. s/l: Il Mulino, 1990. QUEIROZ, Marisse Costa de. Contingência e direito positivo: o paradoxo do direito na modernidade. Revista Sequência, Florianópolis, n. 49, dez 2004, pp. 95-111.

73

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

A ELOQUÊNCIA DE HARPÓCRATES: ENSAIO SOBRE O SILÊNCIO NO DIREITO BRASILEIRO Rodrigo Fuziger1 Submetido(submitted): 24 de agosto de 2016 Aceito(accepted): 29 de setembro de 2016 SUMÁRIO: 1. Prelúdio: brevíssimas considerações acerca do silêncio; 2. O(s) silêncio(s) no Direito; 3. Silêncio e bem decidir: a incomunicabilidade do corpo de jurados no tribunal do júri; 4. Silêncio criminoso e silêncio protetor: testemunhas e réus no sistema penal brasileiro; 5. Quem cala consente? silêncio e Direito Civil; 6. Conclusão (ou: um silêncio físico, múltiplos silêncios jurídicos); 7. Referências Bibliográficas. RESUMO Este trabalho visa analisar o papel do silêncio no Direito. Há centenas, senão milhares, de menções ao silêncio no ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, não se pretende, aqui, estabelecer uma arqueologia ou uma espécie de taxionomia dos institutos jurídicos referentes ao silêncio. O que se busca verificar, a partir de um olhar antropológico, é a hipótese de que há uma miríade de significados jurídicos para o silêncio, a depender do contexto e ramo do Direito que dele tratar. Assim, cabe perquirir como um fenômeno absolutamente idêntico (por justamente ser uma ausência de estímulo sensorial, sendo um nada e, portanto, fisicamente, sempre igual) adquire, dentro do específico campo do Direito, sentidos e funções diversas e, até mesmo, antagônicas. A tese da multiplicidade de sentidos do silêncio possivelmente pode ser evidenciada em virtude de que, dentro do plano jurídico, observa-se que o silêncio (como ausência de expressão sensível) transmuta-se ora em dever, ora em faculdade, ora em proibição. Assim, a partir de análises perfunctórias de alguns exemplos do uso do silêncio no Direito (no Tribunal do Júri; na produção probatória no processo penal; nos negócios jurídicos), buscar-se-á mostrar a condição poliédrica do significado do silêncio no Direito brasileiro, com diversas faces a depender da circunstância jurídica em que é empregado, o que evidenciaria uma ação da cultura atribuindo múltiplos sentidos ao mesmo fenômeno (ou ausência de fenômeno) físico. PALAVRAS-CHAVE: Antropologia do Direito; silêncio; jurados; réus; testemunhas; contratantes. ABSTRACT This work aims to analyze the role of silence in the Law. There are hundreds, if not thousands, references to the silence in the Brazilian Legal System. However, the focus of this work isn’t establishing an archeology of the silence in the legal institutions. What is sought is the hypothesis that there are plenty legal meanings for silence, depending on the context and branch of Law that addressing it. Thus, the silence is absolutely identical as a phenomenon (an absence of sensorial inputs is, physically, always the same) acquires within the specific field of Law, many senses and even antagonistic functions. The thesis of multiplicity of silence senses can possibly be highlighted by the multifarious uses of the legal term Silence, sometimes transmuted on a duty, faculty or even in a forbiddance. Therefore, through an analysis of some examples of the use of silence in Law (in the jury; in the production of 1

Bacharel, mestre e doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo. Bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Professor universitário e advogado.

75

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

evidences in criminal process; in the private Law), shall be demonstrated the multiplicity of meanings for the silence in the Brazilian Law, which possible evidences a cultural action by assigning different significances to the same physical phenomenon (or absence of phenomenon). KEYWORDS: Anthropology of Law; silence; jurors; defendants; witnesses; contractors. PRELÚDIO: BREVÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO SILÊNCIO “É fácil trocar as palavras, Difícil é interpretar o silêncio. (...) Nada sabemos da alma, Senão da nossa; As dos outros são olhares, São gestos, são palavras, Com a suposição de qualquer semelhança no fundo.” Fernando Pessoa2

No panteão de deuses da mitologia grega, a deusa Thémis, representante da Justiça, possui enorme importância, amplamente cultuada na Grécia antiga e rememorada ao longo dos milênios subsequentes. Por outro lado, a mitologia helênica relega a Harpócrates, divindade vinculada ao silêncio, um papel absolutamente secundário. Adorado em Alexandria, a origem de seu culto ocorreu provavelmente no Egito da era ptolomaica, em virtude do sincretismo religioso entre egípcios e gregos, sendo que estes apropriaram-se da representação da figura infantil de Hórus (Har-pa-khered significa “Hórus, a criança”), atribuindo-lhe novo sentido.3 Assim, a mitologia grega quase silenciou acerca do silêncio, ao passo que o culto à deusa da Justiça (para alguns, atribuível à Diké) foi difundido e reverberou ao longo do espaço-tempo. Muito embora a mitologia seja um tema antropológico, faz-se referência ao Panteão grego apenas como forma de demonstrar que nas mais diversas culturas, pouco se 2

In: Poesias Inéditas. Lisboa: Ática. 1955, p. 159. A figura de Hórus criança era representada no Egito antigo, por meio de um menino com o dedo indicador próximo ao lábio, simbolizando o hábito infantil de chupar o dedo (LAVEDAN, 1931, p. 495). No entanto, o culto grego utilizou-se da mesma representação e conferiu à imagem o gestual de silêncio, até hoje utilizado nas sociedades ocidentais.

3

76

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

falou ou se fala a respeito do silêncio, em uma espécie de irônica metalinguagem, ao passo que o Direito é um tema central de reflexão e debate nas mais diversas sociedades, dentre elas, o Brasil contemporâneo. Há que se considerar que tal comparação põe medida sobre categorias totalmente distintas, já que o silêncio é uma espécie de recurso expressivo da comunicação, enquanto o Direito é instrumento de pacificação/dominação da sociedade. Mas tais categorias se tangenciam a partir do momento em que há um diálogo (monólogo?) entre Harpócrates e Thémis, ou seja, quando se tangencia silêncio e Direito. Como acima mencionado, fala-se pouco sobre o não falar e suas implicações jurídicas. Dessa forma, se, em geral, o Direito é tema debatido nos mais diversos espaços e das mais variadas formas, o específico tema do silêncio no Direito não é particularmente proeminente, mesmo dentro do âmbito acadêmico. O objetivo do presente trabalho é justamente contribuir no ato de “desamordaçar” o tema do silêncio no Direito, a partir de uma aproximação interdisciplinar, alicerçada sobre o prisma do olhar antropológico. Não à toa, a escolha de um título com uma referência de ordem mitológica, sinaliza, simbolicamente, que, desde a primeira linha deste estudo, toma-se por base a premissa de que o olhar sobre o universo jurídico (inclusive, como campo fértil de uma mitologia particular) imprescindivelmente deve se ater a seus elementos culturais, os quais são formadores e conformadores do Direito. Luís Roberto Cardoso de Oliveira aponta que um dos traços em comum entre Direito e Antropologia é a crítica às interpretações arbitrárias, seja na parcialidade das decisões ou no etnocentrismo de leituras das culturas

(OLIVEIRA, 2010, p. 454). Nesse ponto de

convergência, o silêncio possui inequívoca proeminência, por ser um vetor privilegiado de arbitrariedades4, haja vista que silenciar é motivar ou, no máximo, oferecer interpretações tácitas5. A aproximação entre silêncio e Direito – empreendida a partir do recorte que se atém ao ordenamento jurídico brasileiro vigente – decorre da observação de que diversas normas jurídicas pátrias fazem menção ao silêncio. Ao que parece, fazem de forma pouco coerente, atribuindo-lhe significados distintos e, muitas vezes, antagônicos. No entanto, essa pluralidade de significados contrasta com o silêncio que, sob o prisma físico, é um nada. É dizer, faticamente, o silêncio visto como ausência de qualquer tipo 4

No entanto, não é vetor exclusivo, já que a prolixidade de um magistrado pode sustentar decisões totalmente arbitrárias. Nesse sentido, por exemplo, qual a real motivação de um “sim” de um silente jurado? Seria a atuação da acusação ou razões íntimas a sua própria biografia? Não se quer saber o motivo e, mais além, em nosso sistema processual penal, não se deve e não se pode saber. Presume-se, numa calculada ingenuidade, que o jurado atevese aos fatos e na correspondente imputação, muito embora tais fatos chegaram até ele por meio de um processo (por ele(a) não lido), transmutado em um debate dialético que, não raro, não passa de um exercício de erística entre acusadores e defensores. 77 5

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

de manifestação captável pelos sentidos é sempre igual, já que é um "não ser", ao passo que seu oposto, o "ser" (como algum tipo de manifestação sensorialmente apreensível), pode se dar das mais diversas formas comunicativas. Portanto, o silêncio é analisado aqui sob um espectro amplificado, para além da ausência de sons, visto como a ausência de expressões sensíveis não apenas à audição. Nesse sentido, por exemplo, a linguagem corporal é apta a romper o silêncio, mesmo prescindindo de sons, já que nem por isso é ineficaz em exprimir mensagens, intenções, sentimentos. Assim, para o Direito, silenciar não é sinônimo de emudecer, mas sim de não se expressar. Diante desse panorama, surge a hipótese que norteará o presente artigo: o silêncio, como um mesmo fenômeno físico, adquire, no Direito, uma pluralidade de significados. O(S) SILÊNCIO(S) E O DIREITO Desde que a linguagem é atributo da condição humana (do ser humano como ser cultural) o silêncio passou a uma condição significante privilegiada, haja vista que ele representa não mais apenas uma primitiva incapacidade de se comunicar em um idioma minimamente compartilhável6, mas sim a opção de não se expressar, mesmo tendo a capacidade e instrumento para tanto. Assim, hoje, cala-se apenas aquele que poderia falar e/ou escrever e/ou gesticular, etc. Assim, para um indivíduo apto a se expressar, inserido em uma sociedade em que haja um ou mais tipos de linguagem, ficar em silêncio é opcional. No entanto, ao acrescentar a esse panorama a existência de um ordenamento jurídico, em determinadas condições, silenciar deixa de ser uma opção, tornando-se também obrigação ou proibição.7 Antes de pormenorizar o cotejo, acima suscitado, entre silêncio e Direito, necessário esboçar algumas considerações acerca do silêncio e o que se construiu culturalmente a seu respeito. Pedro Paulo Gomes Pereira aponta que “o silêncio é dispositivo discursivo e devemos buscar entender as diferentes maneiras de não dizer, averiguar quem pode ou não falar, verificar quem fala por quem. Portanto, devemos entender os silêncios como partes integrantes das estratégias dos discursos” (PEREIRA, 2015, p. 1).

6

78

Isso não implica afirmar que houve outrora ancestrais envoltos pelo silêncio. Nascemos chorando e nosso corpo, por si, é elemento expressivo, o que basta para romper o silêncio. Apenas é concebível que longínquos antepassados viviam em uma condição de silêncio linguístico (seja verbal, gestual, imagético ou coisa que o valha). 7 Cabe apontar que normas morais ou religiosas também impõem regras comportamentais acerca do exercício do silêncio.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

De fato, o silêncio é instrumentalizado das mais diversas maneiras e com variadas finalidades, o que é possível em virtude de sua versatilidade e potencialidade. Em síntese, o silêncio (como nada) pode vir a ser tudo, a depender das intencionalidades e interpretações. Todavia, como dito na frase anterior, o silêncio é menos um “é” e muito mais um “vir a ser”. Nesse sentido, “nada é tão vulnerável quanto o silêncio” (LE BRETON, 1999a, p. 23). Em português, a expressão “quebrar o silêncio”8 vai ao encontro da constatação dessa fragilidade intrínseca ao silêncio. Este que é terreno fértil de possibilidades, vastissimamente interpretável e sempre a um átimo de deixar de ser, já que é um coadjuvante, mero intervalo do ato de se expressar9. Se por um lado, o silêncio tem em sua imanência a vulnerabilidade, por outro, o Direito se apropria de suas possibilidades, tornando-o um robusto instrumento de legitimação das decisões e, por conseguinte, da pretensa obtenção da Justiça. Importa assim, buscar compreender porque, circunstancialmente, estabeleceu-se, no Direito, que ora impor, ora vedar, ora facultar o silêncio são expedientes que contribuem para a consecução de uma decisão “justa”. Buscar-se-á evidenciar tal variabilidade da apropriação do uso do silêncio pelo Direito a partir de três exemplos que serão descortinados nos tópicos subsequentes. O primeiro deles, propositalmente mais extenso e denso que os demais, servirá de ponto de partida à demonstração da hipótese deste trabalho, abordando o silêncio como imposição aos jurados nos julgamentos de crimes dolosos contra a vida pelo Tribunal do Júri. SILÊNCIO E BEM DECIDIR: A INCOMUNICABILIDADE DO CORPO DE JURADOS NO TRIBUNAL DO JÚRI A Constituição Federal de 1988 manteve a sistemática do Tribunal do Júri já prevista na Constituição de 1946. Trata-se de uma instituição que é assegurada como direito fundamental, com status de cláusula pétrea. A Carta Magna dispõe: Artigo 5º, XXXVIII: É reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

8 Há equivalentes em outros idiomas, por exemplo: “break the silence” em inglês e “briser le silence” em francês são expressões que conotam a mesma ideia. 9 O incômodo e assombro que a peça “4:33” do compositor estadunidense John CAGE causa sobre uma plateia exemplifica a privilegiada capacidade do silêncio em quebrar expectativas e causar estranhamento. 79

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Dentre os atributos constitucionalmente assegurados ao Tribunal do Júri não está enumerada a incomunicabilidade. É no Código de Processo Penal (CPP), de 1941, que tal instituto é previsto, importando dizer que ele foi objeto de reforma em 2008. A atual redação do CPP, que em seu bojo explica o que é a incomunicabilidade, assim dispõe: Art. 466. § 1o O juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa, na forma do § 2o do art. 436 deste Código. § 2o A incomunicabilidade será certificada nos autos pelo oficial de justiça.

Alguns juristas entendem que a incomunicabilidade é decorrência lógica do sigilo das votações (constitucionalmente assegurado), não podendo ser suprimido do ordenamento sem ofensa ao artigo 5º da Constituição Federal. Nesse sentido, afirma Schlee Gomes:

Não se pode, diante da previsão constitucional brasileira, pegar determinados pontos e colocá-los no nosso ordenamento jurídico como se fosse melhor. Há a Constituição, há uma tradição baseada na lei, no sistema brasileiro, que confia no voto independente e consciente de cada jurado e a justiça expressada na votação majoritária. A adoção do sistema baseado no sigilo das votações justifica-se na busca do voto livre e independente dos jurados, alheio a pressões e forças estranhas ao livre convencimento e, então, decisão da causa. (GOMES, 2015, p. 44)10

No entanto, ao que parece, não parece ser correto entender a incomunicabilidade como pressuposto de uma decisão sigilosa. É dizer, debater o processo não significa necessariamente revelar de que forma o jurado votará. Certo é que desde o momento em que seu nome é sorteado, o CPP estabelece que o jurado permaneça incomunicável, em silêncio acerca do processo que julgará.11 Silêncio que é entendido como ausência de comunicação, haja vista que, exemplificando-se, gestos podem expressar a opinião do jurado, sendo também vedados. No Tribunal do Júri, o Direito impõe uma obrigação de silêncio aos jurados.

80

10 Nota-se que há diversos posicionamentos diametralmente contrários, entendendo ser a incomunicabilidade inconstitucional. Nesse sentido, por exemplo, cf. RANGEL, Paulo. A inconstitucionalidade da incomunicabilidade do conselho de sentença no Tribunal do Júri brasileiro. Disponível em: . Acesso em: 12/07/2015. 11 Cabe lembrar que o jurado pode se comunicar com o juiz, inclusive formulando, por meio dele, perguntas ao ofendido e às testemunhas, conforme dispõe o artigo 473, §2º, do CPP.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

O “silêncio-obrigação” é uma das formas que o Direito brasileiro se apropria e utiliza a ausência do expressar. Do ponto de vista antropológico, antes de simplesmente apontar exemplos de utilizações diversas do silêncio pelo Direito, cabe indagar quais razões sustentam ser o silêncio deliberativo dos jurados benéfico ao bom funcionamento e à efetividade do Tribunal do Júri. Assim, em breves linhas, buscar-se-á compreender e não estabelecer um juízo de valor acerca do instituto da incomunicabilidade. Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer aplica a noção de “evitação” à incomunicabilidade dos jurados:

Evitação é outro elemento bem difundido em cerimônias e bastante presente nos julgamentos do Júri, pois, nele, as pessoas evitam praticar certas ações, circular por determinados espaços, tocar alguns objetos e entrar em contato com outras pessoas, aumentando, assim, a significância da ocasião e reforçando-a como especial ou sagrada. A exigência de que os jurados permaneçam incomunicáveis, uma vez composto o Conselho de Sentença, é, talvez, o exemplo mais claro de uma série de comportamentos controlados por códigos de evitação. (SCHRITZMEYER, 2001, p. 92)

Dentro da perspectiva da ritualística do Tribunal do Júri, a incomunicabilidade oriunda de um “código de evitação” possivelmente decorre da tentativa de legitimar a imparcialidade dos jurados a partir do silêncio. Os juízes togados são condicionados a ao menos transparecerem imparcialidade. Tal exigência é da ordem do impraticável para os cidadãos que compõem o Conselho de sentença, haja vista que eles não são formados para tanto nem podem recorrer ao artifício da motivação de suas decisões, como forma de demonstrar imparcialidade.12 Dessa maneira, numa plenária em que os jurados pareceram, aos olhos dos presentes, incomunicáveis13, poder-se-ia presumir que os sete votaram imparcialmente e tecnicamente, após uma avaliação de tudo que lhes foi apresentado no julgamento.

12 Ao menos na teoria, a partir da motivação, o magistrado demonstra que decidiu a partir de normas jurídicas vigentes. Assim, uma decisão parcial, em tese, necessitaria ao menos de elementos normativos parciais que a sustentasse. Um juiz togado pode decidir com base no mesmo raciocínio ou pelas mesmas razões que um jurado, mas ele pode lançar mão de algum princípio ou lei que vá ao encontro do teor de sua decisão. 13 É interessante observar que acusação e defesa buscam fazer leituras dos jurados sob o “véu da incomunicabilidade”, as quais, não raro, se mostram equivocadas, dada a imprevisibilidade advinda do silêncio. Nesse sentido, um promotor do Tribunal do Júri atesta: “(...) Quando digo certas coisas, fico ao lado de uma dona de casa e, depois, vou para o lado do jovem empresário que quer subir na vida (...). Mas a gente se engana, porque os jurados jogam com essa história da incomunicabilidade e do sigilo dos votos. É o poder deles” (SCHRITZMEYER, 2001, p. 79.) 81

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

O silêncio impede que fatores “extrajurídicos” sejam manifestados como decisivos nas respostas dos jurados. É inegável que os trajes utilizados pelos réus ou mesmo seus trejeitos e formas de se expressarem exercem influência sobre a tomada de decisão dos jurados. Inconteste, por seu turno, que tais características também afetam os juízes togados. No entanto, estes detém a técnica, que serve como uma espécie de verniz jurídico para legitimar decisões que passam longe da subsunção do fato à norma.14 Tal hipótese refuta a ideia de que não caberia aos jurados deliberarem livremente como forma de protegê-los de influências externas, “da lei do mais forte, da ditadura do intelectual, da submissão do tímido pelo extrovertido, da sedução e tantas outras hipóteses opressivas possíveis de ocorrer sob o regime anglo-americano entre os indivíduos-jurados, enquanto debatem na sala especial” (NASSIF, 2008, p. 145). Ao contrário, o “silêncio-obrigação”, observado na imposição da incomunicabilidade, resguarda a impressão de bem decidir no Tribunal do Júri. A exigência do silêncio decorre de uma busca de proteção do poder Judiciário frente aos jurados, os quais poderiam, ao romper a incomunicabilidade, evidenciar que suas decisões não são “jurídicas”, ou seja, minimamente calcadas na relação entre os fatos e as normas aplicáveis. Se assim o for, cabe um paralelo com uma crítica foucaultiana ao cientificismo: Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem “menorizar” quando dizem: “Eu formulo este discurso, enuncio um discurso científico e sou um cientista?”. Qual vanguarda teórico-política vocês querem entronizar para separá-la de todas as numerosas, circulantes e descontínuas formas de saber? (FOUCAULT, 1979, p. 172)

Ao Direito Processual Penal brasileiro, aplica-se a ideia do excerto de Foucault, substituindo-se a figura do cientista pela figura do “operador do Direito”. Nesse sentido, a deliberação pelo diálogo é exclusiva àqueles que pertencem integralmente ao campo jurídico e não esporadicamente, tal qual um jurado, leigo que circunstancialmente está investido em uma função judicante. Diante de toda mise-en-scene do Tribunal do Júri, não é de se espantar que, em algumas ocasiões, os juízes leigos pouco compreendem os jargões jurídicos, a terminologia exacerbadamente e propositalmente técnica. Daí surge solo fértil para que a compreensão e formação de opinião possam surgir de elementos que não seriam, a princípio, protagonistas. Nesse sentido, o canal da expressão pode ganhar mais destaque do que a mensagem, uma vez 14

82

Nesse sentido, Rui Portanova observa que “no julgamento há premissas ocultas imperceptíveis” (PORTANOVA, 2003, p. 15).

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

que esta contém termos desconhecidos e ininteligíveis, mas pode ser expressa de formas conhecidas, como um tom severo ou, do contrário, de maneira plácida. Portanto, subliminarmente, a incomunicabilidade sugere que não cabe ao jurado falar um “idioma” que não domina. Presume-se que quem pode dizer (por dominar o “idioma”), diz o quanto basta: “O imperativo de dizer tudo dissolve-se na ficção de que tudo foi dito, mesmo se deixar sem voz aqueles que teriam coisas diferentes a dizer, ou teriam escolhido um discurso diferente” (LE BRETON, 1999b, p. 13). Para a legitimação da soberania popular por meio do Júri, demanda-se do jurado, sob o “silêncio-obrigação”, apenas a escolha muda por uma dentre duas monossílabas – sim ou não – por uma ou algumas vezes em sequência, a depender da quesitação.15 SILÊNCIO CRIMINOSO E SILÊNCIO PROTETOR: TESTEMUNHAS E RÉUS NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO Ainda na seara do Direito Processual e Direito Material Penal, é possível observar empregos distintos do silêncio, o qual não mais é utilizado pelo Direito como o “silêncioobrigação” dos jurados, em incomunicabilidade. É curioso observar que na instrução probatória do Processo Penal brasileiro, o réu é ouvido em interrogatório, bem como usualmente há o depoimento de testemunhas. Em certos casos, peritos também são ouvidos, havendo ainda situações em que intérpretes e contadores também tem atuação processual. Para o réu, o silêncio é opcional, ao passo que para todos os demais o silêncio é vedado, inclusive sancionado penalmente, sendo a conduta de silenciar equiparada ao crime de falso testemunho: Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.

Portanto, por exemplo, uma testemunha que cala a verdade comete um crime. Se o ordenamento jurídico lança mão do Direito Penal para punir tal conduta, depreende-se que ela possui substancial gravidade, haja vista que o Direito Penal, pelo menos em tese, deveria ser utilizado apenas subsidiariamente, como ultima ratio. À testemunha, ao perito, ao contador, o Direito impõe o dever de não calar a verdade. Observa-se, assim, o “silêncio-proibição”.

15

Chama-se de quesitação o conjunto de perguntas feitas aos jurados após os debates em plenário.

83

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

No caso das testemunhas16, o ordenamento jurídico pátrio impõe àquele que supostamente conhece a “verdade” acerca de um determinado fato, o dever de contribuir para o deslinde do processo, por meio de sua palavra que servirá de elemento probatório. Justificase que o conhecimento da verdade pelo(s) julgador(es) permitiria o alcance de uma decisão justa. Verdade e justiça são atributos de grande protagonismo dentro das mais diversas culturas, o que leva o direito positivo a impor o rompimento do silêncio como meio de consecução da verdade, imediatamente e da Justiça, mediatamente.17 Sob o estrito prisma da proeminência do valor da verdade e da justiça como virtude primordial em nossa sociedade, causa perplexidade verificar que o Direito confere ao silêncio do réu um tratamento totalmente distinto daquele disposto à testemunha. A Constituição Federal do Brasil, em seu artigo 5º, inciso LXIII, afirma que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado (...).” A Convenção Americana de Direitos Humanos – oriunda do Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário – prevê em seu artigo 8º, o direito a não autoincriminação. Já o Código de Processo Penal, em seu artigo 186, dispõe: “Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas”. De tais comandos normativos, depreende-se que no Direito brasileiro, no que concerne ao réu, há o “silêncio-defesa”. A dicotomia entre o silêncio do réu e da testemunha fica cristalinamente evidenciada em dois excertos de votos de ex-ministros do Supremo Tribunal Federal:

O comportamento do réu durante o processo na tentativa de defender-se não pode ser levado em consideração para o efeito de aumento da pena, sendo certo, também, que o réu não está obrigado a dizer a verdade (art. 5º, LXIII, da Constituição) e que as testemunhas, se mentirosas, devem elas, sem reflexo na fixação da pena do réu em favor de quem depuseram, ser punidas, se for o caso, pelo crime de falso testemunho". (STF, HC n. 72.815, rel. Min. Moreira Alves, DJU de 6/10/1995)

84

16 Cabe apontar que alguns indivíduos estão isentos de servir como testemunhas, por razões diversas, como grau de parentesco ou sigilo profissional. Nesse sentido, cf. os artigos 206 e 207 do CPP. 17 John RAWLS inicia A Theory of Justice apontando que a justiça é a primeira virtude das instituições sociais, assim como a verdade é dos sistemas de pensamento. Perfeitamente cabível substituir “sistemas de pensamento” por “instrução probatória” ou mesmo por “processo”.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Nemo tenetur se detegere: direito ao silêncio. Além de não ser obrigado a prestar esclarecimentos, o paciente possui o direito de não ver interpretado contra ele o seu silêncio. IV. Ordem concedida, para cassar a condenação. (STF, HC n. 84.517/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 19/10/2004)

A expressão nemo tenetur se degetere, oriunda do direito romano, é utilizada como princípio basilar de nosso Direito Processual Penal, assegurando que o acusado não é obrigado a produzir provas contra si mesmo, podendo, para tanto, permanecer em silêncio, o que não poderá ser interpretado em seu desfavor. Silenciar é uma das formas possíveis de se defender da acusação feita. Muito embora, do ponto de vista da consecução da Justiça, o réu deveria ser impelido a falar a verdade, tal qual as testemunhas, isso não se dá, sobretudo, por duas razões: A primeira, de ordem prática, é que resguardar o direito ao silêncio acaba por relativizar o valor da confissão, obtida ao longo da história, sob as mais diversas formas de tortura, sendo que a confissão não mais ostenta, em nossa dinâmica processual penal, seu status de “rainha das provas”. A segunda, de ordem ideológica e também prática, faz do silêncio instrumento útil ao princípio da vedação da autoincriminação, permitindo que o indivíduo resguarde seu direito à liberdade18 e não seja compelido a produzir provas contra si, uma vez que é incumbência da acusação lastrear a condenação do réu. Em síntese, as testemunhas são coagidas a falar (“silêncio-proibição”), porque suas versões poderiam contribuir para a consecução de uma decisão justa, sendo que tal decisão não as prejudicaria, ao menos diretamente. Por outro lado, o réu pode permanecer calado durante toda persecução penal (“silêncio-defesa”), como forma de proteger sua liberdade, pois tudo que o acusado falar – por exemplo, em prol de uma decisão justa – pode ser usado contra ele mesmo, sendo que não é razoável, na ótica de nosso Direito, que se exija que um réu aja em prejuízo próprio. QUEM CALA CONSENTE? O SILÊNCIO NO DIREITO CIVIL Como derradeiro exemplo do uso caleidoscópico do silêncio por parte do Direito, será feita uma menção ao silêncio no Direito Civil, mais especificamente no que concerne à ausência de manifestação nos negócios jurídicos. 18 O que é sobremaneira justificável ao se vislumbrar que a perda da liberdade ocorreria dentro de algum presídio medieval brasileiro. 85

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

É nesse contexto que o silêncio no plano jurídico mais se aproxima do silêncio em seu sentido fenomênico (ou, sendo ausência de qualquer expressão, em seu sentido não fenomênico): como regra, o silêncio no Direito Civil é um nada. É a ausência de manifestação de vontade que não gera qualquer efeito. O “silêncio-nada” dos negócios no Direito Civil advém da necessidade do consenso entre as partes para a consecução do negócio jurídico. Desde as práticas mais primitivas de negócio, por exemplo o escambo, havia o pressuposto de que os negociados celebravam um acordo ao trocarem seus bens. Milênios depois, a lógica persiste e numa relação negocial entre particulares, de ordem privada, a vontade manifesta e livre é, via de regra, elemento essencial para que tal negócio seja válido. Ocorre que tal regra comporta uma exceção que modifica o sentido atribuído pelo Direito Civil ao silêncio. O artigo 111 do Código Civil dispõe: “O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”. Em tais circunstâncias, o silêncio deixa de ser um nada (regra) e transmuta-se em aceitação (exceção), havendo, dessa forma, dentro do Direito Civil, uma espécie de “silêncioanuência”.19 Portanto, a pergunta “no Direito Civil brasileiro, quem cala consente?”20 teria sua resposta dentro da gigantesca zona de penumbra do “depende”, palavra que quase tudo responde em nosso Direito. Isto porque, ao calar (não se expressar), o indivíduo, como regra, não consente. No entanto, em determinadas situações (geralmente relacionadas às graciosidades, como doações e heranças testamentárias), o silêncio significa anuência.

CONCLUSÃO

(OU:

UM

SILÊNCIO

FÍSICO,

MÚLTIPLOS

SILÊNCIOS

JURÍDICOS) O Direito é produto cultural. Independente de positivações em diplomas legais, regras de convivência – que disciplinam comportamentos e protegem interesses – são quase contemporâneas à humanidade. Ao mesmo tempo que o Direito é criação da cultura humana, 19

86

Um exemplo disso é a presunção de aceitação (chamada de “concordância tácita”) da doação pura pelo donatário que não a rejeita dentro do prazo fixado. In literis, dispõe o artigo 539 do Código Civil: “O doador pode fixar prazo ao donatário para declarar se aceita ou não a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo”. 20 Credita-se ao Papa Bonifácio VIII, em um de seus decretos no século XIII, a expressão “quem cala consente” (Qui tacet, consentire videtur).

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

ele possui privilegiada capacidade de transformar a cultura, estabelecendo as formas e limites em que a humanidade atua para tanto. É traço da cultura humana o apropriar-se dos fenômenos e atribuir-lhes significados simbólicos, sendo que o variado uso do silêncio pelo Direito é apenas uma evidência da relação entre o que é apreendido pela humanidade e o produto abstrato que é simbolizado a partir dessa apreensão. Como um elemento cultural, o silêncio adquire os mais diversos contornos e significados. Apenas no específico campo do Direito brasileiro, como visto, ele se mostra polimorfo, dividindo-se – para dar alguns exemplos – em obrigação, proibição, direito e também em nada. Assim, o uso do silêncio por aqueles que são partes do processo está totalmente atrelado ao papel que será desempenhado. Nesse sentido, um mesmo indivíduo deverá calar se for jurado, falar se for testemunha e calar ou falar, conforme desejar, se for réu. Conclui-se, portanto, que o silêncio adquire um status peculiar dentro do plano jurídico. É notório o entendimento de que o Direito costuma transportar de forma simplista e reducionista os fatos do ser para que eles caibam e se adequem no reduzido espaço do deverser. Dessa forma, ele insere o universo dentro de seu microcosmos normativo. No entanto, quanto ao silêncio, em vez de reduzir sua amplitude de significados, o Direito confere diferentes sentidos ao mesmo fenômeno (ou, insiste-se, ausência de fenômeno). Em suma, o silêncio significa mais no plano do dever-ser do que como fenômeno no plano do ser. Para a Antropologia do Direito, o silêncio também parece se apresentar como um tema delicado e espinhoso, haja vista que ele demanda uma análise que parte de um ponto incomum: o do Direito como amplificador e não redutor de um fenômeno. A interseção entre Direito e Antropologia – abordada das mais diversas perspectivas, remetendo-se aqui a autores como Clifford Geertz e Luis Roberto Cardoso de Oliveira – torna-se ainda mais complexa ao tratar do silêncio, já que seus significados particulares, dentro do Direito, são categorizados e impostos por normas, o que dificulta a assunção de significados coletivos. Dessa forma, ao se falar do silêncio no Direito, parece ser necessário indagar em qual contexto, pois, dada sua multiplicidade de sentidos, ele se mostra um objeto absolutamente avesso a generalizações.

87

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. 2ª edição. Tradução de Sérgio Micelli, São Paulo: EDUSP, 1998. CARRIÓ, Genaro R. Notas sobre derecho y lenguage. 4ª ed. Buenos Aires: Astrea, 1994. CASSIRER, Ernst. A filosofia das formas simbólicas. Tradução de Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001. DAVIS, Shelton H. (org.). Introdução. In: Antropologia do Direito. Rio de Janeiro: Zahar, 1973. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 3ª ed. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado. Rio de Janeiro: Nau, 2002. ________. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. Tradução Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999. ________. Microfísica do poder. Tradução de Robert Machado. Rio de Janeiro, Graal, 1979. FUZIGER, Rodrigo. Direito penal simbólico. Curitiba: Juruá, 2015. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Tradução de Vera Mello Joscelyne. Petrópolis: Vozes, 1997. GOMES, Schlee. Sigilo das votações e incomunicabilidade: garantias constitucionais do Júri brasileiro.

Revista

do

MP-RS,



67,

2010.

Disponível

em:

. Acesso em: 11/07/2015. KUPPE, René; POTZ, Richard. La antropología del derecho: perspectivas de su pasado, presente y futuro. In: Antropología Jurídica. Ciudad de México: Universidad Nacional

88

Autónoma de México, 1995.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

LAVEDAN, Pierre. Dictionnaire ilustré de la mythologie et des antiques grecques et romaines. Paris: Hachette, 1931. LE BRETON, David. Anthropologie du silence. In: Théologiques, vol. 7, n° 2, 1999a, p. 1128. Disponível em: . Acesso em: 13/07/2015. ________. Do silêncio. Tradução de Luís Couceiro. Lisboa: Piaget, 1999b. LIMA, Antonio Carlos de (org.) – Antropologia & Direito. Temas antropológicos para estudos jurídicos. Rio de Janeiro/ Brasília: Contra Capa/ LACED/ Associação Brasileira de Antropologia, 2012. MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2ª ed., Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999. OLIVEIRA, Luís Roberto Cardoso de. A Dimensão Simbólica dos Direitos e a Análise de Conflitos. In: Revista de Antropologia, nº 53, Dossiê Antropologia do Direito, 2010, p. 451473. PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 5ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. PEREIRA, Pedro Paulo Gomes. Antropologia e Direitos humanos: entre o silêncio e a voz. Disponível em: . Acesso em: 12/07/2015. RANGEL, Paulo. A inconstitucionalidade da incomunicabilidade do conselho de sentença no Tribunal do Júri brasileiro. Disponível em: . Acesso em: 12/07/2015.

89

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

SCHRITZMEYER, Ana Lúcia Pastore. Controlando o poder de matar: uma leitura antropológica do Tribunal do Júri – ritual lúdico e teatralizado. Tese de doutorado em Antropologia Social — FFLCH-USP, São Paulo, 2001.

90

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

A CONSTITUIÇÃO DE CÁDIS ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE Ariel Engel Pesso1 Submetido(submitted): 23 de agosto de 2016 Aceito(accepted): 22 de outubro de 2016 RESUMO Na Espanha, a Constituição de Cádis, de 1812, representou um marco na história do constitucionalismo moderno, em especial no ibero-americano. Profundamente liberal, trazia em seu bojo importantes conquistas já positivadas na Constituição Francesa de 1791, como o princípio da soberania popular e a garantia a direitos individuais, mas diferenciava-se por tratar igualmente os cidadãos da metrópole e da colônia. Foi promulgada como lei fundamental e constitutiva da Monarquia católica espanhola e, para tanto, fez uso de três instrumentos: o juramento, os procedimentos de infrações e a rigidez na reforma. Em realidade, a quebra da configuração jurídico-política tradicional e sua conseguinte recomposição significava antes a reconfiguração de elementos da velha ordem tradicional do que a transição para a modernidade jurídica. Assim, tal qual já o afirmara Alexis de Tocqueville em relação ao código prussiano, a Constituição gaditana assemelha-se a um ser monstruoso, dotado de um cabeça moderna sobre um corpo gótico. PALAVRAS-CHAVE: Constituição de Cádis (1812); tradição; modernidade; história do Direito. ABSTRACT In Spain, the Cadiz Constitution of 1812 represented a milestone in the history of modern constitutionalism, especially in Latin American. Deeply liberal, brought in its wake important achievements already positivated in the French Constitution of 1791, as the principle of popular sovereignty and the guarantee of individual rights but differentiated from it by treating equally the citizens of the metropolis and the colony. It was enacted as a fundamental and constitutive law of the Spanish Catholic monarchy and, therefore, made use of three instruments: the oath, violations of procedures and rigorousness in reformation. In fact, the breakdown of traditional legal-political configuration and its therefore recovery meant reconfiguring traditional elements of the old order than the transition to legal modernity. Thus, as it was already stated by Alexis de Tocqueville in relation to the Prussian code, the gaditan Constitution resembles a monstrous being, equipped with a modern head on a gothic body. KEYWORDS: Constitution of Cadiz (1812); tradition; modernity; history of law. INTRODUÇÃO Em 2012, comemorou-se os duzentos anos da Constituição de Cádis. De cunho liberal, ela teve uma enorme repercussão no constitucionalismo ibero-americano e parece passar de forma desapercebida entre nós, brasileiros, apesar da influência que aqui exerceu: em 21 de abril de 1821, no Rio de Janeiro, D. João VI jurou a Constituição de Cádis e publicou-a por 1



Bacharel e Mestrando em Direito pela Universidade de São Paulo. Bolsista da CAPES/CNPq.

91

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

decreto, mas a revogou no dia seguinte (BARRETO e PEREIRA, 2011). Além disso, ela exerceu forte influência sobre a Carta de 1824, nossa primeira Constituição. La Pepa, como os espanhóis a apelidaram em função de ter sido promulgada em 19 de março de 1812, dia de São José, não era, como muitos já sustentaram, uma cópia da Constituição francesa de 1791. Ademais, para situá-la no topo do ordenamento jurídicopolítico, os constituintes de Cádis pensaram em três instrumentos (ou elementos) necessários para torná-la de fato a lei suprema, em uma época em que as constituições estavam começando a aparecer no mundo ocidental, ainda impregnado pela velha ordem tradicional. Adotando uma concepção cultural do Direito e fazendo uso do ponto de vista interno (HART, 1961), o objetivo deste breve ensaio não é esgotar o assunto, mas antes reavivar a memória da Constituição de Cádis e localizá-la no conflito entre tradição e modernidade que tomou assento na Europa oitocentista. Assim, primeiro relataremos brevemente em que consiste este conflito, para em seguida localizar o referido diploma legal no contexto espanhol do início do século XIX para, por fim, realizar a leitura do que entendemos ser o papel da Pepa no embate entre a velha ordem tradicional e a nova ordem moderna. A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE NA CULTURA JURÍDICA EUROPEIA A cultura jurídica europeia, desde o final da Idade Média até o início dos séculos XIX e XX, se viu imersa em dois universos jurídico-políticos distintos e que se sucederam no tempo: o tradicional (referido também como pré-modernidade) e o moderno, referido comumente como modernidade. Estas duas grandes épocas de autocompreensão do mundo humano estiveram presentes em quase todos os âmbitos da vida cultural europeia: da política e do Direito, passando pela arte, arquitetura, modelo de organização da produção etc. A visão tradicional imprimia, segundo a vertente moderna, uma visão “arcaica” e “primitiva” à sociedade: ela seguia um fluxo natural, cuja cultura era reproduzida sem reflexão ou intenção consciente. Segundo António Manuel Hespanha (2012, p. 93), “são comunidades tradicionais, respeitadoras da ordem das coisas e dos tempos, avessas às mudanças, aos projetos, a qualquer forma de engenharia social”. Por isso que os especialistas do Direito, por não criarem ou retificarem a ordem, eram chamados de “prudentes”, cuja função era contemplar as ordens internas e externas existentes e promover sua manutenção, restaurando os equilíbrios locais. Porque a ordem já estava dada, tratava-se de um direito declarativo e contrapunha-se ao conceito de direito moderno, que constituiria a ordem (constitutivo) e surgiria a partir do século XVI, em decorrência da evolução da sociedade e da

92



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

necessidade centralizadora dos príncipes, que fizeram surgir novos institutos jurídicos, institutos estes que não mais podiam conviver com a ordem das coisas posta. Por isso que, segundo Carlos Garriga, el derecho pasó de ser comprendido, en términos jurisdiccionales, como un orden declarativo a partir de principios religiosamente indisponibles objetivado en la constitución tradicional del espacio político, a ser construido por obra de la voluntad racional de los hombres cohesionados en Estados nacionales (GARRIGA, 2012).

A visão moderna do mundo pressupõe o entendimento “de uma sociedade ordenada segundo um plano global, acessível, melhorável” (HESPANHA, 2012, p. 92), é dizer, a ocorrência simultânea de previsão e cientificidade – daí a necessidade de verdade científica no plano intelectual e da regulação no plano estatal. A crença no modernismo, no progresso do irracional para o racional, é um dos motes que guiam a ação dos homens, e por isso constitui também um dogmatismo a ideia de que é possível reconhecer os valores certos (o bem) e rechaçar os valores errados, para evoluir-se assim para um “estágio ótimo” da civilização. Ao invés de prudente, o jurisconsulto (aplicador do direito) ideal seria o legislador: sua autoridade está calcada em um conhecimento superior e objetivo, capaz de, mediante regras procedimentais válidas, criar leis gerais, abstratas e universais. Este tipo-ideal de intelectual da Idade Moderna é, pois, uma figura autoconfiante e autoritária, proprietária exclusiva de um conhecimento verdadeiro e geral, capaz de reafirmar (impor) uma ordem às coisas e “de decidir controvérsias de acordo com os padrões monótonos extraídos da lógica do sistema legislativo” (HESPANHA, 2012, p. 93). A modernidade, ainda, traz consigo dificuldades de três ordens, próprias dela e inexistentes anteriormente: (i) a ideia de indivíduo, verdadeiro paradigma moderno, que compõe a sociedade civil (distinta do Estado e regulada pela lei); (ii) a ideia de Estado, como organização política autônoma; e (iii) a ideia do Direito “legal”, ou seja, de que o Direito está formado por leis – gerais e abstratas – e que constituem seu principal componente. Estas três ideias criam obstáculos por vezes dificilmente ultrapassáveis pelo historiador do direito na análise do mundo tradicional. É importante frisar que a ruptura verdadeira entre o tradicional e o moderno ocorreu somente na França revolucionária, pois em todas as outras experiências a tradição ainda permaneceu, mesmo que velada. E, ainda que esta ruptura tenha ocorrido com a Revolução Francesa, a nova ordem moderna firmada reconhecia somente como indivíduo os homens

93

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

(gênero), cristãos (cultura), brancos (etnia), proprietários e paterfamilias (autônomo). É, pois, neste contexto de convivência entre tradição e modernidade que se dá a gênese da Constituição de Cádis. A CONSTITUIÇÃO DE CÁDIS: LEI FUNDAMENTAL E CONSTITUTIVA A Constituição de Cádis de 1812 não deve ser compreendida como um fenômeno isolado no contexto europeu da virada do século XVIII para o XIX. Produto de seu tempo, esteve no bojo das invasões napoleônicas no continente e na profusão de novos pensamentos trazidos com o iluminismo setecentista. Inspirada nas constituições norte-americana (1776) e francesa (1791), muitos a consideravam uma cópia desta última2, mas Marx e Engels reconheciam ser ela uma produção genuína do povo espanhol. Para o primeiro, Cádis era “una Constitución moderna, que pone a España a la cabeza de Europa en varios aspectos legislativos” (MARX, 1854 apud RIBAS, 1998, p. 43). Neste breve ensaio, pretendemos situar a Constituição de Cádis na ordem jurídicopolítica de então, razão pela qual optamos por não descrever todo o processo constituinte, nem a vigência da Constituição após 18143. Convém lembrar que desde 1808, com a imposição da Constituição de Baiona por Napoleão, Juntas soberanas passaram a reunir-se em várias cidades espanholas, opondo-se à invasão francesa. Helga Bezerra (2013, p. 91) fala em um duplo combate: em terra, os espanhóis tentavam rechaçar o avanço das tropas napoleônicas e, no campo das ideias, tratavam de combater o jugo estrangeiro ao declarar sua soberania. Em 1810, a Junta Central convocou Cortes Gerais e Extraordinárias, que tiveram assento em Cádis e trabalharam na confecção da Constituição gaditana, que foi promulgada no Oratório de San Felipe Neri, em 19 de março de 1812. Entretanto, a importância das Juntas não pode ser deixada de lado, a ponto de a historiografia dividir o processo constituinte em uma fase parlamentária e outra préparlamentária (TOMÁS Y VALIENTE, 1995, p. 56 e ss). Esta, de vital importância, foi responsável por tomar decisões de três ordens que, ao inovar a tradição, criaram as condições

94

2 Segundo Carlos Garriga, “(...) la Constitución de Cádiz no puede de ninguna manera adscribirse o reducirse al modelo francés y que ésta, junto com otras que asimismo resultaron de la crisis de la monarquia católica, componen un modelo singular de constitucionalismo, el hispano, com caracteres propios cualquiera que sea el aspecto formal (poder constituyente, constitución) o sustantivo (derechos, poderes)” e “Si la secuencia revolucionaria francesa llevó a la formulación de uma constitución moderna mediante la negación de la constitución tradicional (revolución como de-constitución/re-constitución), la revolución de la nación española se sustanció en la constitucionalización de las antiguas leyes fundamentales de la Monarquía (revolución como re-constitución sin de-constitución), y selló así el enlace constitución histórica (o material)-constitución escrita (o formal) que el proceso constituyente impulso prácticamente desde su arranque y marcó su desarrollo hasta el final” (2014, p. 155 e 163). 3 Para mais informações de ambos estes processos, cf. BEZERRA, 2013 e DALLARI, 2014.





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

de possibilidade da carta constitucional em circunstâncias deveras difíceis, a saber: (i) igualdade na posição de espanhóis e cidadãos das colônias (ponto de vista igualitário), (ii) ressignificação das leis fundamentais (a reformar), que identificar-se-iam com as “leis constitucionais da Espanha”, e (iii) uniformidade legislativa em face da enorme diversidade de fontes legais que existiam então na Espanha (GARRIGA, 2014, pp. 157-160). No despontar do século XIX, temas como liberdade, legitimidade do governo, soberania e respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos passaram a constar na ordem do dia do constitucionalismo. Influenciado pela onda revolucionária francesa, o processo chamado de “crise do Antigo Regime” exigia, mediante a legitimação de uma constituição, a criação de regimes que “garantissem os direitos dos cidadãos, atendessem à racionalização administrativa e à necessidade de separação e controle entre os poderes, diante da profunda transformação nos laços cívicos que teriam de unir os novos indivíduos entre si” (SLEMIAN, 2010, p. 125). Nesta esteira, a Constituição de Cádis – a quarta a surgir, atrás da norte-americana (1776), francesa (1791) e sueca (1809) – esforçou-se por reconhecer a cidadania soberana a ambos os hemisférios, convocando os cidadãos da Espanha peninsular, insular (incluídas as Filipinas) e colonial (América): “Artículo 1. La Nación española es la reunión de todos los españoles de ambos hemisferios”. Daí sua principal diferenciação em relação à Constituição francesa de 1791, que apenas reconhecia a soberania do povo residente na metrópole. Outra inovação da Constituição de Cádis, em relação às constituições norte-americana, francesa e sueca, é o conceito de nação política que ela inaugura, bastando, para tanto, ler os outros três artigos que compõem o Capítulo I (De la Nación Española), Título I (De la Nación Española y de los Españoles) da Constituição gaditana4. Portanto, a concepção de nação histórica, ancorada na tradição e na soberania exclusiva do monarca, dava lugar à nação política, representada pela soberania popular. Nasce, pois, o princípio da soberania nacional, importante também para a construção do conceito de nação no Brasil recém-independente (SLEMIAN, 2010). Em que pese estas principais inovações da Constituição de 1812, temos que reconhecer que, antes de ser moderna, ela trazia em seu bojo velhos elementos da tradição, 4

Art. 2. La Nación española es libre e independiente, y no es ni puede ser patrimonio de ninguna familia ni persona. Art. 3. La soberanía reside esencialmente en la Nación, y por lo mismo pertenece a ésta exclusivamente el derecho de establecer sus leyes fundamentales. Art. 4. La Nación está obligada a conservar y proteger por leyes sabias y justas la libertad civil, la propiedad y los demás derechos legítimos de todos los individuos que la componen” (ESPAÑA, 2012, p. 113 apud BEZERRA, 2013, pp. 106-107).



95

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

ainda que reformulados. A Constituição de Cádis, enquanto lei fundamental e constitutiva da Monarquia espanhola, teve que fazer uso de três ferramentas (ou elementos) para se situar e se consolidar no vértice da ordem normativa de então: o juramento, os procedimentos de infrações ao diploma legal e sua rigidez (impossibilidade de reformar-se o texto constitucional). Estes elementos possuíam duas características intrínsecas que sintetizam todo o sentido do momento constitucional de então: a quebra da configuração jurídico-política tradicional e sua conseguinte recomposição, com vistas a um verdadeiro Estado católico. O juramento tratava-se, como o próprio nome diz, de as diversas comunidades jurarem fidelidade à Constituição. Visto de início como insuficiente para gerar a adesão das pessoas, aos poucos foi sendo utilizado como meio de gerar legitimidade constituinte às Cortes de Cádis. A cerimônia de juramento obrigatório e incondicional carregava consigo um duplo significado (LORENTE, 2007, pp. 73-118): de um lado, o juramento dos vencinos (habitantes das aldeias) em suas paróquias simbolizava sua incorporação ao corpo político (nação constituída), delimitando o perímetro pessoal da ordem constitucional, que aplicar-se-ia apenas aos espanhóis, doravante cidadãos e, de outro, o juramento que as autoridades deveriam prestar em suas corporações5 situava a Constituição como “lei habilitante universal”, é dizer, o ritual corporativo tradicional evidenciava que a nova ordem da nação católica se constituiu através da antiga ordem monárquica católica. Ainda assim, vale lembrar que a Constituição não possuía, à moda dos códigos que seriam produzidos ao longo do século XIX, cláusulas derrogatórias da ordem vigente e deveria, pois, ser cotejada com o Direito tradicional para verificar-se sua compatibilidade. Com sua promulgação, entendia-se que a Constituição de Cádis tinha uma cláusula derrogatória do Direito antigo, ainda que isto não viesse expressamente escrito. Justamente por isto tentou-se por vezes conciliar a disciplina jurídica tradicional com os novos princípios constitucionais, interpretando-se cada qual a seu modo6. Em caso de incompatibilidade de normas, havia a derrogação virtual, como se dizia então – a norma constitucional prevaleceria sobre a tradicional. Com vistas à sua efetividade, os constituintes fizeram questão de incluir alguns artigos que previam o procedimento de infrações à Constituição, presente 5

96

“Jurando la Constitución los viejos cuerpos políticos aceptan la lectura liberal de la tradición que la sostiene y que, incorporándolos al nuevo orden de la soberanía nacional, los transmuta en nuevas instituciones (o sea, los disuelve en beneficio del novum constitucional), poniéndolos además – cuando es el caso – en disposición de organizar la publicación de la Constitución y su juramento por los pueblos en las parroquias. En esta lógica, es necesario que sean los sujetos políticos del viejo orden – las corporaciones, que no viven aún en tiempo constitucional – quienes juren y lo hagan además siguiendo el ‘ritual corporativo tradicional’” (GARRIGA, 2011, pp. 139-140). 6 D. T. H., Principios acerca de prisiones, conforme a nuestra Constitucion y las leyes. Para instruccion del Pueblo y gobierno de Jueces y Alcaldes constitucionales, Madrid, Imprenta que fue de Fuentenebro, 1814.





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

posteriormente também, por exemplo, nas Constituições do México (1821), Peru (1821) e Brasil (1824). Inspirado possivelmente na simples querela medieval, ao impor um cumprimento juridicamente sancionado erga omnes a carta gaditana estabeleceu parâmetros para verificar o direito válido e os dispositivos institucionais necessários à sua efetividade (artigos 160, 335, 372 e 373). Nesta esteira, a Constituição se tornava, na prática, a lei fundamental, porque servia de instrumento para articular de forma institucional seu efeito derrogatório (LORENTE, 1988). Assim sendo, o procedimento de infrações permite que compreendamos como se determinavam os efeitos da Constituição sobre a ordem jurídica, pois, repita-se, em caso de conflito entre norma constitucional e norma tradicional a primeira deveria prevalecer. Neste caso, a responsabilização dos infratores era também uma medida de cunho exemplar, pois servia para disciplinar os empregados públicos pertencentes às diversas corporações e garantia o monopólio das Cortes sobre a interpretação final da Constituição, interpretação esta que conferia uma uniformidade fictícia – a proliferação de jurisprudência constitucional se deu, em parte, porque como todo espanhol estava legitimado a interpretar e denunciar infrações à Constituição, cada um lia conforme sua visão de mundo, cultura e posição social e isso gerou muitos conflitos (GARRIGA, 2014, pp. 167-168 e 2011, pp. 146-151). O terceiro e último instrumento era a rigidez para a reforma, vislumbrada de duas perspectivas diferentes: (i) durante os oito primeiros anos (ininterruptos) de vigência, o art. 375 vetava qualquer alteração na Constituição, fosse para alterar, adicionar ou reformar e (ii) estabeleciam-se requisitos e trâmites tão severos para tanto (artigos 376 a 384) que, por exemplo, nenhum procedimento de reforma poderia terminar até seis anos depois de iniciado. Esta rigidez procurava proteger a Constituição de Cádis da abertura de um novo processo legislativo orientado a modificar o texto constitucional original mediante reformas subreptícias, defendendo-se sua forma e conteúdo material, interpretável (e deturpável) (GARRIGA, 2011, pp. 151-158 e e SARASOLA, 2001)7. Do que vimos até aqui e ao analisarem-se os três instrumentos responsáveis por erigir a Constituição de Cádis de 1812 em lei fundamental e suprema da Monarquia católica da Espanha, é possível concluirmos que (...) la Constitución no rompió el tracto histórico normativo, pero al imponer un principio de supremacía constitucional sí reconfiguró el sistema jurídico:

7 É por isso que “si el procedimiento de infracciones sirve para depurar constitucionalmente el derecho viejo, el régimen de reforma orienta el derecho nuevo en la dirección constitucionalmente marcada” (GARRIGA, 2011, p. 155).



97

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

el nuevo orden de la soberanía nacional no se constituyó al margen sino a través del viejo orden de la monarquía católica (juramento), que por esto mismo quedó sujeto a una constitución que a título de ley fundamental impuso sus preceptos a toda outra ley previa (infracciones) o posterior (reforma) (GARRIGA, 2014, p. 171).

CONSIDERAÇÕES FINAIS: CONSTITUIÇÃO DE CÁDIS ENTRE A TRADIÇÃO E A MODERNIDADE OU CABEÇA GÓTICA, CORPO MEDIEVAL Rotulada desde sua promulgação como liberal, independente, pouco monárquica e antiaristocrática, a Constituição de Cádis de 1812 ainda é alvo de amplos debates pela historiografia do Direito. Há autores que a consideram uma obra de transição, podendo ser considerada revolucionariamente tradicional ou modernamente tradicional (ANDRÉS, 1962). De fato, não há como negar que ela ainda estava calcada na tradição, como afirmam as palavras iniciais do Discurso Preliminar: “Nada ofrece la Comisión en su proyecto que no se halle consignado del modo más auténtico y solemne en los diferentes cuerpos de la Legislación española (...)”. Ao final, corrobora-se esta visão: “Las bases de este proyecto han sido para nuestros mayores verdades prácticas, axiomas reconocidos y santificados por la costumbre de muchos siglos” (SÁNCHEZ AGESTA, 2011, p. 40 apud BEZERRA, 2013, p. 104)

Contudo, ela também tinha sua “parcela de modernidade”. O projeto jurídico desenhado pelo jusracionalismo anterior ganha força entre os anos de 1750 e 1850, a ponto de o arranjo institucional do Estado dar bases ao constitucionalismo moderno (HESPANHA, 2012). O Direito institucionalizado – geral, abstrato e consensual – vai agora ser utilizado para otimizar os paradigmas da organização política (o Estado liberal e soberania popular), social (a cidadania ativa) e econômica (liberalismo burguês) da Europa. É nesta esteira que os grandes princípios da liberdade, propriedade e igualdade perante a lei são instituídos e a Constituição gaditana não poderia ficar de fora. Assim, em que pese a frequente redução da problemática gadatina à dicotomia antigo/moderno ou despotismo/liberdade, entendemos que GARRIGA (2014, p. 161) está certo ao afirmar que “não se tratava de recuperar da história uma constituição política tradicional, mas a matéria tradicional para formar uma constituição política moderna”. Vislumbra-se isto na tríade constituição-leis não derrogadas-decretos soberanos em que se transformou o Direito espanhol pós-Cádis. Justamente porque a Constituição de Cádis era dotada de meios capazes de situá-la no topo da ordem tradicional, uma das possíveis leituras

98

permite descrevê-la – tal qual Tocqueville o fez em relação ao código prussiano de Frederico,



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

o Grande – como um ser monstruoso, por estar dotado de um cabeça moderna sobre um corpo gótico8 (TOCQUEVILLE, 1988, pp. 317-320 apud GARRIGA, 2014, p. 172). Explicando de outra forma, deve-se entender a ordem constitucional criada como o resultado do impacto da Constituição sobre o disperso, plural e contraditório trançado normativo da Monarquia acumulado pela tradição. Tratava-se, antes, de reformulações dos velhos dispositivos jurisdicionais a serviço da nova ordem constitucional. Portanto, a conclusão inevitável é a de que (...) el pasado formaba parte del presente y sustentaba el historicismo congénito al orden constitucional doceañista. Y de manera inevitable: presentada la constitución escrita como reforma liberal de la constitución histórica e inasequible como ley fundamental al legislador ordinario, la potestade legislativa queda de antemano encadenada a las tareas de derogar y recuperar, seleccionar y reformular el derecho tradicional, entablando con el pasado una relación de inclusión/exclusión orientada a erradicar los rastros del despotismo y recuperar las posiciones de libertad perdida por la nación, en ocasiones mediante la simple reposición de las viejas leyes. (GARRIGA, 2011, pp. 159-169)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRÉS, Diego Sevilla. La Constitución de Cádiz, obra de transición. Revista de estudios políticos, número 126, 1962, pp. 113-142. BARRETO, Vicente de Paulo e PEREIRA, Vítor Pimentel. ¡Viva la Pepa!: A história não contada da Constitución española de 1812 em terras brasileiras. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, ano 172, n. 452, p. 201-223, jul./set. 2011. BEZZERRA, Helga Maria Saboia. A Constituição da Cádiz de 1812. Revista de Informação Legislativa,

ano

50,

n.

198,

abr./jun.

2013,

pp.

89-112.

Disponível

em:

http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496957/000983396.pdf?sequence=1. Acesso em: 20 jun. 2016. DALLARI, Dalmo de Abreu. A Constituição de Cádiz: valor histórico e atual. Revista de estudios brasileños, ano 1, v. 1, n. 1, 2º semestre de 2014, pp. 81-96. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/reb/article/view/98527/97205. Acesso em: 15 jun. 2016. 8

“Sous cette tête toute moderne nous allons maintenant voir apparaitre un corps tout gothique; Frédéric n’a fait que lui ôter ce qui pouvait gêner l’action de son propre pouvoir, et le tout va former un être monstrueux qui semble une transition d’une création à une autre” (TOCQUEVILLE, 1988, p. 318 apud GARRIGA, 2011, p. 159).



99

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

ESPAÑA. La constitución española de 1812: edición conmemorativa del segundo centenario. Introducción de Luis López Guerra. Madrid: Tecnos, 2012. GARRIGA, Carlos. ¿Qué era la Constitución de Cádiz?. In: BREÑA, Roberto (ed.). Cádiz a debate: actualidad contexto y legado. México D. F.: El Colegio de México, 2014, pp. 153173. Disponível em: https://metaaprendizaje.academia.edu/carlosgarriga. Acesso em: 5 jun. 2016. _______________. ¿La cuestión es saber quién manda? Historia política, historia del derecho y

punto

de

vista.

PolHis,

V,

10

(2012),

pp.

89-100.

Disponível

em:

https://metaaprendizaje.academia.edu/carlosgarriga. Acesso em: 1º jun. 2016. _______________. Cabeza moderna, cuerpo gótico. La Constitución de Cádiz y el orden jurídico. Anuario de Historia del Derecho Español. Tomo LXXXI, 2011. Disponível em: https://metaaprendizaje.academia.edu/carlosgarriga. Acesso em: 7 jun. 2016. HART, H. L. A. The Concept of Law. Oxford: Claredon Press, 1961. HESPANHA, António Manuel. Cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Coimbra: Almedina, 2012. LORENTE, Marta. El juramento constitucional. In: GARRIGA, Carlos e LORENTE, Marta. Cádiz, 1812: la Constitución jurisdiccional. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, pp. 73-118. _______________. Las infracciones a la Constitución de 1812: un mecanismo de defensa de la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988. RIBAS, Pedro. Estudio Preliminar. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Escritos sobre España: extractos de 1854. Madrid: Trotta, 1998. SÁNCHEZ AGESTA, Luis. Introducción. In: ARGÜELLES, Agustín. Discurso preliminar a la Constitución de 1812. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2011. SARASOLA, Ignacio Fernández Sarasola. Valor normativo y supremacía jurídica de la Constitución de 1812. In: FERRIZ, Remedio Sánchez e PECHUÁN, Mariano García Pechuán

100



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

(coords). La Enseñanza de las Ideas Constitucionales en España e Iberoamérica. Valencia: Ene Edicions, 2001, pp. 185-199. SLEMIAN, Andréa. Um Império entre repúblicas? Independência e construção de uma legitimidade para a monarquia constitucional no Brasil, 1822-1834. In: OLIVEIRA, Cecília Helena; BITTENCOURT, Vera L. N.; COSTA, Wilma Peres. (Org.). Soberania e conflito. Configurações do Estado nacional no Brasil do século XIX. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 121148. TOMÁS Y VALIENTE, Francisco. Génesis de la Constitución de 1812: I, De muchas Leyes fundamentales a uma sola Constitución. Anuario de Historia del Derecho Español, n. 65, 1995,

pp.

13-125.

Disponível

em:

https://www.boe.es/publicaciones/anuarios_derecho/abrir_pdf.php?id=ANU-H-199510001300126_ANUARIO_DE_HISTORIA_DEL_DERECHO_ESPA%26%231103%3BL_G %E9nesis_de_la_Constituci%F3n_de_1812:_I,_De_muchas_leyes_fundamentales_a_una_sol a_Constituci%F3n. Acesso em: 15 jun. 2016.



101

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO (SOBRE O PRIVADO) E CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO – UMA INCOERÊNCIA PARADIGMÁTICA: CRÍTICA HERMENÊUTICA À TEORIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO TRADICIONAL Guilherme Gonçalves Alcântara1 Submetido(submitted): 31 de agosto de 2016 Aceito(accepted): 16 de setembro de 2016 RESUMO Crítica hermenêutica dos três tradicionais pressupostos interpretativos do Direito Administrativo brasileiro – a desigualdade jurídica entre Administração e administrados; a presunção de legitimidade dos atos da Administração e a outorga de poderes discricionários ao administrador – mediante a fusão de horizontes com a principiologia constitucional do pós-88 e o Estado Democrático de Direito que lhe representa. PALAVRAS-CHAVE: Democracia Constitucional; Supremacia do Interesse Público; Crítica Hermenêutica do Direito. ABSTRACT Hermeneutical Critique related to the three traditional interpretative assumptions of Brazilian administrative law – the legal inequality between management and administration; the presumption of legitimacy of the administrative acts and; the granting of discretionary powers to the administrator – by merging horizons with the post-88 constitutional principles, and the democratic rule of law that it represents. KEYWORDS: Constitutional Democracy; Supremacy of the Public Interest; Law’s Critical Hermeneutics. INTRODUÇÃO A presente análise se debruça sobre a possibilidade de sustentação do “princípio” da supremacia do interesse público sobre o privado (mormente) como pilar estrutural do Direito Administrativo brasileiro, partindo da exposição da dicotomia presente no senso comum teórico dos juristas sobre o tema, bem como dos três cânones ‘hermenêuticos’ que se projetam por todo esse ramo do Direito e sua teoria: 1º) a desigualdade jurídica entre a 1

Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal no Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP. Professor assistente de Direito Administrativo no Centro Universitário Toledo de Presidente Prudente/SP. Advogado.

103

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Administração e os administrados; 2º) a presunção de legitimidade dos atos da Administração; 3º) a necessidade de poderes discricionários para a Administração atender ao interesse público. Na primeira seção do trabalho, expôs-se, de forma breve, o sentido da noção de supremacia do interesse público no senso comum teórico do Direito Administrativo brasileiro. Na segunda seção, apontaram-se as insuficiências do paradigma normativista de ciência jurídica e de seu corolário no cotidiano do Direito Administrativo – o discurso da supremacia do interesse público – na atual fase do Constitucionalismo Contemporâneo e do Estado Democrático de Direito que lhe acompanha. Discute-se, na parte final, o esboço de uma alternativa ao paradigma positivista de direito e da noção intrínseca de supremacia do interesse público. EXPONDO O PROBLEMA: É POSSÍVEL A SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

NO

SINTOMÁTICOS

PARADIGMA

CONSTITUCIONAL

PRESSUPOSTOS

DO

DIREITO

PÓS-1988?

TRÊS

ADMINISTRATIVO

BRASILEIRO NO SENSO COMUM TEÓRICO DOS JURISTAS Uma respeitável parcela da doutrina brasileira – embora reconhecendo a evidente necessidade de releitura dos institutos do Direito Administrativo, imposta pelo Constitucionalismo Contemporâneo – sustenta a “existência” e “aplicabilidade” da supremacia do interesse público no Direito Administrativo, como princípio jurídico (GABARDO; HACHEM, e outros, in: DI PIETRO; RIBEIRO, 2010). A defesa da supremacia do interesse público não promoveria qualquer desconsideração da esfera de direitos fundamentais, pois: a) o discurso da submissão do Estado à ordem jurídica e aos direitos humanos não é tão recente (SEABRA, 1967, p. 274) e b) o conteúdo do “interesse público” só pode ser encontrado, objetivado, no direito positivo (MELLO, 2008, p. 67), lendo-se: posto pelo Estado, inclusive via atos discricionários (MELLO, 2008, p. 190). Por isso, a supremacia do interesse público se inscreve(ria) na tensão autoridade/liberdade, essencial e originária do Direito Administrativo, cujas ideias

104

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

(opostas) seriam, de um lado, a garantia de proteção aos direitos individuais frente ao Estado (tradutora do princípio da legalidade) e, de outro lado, a suposta necessidade de poderes e prerrogativas à Administração para que ela atinja seus fins2 – que traduz(iria) a supremacia do interesse público (DI PIETRO, 2010, p. 93). O equilíbrio entre esses conceitos indeterminados e abstratamente em tensão se dá(ria) mediante a (velha) técnica hermenêutica da “ponderação de valores no caso concreto”3 (GABARDO, 2011, p. 38). O reconhecimento da supremacia do interesse público como “princípio jurídico” não constitui(ria) qualquer aviltamento ao Estado Democrático de Direito e ao Constitucionalismo Contemporâneo, e, logo, a crítica à supremacia do interesse público4 peca(ria) por enxergar somente “parte” do Direito Administrativo, bem como carece(ria) de respaldo lógico e histórico (GABARDO; HACHEM, in DI PIETRO; RIBEIRO, 2010, p. 42). Contudo, só é possível pensar o Direito Administrativo nesta “tensão”: liberdade (do cidadão) contra autoridade (da Administração)? Não existe outra forma de concebê-lo? Se, com efeito, a obediência da Administração Pública aos direitos humanos, bem como a técnica interpretativa da “proporcionalidade” e/ou “ponderação” e/ou “razoabilidade” na busca da conciliação da tensão liberdade/autoridade não são a “descoberta da roda” na teoria do Direito Administrativo (DI PIETRO; RIBEIRO, 2010), o que podemos dizer que mudou, com o advento da principiologia constitucional? Percebe-se que essa parcela da doutrina reconhece a supremacia do interesse público como um princípio jurídico. Mas, o que é isto? Para eles, o advento dos princípios constitucionais na ordem jurídica significa a introdução de uma versão sofisticada do 2

“A Administração Pública tem que ter prerrogativas que lhe garantam a autoridade necessária para a consecução do interesse público. Ao mesmo tempo, o cidadão tem que ter garantias de observância de seus direitos fundamentais contra os abusos do poder” (DI PIETRO, 2010, p. 99). 3 “A exigência de razoabilidade na interpretação do princípio da supremacia do interesse público se faz presente na aplicação de qualquer conceito jurídico indeterminado; atua como método de interpretação do princípio (na medida em que permite a ponderação entre o interesse individual e o público) e não como seu substituto” (DI PIETRO, 2010, p. 102). 4 O artigo do professor Emerson Gabardo constitui uma resposta ao posicionamento de Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm e Humberto Ávila, in: SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

105

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

modelo de princípios gerais do Direito, que sucederam as codificações europeias – “uma espécie de ‘reforço’ da razão prática para o Direito, que seriam acionados pelo julgador no momento em que as regras codificadas não apresentassem uma resposta imediata para a questão” (STRECK, 2011, p. 56). Essa espécie de teoria “pós-positivista” do Direito existe em uma zona cinzenta entre a proposta procedimentalista de Habermas e a proposta argumentativo-analítica de Alexy, apostando – e isso é quase unanimidade nos manuais de Direito Administrativo – como já referido, em um juízo de razoabilidade/proporcionalidade como “expediente apto a equilibrar a garantia de interesses individuais em função dos fins coletivos” (NOHARA, in: DI PIETRO; RIBEIRO, 2010, p. 149), isto é, não abrindo mão da discricionariedade da autoridade5. Ocorre que o sujeito solipsista – conforme veremos - ainda domina nesta “versão” dos princípios jurídicos. Estes não são, aqui, elemento de fechamento interpretativo – herança dworkiniana –, como se observa, exemplarmente, com a abordagem dos três pressupostos interpretativos do Direito Administrativo a qual se apresenta a seguir. A presunção de legitimidade e a desigualdade jurídica do cidadão se incluem, na verdade, no último pressuposto: os poderes discricionários da autoridade, plenamente admitidos e reconhecidos nesta perspectiva. A resistência proposta aqui à supremacia do interesse público reside neste ponto. É que uma autêntica teoria pós-positivista do Direito é “pós”, porque rompe e supera com o positivismo, sabedora do seu calcanhar de Aquiles: a ausência de perspectivas teóricas e práticas garantidoras de solução para a questão da aplicação/concretização do Direito (MULLER, 2008, p. 11).



5 “Alexy resolverá o problema do cruzamento da razão teórica com a razão prática a partir da ideia de correção e da aplicação da fórmula de Radbruch [...]. A analítica entra em seu projeto epistêmico no modo como ele arquiteta a relação entre discurso especial e discurso geral. Claramente aposta na discricionariedade [...]. Habermas faz algo parecido com o que fez o positivismo, excluindo a razão prática como problema. É por isso que considero Habermas, tal como Kelsen e Hart, um fatalista: o sujeito solipsista que fundamenta a razão prática é insuperável” (STRECK, 2011, p. 504).

106

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Existe outra perspectiva para os princípios constitucionais do pós-88, na qual eles têm caráter deontológico (não axiológico, não são “valores”), responsáveis pela introdução, na regra contramajoritária formal-clássica, da materialidade, do núcleo político-essencial, da Constituição (DWORKIN, 2000, p. 80 e segs.), e superam o esquema liberdade/autoridade, paradigma da doutrina do Direito Administrativo comum, porque a expressão, no caso brasileiro, do núcleo político-essencial no artigo 3º da Constituição Federal aponta para outro esquema, de vinculações negativas (proibição do retrocesso) e positivas (concretização dos direitos prestacionais) (STRECK, 2011, p. 76). Mais profunda é, contudo, a ruptura com o esquema filosófico sujeito/objeto que a hermenêutica filosófica proporciona a esta perspectiva, a qual constitui a teoria do Direito como (uma das) voz(es) ativas na produção do seu próprio objeto de estudo: sujeito/objeto se tornam um continuum (SANTOS, 2011, p. 69), e abre-se espaço para uma efetiva comunidade aberta e plural de intérpretes da Constituição, como quer Peter Häberle. Thomas Kuhn afirma que todas as ciências são fundamentadas, em última análise, em problemas políticos e que um giro paradigmático ocorre em uma ciência quando uma pergunta considerada pelo paradigma vigente como não científica, metafísica (como é a pergunta de como aplicar o Direito para Hans Kelsen) passa a ser um problema (político) central da comunidade de teóricos – como é a concretização dos direitos fundamentais para a Teoria do Direito brasileira (1998, p. 73-99). A partir daí, essa ciência entra em crise paradigmática, não porque não existam respostas para essa pergunta emergente, mas porque sequer existem instrumentos (conceitos), para encará-la. Nesse sentido, frente à evidente questão da concretização dos direitos fundamentais em um país de modernidade tardia como o Brasil, como a teoria do Direito Administrativo participa de forma mais ativa em uma comunidade aberta de intérpretes da Constituição? Chancelando ipso facto os atos do administrador, fiel a Hans Kelsen, ou mantendo uma postura crítica, de suspeita e questionamento frente às instituições?

107

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

O projeto desta análise aposta que somente neste sentido de princípio jurídico – de essência contramajoritária e, logo, antidiscricionária – pode-se admitir a defesa do interesse público após uma filtragem constitucional – despida, logo, dos “três cânones interpretativos do Direito Administrativo” – e jamais conferindo poderes e prerrogativas discricionárias à autoridade aplicadora da lei. Problematizam-se, para tanto, duas noções bastante evidentes no senso comum teórico6 dos juristas – especificamente o do Direito Administrativo. São elas a “a supremacia constitucional” e a “supremacia do interesse público”, esta, por seu turno, que desemboca em três pressupostos de interpretação que a doutrina majoritária brasileira tem entendido como necessárias e até distintivas, específicas do Direito Administrativo, quais sejam

1º) a desigualdade jurídica entre a Administração e os administrados; 2º) a presunção de legitimidade dos atos da Administração; 3º) a necessidade de poderes discricionários para a Administração atender ao interesse público (MEIRELLES, 2014, p. 50).

O objetivo é demonstrar a evidente incoerência paradigmática que essas duas noções, conjugadas, produzem no processo de constitucionalização do Direito, iniciado (em terras nativas) a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988. É certo que – patologicamente – a maioria da doutrina jurídica brasileira, presa ao “modo-de-ser” positivista de jurista, compreende os princípios constitucionais brasileiros como continuidade aos “princípios gerais do Direito” que sucederam as codificações do século

6 O senso comum teórico (dos juristas) é um neologismo proposto por Luiz Alberto Warat deveras polissêmico: ora designa a constelação de representações, ficções, crenças, pré-conceitos e estereótipos que governam silenciosamente os atos jurídicos; ora, convenções linguísticas encontradas prontas em nós quando precisamos maquiar uma falha da teoria jurídica; ora, as relações imaginárias que os juristas de ofício sustentam de suas atividades, criadoras de um campo de significado determinador da aceitabilidade do real; pode, ainda, significar o conjunto de citações anônimas reguladoras da produção dos enunciados jurídicos; ou a intertextualidade delas; outrossim, como algo além dos significados, que estabelece de forma velada a realidade jurídica dominante; o senso comum teórico dos juristas designa a dimensão ideológica das verdades jurídicas. Em suma, trata-se de fragmentos de teorias identificáveis de forma vaga, sedimentações de discursos passados, costumes intelectuais aceitos como verdade de princípio para ocultar o componente político da investigação de verdades jurídicas (1995, p. 13-15).

108

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

XIX, o que impede de enxergar o sentido ruptural e de superação do Constitucionalismo Contemporâneo (STRECK, 2011, p. 56). Acredita-se – com a Nova Crítica do Direito –, entretanto, que a instituição do Estado Democrático de Direito e a principiologia constitucional que lhe representa, configuram uma ruptura com a ordem jurídica anteriormente vigente, razão pela qual o tradicionalíssimo conceito de “supremacia do interesse público”, diferente do que afirma a doutrina comum, não mais se coaduna com a “supremacia constitucional” indicativa do Constitucionalismo Contemporâneo. Assim, defendo que, no senso comum teórico, a noção de “supremacia do interesse público” – e seus três pressupostos interpretativos – formam uma (forte) resistência à autêntica entrada dos princípios constitucionais no Direito Administrativo. Torna-se importante, portanto, abordar, por um breve instante, nosso adversário: o interesse público e o significado de sua “supremacia”. Deixemos – na esteira da “melhor hermenêutica” – que ele nos diga algo. Faço este exercício mediante o exame do que a doutrina comum diz a respeito daqueles três pressupostos tradicionais – e distintivos – do Direito

Administrativo,

que

bem

lhe

manifestam:

desigualdade

jurídica

entre

Administração e administrado; presunção de legitimidade dos atos da Administração e discricionariedade outorgada aos atos administrativos. A desigualdade jurídica entre Administração e administrados Uma primeira forma de abordar a supremacia do interesse público no senso comum teórico do Direito Administrativo é em relação a que(m) essa supremacia se impõe. Nesse sentido, a doutrina nacional é unânime em justificar que a supremacia do interesse público se exerce sobre o direito privado. É a partir de institutos como o poder de polícia (restringindo atividades individuais) e a desapropriação (que suprime o direito de propriedade) que a doutrina do Direito Administrativo – positivista – costuma enxergar a aplicação do (agora) “princípio” da supremacia do interesse público, dando a entender que existe uma hierarquia entre as

109

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

liberdades negativas – conquistadas pelo Estado liberal – e os direitos sociais – do Estado Social –, na qual estas prevalecem sobre aquelas (CARVALHO FILHO, 2009, p. 31)7. Assim é que Hely Lopes Meirelles justifica a desigualdade jurídica dos administrados em relação à Administração Pública, argumentando que é próprio e característico do Direito Público que a assimetria exista, tendo em conta que a igualdade jurídica das partes na relação jurídica é própria do Direito Privado. Transcrevo:

Com efeito, enquanto o Direito Privado repousa sobre a igualdade das partes na relação jurídica, o Direito Público assenta em princípio inverso, qual seja, o da supremacia do Poder Público sobre os cidadãos, dada a prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais. Dessa desigualdade originária entre a Administração e os particulares resultam inegáveis privilégios prerrogativas para o Poder Público, [...] que não podem ser desconhecidos ou desconsiderados pelo intérprete ou aplicador das regras e princípios desse ramo do Direito. Sempre que entrarem em conflito o direito do indivíduo e o interesse da comunidade, há de prevalecer este, uma vez que o objetivo primacial da Administração é o bem comum (2014, p. 50).

Abordarei melhor a (falsa) dicotomia entre Direito Privado e Direito Público oportunamente. Para o momento, chamo atenção ao tratamento que Kelsen dá à matéria. Para a Teoria Pura do Direito, tal dualismo não significa nada, possuindo sentido meramente ideológico (lembro que o normativismo jurídico se afirma anti-ideológico), pois 7

O professor José dos Santos Carvalho Filho discorda abertamente da hipótese que defendo aqui (a extirpação do sentido atual da ‘supremacia do interesse público’, aliás. A respeito: “Algumas vozes têm se levantado atualmente contra a existência do princípio em foco, argumentando-se no sentido da primazia de interesses privados com suporte em direitos fundamentais quando ocorrem determinadas situações específicas. Não lhes assiste razão, no entanto, nessa visão pretensamente modernista. Se é evidente que o sistema jurídico assegura aos particulares garantias contra o Estado em certos tipos de relação jurídica, é mais evidente ainda que, como regra, deva respeitar-se o interesse coletivo quando em confronto com o interesse particular. A existência de direitos fundamentais não exclui a densidade do princípio. Este é, na verdade, o corolário natural do regime democrático, calcado, como por todos sabido, na preponderância das maiorias” (Manual Direito Adm., p. 31). Abordarei certos pontos que o autor levantou para defender sua perspectiva oportunamente. Por ora, basta destacar que a última frase do autor revela a falácia do seu ponto de vista, visto que a democracia constitucional não (mais) se submete à adulação grosseira que configura o mantra do ‘vox populi, vox dei’ para as teorias políticas e jurídicas (ZAGREBELSKY, p. ?). Embora continue popular, a democracia do Estado Democrático de Direito possui limites intransponíveis a qualquer maioria, ou seja, possui aspectos contramajoritários.

110

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

a concepção de norma jurídica como ato de vontade do detentor dos meios coercitivos estatais imbrica na absoluta fusão entre Direito e Estado (KELSEN, 2013, p. 166). Logo, se levarmos em consideração o conselho de Kelsen, somos forçados a concluir que não existe Direito Privado, pois, se o Direito se define pela ordem imposta pelo Estado – independente do seu conteúdo (KELSEN, 2013, p. 88-89) – todo Direito é Direito Público e, de fato, para o normativismo jurídico todos são sujeitos à imposição de um comando estatal, por estarem sujeitos à vontade da autoridade (KELSEN, 2013, p. 153154), estão em posição de desigualdade jurídica em relação ao Estado. Quero dizer que o paradigma positivista de teoria do Direito, na sua feição mais sofisticada, de Kelsen e Hart, estende, com efeito, o dogma da desigualdade jurídica entre cidadãos e Estado a todos os ramos do Direito, presumindo – ipso facto – que o ato de vontade da autoridade contém o bem público, o bem da coletividade, que se sobrepõe a qualquer direito ou garantia individual. A discussão da justiça da norma é questão de teoria política (KELSEN, 2013, p. 81-82). No mesmo sentido, caminha o segundo desdobramento da “supremacia do interesse público” no Direito Administrativo, que abordo a seguir. A presunção de legitimidade dos atos da Administração Ainda com Meirelles, extraímos que o senso comum teórico dos juristas entende que a Administração é isenta da prova de legitimidade dos seus atos, visto que uma presunção acerca da validade acompanha toda a atividade pública, cabendo ao particular demonstrar – de forma inequívoca – o abuso ou desvio de poder (MEIRELLES, 2014, p. 51). Mesmo nas obras de natureza didática, destinadas à preparação dos candidatos aos certames públicos – isto é, à formação do senso comum teórico das potenciais autoridades estatais – lá está a presunção de legitimidade como efeito “indireto” da supremacia do interesse público (ALEXANDRINO, 2015, p. 205). Abordando um ponto de vista mais sofisticado, Maria Sylvia Zanella Di Pietro subdivide a presunção de legitimidade dos atos administrativos (alçado também a status de 111

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

“princípio”) em dois aspectos: um vinculado à veracidade e certeza dos fatos e outro ligado à legalidade do ato, com o objetivo de colocar o ônus da prova contrária a essas suposições a cargo do administrado, bem como garantir às decisões administrativas execução imediata (DI PIETRO, 2014, p. 69). O paradigma positivista, mais uma vez, revela-se, embora de modo instintivo, no senso comum teórico dos juristas escondendo a arbitrariedade dos atos da autoridade estatal mediante presunções ipso facto de normatividade dos atos legislativos, judiciários e executivos, necessárias à pureza metodológica do normativismo, para que o saber jurídico somente reproduza, de modo descritivo, seu objeto, não interferindo (acredita ela) na sua produção (WARAT, 1983, p. 118-119). Para arrematar a questão, preciso apresentar a última manifestação clássica da supremacia do interesse público no Direito Administrativo: a discricionariedade da autoridade. O poder discricionário do administrador É neste ponto que encontro a maior identidade entre a doutrina tradicional do Direito Administrativo e o paradigma positivista-autoritário que lhe aprisiona. Inicio transcrevendo a lição de Maria Sylvia Di Pietro, justificando a discricionariedade dos atos administrativos:

Sob o ponto de vista jurídico, utiliza-se a teoria da formação do Direito por degraus, de Kelsen: considerando-se os vários graus pelos quais se expressa o Direito, a cada ato acrescenta-se um elemento novo não previsto no anterior; esse acréscimo se faz com o uso da discricionariedade; esta existe para tornar possível esse acréscimo. Se formos considerar a situação vigente no Direito brasileiro, constataremos que, a partir da norma de grau superior – a Constituição –, outras vão sendo editadas, como leis e regulamentos, até chegar-se ao ato final de aplicação ao caso concreto. Em cada um desses degraus, acrescenta-se um elemento inovador, sem o qual a norma superior não teria condições de ser aplicada (2014, p. 221-222).

112

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Desta posição não difere o professor Celso Antônio Bandeira de Mello, que divide – denunciando o caráter normativista do seu raciocínio – a questão da discricionariedade dos atos administrativos em exame da norma jurídica e exame do caso concreto (2011, p. 427-429) – como se fosse possível separar esses “âmbitos”. Neste sentido – demonstrando compreender profundamente Hart – Mello afirma que [...] se os antecedentes fáticos que legitimam a prática de um ato estão delineados por meio de palavras vagas, imprecisas, cabe à Administração determinar-lhes concretamente o alcance na espécie, cingida, embora, a certos limites adiante explanados (2011, p. 958);

Por isso, o professor conclui que a discricionariedade surge quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da liberdade conferida no mandamento, não é possível extrair uma única solução para o caso concreto. Em decorrência disso, surgiria essa “liberdade” remanescente ao administrador (MELLO, 2011, p. 961). Sobre a relação entre a discricionariedade e a noção de supremacia do interesse público, aponto as lições de José dos Santos Carvalho Filho, para quem o poder discricionário do administrador é prerrogativa de eleger, entre os diversos sentidos que se possa dar aos comandos legais que dirigem a atividade pública, o que melhor convir ao interesse público (2009, p. 47). No mesmo caminho, a doutrina descomplicada – para “concurseiros” (ALEXANDRINO, 2015, p. 244). Conclusão parcial Esbocei, de forma breve, três cânones interpretativos que – segundo a doutrina tradicional – caracterizam ou caracterizariam a especificidade do Direito Administrativo. Quero provar que a doutrina comum está errada nessa assertiva e posso fazer isso de duas maneiras: com Kelsen e Hart, posso demonstrar que esses três cânones são imanentes a todas as normas jurídicas, não apenas ao Direito Administrativo (este apenas constitui sua melhor representação no senso comum teórico) e, por outro lado, superando Kelsen e Hart, posso expor a crise da teoria jurídica no Brasil e as insuficiências de uma Teoria Pura do

113

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Direito – e sua representação em nosso horizonte de sentidos – no paradigma do Estado Democrático de Direito. A primeira crítica – interna, pois joga com o positivismo (e com a filosofia da consciência) do qual a teoria jurídica brasileira ainda é refém – parte da já adiantada crítica de Kelsen à dicotomia Direito Privado e Direito Público, para quem a divisão só possui sentido ideológico e não teórico, pois todo Direito é objetivo e público (estatal), no qual quaisquer liberdades (negativas, positivas) se justificam somente mediante as ordens estatais, radicalizando: o único direito fundamental é o de ser tratado conforme convir ao Estado (ABBOUD, 2011, p. 07). Com efeito, essa crítica (contra o dualismo Direito Privado X Direito Público) não é feita só por Kelsen, mas também por muitos outros filósofos do Direito. Wieacker, por exemplo, destaca que o último conjunto coerente do Direito Privado foi a (burguesa) pandectística alemã do século XIX, fundada na ética da autonomia de Kant. Nela, o Direito Privado (direito de propriedade e de liberdade contratual) é “um sistema de esferas de liberdade da personalidade autônoma do ponto de vista moral” (WIEACKER, 1967 p. 717)8. Qual a consequência disso? É que se todo cidadão está à mercê da vontade da autoridade (e a Teoria Pura do Direito e sua hermenêutica denotam isso, como poderei

8 Também Habermas destaca que a (ainda utilizada em terras nativas) divisão entre Direito Privado e Direito Público é um mito desde a instauração da República de Weimar, do desenvolvimento do Estado Providência, do consequente surgimento de novas áreas do direito como o econômico, o social, o do trabalho, e da materialização do direito penal, de contratos e de propriedade, que constituem uma fusão de princípios antes divididos em Direito Público e Direito Privado (1997, p. 134). Mais do autor a respeito: “[...] até a codificação do código civil [alemão] de 1900, o direito privado estruturou-se como um domínio jurídico sistematicamente fechado e autônomo, a salvo da força impregnadora de uma ordem constitucional democrática. Sob a premissa da separação entre Estado e sociedade, a estrutura doutrinária partia da ideia de que o direito privado, ao passar pela organização de uma sociedade econômica despolitizada e subtraída das intromissões do Estado, tinha que garantir o status negativo da liberdade de sujeitos de direito e, com isso, o princípio da liberdade jurídica; ao passo que o direito público, dada uma peculiar divisão de trabalho [função legislativa, judiciária e administrativa], estaria subordinado à esfera do Estado autoritário, a fim de manter sob o controle a administração que operava sob a reserva de intervenção e, ao mesmo tempo, garantir o status jurídico positivo das pessoas privadas mantendo a proteção do direito individual. [...] no entanto, a instauração da República de Weimar fez com que caíssem os fundamentos jurídico-constitucionais nos quais se apoiava a autarquia do direito provado; a partir de então, não era mais possível opor o direito privado, tido como o reino da liberdade individual, ao direito público, tido como o campo de ação das imposições do Estado" (HABERMAS, 1997, p. 132).

114

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

demonstrar), o discurso tradicional da doutrina brasileira de que onde há função administrativa não há vontade pessoal da autoridade (MELLO, 2011, p. 98) é uma falácia que mascara um paradigma autoritário de direito, caso não caiba à doutrina jurídica doutrinar os juristas. O fato é que, no paradigma positivista de teoria jurídica, a desigualdade entre Estado e indivíduo não é especialidade do Direito Administrativo, antes faz parte da teoria geral do Direito. Kelsen deixa claro que o direito subjetivo – como “instituição ante a qual a estrutura interna do ordenamento jurídico se encontra diante de uma barreira intransponível” (2013, p. 105) – é uma criação ideológica e, portanto, não merece consideração na teoria jurídica (2013, p. 104-110). A Teoria Pura do Direito reduz todos os direitos subjetivos a direitos objetivos, seja na forma de autorizações, seja na forma de deveres, levando às últimas consequências as ideias fundamentais que já existiam no positivismo oitocentista ao afirmar que “o direito subjetivo não é diverso do objetivo: é o próprio direito objetivo” (KELSEN, 2013, p. 109). Repito, com Georges Abboud, que se trata de uma ciência jurídica própria do paradigma estatalista de direito, mediante o qual só existe um direito fundamental: o de ser tratado conforme a vontade da autoridade investida (pelo direito objetivo) (2011, p. 7) e, aqui, não existe espaço para igualdade jurídica entre cidadão e Estado em nenhum ramo do Direito. Não foge dessa noção a outra crença que se diz própria do Direito Administrativo: a da presunção de legitimidade dos atos administrativos, que nada mais reproduz no senso comum teórico dos juristas o desinteresse da teoria do Direito positivista pela autointerpretação do material histórico-social dos atos jurídicos (KELSEN, 2013, p. 69-70) Para Kelsen, não só os atos administrativos se presumem dotados de validade e certeza – no esteio da lição de Maria Sylvia Di Pietro – mas também todos os atos jurídicos, visto que:

115

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

A indagação sobre qual das várias possibilidades na moldura de uma norma é a ‘justa’ é não uma indagação dirigida ao conhecimento do direito positivo, não um problema jurídico-teórico, mas político-jurídico (KELSEN, 2013, p. 153).

Esse trecho – que ilustra muito bem a hermenêutica normativista, adiante tratada – denota o caráter anti-ideológico da Teoria Pura do Direito, que se limita (creem alguns) a descrever “o direito como ele é, sem legitimá-lo como justo ou desqualificá-lo como injusto” (KELSEN, 2013, p. 81). Em decorrência disso, há a presunção de legitimidade de todas as normas jurídicas, da Constituição a uma portaria. É por isso, também, que o último dogma do Direito Administrativo – a outorga de poderes discricionários da Administração – não é característico (apenas) desse ramo do Direito, pois a teoria geral do Direito (positivista) não está autorizada a indicar como a autoridade deve aplicar, executar uma lei, cabendo-lhe somente catalogar as diversas possibilidades de interpretação a serem escolhidas pela autoridade (KELSEN, 2013, p. 150). Dessa forma, esteja-se diante de uma indeterminação “intencional” ou “não intencional” do texto legal, a autoridade executora (juiz ou administrador9) sempre terá diante de si a pluralidade de significados na palavra ou frase que “expressa” a “norma” (KELSEN, 2013, p. 148-149). Combinando esse fator com o “caráter anti-ideológico” da 9

Não olvido da reprimenda que Streck faz a respeito do erro que é confundir a discricionariedade judicial com a discricionariedade dos atos administrativos, esquecendo que enquanto esta é uma espécie de judicial self-restraint (um freio à imiscuência judiciária legítimo) (2011, p. 41), aquela é conceito – convalidado pelo normativismo – que se traduz na criação, pelo juiz, de “uma regulação para um caso que, antes da sua decisão, não encontrava respaldo no direito da comunidade política” (STRECK, 2011, P. 40). No entanto, acredito que essa reprimenda se dirige aos que defendem a discricionariedade judicial com fundamento na “legitimidade” dos atos administrativos discricionários, não a quem procurar desenvolver uma teoria dos atos administrativos antidiscricionária, como tento propor, inclusive com escopo na Nova Crítica do Direito. O próprio Streck destaca que a insindicabilidade dos atos administrativos discricionários é um problema a ser enfrentado pela doutrina jurídica brasileira. Vide: “No contexto atual, praticamente todos os países europeus estão revendo o conceito de discricionariedade administrativa, pois já se admite controle jurisdicional, mesmo nos casos de discricionariedade do administrador. Entre nós essa discussão ganha peso, na medida em que possuímos uma Constituição compromissória que também impõe obrigações ao administrador. Se no ato administrativo discricionário é certo que o administrador está livre de uma aderência absoluta à lei, nem por isso seu poder de escolha pode desconsiderar o conteúdo principiológico da Constituição. Portanto, o ato administrativo escapa de um controle de legalidade, porém permanece indispensável que ele seja controlado em sua constitucionalidade” (2011, p. 41).

116

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Teoria Pura do Direito – que não lhe permite interpretar a norma jurídica como faz a autoridade (administrativa, legislativa ou judiciária) – temos a discricionariedade como elemento imanente a todo o direito positivo. Todos esses pontos nos levam a uma conclusão: a da plena vinculação tanto da supremacia do interesse público como também de seus dogmas interpretativos no Direito Administrativo ao paradigma positivista do Direito (e de teoria do Direito, expressa de forma mais sofisticada no normativismo kelseniano-hartiano). A apropriação de conceitos da teoria geral do direito (positivista) e sua reprodução no senso comum teórico dos juristas como termos específicos e próprios (garantidores de autonomia disciplinar) do Direito Administrativo só significa que este ramo do Direito é um dos que podem ofertar as maiores resistências a uma filtragem hermenêutico-constitucional do seu conteúdo. A noção de discricionariedade (presente da Escola do Direito Livre ao normativismo de Kelsen e Hart), traduzida no fato de que, no momento da decisão, existe sempre uma zona de penumbra da razão, a ser preenchida pelo arbítrio do aplicador/produtor da norma jurídica (STRECK, 2011, p. 38), é o que uma teoria do Direito fundada no contexto intersubjetivo (avesso a solipsismos e a seus discursos monológicos) típico do Estado Democrático de Direito precisa se defrontar. Essa tarefa só pode ser executada mediante a segunda crítica que me propus a fazer no início desta conclusão parcial e que coloco como objetivo do próximo capítulo.

A INSUSTENTABILIDADE DO CONCEITO DE “SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO” (COMO ESTÁ) NO PARADIGMA INTERSUBJETIVO A permanência da noção de supremacia do interesse público no senso comum teórico dos juristas significa, como visto, uma resistência ao desenvolvimento por completo da supremacia constitucional na vida prática do Direito. Para melhor delinear esse conflito, é fundamental:

117

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

discutir o problema metodológico representado pela tríplice questão que movimenta a teoria jurídica contemporânea em tempos de póspositivismo: como se interpreta, como se aplica e se é possível alcançar condições interpretativas capazes de garantir uma resposta correta (constitucionalmente adequada), diante da (in)determinabilidade do Direito e da crise de efetividade da Constituição (STRECK, 2011, p. 58).

Por esse caminho, início por destacar que a supremacia do interesse público bem como a desigualdade, ou inferioridade, jurídica do cidadão perante o Estado; a presunção de legitimidade dos atos administrativos e a outorga de poderes discricionários ao administrador originam-se das reiteradas decisões do Conselho de Estado, que, como adverte Streck, instituiu para si uma jurisdição própria10, configurando – em razão da forte ligação entre magistratura e nobreza francesas - um judicial self-restraint (2011, p. 41) neste Estado de Direito. Por isso mesmo, o Conselho de Estado francês não vê necessidade de aplicar o Código Civil de 1804, tarefa dos juízes, razão pela qual posso iluminar o interessantíssimo fato do Direito Administrativo – no seio do sistema continental de civil law – ser um direito jurisprudencial, que amiúde rejeitava propositadamente as regras do Direito Privado, já em vias de publicização. No entanto, de que Estado de Direito estamos falando? Os manuais afirmam que o impulso decisivo à consolidação do Direito Administrativo foi a adoção da teoria da tripartição dos Poderes pelos Estados de Direito (MEIRELLES, 2014, p. 52), mas essa teoria foi adotada da mesma forma em todos os lugares? Ouso afirmar que não. Por exemplo, no Brasil, só temos como reconhecer o modelo francês de Direito Público (e, dentro dele, o Administrativo) antes da República (DI PIETRO, 2002, p. 14). Proclamada esta, nosso modelo passa a ser notadamente norteamericano, o qual, embora seja já por sua vez uma mistura do sistema civil law continental com o common law inglês, tem muito mais matizes deste, além de ser o responsável – nas

10 Lei francesa de 16-24 de agosto de 1790: "As funções judiciárias são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas. Os juízes não poderão, sob pena de prevaricação, perturbar, seja de que modo for, as operações dos corpos administrativos, nem citar perante si os administradores por motivo de suas funções".

118

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

palavras de Dworkin – por uma das maiores contribuições à teoria constitucional contemporânea: a noção de um governo de princípios (2006, p. 09). Existe uma diferença ontológica entre esses dois modelos de Direito Público. É que o contexto histórico-político dos Estados inglês e norte-americano não desconfiou de seus magistrados. Pelo contrário, o Judiciário – aqui – é limitação ao poder arbitrário, e não seu titular, como era na França. Em decorrência, tem-se um autêntico significado de jurisdição única: uma mesma legalidade para todos os Poderes do Estado. Não existe na história do Direito norteamericano desigualdade jurídica entre cidadão e Administração, mas submissão aos mesmos princípios deontológicos. Com efeito, também é essa noção de legalidade (una) que conhecemos no Brasil, reforçada

hodiernamente

pela

blindagem

normativa

que

o

Constitucionalismo

Contemporâneo representa. Não há espaço, aqui, para o afastamento da Administração Pública da sindicabilidade judicial, mediante controle de legalidade e constitucionalidade e, portanto, a noção de supremacia do interesse público se apresenta deslocada do seu ambiente, pois oriunda de um modelo de Direito Público estranho ao nosso. Não é só por isso, entretanto, que a supremacia do interesse público merece extirpação da teoria do Direito Administrativo brasileiro. Na França, berço da noção, a doutrina – desde o início do século passado, quando Duguit, fundando-se em Hauriou e Berthelémy, retira o poder soberano como qualidade essencial do Direito Público e nega a existência de direitos do Estado (DUGUIT, 1913, p. 39) – já abandonou o critério da supremacia do interesse público sobre o privado e, quando o usa, não é mais no sentido de suprimir os direitos individuais do cidadão, legitimar ipso facto os atos administrativos e conferir poder discricionário ao administrador, mas, antes, em sentido antidiscricionário: como indisponibilidade do interesse público (RIVERO, 1973, p. 10).

119

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Assim, de ambos os “lados” do Direito Público moderno, a noção de supremacia do interesse público não mais se sustenta, ao menos como exposta no senso comum teórico dos juristas. Arrisco-me, porém, a afirmar que existe outro motivo determinante para a extirpação desse conceito da ciência do Direito Administrativo: um motivo de cariz teórico, epistemológico, por que não, “metodológico”, que se relaciona com o paradigma hermenêutico do Direito. É que dividindo o ato de conhecimento da norma do ato de sua produção, isto é, cindindo totalmente as atividades do cientista do Direito e do operador do Direito, ou seja, postulando que o saber jurídico é distinto e autônomo (é anti-ideológico) em relação à política jurídica, Kelsen, juntamente com toda a herança positivista do Direito, mesmo que não estritamente fiel a seus postulados, oculta a essência da linguagem por concebê-la como cópia de um modelo original (GADAMER, 1997, p. 593-594). Michel Foucault (1926 – 1984) chama isso de mito platônico da antinomia entre saber e poder, que dominou a história ocidental, pregando que o conhecimento verdadeiro (puro) é neutro, não pertence ao poder político, este que seria cego, ignorante (2002, p. 5051). Para Boaventura de Sousa Santos, essa antinomia é paradigmática, correspondente ao modelo de ciência moderna (inclusive de suas teorias críticas), e necessita da reformulação do termo objetividade, para um conceito menos absoluto, porém mais forte, que trabalha mais para minimizar a neutralidade que para maximizá-la (2011, p. 31-32). A teoria do Direito, cuja constante histórica tem apresentado uma grave defasagem em relação à Filosofia – ainda nos apoiamos em adágios de Hobbes, Kant, Locke, Rousseau e Wolff, autores altamente questionáveis pelos filósofos e sociólogos atuais (VILLEY, 2005, p. 173) –, continua presa ao moderno esquema disjuntivo de sujeito-objeto, cujas anulações recíprocas na ciência e na moral acarretam o já anotado solipsismo jurídico no Direito (MORIN, 2015, p. 40; STRECK, 2013). Assim é que os estudiosos do Direito Administrativo, do século XIX em diante, desenvolveram seus cânones interpretativos próprios na função de reproduzir, de forma

120

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

objetiva, o funcionamento do Direito que se apresentava naquela época, enquanto o fazer deste Direito é um problema moral, exclusivamente subjetivo. A supremacia do interesse público e os cânones que presumem ipso facto a inferioridade do cidadão frente à Administração Pública, a legitimidade dos atos administrativos e o poder discricionário da autoridade são nada menos que a representação desse essencial aspecto do paradigma normativista de ciência jurídica. Ocorre que, assim, a doutrina não pode (mais) doutrinar, e o Direito passa a ser o que a vontade do intérprete determinar, problema muito bem exposto por Lenio Luiz Streck (2013). Com efeito, em última análise, a função da supremacia do interesse público no senso comum teórico nativo é de “barrar” a reflexão da doutrina jurídica a respeito da legitimidade (e discricionariedade) dos atos do aplicador/intérprete da norma, o que constitui um sonho para Kelsen e a consagração da banalidade do mal para Hannah Arendt11 (1999). Questiono, portanto, de forma veemente, o conceito de supremacia do interesse público como é apresentado pelo senso comum teórico brasileiro, tanto pelo seu abandono na doutrina originária, quanto pela não recepção desse conceito desde a instauração da República brasileira – muito mais patente no atual Constitucionalismo Contemporâneo – , e, por último, pela evidente inadequação de um paradigma solipsista em pleno Estado Democrático de Direito.



11 A filósofa judia escreveu Eichmann em Jerusalém, em 1964, retratando o julgamento de um dos oficiais nazistas responsáveis pelo genocídio da Segunda Guerra Mundial. Com o conceito de banalidade do mal, Arendt quer chamar atenção para o fato de que o que designamos como os maiores assassinos do século passado são pessoas com a vida privada exatamente igual a nossa e, quando praticaram as atrocidades que lhes foram apontadas, sua única resposta era a de estavam fazendo seu trabalho. Cumprindo, com excelência, as ordens que lhe foram dadas. Identifica-se, assim, um novo tipo de criminoso, o hostis generis humani, “que comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de modo errado” (1999, p. 166).

121

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

CONSIDERAÇÕES FINAIS: PROPONDO ALTERNATIVAS – O PARADIGMA HERMENÊUTICO

NA

TEORIA

DO

DIREITO

E

A

PRINCIPIOLOGIA

CONSTITUCIONAL COMO STANDARD DE CONFORMAÇÃO DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA Na primeira seção do trabalho, expus, de forma breve, o sentido da noção de supremacia do interesse público no senso comum teórico do Direito Administrativo brasileiro, decompondo os três cânones interpretativos que ele oferece para esse ramo do Direito como distintivos e específicos. Oportunamente, demonstrei a íntima relação que a supremacia do interesse público mantém com o paradigma normativista de ciência jurídica, a ponto de se revelar, ao cabo do raciocínio, uma das melhores representações da Teoria Pura do Direito no senso comum teórico dos juristas brasileiros. Na segunda seção, apontei as insuficiências do paradigma normativista de ciência jurídica e de seu corolário no cotidiano do Direito Administrativo – o discurso da supremacia do interesse público – na atual fase do Constitucionalismo Contemporâneo e do Estado Democrático de Direito que lhe acompanha, urgindo pela substituição do atual paradigma de ciência jurídica pelo paradigma hermenêutico do Direito. Agora, nesta parte final, dedico-me a esboçar a alternativa ao paradigma positivista de direito e da noção intrínseca de supremacia do interesse público. Ao paradigma normativista, substitui-se um paradigma hermenêutico-filosófico; no lugar de um modelo de ciência jurídica neutra, coloca-se uma doutrina ativa – que constrói a si e seu objeto numa relação dialógica – e, ao invés de supremacia do interesse público, os juristas precisam falar de supremacia constitucional. A incompatibilidade entre os modelos, já expus; resta apontar o que muda com tais substituições. Preciso alertar, escorado em Boaventura de Sousa Santos, que o paradigma emergente de ciência (jurídica) é fruto dos sinais de crises irreversíveis do paradigma dominante, os quais só nos permitem especular acerca do que pode resultar desta revolução científica no Direito (2011, p. 68).

122

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Não duvido, também, que as substituições acima pontuadas não são somente trocas de nomes ou de posições. Vimos, por exemplo, que o paradigma hermenêuticofilosófico não tem nada de similar com o sentido moderno que se deu à hermenêutica e, assim, tampouco essa nova teoria do Direito Administrativo foge da pretensão de descrever neutra e objetivamente seu objeto. No mesmo sentido segue o “modo-de-ser” do “operador do direito”, que, dentro das exigências intersubjetivas do Estado Democrático de Direito, precisa se conscientizar de seu habitus positivista-autoritário. Isso constitui um sério desafio em um senso comum teórico petrificado pelos dogmas positivistas, o qual se insere, por sua vez, em um país marcado pelo tratamento privado da coisa pública, cuja estrutura, principalmente a administrativa, não se alterou muito desde a ditadura, pois a “Reforma do Estado” de 1990, como afirma Gilberto Bercovici, que introduziu as agências reguladoras na estrutura administrativa brasileira, não passou de “um novo patrimonialismo”, promovedor da retirada de extensos setores da sociedade do debate público e democrático, deixando pendente a questão do controle público da atuação estatal (BERCOVICI, in: TELES, SAFATLE, 2010, p. 89-90). Contudo, se o Constitucionalismo Contemporâneo, como afirma Streck, substitui um Direito meramente legitimador das relações de poder – típico da ditadura de 1964 – 1988, contudo sempre presente na história brasileira – por um Direito com potencialidade de transformar a sociedade (2011, p. 59), no mesmo sentido deve seguir a ciência jurídica que, desde o século XIX, fundada na consciência filosófica de Bacon e Descartes (mas que encontra origens em Parmênides e Platão), tem se preocupado em possibilitar uma, e só uma, forma de conhecimento verdadeiro, puro, neutro, objetivo, imparcial (SANTOS, 2011, p. 61). Ocorre que o conhecimento verdadeiro, puro, nos moldes matemáticos que se propõe por Kelsen, por exemplo, pressupõe que não exista comunicação e diálogo no esquema sujeito-objeto que preside a ciência (jurídica) moderna (SANTOS, 2011, p. 71). Presa ao “paradigma da simplificação”, a ciência moderna seguiu separando sujeito e objeto, filosofia e ciência, culminando na impossibilidade de conceber o elo inseparável entre o observador e a coisa observada (MORIN, 2015, p. 12).

123

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Com Streck, destaco que é neste ponto que a hermenêutica filosófica leva vantagem sobre as demais propostas teóricas para o Direito: é o nosso modo prático de “ser-no-mundo” que comanda nossa compreensão das coisas – e do Direito –, em oposição ao mundo das regras do positivismo12 (2011, p. 70). Fazer hermenêutica filosófica é ir além daquilo que o intérprete quer e faz do que interpreta (GADAMER, 2002, p. 28) e, nesse sentido, o conceito de norma jurídica como ato de vontade da autoridade nos é raso e inútil – e no mesmo sentido o são as concepções de Direito como produto de um juízo de ponderação ou situação ideal de comunicação, porque não sabem o que fazer com a précompreensão, na hermenêutica filosófica, condição de possibilidade de qualquer discussão a respeito do Direito (STRECK, 2011, p. 141). Urge uma teoria crítica do Direito que não seja monocultural como as que presenciamos no século passado, isto é, que não compartilhe do ideal de unidade – ou universalidade – do saber da ciência moderna, mas proponha uma ecologia dos saberes, que faça as aspirações de culturas oprimidas – silenciadas em decorrência de séculos de contato colonial e de desprezo com a cultura ocidental – ressurgirem por meio de outras linguagens, outras racionalidades, emancipadoras e não reprodutoras da dominação (SANTOS, 2007, p. 51-55). Em um contexto de teoria crítica e Constitucionalismo Contemporâneo, a doutrina jurídica não pode deixar de refletir a respeito dos atos concretos da autoridade, e assim qualquer presunção de legitimidade e poder discricionário à Administração Pública – fundada em quaisquer adágios – são camuflagens e silenciamentos de relações de poder que instrumentalizam a democracia13 (ZAGREBELSKY, 2012, p. 129-131). Outrossim, como

12 “[...] a crise que atravessa a hermenêutica jurídica possui uma relação direta com a discussão acerca da crise do conhecimento e do problema da fundamentação, própria do início do século XX. Veja-se que as várias tentativas de estabelecer regras ou cânones para o processo interpretativo a partir do predomínio da objetividade ou da subjetividade, ou, até mesmo, de conjugar a subjetividade do intérprete com a objetividade do texto, não resistiram às tese da viragem linguístico-ontológica, superadoras do esquema sujeito-objeto, compreendidas a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da desobjetificação provocada pelo círculo hermenêutico e pela diferença ontológica” (STRECK, 2011, p. 268). 13 O prof. Georges Abboud destaca que: "A restrição dos direitos fundamentais pode estar constitucionalmente autorizada e fundamentada em interesse social, mas não no interesse público. Isso ocorre porque a decretação do “interesse público” é um ato arbitrário do Estado que, como um Midas, coloca o selo de “público” em tudo o que toca. Nesse cotejo, do ponto de vista prático seria complicado conseguir

124

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

distinguir “interesse público” das determinações constitucionais, se o Estado Democrático de Direito significa, justamente, a conjugação entre democracia e constitucionalismo14 (HABERMAS, 1997b, p. 128-139; DWORKIN, 2000, 80 e ss; STRECK, 2009, p. 17-37)? É nesses moldes que se forma uma teoria do Direito Administrativo antidiscricionária, reconhecedora da polifonia que constitui seu objeto de estudo, que não se limita, como faz a tradição positivista de ciência jurídica, à vontade da autoridade interpretadora, pois suas proposições não são, e nunca foram, neutras, mas também interpretações, pois interpretar é aplicar (GADAMER, STRECK). A força deontológica da principiologia constitucional (DWORKIN) difere da supremacia do interesse público pelo alto grau de accountability que oferece, constituindo uma vantagem à sociedade aberta de intérpretes da Constituição (HABERLE) e ao paradigma intersubjetivo do Estado Democrático de Direito. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBOUD, Georges. O mito da supremacia do interesse público sobre o privado: a dimensão constitucional dos direitos fundamentais e os requisitos necessários para se autorizar restrição a direitos fundamentais. Revista dos Tribunais, vol. 907, p. 61, Mai/2011, DTR. 2011\1443. ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Administrativo descomplicado. 23ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2015.

demonstrar que determinada restrição não atende o interesse público contra justamente o instituidor e o principal beneficiário da restrição. Ao contrário, o interesse social demanda justificativa exaustiva por parte do Poder Público quando determinar a restrição a algum direito fundamental, haja vista que terá de demonstrar, pormenorizadamente, quais os direitos fundamentais que serão beneficiados com a medida e qual o dispositivo constitucional autorizativo da referida restrição. No Estado Constitucional, não há mais espaço para o ato administrativo puramente discricionário. A discricionariedade não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, uma vez que todo ato do Poder Público, principalmente aquele restritivo de direitos, deve ser amplamente fundamentado, expondo com exaustão os fundamentos fático-jurídicos a fim de demonstrar porque aquela escolha da Administração Pública é a melhor possível" (ABBOUD, 2011, p. 20). 14 Recordo, com Streck, que “[...] a contraposição entre democracia e constitucionalismo é um perigoso reducionismo. [...] Frise-se, ademais, que, se existir alguma contraposição, esta ocorre necessariamente entre a democracia constitucional e a democracia majoritária, questão que vem abordada em autores como Dworkin, para quem a democracia constitucional pressupõe uma teoria de direitos fundamentais que tenham exatamente a função de colocar-se como limites-freios às maiorias eventuais” (STRECK, 2011, p. 76).

125

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Trad.: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. 500 Anos de Direito Administrativo brasileiro. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 10, janeiro, 2002. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves Ribeiro (coord.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010. DUGUIT, Léon. Les transformations du droit public. Paris: Librairie Armand Colin, 1913. DWORKIN, Ronald. O direito de liberdade: a leitura moral da Constituição norteamericana. Trad.: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo/SP: Ed. Martins Fontes, 2006. ___________, Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. FERRAJOLI, Luigi. Principia Juris II: Teoria dela democrazia. Roma-Bari: Laterza, 2007. FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Trad.: Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002. GABARDO, Emerson. A relação entre interesse público e direitos fundamentais. Revista Argentina del Regimen de la Administración Pública. Buenos Aires. n. 394, 2011, p. 29-39. GABARDO, Emerson; HACHEM, Daniel Wunder. O suposto caráter autoritário da supremacia do interesse público e das origens do Direito Administrativo: uma Crítica da Crítica. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves Ribeiro (coord.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2010.

126

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: vol. I. Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad.: Flávio Paulo Meurer. Petrópolis/RJ: Ed. Vozes, 1997. HABERMAS, Jürgen, Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume I. Trad.: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. __________________. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II. Trad.: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997b. LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Trad.: Hélio Magri Filho. 3ª ed. Petrópolis/RJ: Ed. Vozes, 2011. KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Trad.: J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Trad.: Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1998. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 40ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 25ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008. MULLER, Friedrich. O novo paradigma do Direito. Introdução à teoria e metódica estruturante do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. ______________. Métodos de trabalho do Direito Constitucional. Trad.: Peter Naumann. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. RIVERO, Jean. Droit administratif. 6ª ed. Paris: Dalloz, 1973. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Vol I: Para um novo senso comum: a ciência, o Direito e a política na transição paradigmática. 8ª ed. São Paulo: Cortez. 2011.

127

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

___________________. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. Trad.: Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007. ___________. O discurso e o poder: ensaio sobre a sociologia da retórica jurídica. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1988. SEABRA, Miguel. O controle dos atos administrativo pelo poder judiciário. 4ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1967. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. _______________. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010. TRINDADE, André Karam; STRECK, Lenio Luiz; FERRAJOLI, Luigi (Org.). Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: um debate com Luigi Ferrajoli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. WARAT. Luiz Alberto. Introdução geral ao Direito: vol. I: Interpretação da lei: temas para uma reformulação. Trad.: José Luis Bolzan de Moraes. Porto Alegre: Ed. Sergio Antonio Fabris Editor, 1995. _____________, O Direito e sua linguagem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1984. _____________, A pureza do poder: uma análise crítica da teoria jurídica. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1983. WIEACKER, Franz. História do Direito Privado moderno. 2ª ed. Trad.: A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1967. ZAGREBELSKY, Gustavo. A crucificação e a democracia. Trad.: Monica de Sanctis Viana. São Paulo/SP: Saraiva, 2012.

128

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

INDIGNIDADE SUCESSÓRIA E DESERDAÇÃO: ANÁLISE DAS ALTERAÇÕES PROPOSTAS PELO PROJETO DE LEI Nº 867, DE 2011, NO ÂMBITO DA JURISPRUDÊNCIA DOS 27 TRIBUNAIS DE JUSTIÇA BRASILEIROS Ana Paula de Menezes Barros Correia Fonsêca1 Helena da Cunha Martins2 Karine Cysne Frota Adjafre3 Submetido(submitted): 15 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 27 de outubro de 2016 RESUMO O Projeto de Lei nº 867, de 2011, em tramitação na Câmara dos Deputados, altera a disciplina dos institutos de exclusão da herança – indignidade sucessória e deserdação. Partindo da jurisprudência dos tribunais de justiça brasileiros, o presente artigo tem por escopo analisar se as modificações trazidas incorporam as tendências jurisprudenciais atuais ou se, ao contrário, inovam por completo no tratamento jurídico do tema. Para tanto, é feita exposição comparativa do PL 867/2011 tendo por base a disciplina atual da exclusão sucessória, bem como um exame de cada uma das alterações propostas à luz do entendimento dos tribunais. PALAVRAS-CHAVE: Projeto de Lei nº 867/2011; Indignidade sucessória; Deserdação. ABSTRACT The Bill of Law n. 867/2011, pending in the House of Representatives, changes the discipline of inheritance exclusion institutes – succession indignity and disinheritance. From the jurisprudence of the Brazilian state courts, this article aims to examine whether the changes brought incorporate current jurisprudential trends or, on the contrary, innovate completely in the legal treatment of the subject. Therefore, it is made comparative exposure of PL 867/2011 based on the current discipline of succession exclusion, as well as an examination of each of the proposed amendments in light of the understanding of the courts. KEYWORDS: Bill of Law n. 867/2011; Succession indignity; Disinheritance. INTRODUÇÃO Em tramitação sob o regime de prioridade na Câmara dos Deputados desde 4 de abril de 2011, o Projeto de Lei nº 867, de 2011, visa conferir tratamento novo aos institutos de exclusão da herança, por meio da alteração dos dispositivos atinentes aos excluídos da sucessão e à deserdação, respectivamente Capítulo V do Título I e Capítulo X do Título III, ambos do Livro V do Código Civil (BRASIL, 2002). Originado do Projeto de Lei do Senado nº 118, de 2010, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves (DEM/SE), o PL 867/2011, nos termos do art. 24, II, do Regulamento Interno da Câmara dos Deputados (Resolução nº 17/1989 da Câmara dos Deputados), está sujeito à apreciação conclusiva por Comissões. 1 2 3



Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (10º período). Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (10º período). Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (10º período).

129

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Desta feita, após receber parecer favorável à sua aprovação na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), onde aguarda a designação de relator para elaboração de parecer4. Como se verá a seguir, o PL 867/2011 difere da disciplina anterior ao ampliar as hipóteses de impedimento de sucessão por indignidade. Difere, ainda, ao prever: a dispensa da declaração por sentença do impedimento por indignidade ou privação da legítima quando houver anterior pronunciamento judicial que já tenha expressamente reconhecido a prática da conduta antijurídica; a redução do prazo para demandar a exclusão do herdeiro ou privação da legítima; a possibilidade de privação parcial da legítima; e a possibilidade de deserdação do herdeiro omisso no cumprimento das obrigações de direito de família a ele legalmente incumbidas e do herdeiro destituído do poder familiar em relação ao testador. Frente a essas diferenças, propõem-se, com o presente artigo, analisar se, à luz da jurisprudência dos 27 Tribunais de Justiça brasileiros, as modificações trazidas pelo PL 867/2011 são genuínas inovações ou se, do contrário – como, a propósito, a primeira vista nos faz parecer, levando-se em conta a defasagem da disciplina da matéria no CC/02 –, consistem na incorporação legal de tendências jurisprudenciais atuais. Para tanto, por meio de pesquisa doutrinária, legislativa e jurisprudencial, investigaremos o propósito geral e as mudanças trazidas pelo referido Projeto de Lei, tendo por base a natureza jurídica da exclusão sucessória por indignidade e da deserdação, bem como o entendimento dos tribunais a respeito de pontos relevantes da matéria. O PROJETO DE LEI Nº 867/2011: TRAMITAÇÃO LEGISLATIVA E JUSTIFICATIVA GERAL De início, façamos um breve esboço cronológico das etapas pelas quais já passou o Projeto de Lei nº 867 de 2011. Após apresentação à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal, em 4 de maio de 2010, o senador relator do então PLS 118/2010 nesta Comissão, Demóstenes Torres (DEM/GO), em 1º de dezembro de 2010, emitiu parecer (reelaborado em 16 de março de 2011) manifestando-se pela aprovação do projeto, com sete emendas. Neste, entendeu o relator pela constitucionalidade e juridicidade da proposta, bem como pela conveniência e oportunidade da matéria, “na medida em que atualiza o regime de privação da herança do direito brasileiro, pondo-o em sintonia com os mais recentes avanços da legislação estrangeira”5. O relatório foi aprovado pela CCJ em 16 de março de 2011, data em que a decisão da Comissão em caráter terminativo foi comunicada para ciência do Plenário e publicação no Diário do Senado Federal (DSF). Em 21 de março de 2011, foi feita a leitura do Parecer nº 44, de 2011, da CCJ, pela aprovação do PLS 118/2010 com as Emendas nº 1 a 7. A matéria foi aprovada em caráter terminativo e, como não houve

130

4 Conforme consulta feita à situação de tramitação do PL 867/2011 em 26 de outubro de 2016. Disponível em: . 5 TORRES, 2010, p. 3.





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

interposição de recurso por um décimo dos membros do Senado para que houvesse apreciação pelo Plenário, o projeto emendado foi remetido à Câmara dos Deputados para revisão, nos termos do art. 65 da CR/88, em 4 de abril de 2011. Na Câmara dos Deputados, o (renomeado) PL 867/2011 foi recebido pela Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) em 2 de maio de 2011, sendo-lhe designado relator o deputado Danilo Forte (PMDB/CE) em 5 de agosto do mesmo ano. Sem qualquer manifestação até então, em 27 de março de 2012, foi nomeado novo relator, o deputado William Dib (PSDB/SP), que se pronunciou6 pela aprovação do Projeto de Lei. Após pausa de mais de um ano na tramitação, em 11 de março de 2014, foi escolhida nova relatora, a deputada Erika Kokay (PT/DF), que apresentou parecer em 8 de maio de 2015. Nesse interregno, a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados determinou o apensamento, ao PL 867/2011, do Projeto de Lei nº 8020, de 2014, referente à inclusão de inciso ao art. 1.814 do CC/02, com vistas a excluir da sucessão os herdeiros ou legatários que, como autores, coautores ou partícipes, induzirem, instigarem ou auxiliarem o suicídio (ou tentativa de suicídio) da pessoa de cuja sucessão se tratar. Em síntese, incorporando as justificativas expostas pela senadora Maria do Carmo Alves quando da propositura do Projeto de Lei (que serão tratadas a seguir), entendeu a deputada Erika Kokay que o PL 867/2011 “aprimora a legislação civil brasileira, redundando numa maior proteção à família, motivo pelo qual merece prosperar”7. Diversa, contudo, foi sua conclusão quanto ao PL 8020/2014 apensado, por compreender já ser este abarcado pelo Projeto de Lei do Senado Federal na redação proposta ao art. 1.814, inciso I. O parecer da relatora pela aprovação do PL 867/2011 e pela rejeição do PL 8020/2014 foi aprovado por unanimidade pela CSSF em 2 de junho de 2015 e, nove dias depois, o projeto e seu apenso foram recebidos pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Nesta, apenas em 25 de maio de 2016 foi designado relator o deputado Veneziano Vital do Rêgo (PMDB/PB). Contudo, como o projeto foi por ele devolvido sem manifestação, aguarda-se, como vimos, a indicação de novo relator. Pois bem. Delineado o esboço do trâmite legislativo, passemos à justificativa geral do projeto. Vê-se do texto inicial que o então PLS 118/2010 foi primordialmente fundamentado nas sugestões alvitradas por Carlos Eduardo Minozzo Poletto em sua dissertação de mestrado em Direito Civil Comparado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), A exclusão da sucessão à luz da eficácia civil dos direitos fundamentais e da teoria geral do direito sucessório: estudo crítico-comparativo entre a indignidade e a deserdação, defendida em 27 de janeiro de 2010. Nos termos da senadora autora do Projeto de Lei, Maria do Carmo Alves, a proposta, baseada em referido estudo e tendo em vista o caráter defasado da disciplina da exclusão da herança no CC/02, foi feita com vistas a 6 7



DIB, 2012. KOKAY, 2015, p. 3.

131

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

[...] aprimorar o Direito Sucessório, voltando-se particularmente para a clarificação dos institutos de exclusão da herança, relativamente aos conceitos de indignidade sucessória e deserdação, os quais, apesar de possuírem semelhante natureza e o mesmo objetivo, possuem fundamento, estrutura e regime próprios, razão pela qual não podem ser equiparados nem grosseiramente diferenciados.8

Importante, aqui, explorar o objetivo genérico tencionado. Para tanto, recorreremos, dentre outras, à obra base da proposta legislativa, republicada após atualização com o título Indignidade sucessória e deserdação (2013), a fim de esclarecer o objetivo, o fundamento e a natureza jurídica dos institutos. Primeiramente, cumpre dizer que tanto a indignidade sucessória quanto a deserdação possuem finalidade punitiva, na medida em que privam do direito sucessório aquele sucessor que, em última análise, viole a dignidade do autor da herança ou de sua família – daí o caráter excepcional dos institutos. É dizer, ambas configuram hipóteses de exclusão da sucessão por razões de ordem ética, cuja função é, por meio da perda do direito subjetivo a suceder, punir o sucessor que agir em contramão ao juridicamente aceitável9. Sabe-se que, corolário do direito de propriedade10, o direito sucessório é direito fundamental e, como tal, só pode ser excluído ou restringido caso haja observância dos ditames constitucionais. Contudo, também possui fundamento constitucional a privação de referido direito, porquanto ter esta a função de garantir o supraprincípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB/88). Afinal, se a esta é dada importância tal a ponto de se considerá-la fundamento da República, justificável a penalização patrimonial daquele que, possuidor de laços familiares e afetivos com o autor da herança, afronta-o a ponto de ferir sua dignidade11. Nesse sentido, tendo em vista a colisão entre dois direitos fundamentais, a previsão legal da privação hereditária decorre de “sopesamento realizado pelo próprio legislador ao enfrentar [referido] conflito”12, do qual prevalece a dignidade humana, por ter esta, ao contrário do direito sucessório, fundamento em valor pessoal e não patrimonial. No tocante à natureza jurídica, a indignidade pode ser definida como pena civil, determinada por lei e concretizada mediante declaração por sentença, que consiste na privação do direito hereditário a quem, por ato voluntário, antijurídico e tipificado, houver ofendido o autor da herança ou sua família13. Ainda que haja vozes na doutrina classificando o instituto ora como incapacidade ora como ilegitimidade, prevalece o entendimento de que a 8

ALVES, 2010, p. 4. CARVALHO; CARVALHO, 2009; CATEB, 2012; DIAS, 2015; FARIA, 2003; GOMES, 2008; HIRONAKA, 2004b; MENIN, 2008; NETO, 2008; POLLETO, 2013; TARTUCE, 2015. 10 GOMES, 2008; POLLETO, 2013. Outros autores enfatizam que o direito sucessório tem por fundamento não apenas o direito de propriedade, mas também o direito de família (proteção, união e perpetuação desta). Nesse sentido, DIAS, 2015; HIRONAKA, 2004a; MONTEIRO, 2011. 11 DIAS, 2015; POLLETO, 2013. 12 POLLETO, 2013, p. 37. 13 CARVALHO; CARVALHO, 2009; CATEB, 2012; DIAS, 2015; FARIA, 2003; MONTEIRO, 2011; NETO, 2008; POLLETO, 2013. 9

132





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

indignidade é uma hipótese de exclusão sucessória que possui natureza jurídica de pena privada, porquanto configura impedimento objetivo. Nesse sentido, O excluído do processo sucessório possui capacidade e legitimação hereditária, mas, por ter sido considerado indigno, é privado do seu direito subjetivo. Ele adquire o acervo, mas é punido posteriormente com a sua perda. [...] O principal efeito da incapacidade, ilegitimidade e indignidade pode até ser o mesmo, impedir que se opere a transmissão hereditária, contudo, isso acontece por razões diversas, visto que, enquanto as duas primeiras correspondem à mera circunstância ou inidoneidade de fato, na última, o fundamento encontra-se em uma incompatibilidade legal/moral do sucessor.14

Lado outro, a deserdação, ainda que genericamente signifique exclusão da herança, é utilizada no CC/02 em sentido mais restrito, de pena civil consubstanciada na “privação do direito legitimário dos herdeiros necessários”15 e formalizada mediante cláusula testamentária (em que pese seja figura típica da sucessão legitimária e não da transmissão testamentária)16. Vemos, assim, que, a despeito da similaridade na natureza jurídica e no objeto, há aspectos objetivos e subjetivos que distinguem os dois institutos. Já da leitura da definição acima trazida, podemos extrair que, diferentemente da indignidade, que ex lege opera efeitos em todas as modalidades sucessórias, a deserdação é uma punição que depende da manifestação formal e expressa da vontade do testador, cujos efeitos são verificados apenas na sucessão legitimária. Em razão disso, a indignidade pode decorrer de atos praticados antes ou após a morte do autor da herança; a deserdação, por sua vez, só daqueles anteriormente praticados17. Ademais, diversos são também seus fundamentos ético-jurídicos específicos. Enquanto a indignidade se funda na “proteção da ordem pública e social, tendo em vista que ela atua precipuamente sobre comportamentos criminosos, que [...] atingem de forma reflexa toda a coletividade”18, a deserdação tem caráter preventivo19 e se fundamenta na ordem familiar à medida que visa tutelar “a harmonia, o respeito, o afeto e a solidariedade nas relações familiares, abarcando geralmente ilícitos civis ou até mesmo atos moralmente condenáveis”20. Dessa feita, considerando cada um dos fundamentos, justifica-se o fato de que todas as causas de indignidade sejam aplicáveis à deserdação, mas não o contrário – aliás, mesmo nas hipóteses de coexistência de indignidade e deserdação originadas de um mesmo ato, não há



14 POLLETO, 2013, p. 246-247. No mesmo sentido, CARVALHO; CARVALHO, 2009; CATEB, 2012; DIAS, 2015; FARIA, 2003; HIRONAKA, 2004b, NETO, 2008. 15 POLLETO, 2013, p. 354. 16 HIRONAKA, 2004b; MENIN, 2008; POLLETO, 2013. 17 ALMEIDA, 2014; GOZZO; VENOSA, 2004; MONTEIRO, 2011; POLLETO, 2013; RIZZARDO, 2008; TARTUCE, 2015. 18 POLETTO, 2013, p. 356. 19 MENIN, 2008, p. 216. 20 POLETTO, 2013, p. 357.



133

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

sobreposição entre elas, de forma que “a tutela judicial a ser intentada será sempre autônoma”21. Feitas essas considerações iniciais e gerais sobre o PL 867/2011, seu processo de tramitação e sua motivação genérica, passemos à análise específica de cada uma das alterações por ele propostas à luz da jurisprudência dos tribunais estaduais brasileiros e do Superior Tribunal de Justiça (STJ). DOS IMPEDIDOS DE SUCEDER POR INDIGNIDADE Como vimos, a indignidade é uma sanção, ex lege, de fundamento ético-jurídico, que visa a proteger a ordem pública e social. Destarte, a violação à dignidade do autor da herança afasta, conforme norma ainda vigente, o direito sucessório do herdeiro/legatário torpe22. Isto posto, passar-se-á à análise das inovações legislativas propostas pelo PL 867/2011. Proposta de alteração

Redação vigente

Art. 1.814. Fica impedido de suceder, direta ou indiretamente, por indignidade, aquele que: - g.n.

Art. 1.814. São excluídos da sucessão os herdeiros ou legatários: - g.n.

Ainda que a maioria das ações de indignidade ajuizadas tenham como sujeito passivo herdeiros ou legatários, imperiosa a constatação da necessidade de promoção da ampliação da aplicabilidade do instituto, evitando-se, assim, que eventual interpretação restritiva e literal ocasione injustiças. Nesse diapasão, um julgado paradigma23 do TJRS reconheceu como indigno o genro do de cujus, que, mesmo sendo o responsável pelo homicídio do sogro, faria jus, indiretamente, à parte do patrimônio do autor da herança, porquanto estava a divorciar-se da esposa da vítima com quem havia se casado sob o regime da comunhão universal de bens. Incontestavelmente, há similitude do caso concreto com os valores que se pretendeu defender na tipicidade legal. De tal modo, mesmo que o genro do de cujus não seja legitimado como seu sucessor, a melhor aplicação da norma torna cogente que a pena privada vede, ainda que indiretamente, a perpetração de benefício patrimonial advindo da abertura da sucessão à qual o próprio agente deu causa, em observância do princípio Nemo auditur propriam turpitudinem allegans; e em clara proteção da dignidade do autor da herança, bem como da ordem pública e social. Ademais, acrescenta-se que [...] toda e qualquer pessoa pode ser considerada indigna de suceder, visto que a indignidade, além de atuar em todas as modalidades sucessórias, abarcando o herdeiro legitimário, legítimo e o instituído por testamento, além do legatário, também sanciona civilmente aquele que, mesmo não possuindo vocação hereditária, viria a se beneficiar, direta ou indiretamente, com a transmissão causa mortis [...]. O mesmo ocorre com a pessoa jurídica, 21

Ibidem, p. 438 DIAS, 2015; POLETTO, 2013. BRASIL. TJRS. Apelação Cível Nº 70005798004, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 09/04/2003. 22 23

134





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

pois [...] pode ser excluída do processo sucessório quando o seu proprietário, quotista ou sócio, incorrer em alguma das condutas tipificadas [...].24 Proposta de alteração Art. 1.814, I – na condição de autor, coautor ou partícipe, tenha praticado ou tentado praticar, dolosamente, qualquer ato que importe em ofensa à vida ou à dignidade sexual do autor da herança ou de seu cônjuge, companheiro ou parente, por consanguinidade ou afinidade, até o segundo grau; g.n.

Redação vigente Art. 1.814, I – que houverem sido autores, coautores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar, seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente; -g.n.

A proposta em vértice, evidentemente, expandiu as hipóteses elencadas, a fim de abarcar condutas criminosas outras, que não o homicídio, que lesionem dolosamente o bem jurídico da vida; assim como aquelas que ofendam a dignidade sexual do autor da herança. O referido entendimento já norteava alguns julgados de tribunais pátrios, vide o susodito julgado do TJRS; e mostra-se atento à proteção de bens jurídicos da maior importância, cuja lesão configura, em alguns casos, a exemplo do estupro, na própria hediondez do crime (v. art. 1º, V, da Lei 8.023/90) e, logo, em tratamento penal diferenciado e mais rigoroso25. Ademais, se há identidade de razão jurídica ao afastamento da sucessão, a lei deve ser a mesma (ubi eadem ratio, ibi idem jus)26. Contudo, não se trata de entendimento jurisprudencial uníssono27, tendose em vista que aqueles que entendem ser o rol do art. 1.814 taxativo, defendem ser vedada interpretação extensiva. Nesse sentido, o Eg.TJRS: AÇÃO DE EXCLUSÃO DE HERDEIRO. CONDUTAS ILÍCITAS PRATICADAS ENTRE DESCENDENTES. AUSÊNCIA DE FATOTÍPICO AUTORIZADOR DA DECLARAÇÃO DE INDIGNIDADE. IMPOSSIBILIDADE DE INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. 1. A indignidade é uma pena aplicada ao sucessor que pratica atos indignos contra o autor da herança, taxativamente previstos em lei, não sendo permitida interpretação extensiva. Inteligência do artigo 1.814, do Código Civil. 2. É inviável a exclusão de herdeiro pela suposta prática de atos ilícitos em relação a outra herdeira, diante da ausência de fato típico autorizador da declaração de indignidade. Recurso desprovido.

24

POLLETO, 2013, p. 342. Lei 8.032/90 e art. 5º, XLIII da CRFB/88. TORRES, 2010. 27 Realizada pesquisa jurisprudencial frente aos 27 tribunais de justiça com dois filtros diferentes: I -"sucessão" "indignidade" "analogia"; II - "sucessão" "indignidade" "hipóteses"; foram encontrados, respectivamente, 22 e 95 acórdãos, dos quais 4 guardavam apresentavam pertinência temática. Desses, entendiam ser o rol exemplificativo: STJ, REsp 251.151/RJ, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 15/06/2000, DJ 22/10/2001, p. 327; TJSPRelator(a): Paulo Alcides; Comarca: Itu; Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 15/08/2013; Data de registro: 16/08/2013; Outros números: 5088464900;. Por sua vez, entendiam sê-lo taxativa e, logo, vedada interpretação extensiva: TJSP, Relator(a): José Joaquim dos Santos; Comarca: Mauá; Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 07/10/2014; Data de registro: 08/10/2014 ; TJSP, Relator(a): Salles Rossi; Comarca: Comarca não informada; Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Privado; Data de registro: 16/12/2005; Outros números: 1791284000; Apelação Cível Nº 70040516312, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 24/08/2011. Dois desses julgados versavam sobre o CC/16, contudo, frente à similitude das normas, restaram analisados. 25 26



135

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

(Apelação Cível Nº 70040516312, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 24/08/2011).28

Manteve-se a imprescindibilidade da ação dolosa contra de cujus, ou aqueles elencados no dispositivo legal, para que haja subsunção à tipificação em mote. Assim, provavelmente, será mantido o entendimento doutrinário majoritário segundo o qual, quando por erro de execução (art. 73 do CP) ou em relação à pessoa (art. 20, § 3º, do CP), o agente culposamente lesionar bem jurídico do de cujus, ainda que ele seja responsabilizado criminalmente, não será impedido de suceder por indignidade quando não incorrer em outra causa de indignidade (v. inc. II do art. 1.814 da PL). Se, contudo, o erro se configurar em sentido inverso, o dolo era de atingir o autor da herança, mas, por erro de execução ou em relação à pessoa, se atinge terceiro, aplicar-se-á a sanção cível29. Lado outro, cabe apontar que a proposta inovou ao limitar a incidência do efeito do impedimento de suceder à conduta praticada contra parente de até segundo grau, a revés do que antes ocorria (“ascendente ou descendente”); bem como, ao acrescentar expressamente àqueles que ao de cujus se ligam por laços de afinidade30 (leia-se: “relação familiar reflexa do particular parentesco de um cônjuge ou companheiro”31). Proposta de alteração Art. 1.814, II – na condição de autor, coautor ou partícipe, tenha praticado ou tentado praticar, dolosamente, qualquer ato que importe em ofensa à honra, à integridade física, à liberdade ou ao patrimônio do autor da herança; -g.n.

Redação vigente Art. 1.814, II – que houverem acusado caluniosamente em juízo o autor da herança ou incorrerem em crime contra a sua honra, ou de seu cônjuge ou companheiro; - g.n.

Feliz a nova redação proposta. Muito se discute doutrinariamente acerca da real extensão da expressão “acusado caluniosamente”. Conforme entendimento consolidado na jurisprudência e defendido por Minozzo Poletto, que dissocia a expressão “acusado caluniosamente” da expressão “crime de denunciação caluniosa”, posto que, conforme este explica, resta claro que a subsunção da conduta não deve ser aferida de forma una em relação ao artigo 339 do CP32; sendo, ademais, dispensável33 a prévia condenação criminal,

136

28 Realizada pesquisa jurisprudencial frente aos 27 tribunais de justiça sob o filtro: “exclusão” “fato típico” “indignidade”, foi encontrado unicamente o acórdão supra. 29 POLETTO, 2013, p. 264-272. 30 Realizada pesquisa jurisprudencial sobre o filtro: "parente” "afim" "indignidade" "sucessão"; não foram encontrados julgados em nenhum dos 27 tribunais de justiça brasileiros. 31 ALMEIDA; JÚNIOR, 2012, p.86 32 A exemplo, Minozzo Poletto cita os artigos 340 e 342, ambos do CP, os quais atingem de forma reflexa a honra da vítima (POLETTO, 2013, p. 275). 33 Em defesa da necessidade de trânsito em julgado da sentença penal condenatória: Maria Helena Diniz (apud LOBO, 2013, p.177) e Sílvio Rodrigues (idem); NERY JUNIOR; NERY, 2013; TARTUCE, 2015. Mutatis mutandis, o STJ ao julgar ação de deserdação: STJ, REsp 1185122/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j.17/02/2011, Dje 02/03/2011; e ao julgar ação de exclusão de herança: STJ, REsp 1102360/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 09/02/2010, Dje 01/07/2010. Contrário ao pré-requisito: ALMEIDA, 2014; DIAS, 2015; GONÇALVES, 2008; LOBO, 2013.





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

englobando, ainda, àquelas executadas em face do órgão do Ministério Público ou qualquer autoridade administrativa ou parlamentar34. Giro outro, acertada a inovação35 de tipificação dos atos atentados contra a integridade física, a liberdade e o patrimônio do autor da herança, tendo em vista tratar-se de bens jurídicos de elevada importância, cuja ofensa também deve ocasionar pertinaz reprimenda do Estado36. Proposta de alteração Art. 1.814, III – sem justa causa, tenha abandonado ou desamparado o autor da herança, especialmente aquele que, tendo conhecimento da paternidade ou maternidade do filho, não a tenha reconhecido voluntariamente durante a menoridade civil;

Redação vigente Não há correlação.

O Projeto de Lei traz para o Capítulo V, dos impedidos de suceder por indignidade, a referida hipótese atualmente tida como causa de deserdação (v. art. 1.962, IV). Conforme apontado na justificativa do projeto e no parecer de Demóstenes Torres, cogente essa modificação da norma em comento, posto que ininteligível exigir que o interditado tenha, por meio de testamento, deserdado aquele que lhe desamparou. Mais lógico, assim, que se trate de hipótese de indignidade passível de ser suscitada tanto pelo Parquet, como por quem tenha legítimo interesse; bem como que prescindível a condição de interditado37. Em pesquisa realizada junto aos 27 Tribunais de Justiça brasileiros, sob os filtros: “sucessão”, “indignidade” e “hipóteses”, foram encontrados 95 acórdãos, dos quais 3 versavam especificamente acerca da questão do abando ao de cujus, tendo estes decidido pela impossibilidade de impedimento à sucessão por indignidade em virtude do desamparo ao autor da herança, porquanto seria o rol do art. 1.814 taxativo, não havendo, destarte, possibilidade de interpretação extensiva38. Ainda sobre o tema, assim se manifestou o Superior Tribunal de Justiça: “A indignidade tem como finalidade impedir que aquele que atente contra os princípios basilares de justiça e da moral, nas hipóteses taxativamente previstas em lei, venha receber determinado acervo patrimonial, circunstâncias não verificadas na espécie” – g.n (STJ Terceira Turma Resp 1102360/RJ Rel. Min. MASSAMI 34

POLETTO, 2013, p. 275. Não há entendimento unificado dos tribunais nesse sentido. Em pesquisa realizada junto aos 27 tribunais de justiça, sob os filtros: “sucessão”; “indignidade”; “analogia” foram encontrados 22 acórdãos, destes dois versam especificamente sobre a matéria apresentando, contudo, decisões conflitantes: TJSP, Relator(a): José Joaquim dos Santos; Comarca: Mauá; Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 07/10/2014; Data de registro: 08/10/2014 – maus tratos porquanto não tipificado no rol taxativo do art. 1814 do CC, não impede sucessão; e TJSP, Relator(a): Paulo Alcides; Comarca: Itu; Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 15/08/2013; Data de registro: 16/08/2013; Outros números: 5088464900 – . Possibilidade de aplicação do instituto da indignidade à lesão corporal seguida de morte e ocultação de cadáver (art. 1.595 do CC/16). 36 TORRES, 2010. 37 Idem. 38 Nesse sentido: TJSC, Apelação Cível n. 2014.084732-2, de Rio do Sul, rel. Des. Jorge Luis Costa Beber, j. 22/10/2015; TJRN, Apelação Cível n. 2012.002666-1, rel. Des. Expedito Ferreira, j. 31/05/2012); e TJMG Apelação Cível 1.0079.12.016937-4/001, Relator(a): Des.(a) Peixoto Henriques , 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/05/2014, publicação da súmula em 23/05/2014). Doutrinariamente: LOBO, 2013; TARTUCE, 2015. 35



137

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

UYEDA d.j. 09/02/2010). Desta feita, a redação proposta consiste em inovação que visa a contemplar os anseios sociojurídicos atuais. Proposta de alteração Art. 1.814, IV – por violência ou qualquer meio fraudulento, inibir ou obstar o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade, furtar, roubar, destruir, ocultar, falsificar ou alterar o testamento ou codicilo do falecido, incorrendo na mesma pena aquele que, mesmo não tendo sido o autor direto ou indireto de qualquer desses atos, fizer uso consciente do documento viciado. g.n.

Redação vigente Art. 1.814, III – que, por violência ou meios fraudulentos, inibirem ou obstarem o autor da herança de dispor livremente de seus bens por ato de última vontade.

O inciso IV traz novas condutas que visam sancionar aquele que tentar fraudar a sucessão hereditária, seja furtando, roubando, obstruindo, falsificando ou alterando o testamento, ou mesmo aquele que se aproveitar conscientemente do instrumento viciado. Com isso, amplia a proteção e a guarida do direito do autor da herança de livremente dispor de seu patrimônio causa mortis, tão logo, conforme já exaustivamente debatido, a jurisprudência tenha oferecido resistência ao reconhecimento de subsunção de conduta não tipificada no rol, tido como taxativo, do art. 1.814. Proposta de alteração Art. 1.814, Parágrafo único. Para efeito do disposto nos incisos I e II do caput deste artigo, incluem-se entre os atos suscetíveis de gerar declaração de indignidade quaisquer delitos dos quais tenham resultado a morte ou a restrição à liberdade do autor da herança ou de seu cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão. (NR)

Redação vigente Não há correlação.

As inovações abarcadas pelo dispositivo são aquelas já tratadas quando da análise dos incisos I e II do art. 1814 do PL 867/2011. De resto, o parágrafo único apenas alocou as condutas criminosas perpetradas contra cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão, atualmente já tipificadas (v. inc. I e II do art. 1.814), em dispositivo legal autônomo. Proposta de alteração Art. 1.815. O impedimento, em qualquer desses casos, será declarado por sentença, salvo quando houver anterior pronunciamento judicial definitivo, cível ou criminal, que já tenha expressamente reconhecido a prática da conduta indigna, bastando, nesses casos, a sua juntada aos autos do inventário. g.n.

Redação vigente Art. 1.815. A exclusão do herdeiro ou legatário, em qualquer desses casos de indignidade, será declarada por sentença. -g.n.

A redação vigente imputa a necessidade de que, ainda que haja édito condenatório transitado em julgado contra sucessor indigno, seja ajuizada ação ordinária de exclusão do sucessor indigno em juízo cível. Ou seja, mesmo que o supracitado édito tenha condão de dispensar dilação probatória e possibilite o julgamento antecipado do mérito, quando não houver necessidade de outras provas (art. 355, I, do NCPC), imprescindível far-se-á a formação de nova relação jurídico-processual. O PL 867/2011, por sua vez, é auspicioso ao

138



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

trazer a possibilidade de a indignidade ser reconhecida e aplicada tanto pela sentença declaratória proferida no próprio processo de inventário; quanto pelo pronunciamento judicial, cível ou criminal, juntado aos autos da sucessão, no qual tenha sido reconhecida, em caráter definitivo, a prática de conduta indigna; em clara observância dos princípios constitucionais da economia e celeridade processuais. Proposta de alteração Art. 1.815, § 1º Poderá demandar judicialmente o impedimento todo aquele que possuir legítimo interesse, além do Ministério Público.

Redação vigente Não há correlação.

Por meio desse § 1º, o Projeto de Lei ambiciona suprir lacuna indesejável da atual legislação, que não trata dos legitimados para propor a ação de indignidade. A jurisprudência já sinalizava a possibilidade de atuação a custos legis quando a questão envolver absolutamente incapaz ou interesse público. Neste sentido, a título ilustrativo, o Enunciado nº 116 da I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho de Justiça Federal e o seguinte julgado do TJSP: Indignidade de herdeiro necessário. Homicídio do autor da herança. Ação declaratória. Legitimidade ativa do Ministério Público. Inteligência do art. 1.815 do CC/02. Co-herdeiros, ademais, que são menores. Preservação de seus interesses, indisponíveis. Sentença mantida. Recurso desprovido. (Apel. 0000078-83.2005.8.26.0627, Relator(a): Claudio Godoy; Comarca: Teodoro Sampaio; Órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 25/10/2011; Data de registro: 28/10/2011)39

Proposta de alteração Art. 1.815, § 2º O direito de demandar o impedimento extingue-se em 2 (dois) anos, contados da abertura da sucessão ou de quando se descobrir a autoria do comportamento indigno.” (NR) -g.n.

Redação vigente Art. 1.815, Parágrafo único. O direito de demandar a exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se em quatro anos, contados da abertura da sucessão. –g.n.

O PL 867/2011 resolve uma questão há muito debatida na doutrina acerca do início da contagem do prazo decadencial, juntando, à abertura da sucessão, o tempo da descoberta da autoria do comportamento indigno, mormente nos casos de falsificação testamentária. Acredita-se tratar de inovação perpetrada, tão logo em pesquisa realizada frente aos 27 Tribunais de Justiça brasileiros, poucos40 foram os julgados encontrados em que oportunizouse a referida questão, não havendo, destarte, de se falar em entendimento consolidado41. 39

Realizada pesquisa jurisprudencial por meio da chave de pesquisa: "ministério público" "indignidade" "sucessão" "legitimidade"; foram encontrados 22 acórdãos, dos quais 2 tinham pertinência temática, sendo ambos exauridos pelo TJSP: ilegitimidade do terceiro interessado: Apel 0100570-92.2008.8.26.0008 ,Relator(a): Araldo Telles; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 10/02/2015; Data de registro: 11/02/2015); Legitimidade ativa do Parquet: Apel. 0000078-83.2005.8.26.0627, Relator(a): Claudio Godoy; Comarca: Teodoro Sampaio; Órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 25/10/2011; Data de registro: 28/10/2011). 40 A pesquisa jurisprudencial foi realizada por meio do filtro "sucessão" "indignidade" "prazo decadencial"; tendo sido encontrados 7 acórdãos, dos quais 2 tinham pertinência temática, tendo ambos se manifestando nesse sentido: TJMT, Ap 77408/2015, Des. Guiomar Teodoro Borges, SEXTA CÂMARA CÍVEL, Julgado em



139

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Proposta de alteração Art. 1.816. São pessoais os efeitos do impedimento, de modo que os descendentes do herdeiro impedido sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão. Parágrafo único. O indigno não terá direito ao usufruto ou à administração dos bens que a seus sucessores couberem na herança, nem à sucessão eventual desses bens. (NR)

Redação vigente Art. 1.816. São pessoais os efeitos da exclusão; os descendentes do herdeiro excluído sucedem, como se ele morto fosse antes da abertura da sucessão. Parágrafo único. O excluído da sucessão não terá direito ao usufruto ou à administração dos bens que a seus sucessores couberem na herança, nem à sucessão eventual desses bens.

O dispositivo legal não sofreu alterações substanciais. Proposta de alteração Art. 1.817. São válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de boa-fé e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da citação válida na ação a que se refere o art. 1.815 ou da sua intimação para se manifestar sobre a decisão judicial definitiva, cível ou criminal, que tenha reconhecido a prática indigna, subsistindo aos herdeiros, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe a reparação dos danos causados. -g.n.

Redação vigente Art. 1.817. São válidas as alienações onerosas de bens hereditários a terceiros de boa-fé, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da sentença de exclusão; mas aos herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe perdas e danos. -g.n.

A redação traz uma hipótese excepcional na qual a declaração de indignidade produz efeito ex nunc, tendo em vista que no plano fático e jurídico o indigno se apresentava como legítimo sucessor/proprietário, restando válidas as onerações a terceiros de boa-fé e os atos de administração legalmente praticados42. Contudo, ainda que frente às demais hipóteses se opere efeito extunc, inviável, por vezes, o retorno do patrimônio ao status quo da época da abertura da sucessão43. Isto posto, o PL 867/2011, evidentemente, ambiciona, por meio da

nova redação, evitar que o sucessor indigno prodigalize patrimônio ereptício tão logo tome conhecimento do ajuizamento da ação.



140

29/07/2015, Publicado no DJE 03/08/2015; e TJSP, Relator(a): Giffoni Ferreira; Comarca: Presidente Venceslau; Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 16/09/2014; Data de registro: 18/09/2014) - menção ao conhecimento 41 Flávio Tartuce traz que: “Pelo antigo Projeto de Lei 6.960/2002 – atual PL 699/2011 -, há proposição de se reduzir esse prazo decadencial para dois anos. Isso porque, segundo as suas justificativas, o prazo de quatro anos seria excessivo, “decorridos quatro anos após o óbito do de cujus, o inventário normalmente já está concluído e a partilha feita, acabada e julgada, não parecendo conveniente, em benefício da própria segurança jurídica, permitir-se, até aquela data, a introdução de uma questão que não foi suscitada antes, contra herdeiro ou legatário que se habilitou oportunamente. Este novo Código, por seu turno, vem diminuindo os prazos de prescrição, bastando comparar-se o art. 205 do CC/2002 com o art. 177 do CC/16. Por essa razão, proponho a redução de quatro para dois anos do prazo mencionado no parágrafo único do art. 185, à semelhança do que já ocorre no CC português (arts. 2.036 e 2.167). Sem dúvidas, as razões são plausíveis, contando com o apoio desse autor” (TARTUCE, 2015, p. 120). 42 POLETTO, 2013; TARTUCE, 2015. 43 DIAS, 2015.





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Proposta de alteração Art. 1.817. Parágrafo único. O indigno é obrigado a restituir os frutos e rendimentos que dos bens da herança houver percebido, mas tem direito a ser indenizado pelas despesas com a sua conservação, assim como poderá cobrar os créditos que lhe assistam contra a herança. (NR) -g.n.

Redação vigente Art. 1.817. Parágrafo único. O excluído da sucessão é obrigado a restituir os frutos e rendimentos que dos bens da herança houver percebido, mas tem direito a ser indenizado das despesas com a conservação deles.

Os efeitos da indignidade foram mantidos como sendo, via de regra, retroativos e relativos. De outro vértice, expressões como “autor da herança ou de seu cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão”, constante da proposta ao parágrafo único do art. 1814, consequentemente, estendem os efeitos de eventual indignidade a mais de uma partilha hereditária, afastando, por conseguinte, o sucessor indigno de outros processos hereditários44. Assim, por exemplo, determinada conduta praticada contra o pai pode impedir o agente indigno de suceder à época da sucessão de sua mãe, avós, sobrinhos, filhos e netos; reservada, não obstante, a possibilidade de eventuais liberalidades testamentárias45.

Proposta de alteração Art. 1.818. Aquele que incorreu em atos que determinem o impedimento por indignidade será admitido a suceder se o ofendido o tiver expressamente reabilitado em testamento, codicilo ou escritura pública. -g.n.

Redação vigente Art. 1.818. Aquele que incorreu em atos que determinem a exclusão da herança será admitido a suceder, se o ofendido o tiver expressamente reabilitado em testamento, ou em outro ato autêntico. -g.n.

O dispositivo legal vigente foi sustentado quase em sua integralidade, tendo sido mantida a legítima e personalíssima faculdade de perdoar/reabilitar o sucessor, conservando a eficácia da sua vocação hereditária. Nada obstante, foi acertadamente proposta a eliminação da controversa expressão “ato autêntico”, especificando-se taxativamente as formas de manifestação do perdão46, posto que, em sede de restrição a direitos e cominação de penas, não obstante cíveis, a técnica legislativa deve ser a mais prescritiva e exaustiva, a fim de evitar interpretações que reduzam ou expandam o seu alcance além do sentido da norma. Proposta de alteração Art. 1.818. Parágrafo único. Não havendo reabilitação expressa, o indigno, contemplado em testamento do ofendido, quando o testador, ao testar, já conhecia a causa da indignidade, pode suceder no limite da disposição testamentária. (NR)

Redação vigente Art. 1.818. Parágrafo único. Não havendo reabilitação expressa, o indigno, contemplado em testamento do ofendido, quando o testador, ao testar, já conhecia a causa da indignidade, pode suceder no limite da disposição testamentária.

A proposta mantém integralmente a vigente disposição, apenas modificando, por

questão de coesão, o vocábulo “exclusão” por “impedimento”. Desta feita, o perdão tácito continua contemplado no ordenamento jurídico pátrio, podendo, assim, a reabilitação se dar total ou parcialmente, conforme a quota disposta ao sucessor indigno na cláusula testamentária se igual ou menor do que aquela legalmente prevista. 44 45 46



POLETTO, 2013, p. 287. DIAS, 2015; POLETTO, 2013. POLETTO, 2013, p. 296.

141

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

DA PRIVAÇÃO DA LEGÍTIMA (DESERDAÇÃO) Conforme já afirmamos, o PL 867/2011 traz também relevantes mudanças quanto à deserdação disciplinada no CC/02. Primeiramente, embora mais significante do ponto de vista da dogmática, propõe a alteração do nome do capítulo de “deserdação” para “privação da legítima”, uma vez que, como já salientado, deserdação é gênero que comporta duas espécies: o impedimento para suceder e a privação da legítima. Ora, uma vez que, no Capítulo X, o legislador pretendeu discorrer apenas sobre essa última modalidade, nada mais lógico do que adequar a nomenclatura. Se aprovado o Projeto de Lei, vigerá a seguinte redação: Proposta de alteração Art. 1.961. Os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, parcial ou totalmente, em todos os casos em que podem ser impedidos de suceder por indignidade. Art. 1.962. O herdeiro necessário pode, por testamento, com expressa declaração de causa, ser privado de sua quota legitimária, quando: I – na condição de autor, coautor ou partícipe, tenha praticado ou tentado praticar, dolosamente, qualquer ato que importe em ofensa à honra, à integridade física, à liberdade ou ao patrimônio do cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão do autor da herança; II – tenha sido destituído do poder familiar em relação ao testador; III – tenha, culposamente, se omitido no cumprimento dos deveres e das obrigações impostas pelo direito de família em relação ao próprio testador ou a seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente. Parágrafo único. A cláusula testamentária deve ser pura, não podendo subordinar-se a condição ou termo.

Redação vigente Art. 1.961. Os herdeiros necessários podem ser privados de sua legítima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão. Art. 1.962. Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes: I – ofensa física; II – injúria grave; III – relações ilícitas com a madrasta ou com o padrasto; IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade. Art. 1.963. Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes: I – ofensa física; II – injúria grave; III – relações ilícitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta; IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade.

Primeiramente, merece destaque a previsão expressa de deserdação parcial (art. 1.961 do PL 867/2011). Tal possibilidade vem sendo alvo de divergência na doutrina. A corrente negativista ampara seu entendimento no viés punitivo do instituto, de modo que, constituindo sanção, não seria possível sua divisão47. Minozzo Poletto, por outro lado, acredita na possibilidade de privação parcial da legítima, uma vez que tal previsão não implica “fracionar ou dividir a ofensa do herdeiro deserdado, mas tão somente mitigar e graduar as suas consequências sancionatórias”48. No mesmo sentido, Maria Berenice Dias defende ser possível que “o testador limite o quinhão do herdeiro deserdado, deferindo-lhe apenas uma 47 48

142

POLETTO, 2013, p. 395. Idem.



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

fração da legítima” e, como exemplo, cita o caso do pai que deserda o filho e institui legado em seu favor49. Realizada pesquisa jurisprudencial em todos os 27 Tribunais de Justiça do território brasileiro, verificamos que tal hipótese é realmente uma inovação a ser implementada pelo Projeto de Lei. Ao se pesquisar o termo “deserdação parcial”, apenas foi identificado um único acórdão, no TJPR, o qual nem discorre exatamente sobre o tema. Tratava-se de ação de anulação de testamento cerrado, em razão da suposta ocorrência de vícios. No voto, o relator refere-se à argumentação exposta na inicial, nesses termos “havendo herdeiros necessários, é vedado ao testador dispor de mais da metade de seus bens em testamento, bem como contemplar os filhos herdeiros de forma odiosa, imprudente e discriminatória, em ato que se constitui em autêntica deserdação parcial ou em uma doação dissimulada”50. Contudo, o voto não chegou a abordar a questão. Afinal, o recurso a ser analisado cingia-se à existência ou não de julgamento extrapetita, relativo à possibilidade de redistribuição dos bens. Como segunda inovação, cabe observar a inclusão do cônjuge sobrevivente como sujeito passível de privação da legítima (art. 1.962, I, do PL 867/2011). Embora seja herdeiro necessário, a redação do CC/02 não o contemplou dentre as hipóteses de deserdação, restritas apenas aos descendentes e ascendentes. A doutrina entende que houve mero erro do legislador, visto que não há justificação plausível para livrar o cônjuge desse instituto51. Carvalho de Faria ressalta que mesmo no atual Código é possível que o cônjuge seja designado em cláusula de deserdação, visto que as mesmas hipóteses de indignidade legitimam a sua ocorrência (art. 1.962 c/c art. 1.814), as quais podem perfeitamente ser aplicadas ao cônjuge sobrevivente52. Lado outro, ao realizarmos pesquisa jurisprudencial a fim de verificar a ocorrência fática de tal assertiva, utilizando a chave “deserdação do cônjuge”, não foi identificado julgado algum, no âmbito dos 27 Tribunais de Justiça brasileiros. Uma terceira inovação resulta na utilização do instituto como punição para os pais que perderam o poder familiar em relação ao testador (art. 1.962, II, do PL 867/2011), ou seja, por praticarem uma das condutas previstas no art. 1.638 do CC/0253. No entanto, conforme comentado por Minozzo Poletto, tal dispositivo serviu apenas para permitir a deserdação desses ascendentes por se comportarem contrariamente à moral e aos bons costumes (inc. III do art. 1.638), porquanto os demais incisos do aludido artigo já tratam do descumprimento de

49

DIAS, 2015, p. 334. Brasil. Tribunal de Justiça do Paraná. Embargos Infringentes nº 479306202 PR 0479306-2/02. Relator: Des. Marcos S. Galliano Daros. 12ª Câmara Cível em Composição Integral. Publicado no DJ em 07/04/2010. 51 DIAS, 2015; CARVALHO; CARVALHO, 2009; CATEB, 2012; TARTUCE, 2015. 52 FARIA, 2003; WALD, 2007. 53 Como na redação vigente o descumprimento de deveres paternos diz respeito somente aos descendentes com deficiência mental ou grave enfermidade, alguns autores defendem a impossibilidade de deserdação por perda do poder familiar. Cf. DIAS, 2015; RIZZARDO, 2008. 50



143

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

deveres e obrigações no âmbito do direito de família, o que pode ser incluído na hipótese do art. 1.962, III, do Projeto de Lei54. Em consulta aos 27 Tribunais de Justiça do país, utilizando a chave de pesquisa "deserdação" e "poder familiar", foram encontrados, no TJSP, 3 acórdãos, sendo que apenas um deles realmente tratava do tema sucessões, havendo, sucintamente, no voto do relator, o esclarecimento de que a destituição do poder familiar em relação ao genitor não implica deserdação, visto que as hipóteses dos arts. 1.962 e 1.963 do CC/02 são taxativas55. No TJRS foram identificados 14 acórdãos, sendo que 11 tratavam de temas completamente estranhos à matéria (concurso público), enquanto os outros 3, embora sobre direito de família, nada discorriam sobre deserdação por perda do poder familiar. No TJSC foram encontrados apenas 2, tratando de perda do poder familiar, porém sem relacioná-lo à hipótese de deserdação. No TJAC, TJPB e TJAL, registrou-se apenas 1 acórdão em cada, abordando, respectivamente, doação a título de antecipação da legítima, direito real de habitação e interdição. Nesse diapasão, merece destaque a exclusão dos herdeiros necessários que tenham, culposamente, se omitido no cumprimento dos deveres e das obrigações impostas pelo direito de família em relação ao próprio testador ou a seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente. Trata-se de inclusão de entendimento já defendido por alguns autores, acerca da aplicação do princípio da afetividade ao direito sucessório56. Um das causas mais comentadas consiste no abandono afetivo. Ao se proceder à pesquisa jurisprudencial com a chave “deserdação” e “abandono” e “afetivo”, no TJRS foram identificados 3 acórdãos, porém nenhum tratava de deserdação. A mesma quantidade foi encontrada no TJSC, igualmente não discorrendo sobre o instituto. Quanto ao parágrafo único do art. 1.962 do PL 867/2011 (vedação de cláusula deserdativa condicionada), embora se trate de nova inserção legislativa, já consistia, na prática, posicionamento unânime da doutrina e jurisprudência, ponto esse destacado novamente por Poletto57. Berenice Dias apenas ressalta não ser possível o condicionamento a evento futuro, que ainda não ocorreu58.

54

POLETTO, 2013, p. 455. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 0008902-74.2011.8.26.0286. Relator: Des. Vito Guglielmi. Comarca: Itu. Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado Publicado no DJ em 15/05/2012. 56 Nesse sentido, confira-se: SPERIDIÃO, Lucimara Barreto; AGUIAR, Cláudia Fernanda de. Sucessão testamentária: o abandono afetivo como causa de deserdação. Revista JurisFIB. Bauru/SP. Volume IV. Ano IV. Dez/2013. pp. 38-77; BULSING, Karine Machado. A destituição do poder familiar como fator de exclusão sucessória. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria/RS. v. 8, n. 1. 2013. pp. 159-183; PEREIRA, 2014. 57 POLETTO, 2013, p. 455. 58 DIAS, 2015, p. 334. 55

144





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Proposta de alteração Art. 1.963. A privação da legítima, em qualquer dos casos, deverá ser declarada por sentença, salvo quando houver anterior pronunciamento judicial, civil ou criminal, que já tenha expressamente reconhecido a prática da conduta, bastando, nesses casos, a sua juntada aos autos do inventário. § 1º Poderá demandar judicialmente a privação da legítima todo aquele que possuir legítimo interesse, além do Ministério Público. § 2º O direito de demandar a privação da legítima extingue-se em 2 (dois) anos, contados da abertura da sucessão ou do testamento cerrado. Art. 1.964. Aquele que for privado da legítima é equiparado ao indigno para todos os efeitos legais. Art. 1.965. A privação da legítima deixa de operar com o perdão, tornando ineficaz qualquer disposição testamentária nesse sentido, seja expressamente, mediante declaração em testamento posterior, seja tacitamente, quando o autor da herança o contemplar.

Redação vigente Art. 1.964. Somente com expressa declaração de causa pode a deserdação ser ordenada em testamento.

Art. 1.965. Ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, incumbe provar a veracidade da causa alegada pelo testador. Parágrafo único. O direito de provar a causa da deserdação extingue-se no prazo de quatro anos, a contar da data da abertura do testamento.

No PL 867/2011, o art. 1.963 recebe redação relacionada ao âmbito processual. Primeiramente, determina a necessidade de que a deserdação seja declarada por sentença (afinal, mesmo na redação atual, faz-se necessária dilação probatória a fim de se comprovar a causa de deserdação expressa na cláusula testamentária), sendo dispensada, contudo, quando dita causa já restar suficientemente demonstrada em anterior procedimento judicial, bastando juntar a sentença cível ou criminal nos próprios autos do inventário. Ora, nada mais lógico do ponto de vista da economia processual (pois figura desnecessário instaurar ação para se comprovar fatos anteriormente já provados), bem como, consequentemente, da ótica da não violação da coisa julgada. Embora não expresso na atual legislação, a jurisprudência já vem exigindo o ajuizamento de ação própria para se comprovar a causa da deserdação. Utilizando a chave “deserdação” e “ação própria”, no TJMG foi encontrado 1 acórdão demandando, realmente, ação própria em rito ordinário59. Confira-se a ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE ABERTURA DE INVENTÁRIO. HEIDEIROS TESTAMENTÁRIOS. INVENTARIANTE. HERDEIRA NECESSÁRIA. DESERDAÇÃO. NECESSIDADE DE AÇÃO. PRÓPRIA NÃO MANEJO DESTA. A QUE SE NEGA PROVIMENTO AO RECURSO "IN SPECIE". 1. A eficácia da disposição testamentária de deserdação subordina-se à comprovação da veracidade de causa arguida pelo testador, o que fará por meio da propositura de uma ação

59 Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Agravo de Instrumento nº 1.0231.11.029253-0/001. Relator: Des. Belizário de Lacerda. 7ª CÂMARA CÍVEL. Publicado em 21/06/2013.



145

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

de rito ordinário. 2. Se os herdeiros a quem aproveitar a deserdação não manejarem a ação própria, consolidada resta a sucessão nos moldes do art. 1784 do Código Civil.

No TJSP foram encontrados 3 acórdãos, todos dispondo nesse mesmo sentido60. No TJRJ também foram identificados 3, porém sobre relações de consumo. Dos 13 julgados encontrados no TJRS, nenhum diz respeito à deserdação, embora em um deles, cuja lide cinge-se a doação feita à descendente, fala-se expressamente, ao longo do voto do relator, que o exame da deserdação, dada a gravidade da alegação, há de ser objeto de ação própria e da dilação probatória necessária61. No TJSC, nenhum dos 5 acórdãos encontrados tratavam sobre o tema. No TJMT, foram identificados 2, porém sem pertinência. TJPA, TJTO e TJCE forneceram, cada um, apenas 1 acórdão, igualmente sem pertinência. Dos 3 acórdãos gerados no TJSE, dois discorriam sobre deserdação, ambos fixando a necessidade ação própria para tanto62. No TJDF foram disponibilizados mais 15, porém desvinculados da questão analisada. Por fim, no TJPB, foram encontrados 3 acórdãos, sendo que apenas um dele tratava do tema, com a seguinte ementa: PRELIMINAR. FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL. DESERDAÇÃO DO AGRAVANTE. TESTAMENTO. AUSÊNCIA DE SENTENÇA CONFIRMATÓRIA. INTERESSE PRESENTE. REJEIÇÃO. A falta de interesse processual apenas existe quando ausente um dos elementos do binômio interesse-necessidade por parte do promovente da demanda. Para concretizar-se a deserdação exige-se, além de testamento, como expressa disposição de última vontade, que os demais herdeiros promovam a respectiva ação judicial, a fim de provar-se a existência das causas autorizadoras do referido desfavorecimento. Sem a sentença judicial confirmatória de deserdação, esta não produz efeitos. (...) (TJPB ACÓRDÃO/DECISÃO do Processo Nº 99920110000315001, 2 CAMARA CIVEL, Relator Ricardo Vital de Almeida, j. em 12-07-2011) – g. n.

Em seguida, o PL 867/2011 passa a prever expressamente a legitimidade do Ministério Público para demandar a deserdação, o que já era acolhido por Berenice Dias63. Utilizando a 60

146

Brasil. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 2062962-74.2013.8.26.0000. Relator: Des. Miguel Brandi. Comarca de São Paulo. Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Privado. Publicação no DJ em 04/04/2014. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação com Revisão nº 9131995-42.2007.8.26.0000. Relator: Des. Roberto Mac Cracken. Comarca de São Paulo. Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Privado. Publicado no DJ em 22/07/2009. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 0045554-27.2001.8.26.0000. Relator: Des. Antonio Cezar Peluso. Comarca não informada. Órgão julgador: 2ª Câmara de Direito Privado. Publicação no DJ em 13/03/2002. 61 Brasil. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº 70004422770. Quinta Câmara Cível. Relatora: Des. Ana Maria Nedel Scalzilli, Julgado em 15/05/2003. 62 Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Agravo de Instrumento nº 2007213178. Relator: Juiz convocado Ricardo Múcio Santana de Abreu Lima. 7ª Vara Cível. Julgado em 18/12/2007. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. Apelação Cível nº 2010211989. Juiz7ª Vara Cìvel. Relator: Des. Roberto Eugênio da Fonseca Porto. Julgado em 10/09/2012. 63 DIAS, 2015, p. 336.





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

chave de pesquisa “ministério público”, “deserdação” e “legitimidade ativa”, foram encontrados 5 acórdãos no TJRS, contudo nenhum tratava de ação relativa a deserdação. No TJRJ, houve apenas um, porém sobre indignidade. O mesmo se aplica ao TJSC. No TJDF foram localizados 3, igualmente sem pertinência temática. Significativa mudança diz respeito à alteração da contagem do prazo para demandar a privação da legítima, já defendida por Flávio Tartuce64. No atual Código, esse prazo é de 4 anos, a contar da data de abertura do testamento (art. 1.965, parágrafo único, CC/02). Pela proposta de lei, o prazo será reduzido para dois anos e sua contagem iniciar-se-á desde a abertura da sucessão ou do testamento cerrado. Na redação vigente, a contagem ocorre desde a abertura do testamento, locução essa criticada por Minozzo Poletto, visto que apenas o testamento cerrado é passível de abertura65 (a qual ocorre em âmbito judicial), de modo que, para as demais formas testamentárias, a solução lógica é que o prazo comesse a fluir desde a abertura da sucessão, como bem exposto na proposta do PL 867/2011. Para Berenice Dias, o marco inicial seria a decisão que determina o cumprimento do ato de última vontade66. Utilizando a chave de pesquisa “deserdação”, “prazo”, “abertura” e “testamento público”, foram encontrados 13 acórdãos no TJRS, sem pertinência temática. O mesmo ocorreu com os 7 acórdãos identificados no TJSP. Já no TJSC, foram gerados 3 julgados, sendo que 2 deles mencionam que a ação de deserdação deve ser proposta após a abertura da sucessão, ocorrendo a contagem do prazo decadencial a partir da abertura do testamento67. No TJMS, TJPA, TJTO e TJSE, foi identificado 1 acórdão em cada, porém nenhum deles apresentando pertinência com o tema. No TJDF, foram encontrados 2, sem contudo abordar a questão aqui analisada. Já no art. 1.964 do PL 867/2011, tem-se a correção da atual omissão legislativa, conferindo ao deserdado o mesmo tratamento legal atribuído ao indigno. Afinal, embora ocorram por caminhos diversos, tanto a indignidade quanto a deserdação apresentam o mesmo resultado prático, de modo que o herdeiro deixará de receber o quinhão que lhe era devido. Assim sendo, lhe serão aplicados os efeitos legais dos art. 1.816 e 1.817 do CC/02, de forma, por exemplo, a considerar o deserdado como se premorto fosse68. Finalmente, no art. 1.965 do PL, há a previsão do perdão, tácito ou expresso, que já era aplicado ao indigno pelo art. 1.818 do CC/02 e defendido por Tartuce69, embora haja posicionamento doutrinário pela impossibilidade dessa hipótese, de modo que a deserdação 64

TARTUCE, 2015, p. 107. POLETTO, 2013, p. 389. 66 DIAS, 2015, p. 337. 67 Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Cível nº 2014.064681-6, de Relator: Des. Edemar Gruber. Julgado em 24/11/2014. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Apelação Cível nº 2010.057966-1. Comarca de Porto União. Relatora: Des. Cinthia Beatriz da Silva Bittencourt Schaefer. Julgado em 09/06/2011. 68 Nesse sentido, CATEB, 2012; DIAS, 2015; GOMES, 2008; RIZZARDO, 2008; TARTUCE, 2015; WALD, 2007. 69 TARTUCE, 2015, p. 122-123. 65



147

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

somente poderia ser afastada se manifestada expressamente em outro testamento70. A partir da chave de pesquisa “deserdação” e “perdão”, no TJSP foram localizados 3 acórdãos, sendo que 2 tratam do tema, admitindo o perdão71. Inclusive, em um deles, o relator destaca a existência de doutrina defendendo o perdão do deserdado (realizado em novo testamento), e esse é, inclusive, um dos motivos que o leva a indeferir pedido de ação antecipada de comprovação de deserdação (enquanto vivo o testador), visto que, até sua morte, o autor da herança pode alterar a cláusula testamentária72. No TJRS foram encontrados 3 julgados, porém sem pertinência temática. CONCLUSÃO Pudemos perceber, com o presente estudo, que, com vistas a adequar a disciplina legal da indignidade sucessória e da deserdação ao atual contexto sociocultural brasileiro – de prevalência da tutela da dignidade do autor da herança sobre o direito sucessório (patrimonial) –, o PL 867/2011 traz modificações conceituais, valorativas e técnicas dos referidos institutos. No que diz respeito à indignidade, vimos que boa parte das alterações propostas estão respaldadas em entendimento doutrinário pátrio, quando não na própria jurisprudência dos tribunais. Ademais, observamos que, porquanto os tribunais pátrios, em quase sua totalidade, compreendam ser o rol do artigo 1.814 taxativo, resistem à subsunção por interpretação extensiva de conduta que nele não esteja tipificada. Evidentemente, caso aprovado o Projeto de Lei, superar-se-á o referido óbice, uma vez que será prevista, ex lege, a conduta típica. Por fim, no tocante à deserdação, identificamos que boa parte das alterações propostas pelo PL 867/2011 também já eram anunciadas pela doutrina, sendo algumas delas objeto da prática jurisdicional, especificamente quanto à necessidade de ação própria para comprovar a causa de deserdação (declaração mediante sentença) e quanto à possibilidade de perdão ao deserdado. Vislumbramos resistência jurisprudencial, contudo, em relação à privação da legítima pela perda do poder familiar, em razão da inexistência de tal hipótese no rol (supostamente taxativo) dos artigos 1.962 e 1.963 do CC/02. Lado outro, uma vez que, se aprovado o projeto, teremos hipótese específica nesse sentido (e até mais ampla, abrangendo qualquer violação a obrigações e deveres familiares), provavelmente haverá mudança de postura dos tribunais, dado que superado o argumento de inexistência de previsão legislativa.

70

CATEB, 2012; DIAS, 2015. Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação com Revisão nº 9153125-30.2003.8.26.0000. Relator: Des. Ribeiro da Silva. Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Privado. Data de registro: 23/05/2006. 72 Brasil. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação nº 0022658-19.2009.8.26.0320. Relator: Des. Enio Zuliani. Comarca de Limeira. Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado. Data de registro: 25/08/2010. 71

148





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Felipe Cunha de. Da indignidade à deserdação: formas de exclusão da sucessão na visão da doutrina e da jurisprudência. In: Revista Síntese: direito de família, v. 15, n. 86, p. 9-32, out./nov. 2014. ALMEIDA, Renata Barbosa de; JÚNIOR, Walsir Edson Rodrigues. Direito Civil: Famílias. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2012. ALVES, Maria do Carmo. Projeto de Lei nº 867 de 2011. Altera o Capítulo V do Título I e o Capítulo X do Título III, ambos do Livro V da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para dar novo tratamento aos institutos da exclusão da herança, relativamente à indignidade sucessória e à deserdação. Disponível em: . Acesso em: 4 de junho de 2016. ALVES, Maria do Carmo. Texto inicial do Projeto de Lei nº 118 de 2010. Publicado no DSF em 05 de maio de 2010. Disponível em: . Acesso em: 6 de junho de 2016. BRASIL. Câmara dos Deputados. Resolução nº 17 de 1989. Aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Disponível em: . Acesso em: 4 de junho de 2016. BRASIL. Código Civil (2002): Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: . Acesso em: 18 de junho de 2016. BRASIL. Senado Federal. Resolução nº 93 de 1970. Dá nova redação ao Regimento Interno do Senado Federal. Disponível em: . Acesso em: 6 de junho de 2016. BULSING, Karine Machado. A destituição do poder familiar como fator de exclusão sucessória. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria/RS. v. 8, n. 1. 2013. pp. 159-183. Câmara dos Deputados. Ficha de tramitação do PL 867/2011. Disponível em: . Acesso em: 4 de junho de 2016. CARVALHO, Dimas Messias de; CARVALHO, Dimas Daniel de. Direito das sucessões. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. CATEB, Salomão de Araujo. Direito das sucessões. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2012.

149

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Senado Federal. Parecer nº 44/2011 da CCJ sobre o PLS 118/2010. Publicado no DSF em 22 de março de 2011. Disponível em: . Acesso em: 6 de junho de 2016. DIAS, Maria Berenice. Manual das Sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. DIB, William. Parecer do relator, dep. William Dib (PSDB-SP), pela aprovação do PL 867/2011. 21 de dezembro de 2012. Disponível em: . Acesso em: 4 de junho de 2016. FARIA, Mario Roberto Carvalho de. Direito das sucessões: teoria e prática. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. GOMES, Orlando. Sucessões. 14 ed. rev. atual. e aumentada de acordo com o Código Civil de 2002 por Mario Roberto Carvalho de Faria. Rio de Janeiro: Forense, 2008. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito das sucessões, v. VII. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. GOZZO, Débora; VENOSA, Silvio de Salvo. Coord. ALVIM, Arruda; ALVIM, Thereza. Comentários ao Código Civil Brasileiro: do direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2004. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das sucessões: introdução. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito das sucessões e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004a, p. 1-14. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Deserdação e exclusão da sucessão. In: HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito das sucessões e o novo código civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2004b, p. 355-368. KOKAY, Erika. Parecer da Relatora, Dep. Erika Kokay (PT-DF), pela aprovação do PL 867/2011, e pela rejeição do PL 8020/2014, apensado. 08 de maio de 2015. Disponível em: . Acesso em: 4 de junho de 2016. LOBO, Paulo. Direito Civil. Sucessões. São Paulo: Saraiva, 2013. MENIN, Márcia Maria. Da deserdação. In: CASSETTARI, Christiano; MENIN, Márcia Maria (Coord.). Direito das sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. Parte II, Cap. VII, p. 216-223. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil, v. 6: direito das sucessões. 38 ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

150



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade, Código Civil comentado. 10 ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. NETO, Inacio de Carvalho. Exclusão da sucessão por indignidade. In: CASSETTARI, Christiano; MENIN, Márcia Maria (Coord.). Direito das sucessões. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. Parte I, cap. VI, p. 66-81. PEREIRA, Tarlei Lemos. Deserdação por falta de vínculo afetivo e de boa-fé familiar. In: Revista Síntese: direito de família, v. 15, n. 86, p. 33-57, out./nov. 2014. POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. Apresentação e comentários ao projeto de lei do Senado Federal (PLS 118/2010) que altera as disposições do Código Civil atinentes à indignidade sucessória e à deserdação. In: Revista dos tribunais, São Paulo, v. 100, n. 903, p. 727-754, jan. 2011. POLETTO, Carlos Eduardo Minozzo. Indignidade sucessória e deserdação. São Paulo: Saraiva, 2013. PORTELA, Lincoln. Projeto de Lei nº 8020 de 2014. Acresce inciso ao art. 1.814 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 4 de junho de 2016. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das sucessões: Lei nº 10.406 de 10.01.2002. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. Senado Federal. Ficha de tramitação do PLS 118/2010. Disponível em: < http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/96697>. Acesso em: 6 de junho de 2016. SPERIDIÃO, Lucimara Barreto; AGUIAR, Cláudia Fernanda de. Sucessão testamentária: o abandono afetivo como causa de deserdação. Revista JurisFIB. Bauru/SP. Volume IV. Ano IV. Dez/2013, p. 38-77. TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das sucessões, v. 6. 8 ed. São Paulo: Método, 2015. TORRES, Demóstenes. Parecer do relator, Demóstenes Torres, sobre o Projeto de Lei do Senado nº 118, de 2010, da Senadora Maria do Carmo Alves, que altera os Capítulos V e X do Livro V do Título I do Código Civil, a fim de dar novo tratamento aos institutos da exclusão da herança, relativamente à indignidade sucessória e à deserdação. 16 de março de 2011. Disponível em: . Acesso em: 6 de junho de 2016. WALD, Arnoldo. O novo direito das sucessões. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2007.



151

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

DOCUMENTO ELETRÔNICO COMO MEIO DE PROVA NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO Guido Ferolla1 José Paulo Micheletto Naves2 Nathália Cassola Zugaibe3 Submetido(submitted): 1 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 19 de outubro de 2016 RESUMO O presente artigo busca examinar a utilização do documento eletrônico como meio de prova no ordenamento jurídico brasileiro, principalmente no que tange ao Processo Penal, a partir de uma análise do conceito de prova documental, e, em especial das espécies de documento eletrônico, seus critérios de admissibilidade e valoração, além de uma análise doutrinária e jurisprudencial sobre o tema. Não obstante à prova documental seja muitas vezes conferida uma menor importância no Processo Penal, as inovações tecnológicas têm conferido às relações uma maior utilização de meios informáticos e a crescente troca de informações por meios digitais. Naturalmente, dessas relações surgem conflitos quanto à autenticidade bem como a integridade desses documentos eletrônicos que se prestam a serem provas. PALAVRAS-CHAVE: Documento eletrônico; Meio de prova; Valoração Probatória. ABSTRACT This article aims to examine the use of the electronic document as evidence in the brazilian legal system, especially with regard to the Criminal Procedure, from an analysis of the concept of documental evidence, especially describing the types of electronic document, their eligibility criteria and assessment, in addition to a doctrinal analysis and jurisprudence on the subject. Despite the documentary evidence is often afforded less importance in criminal proceedings, the technological innovations have given the relations further use of information technology and the growing exchange of information by digital means. Of course, of these relationships arise conflicts as to the authenticity and the integrity of these electronic documents that lend themselves to evidence. KEYWORDS: Electronic document; Means of proof; Probative value.

1

Pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Instituto de Direito Penal Econômico (IDPEE), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Advogado. Sócio do Nélio Machado Advogados. 2 Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo - (Largo de São Francisco) em 2014. Mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo - (Largo de São Francisco). Advogado. 3 Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo - (Largo de São Francisco) em 2014. Pós-graduanda em Processo Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - Instituto de Direito Penal Econômico (IDPEE), em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Mestranda em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo - (Largo de São Francisco). Advogada. 153

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



1) O CONCEITO DE DOCUMENTO: DO SUPORTE FÍSICO AO DOCUMENTO ELETRÔNICO De acordo com a legislação processual penal brasileira, mais precisamente o artigo 232 do CPP 4 , documentos são quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares. Noutras palavras, o conceito legal de documento é o de "escrito com valor

probatório". Numa visão tradicional do instituto, José Frederico Marques afirmava que “o documento em sentido estrito, ou documento instrumental, é o documento escrito. Os documentos escritos ou instrumentais integram o que se denomina de prova literal, que é ‘qualquer escrito utilizável como prova’”5. Para Pontes de Miranda, “o documento é toda a coisa que expressa por meio de sinais o pensamento”6. Na doutrina estrangeira, não encontramos muitas diferenças na conceituação tradicional de documento. Assim, para Muñoz Conde7 “documento é toda materialização de um pensamento”, “é todo objeto capaz de recolher uma declaração de vontade ou um pensamento atribuível a uma pessoa e destinado a integrar as relações jurídicas”. Por fim, Chiovenda

8

conceitua da seguinte forma: “documento, em sentido amplo, é toda

representação material destinada a reproduzir determinada manifestação do pensamento, com uma voz fixada duradouramente”. Apesar da previsão legal e da já superada definição doutrinária acima transcrita, extremamente restrita para a atualidade, vem sendo considerado como documento lato sensu tudo aquilo capaz de retratar determinada situação fática, sejam arquivos digitalizados na forma da Lei nº 12.682/2012 (que disciplina a digitalização em meio eletrônico, ótico ou equivalente e a reprodução de documentos públicos e privados), bem como desenhos, fotografias, gravações sonoras etc.9 A diferenciação entre instrumentos e papéis, mencionados no texto legal, é feita com clareza por Gustavo Badaró10: “Instrumentos são os escritos confeccionados com a finalidade

4

154

Art 232, caput, Código de Processo Penal: “Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares”. 5 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal, Vol. II. Campinas: Bookseller, 1997, p. 318. 6 MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IV. Rio de Janeiro, 1974, p. 335. 7 MUÑOZ CONDE. Derecho Penal, parte especial. Sevillha, 1985, p. 466. 8 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2ª Edição, trad. da italiana por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1998, v. III, p. 127. 9 Nesse sentido: NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado, 13ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 559; e LOPES JR., Aury. Direito processual penal, 16ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 703. 10 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 481.



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



de provar determinados fatos (por exemplo, uma escritura), enquanto os papéis são os escritos que não foram produzidos com o fim de provar o fato, mas que vêm a servir de prova (por exemplo, uma carta)”. É certo, também, que se revela importante diferenciar o documento autêntico do documento verídico. Documento autêntico é aquele em que se tem certeza da autoria, sendo o documento verídico, por sua vez, aquele em que o conteúdo relatado é real. Os exemplos acima citados, escritura e carta, são os clássicos, aqueles que primeiramente vêm à mente quando se fala em prova documental. Ocorre que, com a informatização, as formas de comunicação, de transações financeiras e de compra e venda de mercadorias, por exemplo, estão mudando, devendo ser feito um estudo da prova documental à luz da modernidade tecnológica. A esse novo modelo de prova documental se dá o nome de “documento eletrônico”, que pode ser entendido, nas palavras de Régis Queiroz, como “aquele que foi gerado ou arquivado por sistema computadorizado, em meio digital”.11 Nas palavras de Paulo Marco Ferreira Lima12 “a evolução da informática – com o

consequente uso quase que indiscriminado de computadores e da internet –, fez com que diversos institutos jurídicos, entre esses certamente alguns de Direito Penal e Processual Penal como o documento, fossem submetidos a uma nova formulação, com o fito de melhor se adaptarem à realidade que nos cerca”. Ainda, para Romeu de Almeida Salles Junior13 “(...) é todo escrito devido a um autor determinado, contendo exposição de fatos ou declaração de vontade, dotado de significação ou relevância jurídica. Na condição de documento deve ostentar a forma escrita sobre coisa móvel, de modo a permitir o transporte ou a transmissão. Deve ser permanente, exigindo a subscrição manuscrita em caso de reprodução mecânica. Não deve tratar-se de escrito anônimo, identificando-se o seu autor. Deve traduzir manifestação de vontade ou exposição de fatos, apresentando relevância jurídica, ou seja, em condições de produzir consequências no campo do direito”. Quanto ao entendimento desse último autor, discorda-se desse quanto à restrição de documento como “ostentação de forma escrita”. Assim, embora esse entendimento seja de

11

QUEIROZ, Regis Malhães Soares de. Assinatura digital e o tabelião virtual. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Direito e Internet. São Paulo: Edipri, 2000. 12 LIMA, Paulo Marco Ferreira. Fraude e o documento eletrônico: a defraudação do documento eletrônico e os crimes de computador. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para a obtenção de título de mestre em Direito Penal. São Paulo, 2003, p. 99. 13 SALLES JUNIOR, Romeu de Almeida. Curso completo de direito penal. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 355. 155



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



um estudioso contemporâneo, temos que, atualmente, um documento pode assumir diversas formas, sendo que elas vão além da simples utilização de um meio físico. Desse modo, com o uso de computadores, celulares e outros dispositivos tecnológicos, os dados eletrônicos puderam ficar contidos dentro dos mais variados formatos, não apenas meios físicos. Deve-se dizer, em síntese, que ao mundo jurídico foi necessário, aos poucos, absorver as novas tecnologias, de forma a se adaptarem a essa nova realidade tecnológica. Como consequência disso, surge a necessidade de regular e também de aceitar o documento eletrônico como meio de prova. Nada mais é, em verdade, do que uma forma de adequar o conceito de documento, com o objetivo de viabilizar seu uso no meio virtual. 2) A EQUIPARAÇÃO DOS DOCUMENTOS ELETRÔNICOS AOS FÍSICOS NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA É certo que a Medida Provisória nº 2.200-2, de 24/08/2001, que institui a infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil), equipara a documentos públicos ou particulares os documentos eletrônicos ali tratados, havendo, portanto, salvo melhor juízo, uma ampliação do conceito de documento do artigo 232 do CPP. Caso se opte por admitir a possibilidade da aplicação da Medida Provisória para fim de interpretação do tratamento legal dos documentos no Processo Penal, há questões relevantes que devem ser tratadas. Por exemplo, enquanto o texto legal prevê a possibilidade de se contestar um documento particular (art. 235 do CPP), presumindo verdadeiros os públicos, a MP nº 2.2002/2001, no artigo 10º, § 1º, afirma que, tendo sido certificado pelo ICP-Brasil, serão presumidamente autênticos os documentos eletrônicos, sejam eles públicos ou particulares. Ou seja, haverá a certeza de que o documento foi originado pela pessoa nele indicada, independentemente de sua origem, um funcionário público ou um particular. Já aqueles que forem certificados de forma diversa dependerão de validação da pessoa indicada como autora no documento, seguindo, neste último caso, regime similar ao geral adotado pelo CPP. Diante deste novo cenário, diversos são os questionamentos quanto à fiabilidade do documento eletrônico como prova, isso porque, como afirma Raquel Romano, “a prova digital, também conhecida como eletrônica, é um conjunto de informações dispostas em uma sequência de bits e consignada em uma base física eletrônica. Por conta desta característica, o documento eletrônico pode ser facilmente alterado, culminando em uma dificuldade factível

156

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



em atribuir-lhe segurança, comparável e compatível àquela que se obtém dos documentos físicos”14. Esses questionamentos têm sido levantados principalmente quanto às mensagens de e-

mail, utilizadas em larga escala nos dias atuais, mas que são destituídas de assinatura, estas entendidas em sentido material, razão pela qual lhes faltaria requisito indispensável ao documento15. Para esse entendimento, o e-mail não comprovaria, por si só, a sua autenticidade e veracidade, sendo indispensável a realização de perícia técnica, a fim de comprovar autoria e destinatário16. Por outro lado, há quem sustente que o e-mail deve, sim, ser admitido como documento, como afirmado por Guilherme de Souza Nucci17: “O e-mail deve ser considerado documento, baseado no critério ampliativo do conteúdo do documento, abrangendo outras bases suficientes para registrar pensamentos e outras manifestações de vontade, pois está armazenado dentro de um computador, no disco rígido”. Diante dessa análise, parece que a discussão atual quanto à admissibilidade dos documentos eletrônicos como prova no Processo Penal está intrinsecamente ligada à possibilidade de se comprovar a sua autenticidade e a sua veracidade. Assim, uma vez comprovados, o entendimento majoritário caminha no sentido de sua aceitação, conforme análise mais detalhada que faremos a seguir. 3) DOCUMENTO ELETRÔNICO COMO MEIO DE PROVA A prova documental é uma das provas típicas, elencadas em nosso Código de Processo Penal. Nesses termos, vale relembrar o disposto nos art. 231 do CPP: “Salvo os casos expressos em lei, as partes poderão apresentar documentos em qualquer fase do processo”, bem como o art. 232 do CPP: “Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares”. A partir da leitura desses dispositivos, nota-se uma predisposição de nosso ordenamento jurídico em reconhecer o documento como prova “material”, isto é, 14

ROMANO, Raquel Alexandra. Documento eletrônico pode ser utilizado como prova. Disponível em http://www.conjur.com.br/2011-fev-23/possivel-verificar-autenticidade-prova-documental-eletronica). ROCHA, Marcelo Oliveira. Os e-mails como prova na justiça do trabalho. Disponível em http://arquivos.ibmecsp.edu.br. 16 Trataremos mais do assunto quando falarmos, especificamente, do “e-mail” como meio de prova. 17 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo penal e execução penal, 11ª edição, Ed. Método Forense, 2014, p. 481. 157 15



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



representado de maneira concreta. Para José Frederico Marques, o documento “é a prova

histórica real consistente na representação física de um fato. O elemento de convicção decorre, assim, na prova documental, da representação exterior e concreta do factum probandum em alguma coisa”18. Por sua vez, Humberto Theodoro Junior19 entende que “em sentido lato, documento compreende não apenas os escritos, mas toda e qualquer coisa que transmita diretamente um registro físico a respeito de algum fato, como os desenhos, as fotografias, as gravações sonoras, filmes cinematográficos etc. Mas, em sentido estrito, quando se fala da prova documental, cuida-se especificamente dos documentos escritos, que são aqueles em que o fato vem registrado através da palavra escrita, em papel ou outro material adequado”. Não obstante respeitável a associação entre “documento” e “coisa materializada”, “real”, apontada por esses autores, a evolução tecnológica e, consequentemente, dos meios de prova, faz com que seja necessária a ampliação do conceito de documento, para abarcar também os “documentos eletrônicos”20. Nesse sentido, é importante a menção de Augusto Tavares Rosa Marcacini 21, para quem “um conceito atual de documento, para abranger também o documento eletrônico, deve privilegiar o pensamento ou fato que se quer perpetuar e não a coisa em que estes se materializam. Isto porque o documento eletrônico é totalmente dissociado do meio em que foi originalmente armazenado”. Dissocia-se, assim, o conceito de documento da noção de “res”, até porque, de acordo com o autor, “a tradicional definição de documento enquanto coisa é justificada pela impossibilidade, até então, de registrar fatos de outro modo, que não apegado de modo inseparável a algo tangível”. O conceito de documento ampliado, a partir da sua dissociação dos meios materiais, permite compreendê-lo como o registro de um fato, sem que se entre em detalhes quanto ao modo com que será registrado, que poderá ser das mais variadas formas.



18

158

MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil, vol. II, n. 472, São Paulo; Saraiva, 1974, p. 203. 19 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do direito processual civil e processo do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 458. 20 FINKELSTEIN, Maria Eugênia. Fraude eletrônica. In: LUCCA, Newton De e SIMÃO FILHO, Adalberto (coordenadores). Direito & Internet vol II – Aspectos Jurídicos Relevantes – São Paulo: Quartier Latin, 2008, p 419. Conforme assinala a autora: “O documento eletrônico já foi tratado pela Lei Modelo da UNCITRAL, que estabelece que não será negado efeito legal ao documento elaborado por meio eletrônico, devendo ele ser equiparado ao documento escrito”. Nesses termos, o art. 5o da r. Lei: “Não se negarão efeitos jurídicos, validade ou eficácia à informação apenas porque esteja na forma de mensagem eletrônica”. 21 MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. O documento eletrônico como meio de prova. Revista ABPI n. 58 – maio/jun 2002, p. 5.





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

No mesmo sentido, Maria Eugênia Finkelstein22, para quem “o suporte instrumental

de todo documento é um suporte material composto por um texto escrito sobre um elemento real (normalmente um papel). Ocorre que a evolução de novas tecnologias fez surgir um outro tipo de documento, diferente do tradicional e caracterizado pela ausência do suporte instrumental. Este documento é denominado documento eletrônico”. A autora, dessa forma, também reconhece a possibilidade da ausência de suporte instrumental para os documentos, produzidos em meios eletrônicos, sem que isso descaracterize a sua essência de prova documental. Para João Agnaldo Donizeti Gandini23, “o documento digital pode ser denominado como documento eletrônico ou até mesmo como documento informático, mas todas as denominações com o mesmo sentido, designando todo documento produzido por meio do uso do computador”. Dessa forma, o autor entende que o documento eletrônico nada mais é do que aquele que se encontra memorizado em forma digital, não perceptível para os seres humanos, só sendo possível utilizá-lo por meio de computador. Partido dessa premissa, é possível reconhecer os documentos eletrônicos, que nada mais são que sequência de bits traduzidas por meio de um determinado programa de computador, como prova documental. Inevitável reconhecê-los como meios de se representar os fatos, e consequentemente, sua natureza de meio de prova. Vale dizer que os documentos eletrônicos não se resumem unicamente a escritos: podem ser também desenhos, vídeos, sons, enfim, tudo o que possa representar algo, determinado fato e esteja armazenado em meio digital. i) A falta de imediação na prova documental À primeira vista, a prova documental parece guardar menor importância para o Processo Penal, sendo até mesmo menosprezada em determinados casos. Isso porque no Processo Penal há inegável predileção por provas que sejam constituendas, isto é, produzidas com imediação, com a participação das partes. A prova documental, porém, é por excelência uma prova pré-constituída, juntada aos autos a fim de que seja simplesmente provado algo.

22

FINKELSTEIN, Maria Eugênia. Op. cit, p. 419. GANDINI, João Agnaldo Donizeti. A validade juridical dos documentos digitais. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista de Magistratura n. 12, v. 3, 2002, p. 121. 159 23



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



Nesse sentido, vale a observação de Paolo Tonini24, para quem “la prova documentale

è collocabile nel punto di frizione tra due opposti principi que regolano il processo penal, e cioè il princípio di immediatezza ed il principio di non dispersione degli elementi di prova”. Surge, então, a dúvida quanto à valoração dos documentos como meio de provas, tendo em vista ser inegável que o contraditório aplicável à prova documental é diferido, ou seja, travado após a juntada dos documentos aos autos. No caso dos documentos materiais, a valoração se pauta em critérios facilmente aferíveis, tais como a verificação de que se trata do documento original, as assinaturas apostas ao documento, bem como reconhecimento de assinaturas por meio de critérios de autenticidade25. Por sua vez, parte da doutrina questionou desde logo a confiabilidade dos escritos digitais, indagando como confiar em algo escrito a milhares de quilômetros de distância. No caso do Processo Penal, a questão da autenticidade assume contornos ainda mais relevantes: como confiar em um documento que sequer pode ser autêntico a fim de se condenar alguém, por exemplo? Nesse contexto, surge a questão dos critérios para a valoração da prova documental eletrônica. ii) Os critérios de valoração da prova documental eletrônica Apesar dos avanços tecnológicos, há certa dificuldade na compreensão do documento eletrônico como prova no Direito brasileiro. E por que esse problema? Vale a pena mencionar uma das hipóteses dessa resistência, que é a atipicidade do documento eletrônico no Processo Penal brasileiro. Conforme já mencionado, o art. 232 do CPP, que trata da prova documental, não fez menção ao documento eletrônico, nem foi reformado para que o incluísse nos últimos anos. No entanto, em que pese ser uma prova aparentemente atípica, dada a atual evolução dos meios tecnológicos, seria impossível exigir do legislador um catálogo com todos os meios de prova possíveis de serem utilizados. Melhor interpretação, na verdade, é a que oportuniza a utilização de meios de prova atípicos, tais como os documentos eletrônicos, desde que eles

160

24 TONINI, Paolo. La prova penale. Padova: Cedam, 2000, p. 189. Em tradução livre do que diz, temos que, em seu entendimento, o problema da prova documental é que ela é contrária a dois princípios que regem o Processo Penal, a saber: a imediação das provas e a não dispersão dos elementos de prova. 25 Vale lembrar o assinalado por Marlon Marcelo Volpi. in: Assinatura digital e sua regulamentação no Brasil, Edipro Editora, p. 367: “Na antiguidade, entre as famílias de maior estirpe, ao surgir a necessidade da expedição de algum documento, fosse ele uma ordem real ou mesmo uma carta para a amante distante, tinha-se como hábito a marcação do brasão do remetente sobre a cera derretida, ao lado de sua assinatura, como forma de garantir a legitimidade do escrito. Desde então, surgiu-se um longo caminho, trazendo diversas mudanças na sociedade. Entretanto, certas características se mantiveram, como por exemplo, a validade da assinatura de próprio punho”.



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



sigam critérios como os elencados pela doutrina italiana: ser meio de prova moralmente legítimo e atendível26. Como todo e qualquer documento, a valoração da prova documental eletrônica

também dependerá de critérios de confiabilidade, ou seja, de segurança e de validade. A legislação que trata desses critérios é escassa, conforme veremos em capítulo subsequente. Por ora, devemos levar em consideração para a sua aceitação como meio de prova27 algumas funções que devem estar presentes nos documentos eletrônicos: a função identificativa, a função declarativa e a função probatória. Disso decorre a necessidade de se verificar a autenticidade dos documentos eletrônicos, ou seja, a sua proveniência subjetiva, a sua “paternidade”. No documento em papel, o que demonstra a autoria é quase sempre a assinatura manuscrita, mas, no documento eletrônico essa comprovação será feita por meio da assinatura digital (que se traduz por meio de um sistema de chaves públicas e privadas, e, em algumas vezes, por criptografia28). Quanto à integridade do documento eletrônico, traduz-se na garantia de que o documento não foi modificado após a sua confecção. Assim, devem ser verificadas rasuras, cancelamentos ou até mesmo indícios de que escritos foram inseridos posteriormente à confecção do documento. Tendo em vista as inúmeras técnicas de segurança de chaves públicas e privadas, utilização de criptografia e até mesmo tipos de senhas, os documentos eletrônicos tornam-se até mesmo mais seguros do que os documentos físicos, de modo que a suposta ausência de meios que não garantam a sua integridade não merece justificativa. Discorda-se, assim, do entendimento dado por Finkelstein29, para quem o “documento eletrônico pode e deve ser aceito como meio de prova em juízo, mesmo sabendo que o meio eletrônico é um meio que facilita a modificação do documento”. Ora, muito embora nenhum

26

Nesse sentido, AMODIO in: Libero convincimento e tassatività dei mezzi di prova: um approccio comparativo, Rivista italiana di diritto e procedura penale, 1999, p. 6. “Al giudice è consentito assumere prove atipiche, vale a dire non disciplinate dalla legge, com l’obbligo peraltro di accertare preventivamente la loro idoneità ai fini dell’acertamento e la loro attitudine a offrire un contributo conoscitivo tale da non pregiudicare la libertà morale della persona (art. 189 c.p.p)”. 27 Para César Viterbo Santolim in: Formação e Eficácia Probatória dos Contratos por Computador. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 33, “Para que a manifestação de vontade seja levada a efeito por um meio eletrônico, é fundamental que estejam atendidos dois requisitos de validade, sem os quais tal procedimento será inadmissível: a) o meio utilizado não deve ser adulterável sem deixar vestígios, e b) deve ser possível a identificação do(s) emitente(s) da(s) vontade(s) registrada(s)”. 28 A criptografia é um dos meios para se garantir a segurança dos documentos eletrônicos. É a ciência que estuda os sistemas para manter as informações secretas e legíveis unicamente por quem possua a chave para decifrá-los. Assim, por meio de mensagens digitais, somente o emissor e o destinatário conseguem decifrá-lo. A título de curiosidade vale lembrar que o documento criptografado, em alguns países, sequer é considerado documento. É o que acontece, por exemplo, na Espanha, de acordo com o que afirma Antonio Fernández Hernández, in: Tratamiento Jurídico-Penal del documento electrónico encriptado en España. Uma cuestión necessitada de revision. Cuadernos de doctrina y jurisprudência penal n. 22, 12/13, 2007/2008, p. 231). 29 FINKELSTEIN, Maria Eugênia. Op. cit, p. 419. 161



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



meio de segurança eletrônica, como o sistema de chaves públicas e privadas e a utilização de certificados digitais esteja imune a fraudes, não se pode dizer que seja esse um sistema mais frágil do que as assinaturas tradicionais, as quais historicamente tem sido alvo de crimes de falsidade. Não há, portanto, que se cogitar que o documento eletrônico possui maiores facilidades. No que diz respeito à tempestividade do documento eletrônico, também é ela elemento que garante a confiabilidade do momento em que o documento foi expedido. A utilidade da verificação da data assume contornos que vão além da verificação da autenticidade do documento. Poderá, por exemplo, servir como álibi em algumas situações. iii) O incidente de falsidade documental: documento eletrônico X

documento material Tratando-se da admissibilidade do documento eletrônico como prova no Processo Penal, um dos obstáculos para a sua aceitação seria a falta de disciplina em caso de verificação de possível fraude ao longo do processo em que o documento digital é utilizado. Todavia, esse pensamento não merece prosperar. Isso porque em casos de suspeita quanto à veracidade das informações ali contidas, assim como poderia ocorrer com qualquer outro documento material, poder-se-ia cogitar a utilização de exame pericial para aferir se o documento eletrônico é ou não idôneo. Dessa forma, não se vislumbra maiores dificuldades que diferenciem tanto o exame grafotécnico de uma assinatura manuscrita e um exame técnico-informático para se averiguar se a assinatura eletrônica contida no documento eletrônico é ou não verdadeira. iv) Os originais e as cópias dos documentos eletrônicos Tratando de documentos originais e cópias reprográficas, o art. 383 do Código de Processo Civil claramente afirma: Qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica, cinematográfica, fonográfica ou de outra espécie, faz prova dos fatos ou das coisas representadas, se aquele contra quem foi produzida lhe admitir conformidade. Parágrafo único. Impugnada a autenticidade da reprodução mecânica, o juiz ordenará a realização de exame pericial.

Em consonância, o art. 385, caput, do CPC: “A cópia do documento particular tem o mesmo valor probante que o original, cabendo ao escrivão, intimadas as partes, proceder à conferência e certificar a conformidade entre a cópia e o original”.

162



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Ao tratar sobre as cópias, o CPP dispôs sobre as cópias no art. 232: “Consideram-se

documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares. Parágrafo único. À fotografia do documento, devidamente autenticada, se dará o mesmo valor do original”. A polêmica sobre a valoração das cópias dos documentos eletrônicos, entretanto, subsiste. O legislador silenciou sobre isso, e não há previsão de que haja mudanças quanto a esse vácuo normativo, seja no novo Código de Processo Civil que entrou em vigor recentemente, seja no PLS 156, que versa sobre o novo Código de Processo Penal. De qualquer forma, compartilhamos a opinião de Zoccoli30, para quem entre dois documentos eletrônicos idênticos é inútil e impossível tentar distinguir qual deles é a cópia e qual deles é o original. v) O e-mail e o valor probatório como documento eletrônico Dentre as várias possibilidades de documentos eletrônicos, o e-mail pode ser considerado uma hipótese sui generis. Conforme assinala Roberto Senise Lisboa31, a criação do chamado correio eletrônico deveu-se a Ray Tomlinson, em 1972. Apesar de ser um importante instrumento de comunicação via internet, não se revela devidamente protegido de violações, que podem ser perpetradas na transmissão das mensagens, apesar das técnicas inovadoras que vêm sendo desenvolvidas. Assim, os seus aspectos ligados à segurança e autenticidade daquele que envia a mensagem, bem como a armazena são bastante frágeis. Devido a isso, em vários casos que ocorreram nos Estados Unidos, a existência de e-mail que comprovava a ocorrência de crimes não se mostrou suficiente para condenar os acusados. Isso ocorreu, por exemplo, no caso Oliver North32 (tenente-coronel e então assessor do presidente Ronald Reagan), nos primórdios da utilização dos computadores para envio de mensagens. De acordo com o que se apurou à época, North utilizava seu e-mail para fornecer ajuda ilegal a guerrilheiros da Nicarágua, e costumava apagar esses e-mails, julgando que, desta forma, estaria imune ao conhecimento de outras pessoas essa sua ajuda. Todavia, ele

30

ZOCCOLI, Dinemar. Autenticidade e integridade dos documentos eletrônicos: a firma electronica. In: ROVER, Aires José (org). Direito, Sociedade e Informática: limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000, p. 187. Assim, para o autor “(…) em termos de documentos não existe diferenciação entre ‘cópia’ e ‘original’, pois todas as duplicações resultam em novos originais – verdadeiros ‘clones’, por assim dizer (…)”. Ressalte-se que a importância da manutenção da via original talvez se mostre importante, caso seja necessário provar a autenticidade do documento em incidente de falsidade documental. 31 LISBOA, Roberto Senise. A Inviolabilidade de Correspondência na Internet. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (coordenadores). Direito & Internet vol I – Aspectos Jurídicos Relevantes – São Paulo: Quartier Latin, 2008, p 524. 32 Maiores informações sobre o caso “Oliver North” estão disponíveis no site: http://time.com/2954148/irancontra/. Consultado em: 20/08/2016. 163



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



desconhecia que o simples ato de “deletar” não era suficiente para que as suas mensagens desaparecessem. À época já era rotina nos Estados Unidos manterem cópias dos arquivos enviados, inclusive e-mails, que, desse modo, continuavam com o conteúdo armazenado. Devido a isso, North foi demitido de seu cargo. Em um dos casos33 que ganhou enorme repercussão nos Estados Unidos, o estudante chinês da Universidade da Califórnia, Jinsong Hu, foi acusado de assédio sexual e ameaças contra a ex-namorada Jaijun Wen. Segundo consta ele teria enviado várias mensagens por email para ameaçá-la. As mensagens de e-mail seriam a principal evidência, podendo levá-lo à condenação. Todavia, ao longo da instrução, a defesa do estudante chinês provou que a tecnologia utilizada nos e-mails é altamente manipulável, de forma que somente naquele Instituto de Física da Universidade da Califórnia, no qual Jinsong Hu estudava, centenas de estudantes teriam habilidade necessária para forjar essas mensagens enviadas por e-mail. Havendo dúvidas quanto à sua autoria, Jinsong foi absolvido. Outro caso, denominado “Larry Ellison”, também evidencia a facilidade com que se pode acessar e-mails. Larry Ellison fora acusado de ter demitido Adelyn Lee da função de assistente executiva da empresa Oracle Corporation, porque ela supostamente havia se recusado a fazer sexo com ele. Segundo consta, Ellison e Adelyn haviam namorado por algum tempo. A principal prova apta a comprovar a acusação de Adelyn seria uma mensagem enviada por e-mail, de poucas linhas. Nela, um diretor da Oracle dizia a Larry Ellison: “acabo de demitir Adelyn a seu pedido”. Ao longo do processo, porém, esclareceu-se que a executiva Adelyn forjou o envio de um e-mail de um dos diretores da Oracle, que era seu chefe, para Ellison. Tudo foi descoberto porque o chefe de Adelyn conseguiu provar que no momento em que a mensagem fora escrita, ele estava falando ao telefone celular, em local diverso. Desse modo, Adelyn saiu do tribunal condenada por falsificação de provas e por perjúrio. Há, ainda, nos Estados Unidos, outro caso que comprova a vulnerabilidade da utilização dos e-mails como meio de prova. No caso St. Clair X Johnny’s Oyster – personal injury” 34 , decidiu-se que nem mesmo os registros de e-mails da Guarda Costeira norte-

americana seriam suficientes para comprovar um caso de injúria, porque até mesmo os emails da guarda costeira estariam suscetíveis a fraudes.

33

Disponível acesso com maiores informações em: http://www.caltech.edu/%7Emedia/times.html. Acesso em: 31/08/2016. A decisão encontra-se disponível em: http://www.leagle.com/decision/199984976FSupp2d773_1764.xml/ST.%20CLAIR%20v.%20JOHNNY'S%20O YSTER%20&%20SHRIMP,%20INC. Acesso em: 01/09/2016. 34

164





Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Por fim, num caso brasileiro ocorrido em 17 de novembro de 1997, um homem foi

acusado de ter praticado, via e-mail, ameaças às jornalistas Bárbara Gancia e Maria Cristina Poli. Após o fato ter sido comunicado às autoridades policiais, os e-mails ameaçadores foram encontrados no computador do acusado. Todavia, interessante o desfecho, uma vez que ele não foi condenado em virtude dos e-mails enviados às vítimas, mas sim em decorrência da sua confissão. Em síntese, observa-se que os e-mails, por si só, têm sido compreendidos como documentos eletrônicos muito vulneráveis a fraudes, de modo que a sua utilização como única prova não tem sido apta a ocasionar condenações por crimes cometidos supostamente via email. De fato, os casos acima mencionados comprovam essa fragilidade. 4) LEGISLAÇÃO A presença de dispositivos que regulem a questão do documento eletrônico na legislação brasileira é extremamente escassa e aquém do necessário ante os velozes avanços tecnológicos que alteram constantemente a forma de registrar e documentar os fatos. O Código de Processo Penal não prevê nada a respeito da matéria. Apenas traz o conceito de documento físico, já mencionado, previsto no art. 23235. O Projeto de Lei nº 159/2009, em trâmite no Senado Federal, que pretende implementar um novo Código de Processo Penal, tampouco manifesta-se sobre o assunto. Nesses casos, subsidiariamente, poder-se-ia recorrer ao Código de Processo Civil em vigência, contudo também não aborda a questão. Finalmente, o Novo Código de Processo Civil que, a princípio, entrará em vigência em 2016, traz uma seção “dos documentos eletrônicos”, a qual possui os três seguintes artigos: Art. 439. A utilização de documentos eletrônicos no processo convencional dependerá de sua conversão à forma impressa e da verificação de sua autenticidade, na forma da lei. Art. 440. O juiz apreciará o valor probante do documento eletrônico não convertido, assegurado às partes o acesso ao seu teor. Art. 441. Serão admitidos documentos eletrônicos produzidos e conservados com a observância da legislação específica.

Dessa forma, a utilização do documento eletrônico passa a estar expressamente prevista, estando em função da sua conversão à forma impressa e da verificação da sua 35



Art. 232. Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares.

165

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



autenticidade. Caso tal conversão não se verifique, o juiz constatará o valor probante do documento. Prevê ainda a criação de lei específica para regular mais precisamente a respeito da sua admissão. Existem dois diplomas legais que abordam o documento digital de forma mais profunda: a Medida Provisória nº 2.200-2/2001 e a Lei nº 11.419/2006, também conhecida como Lei do Processo Eletrônico. A Medida Provisória, já mencionada neste trabalho, foi o primeiro texto legal a realmente disciplinar a questão, dando início à implantação do sistema de certificação digital no Brasil. Em primeiro lugar, foi criado o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), autarquia federal vinculada à Casa Civil da Presidência da República, o qual instituiu o ICP Brasil que é a autoridade certificadora raiz. O ICP Brasil é uma cadeia hierárquica e de confiança que viabiliza a emissão de certificado que possibilita que os cidadãos sejam identificados virtualmente.36 A ele compete a emissão, expedição, distribuição, revogação e gerenciamento dos certificados das autoridades certificadoras. Elas são entidades públicas ou privadas que dão continuidade à cadeia certificadora, podendo emitir e revogar certificados digitais, sendo, consequentemente, responsáveis por verificar se o titular do certificado possui a chave privada que corresponde à chave pública que faz parte do certificado. São exemplos de autoridades certificadoras a Receita Federal, a Imprensa oficial, a Caixa Econômica Federal, dentre outras, e são exemplos de entidades que obtiveram destas entidades o direito à emissão de certificados digitais a AASP e a Cersa Experience. A Medida Provisória estabelece ainda: Art.10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória. § 1o As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071, de 1o de janeiro de 1916 - Código Civil. § 2o O disposto nesta Medida Provisória não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICPBrasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento.

166

36



Disponível em: http://www.iti.gov.br/icp-brasil/o-que-e. Acesso em: 01/09/2016.



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Pode-se notar que, diferentemente do previsto no Código de Processo Penal, o qual

prevê que sobre documentos públicos apenas recai a presunção de autenticidade, a Medida Provisória determina que recai sobre qualquer documento produzido com a utilização do processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil, independentemente de ser proveniente de órgão público ou privado. Isso não veda a utilização de outro meio de comprovação, contudo as partes devem aceitá-lo para que seja válido37. Ocorre que, apesar das expressivas alterações trazidas, a Medida Provisória sofreu duras críticas quando entrou em vigor, uma vez que obrigou que qualquer documento eletrônico deve ser assinado com chaves certificadas por uma autoridade certificadora credenciada pelo ICP, na contramão da tendência mundial de descentralizar tal controle. Ademais, critica-se o fato de o Governo Federal manter em seu poder um banco de dados de todos os indivíduos que utilizam tais serviços, sendo possível ainda interceptar e ler as mensagens, retirando segurança e privacidade38. A Lei nº 11.419/2006, por sua vez, também traz novas alterações para a disciplina dos documentos digitais. Determina, em seu art. 11 que documentos produzidos eletronicamente, com a devida garantia de origem e de seu signatário, devem ser considerados originais para todos os efeitos e dispõe que documentos digitalizados possuem a mesma força probante que os documentos originais39. Pode-se notar que, mesmo com a Medida Provisória e a Lei supramencionadas, existe uma falta de previsão legal a respeito da matéria, que vem exponencialmente obtendo relevância ante a transformação dos processos físicos em processos eletrônicos, mas, principalmente, ante a grande revolução tecnológica que vem transformando a forma de comunicação e de registro de documentos. Existem três Projetos de Lei no Congresso Nacional que estão em trâmite, contudo não possuem previsão alguma pra serem postos em votação. São eles o PLS 22/96, o qual regula o arquivamento eletrônico de informações, dados, imagens e qualquer outro documento, o PL 1483/99, que institui a fatura eletrônica e a assinatura digital nas transações

37

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. São Paulo: Elsevier. 2012. p. 333. GANDINI, João Agnaldo Donizeti; SALOMÃO, Diana Paola da Silva; JACOB, Cristiane. A validade jurídica dos documentos digitais. Cadernos jurídicos da Escola Paulista da Magistratura n. 12, v. 3, 2002, p. 122. 39 Art. 11 – Os documentos produzidos eletronicamente e juntados aos processos eletrônicos com garantia da origem e de seu signatário, na forma estabelecida nesta Lei, serão considerados originais para todos os efeitos legais. § 1o Os extratos digitais e os documentos digitalizados e juntados aos autos pelos órgãos da Justiça e seus auxiliares, pelo Ministério Público e seus auxiliares, pelas procuradorias, pelas autoridades policiais, pelas repartições públicas em geral e por advogados públicos e privados têm a mesma força probante dos originais, ressalvada a alegação motivada e fundamentada de adulteração antes ou durante o processo de digitalização. 38

167

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



de comércio eletrônico e o PL 1589/99, proposto pela Ordem dos Advogados do Brasil, cujo conteúdo dispõe sobre o comércio eletrônico, a validade jurídica do documento eletrônico e a assinatura digital. Vale mencionar ainda que a preocupação com a disciplina dos documentos eletrônicos não está presente apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Legislações já vêm sendo desenvolvidas desde 1995, nos Estados Unidos, no Estado de Utah e Califórnia, que foram os precursores na edição dessas leis. Em 1997, a Alemanha e a Itália também já possuíam diplomas legais e, em 1998, a Argentina também o fazia. A Convenção de Budapeste de 2001 que buscava combater os crimes cibernéticos, criando uma política criminal comum entre os países signatários, determina em seu art. 16, título 2, que deve-se adotar medidas para exigir e viabilizar conservação de dados informáticos e obrigar indivíduos a fazê-los dos dados sob sua posse e controle, refletindo a preocupação mundial com os documentos e registros eletrônicos.

5) JURISPRUDÊNCIA A escassez legislativa a respeito do tema dos documentos eletrônicos reflete-se, naturalmente, na jurisprudência dos tribunais, em especial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Poucos julgados abordam a matéria, o fazendo algumas vezes de forma subsidiária ou abrangendo aspectos pouco relevantes para a questão. O acórdão do Agravo de Instrumento 564.765, do Supremo Tribunal Federal, determinou que não se pode considerar como assinatura digitalizada como válida, uma vez que não possui qualquer certificado digital que comprove a sua originalidade e, aceitar esse tipo de assinatura traria insegurança jurídica40. No acórdão da Sentença Estrangeira Contestada 9.853, do Superior Tribunal de Justiça, é ratificado que os documentos digitalizados possuem a mesma força probante dos



40

168

EMENTA: Ato processual: recurso: chancela eletrônica: exigência de regulamentação do seu uso para resguardo da segurança jurídica. 1. Assente o entendimento do Supremo Tribunal de que apenas a petição em que o advogado tenha firmado originalmente sua assinatura tem validade reconhecida. Precedentes. 2. No caso dos autos, não se trata de certificado digital ou versão impressa de documento digital protegido por certificado digital; trata-se de mera chancela eletrônica sem qualquer regulamentação e cuja originalidade não é possível afirmar sem o auxílio de perícia técnica. 3. A necessidade de regulamentação para a utilização da assinatura digitalizada não é mero formalismo processual, mas, exigência razoável que visa impedir a prática de atos cuja responsabilização não seria possível (AI 564765, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 14/02/2006, DJ 17-032006).



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



originais físicos e documentos com assinatura digital, nos termos do art. 11, da Lei de Processo Eletrônico41. Já o Agravo Regimental no Recurso Especial 1.335.192, do Superior Tribunal de Justiça, é negado provimento ao recurso por ele não possuir certidão atestando que foi assinado eletronicamente, apenas expressão “documento eletrônico recebido na origem” na lateral do documento, o que segundo a relatora significa apenas que o documento foi peticionado eletronicamente e não que foi certificado a sua autoria42. Por fim, o Agravo Regimental no Recurso Especial 249.395, do Superior Tribunal de

Justiça, deu provimento ao agravo reformando o acórdão recorrido que não aceitou um comprovante extraído da internet, dado que deveria ter sido apresentada a via física. A reforma do julgamento foi embasada na ampla utilização do meio eletrônico na vida moderna43. 41

HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA PROFERIDA NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. DIVÓRCIO CONSENSUAL. AUTENTICIDADE DOS DOCUMENTOS ELETRÔNICOS. CITAÇÃO POR EDITAL. AUSÊNCIA DE NULIDADE. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 1. A sentença estrangeira, proferida pela autoridade competente, transitou em julgado, está autenticada pelo cônsul brasileiro e traduzida por tradutor juramentado no Brasil. Houve regular citação no processo alienígena (fl. 50), ademais a sentença estrangeira não ofende a soberania ou a ordem pública. 2. É tranquila a jurisprudência desta Corte no sentido da impossibilidade de se questionar a autenticidade dos documentos que são enviados eletronicamente ou digitalizados, ambos em obediência à forma prevista na Lei 11.419/2006. 3. No caso, trata-se de ação de divórcio em que a requerente relata já não ter nenhum contato com o réu há sete anos, valendo salientar a circunstância segundo a qual, havendo ela sido vítima de violência doméstica, a Corte americana expediu ordens proibindo o requerido "de abusar da requerente", de "entrar em contato com a requerente", bem como de "sair e permanecer fora da residência da requerente" (fls. 64-65). Não há, assim, razão alguma que justifique venha a autora a saber do paradeiro de seu ex-cônjuge, afigurando-se correta a citação por edital. 4. Homologação da sentença estrangeira deferida (SEC 9.853/EX, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, CORTE ESPECIAL, julgado em 01/10/2014, DJe 28/10/2014). 42 AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL PENAL. PETIÇÃO DE RECURSO ESPECIAL APÓCRIFA. RECURSO INEXISTENTE. VÍCIO INSANÁVEL. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A expressão "Documento eletrônico recebido na origem" indica, literalmente, que a peça foi recebida já na forma eletrônica (sem que tenha sido digitalizada pelo Tribunal), não tendo o condão de confirmar a autenticidade da peça ou a existência de assinatura digital. 2. A jurisprudência desta Corte e do Pretório Excelso é pacífica no sentido de que os recursos sem assinatura, dirigidos às instâncias extraordinárias, são considerados inexistentes. Vício insanável, não sendo possível a abertura de prazo para a regularização do feito. Precedentes. 3. Decisão que se mantém por seus próprios fundamentos. 4. Agravo regimental desprovido (AgRg no REsp 1335192/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 03/12/2013, DJe 19/12/2013). 43 PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. DESERÇÃO. COMPROVAÇÃO DE PAGAMENTO DE CONTA/TRIBUTO. NÃO ACEITAÇÃO DO COMPROVANTE EXTRAÍDO DA INTERNET. ENTENDIMENTO SUPERADO EM RAZÃO DA AMPLA UTILIZAÇÃO DE MEIO ELETRÔNICO NA VIDA MODERNA. POSSIBILIDADE DE CONFERÊNCIA DOS DADOS LANÇADOS NO DOCUMENTO. NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DO ÓBICE. ÔNUS EXCESSIVO. AGRAVO PROVIDO. 1. Não é razoável impor à parte condições mais rigorosas para a comprovação do pagamento de conta ou tributo (taxas, inclusive) do que aquelas exigidas pelo mercado ou instituições públicas. 2. Para comprovação do preparo, deve ser considerado o uso de meios eletrônicos já incorporados ao cotidiano dos brasileiros, reputando-se válido o comprovante extraído da internet, tendo em vista a possibilidade de aferir se os dados nele lançados referem-se a pagamento relativo a processo específico. 3. Agravo regimental provido (AgRg no AREsp 249.395/SC, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/11/2013, DJe 25/02/2014). 169



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



Em síntese, foram encontrados poucos julgados para embasar esse trabalho, até porque

são poucos os julgados envolvendo o tema até o presente momento, e, muitas vezes, a questão da utilização do documento eletrônico é um mero incidente no processo, e não a questão principal. 6) DOCUMENTOS ELETRÔNICOS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO: QUAL O FUTURO? Diante de tudo o que foi abordado, resta clara a tendência da utilização dos documentos eletrônicos no cotidiano – basta lembrar o crescente uso de chaves públicas dentro de fóruns e tribunais, bem como a substituição de assinaturas manuais por digitais, seja nos documentos de conteúdo mais simples até sentenças ou acórdãos de enorme relevância. A utilização desses documentos eletrônicos para otimizar a mera comunicação entre órgãos públicos ou firmar contratos, tende a ter menor resistência. Todavia, no Processo Penal, em especial, parece haver uma desconfiança um pouco maior quanto à utilização dos documentos eletrônicos como meio de prova, que se deve primordialmente ao receio de gerar condenações baseadas em provas cuja autenticidade (certeza da autoria) e veridicidade (verificação da verdade do conteúdo) são aferidas a partir de técnicas novas como a criptografia, cuja desconfiança sobre a sua falibilidade ainda existe. Ademais, como já se disse, não há um regramento específico disciplinando o processo eletrônico, nem mesmo previsões referentes a algo como uma “cadeia de custódia” do documento eletrônico, a fim de que saibamos exatamente qual o “percurso” que teve aquele documento, quem o acessou e se houve a possibilidade de alterá-lo. Entende-se serem esses os principais obstáculos para uma maior valorização da prova digital, mas, reitere-se, que mesmo as provas documentais físicas estão sujeitas a problemas de veracidade e autenticidade, e, tendo em vista a construção epistêmica do processo, reconhece-se que todas as provas estão sujeitas a falhas na tentativa de reconstrução da verdade. Quanto às críticas direcionadas ao fato de que os documentos eletrônicos sejam provas atípicas, e, portanto, impossível sua utilização no ordenamento jurídico brasileiro, esta também não procede. A tipicidade probatória não pode ser transformada em um obstáculo, um elemento que enrijece e impede a utilização de meios de prova não elencados pelo legislador. Assim, em vez de rechaçar os meios de provas atípicos, devemos procurar pensar

170





Revista dos Estudantes de Direito da UnB



em critérios de admissibilidade das provas atípicas, como fez o legislador italiano, ao aceitar as provas atípicas desde que idôneas e que não ofendam a moralidade44. Isto posto, não há como negar que conviveremos cada vez mais com os documentos

eletrônicos, e disso decorre a necessidade da criação de disciplinas mais específicas sobre o seu uso, especialmente no Processo Penal, tendo em vista o alto impacto que uma prova pode ter em casos que digam respeito a liberdade individual. Por fim, os documentos eletrônicos estão sujeitos a falhas como quaisquer outros meio de prova e não há dúvida sobre a imprescindibilidade de uma disciplina mais específica sobre o tema, caso contrário, a valoração dessas provas ficará ao total arbítrio de cada juiz. 7) BIBLIOGRAFIA AMODIO. Libero convincimento e tassatività dei mezzidi prova: um approccio comparativo, Rivista italiana didiritto e procedurapenale, 1999. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. ________________________. Processo Penal. São Paulo: Elsevier. 2012. CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2ª Edição, trad. da italiana por Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1998, v. III, p. 127. CÂMPOLI, Gabriel Andrés. Las lagunas em la firma electronica. Revista de ciências penales, n. 9, 2004. CHOUKR, Fauzi Hassan. Inquérito Policial e peças informativas do crime. Revista Iustitia, v. 62, 2000.



44

Nesse sentido: “Art. 189. Prove non disciplinate dalla legge. 1. Quando è richiesta una prova non disciplinata dalla legge, il giudice può assumerla se essa risulta idonea ad assicurare l'accertamento dei fatti e non pregiudica la libertà morale della persona. Il giudice provvede all'ammissione, sentite le parti sulle modalità di assunzione della prova”. Disponível em: http://www.altalex.com/documents/news/2013/11/13/provedisposizioni-generali. Acesso em: 18/10/2016.

171

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



FINKELSTEIN, Maria Eugênia. Fraude eletrônica. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (coordenadores). Direito & Internet vol II – Aspectos Jurídicos Relevantes – São Paulo: QuartierLatin, 2008. GANDINI, João Agnaldo Donizeti. A validade jurídica dos documentos digitais. Cadernos jurídicos, n. 12, v. 3, 2002. GRECO, Leonardo. O processo eletrônico. Direito e internet: relações jurídicas na sociedade informatizada. HERNÁNDEZ, Antonio Fernandez. Tratamiento Jurídico-Penal del documento electrónico encriptadoen España. Uma cuestión necessitada de revision. Cuadernos de doctrina y jurisprudência penal n. 22, 12/13, 2007/2008. LIMA, Paulo Marco Ferreira. Fraude e o documento eletrônico: a defraudação do documento eletrônico e os crimes de computador. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de direito da Universidade de São Paulo para a obtenção de título de mestre em Direito Penal. São Paulo, 2003. LISBOA, ROBERTO SENISE. A Inviolabilidade de Correspondência na Internet. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (coordenadores). Direito & Internet vol I – Aspectos Jurídicos Relevantes – São Paulo: QuartierLatin, 2008.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal, 16ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2013. MARCACINI, Augusto Tavares Rosa. Documento eletrônico como meio de prova. Revista do Curso de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, n. 1, v. 27, 1998, p. 137-180. MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil, vol. II, n. 472, São Paulo: Saraiva, 1974. ______________________. Elementos de direito processual penal, Vol. II. Campinas:

172

Bookseller, 1997.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



MIRANDA, Pontes. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo IV. Rio de Janeiro, 1974. MATTIOLI,

Leonello.

Computer

e

diritto:

l´informaticagiuridicanellasocietádellainformazione e dela conoscenza, 2012. MUÑOZ CONDE. Derecho Penal, parte especial. Sevillha, 1985. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado, 13ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. ________________________. Manual de Processo penal e execução penal, 11ª edição, Ed. Método Forense, 2014. QUEIROZ, Regis Malhães Soares de. Assinatura digital e o tabelião virtual. In: LUCCA, Newton de; SIMÃO FILHO, Adalberto (Coord.). Direito e Internet. São Paulo: Edipri, 2000. ROMANO, Raquel Alexandra. Documento eletrônico pode ser utilizado como prova. Disponível

em:

http://www.conjur.com.br/2011-fev-23/possivel-verificar-autenticidade-

prova-documental-eletronica). ROCHA, Marcelo Oliveira. Os e-mails como prova na justiça do trabalho. Disponível em: http://arquivos.ibmecsp.edu.br. SALLES JUNIOR, Romeu de Almeida. Curso completo de direito penal. 3ª edição. São Paulo: Saraiva, 1993. SANTOLIM, Cesar Viterbo. Formação e Eficácia Probatória dos Contratos por Computador. São Paulo: Saraiva, 1995. THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria Geral do direito processual civil e processo do conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

173

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



VAZ, Denise Provasi. Provas digitais no processo penal: formulação do conceito, definição das características e sistematização do procedimento probatório. Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de doutor. São Paulo, 2012. YARSHELL, Flávio Luiz. Eficácia probatória do documento eletrônico. In: Repertório IOB de Jurisprudência. 1ª quinzena de novembro de 1999 – n. 21/99. Caderno 3, p. 489-493. ZOCCOLI, Dinemar. Autenticidade e integridade dos documentos eletrônicos: a firma eletrônica. In: ROVER, Aires José (org). Direito, Sociedade e Informática: limites e perspectivas da vida digital. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2000.

174

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

APPLYING THE CONCEPT OF DECENT WORK TO CAMBODIA’S TEXTILE INDUSTRY: THE ILO’S ROLE IN ENSURING STATE COMPLIANCE TO INTERNATIONAL LABOR LAW Danilo Barbosa Garrido Alves1 Submetido(submitted): 21 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 19 de outubro de 2016 ABSTRACT The objective of this paper is to give an overview on the situation of workers in the textile industry of Cambodia. These persons, young girls and women in their majority, deal not only with very low salaries and extremely demanding journeys, but also sexual harassment, unlawful firings of pregnant women, forced overtime and unattainable production targets, among others. What can be done by the international community (encompassing States, International Organizations, NGOs and multinationals alike) to tackle these issues, and to ensure that the decent work standards put forth by the International Labor Organization are respected in Cambodia’s garment factories? The answer to this question is multifaceted, but certainly involves cooperation between different actors – and, most importantly, actual interest in improving the working conditions of these women, something that has arguably been lacking from the analyzed actor’s side. KEYWORDS: Cambodia; International Labor Law; Decent Work. INTRODUCTION May 19th, 2015. A van carrying 38 garment industry workers – more than the maximum capacity of the vehicle – is hit by a speeding bus, leaving 18 workers dead, seven in critical condition and 13 injured (Pheap, Consiglio, 2015). This could have very well been an isolated fact: an unfortunate casualty that was aggravated by the violation of security standards, something that happens in virtually every country of the world. However, this is just a tiny expression of a much bigger issue that occurs in Cambodia. Flashback to May 2013. Exactly two years before the accident above, two Cambodian factories collapsed within the span of four days. Even though there weren’t as many casualties (two workers dead, and around 30 injured), the consequences could have been disastrous. As it is highly unlikely that two buildings that follow all security standards would simply crumble on a short time, those events drew international attention to Cambodia and sparked a much-needed debate around the country’s textile 1

Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

175

Revista dos Estudantes de Direito da UnB industry and the various violations to human rights and national and international labor law that occur within these factories (Cheang, 2013; Unknown Author, 2013). In this line, given the structural character of labor rights violations in Cambodia’s garment industries, this paper begins by pinpointing what exactly occurs inside these factories. Then, it will analyze the multiple forms of violations to International Labor Law in which Cambodia incur, for it is the state’s duty to ensure that the industries in its territory are not breaching these laws. Finally, the paper will present recommendations to both multinational enterprises and to Cambodia, and will highlight how the international community and, namely, the International Labor Organization – ILO can improve the living quality of the Cambodians. DEVELOPMENT “They’re not able to travel with dignity. It’s the greed of the industry and the lack of money the workers have. It’s unacceptable”. Those are the words Dave Welsh, representative of American NGO Solidarity Center, used to describe the outcome of the accident of May 19th, and it gives interesting insight to the situation of garment industry workers in Cambodia. For the purpose of this paper, his speech will be divided and analyzed in three parts, rearranged in the following order: (i) worker’s lack of money, (ii) industry’s greed and (iii) dignity. Worker’s lack of money: breaking the cycle of poverty Regarding the first topic, it must be said that minimum wage in Cambodia is a long-time issue that has been recently showing improvements, especially in 2014, following a series of peaceful protests. Said protests were dealt with extreme violence by Cambodian police, in a clear violation of the worker´s right to collectively demand raises and right to freedom of speech, and ended up with five dead persons and many more injured (Kuo, 2015). Despite this fact, in the line with multiple recommendations by NGOs and the ILO (HRW, 2015), the government agreed on raising the minimum wage from $80 to $128 a month, 20% below the requested $160 (Kuo, 2015). Whereas of utmost importance, a raise on the minimum wage without effective inspection by state officials – another chronic issue in Cambodia – could be of little use to workers, especially those who work on clandestine factories, for the latters have a history of not complying with legal standards (Oliver, 2015). On this aspect, Cambodia is on the right track and the ILO has been working with both the government and international fashion retailers to minimize the side effects of changes. Indeed, many

176

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

companies have agreed to absorb the raise in salaries into their supply chain, consequently avoiding the loss of jobs of many Cambodians (Kourabas, 2014). This goes in line with the principles of the United Nations Global Compact (UNGC), an initiative aimed at businesses and their responsibility towards constructing a more socially just world. Industry’s greed: a double-edged knife The UNGC, for instance, is the crossing point to the second topic, industry’s greed. First and foremost, it should be said that greed is one of the basis of the capitalist system and is not a problem per se. However, when this greed becomes predatory and promotes extreme inequality and disparities – instead of being in line with the Declaration of Philadelphia and the Declaration of Social Justice for a Fair Globalization, and promoting development –, then it is the ILO’s duty to act in order to guarantee the rights of those on the most fragile end of the rope: the workers. That being said, the reason major industries hold factories in Southeast Asia should not come as a surprise; it is wide known that this region’s conditions are extremely beneficial to business, all the way from wages and labor standards to taxation. And because of that, changing the situation in Cambodia and leaving other countries, such as Bangladesh or Vietnam for instance, to the status quo would not end the problem of exploitation, only change its address. A holistic and global approach should be employed when dealing with this issue, and the regional office of the ILO for Southeast Asia has been long working in this sense (HRW, 2015). Regarding exploitation, in addition, the theme of subcontracts deserves especial attention. Subcontracting in the context of garment industries may be defined as “the outsourcing of cut-make-trim and any other functions from one production site to another” (HRW, 2015, p. 96). Just like greed, it is not by definition a neither harmful nor unlawful practice, and it is quite common among companies of various sectors, such as the technological one. What makes it a problem is when these subcontracts involve unfair exploitation of the workforce, a topic that will be later developed in the paper. This problem is aggravated by the fact that only factories with export licenses are subject to regulation by third-party monitor Better Factories Cambodia (HRW, 2015), which means the subcontracted sweatshops are exempt from such – and therefore more susceptible to breach labor law. The project itself is subject to many criticism regarding its effectiveness and transparency, and often connives with employers that exploit workers, according to many workers themselves (HRW, 2015).

177

Revista dos Estudantes de Direito da UnB As one would expect, big corporations such as H&M, Gap and Adidas take pride in saying that they do not support labor right’s violations and that their supply chain is exempt from such (HRW, 2015) – after all, stating otherwise would be highly damaging to their reputation. On a simple analysis, indeed, they are technically not lying when they say so. They only do business with factories that comply with their standards of security and labor conditions, but then these factories subcontract smaller ones (often called sweatshops) to do part of the production – and it is within these sweatshops that most violations occur (HRW, 2015). These violations include, but are not limited to, the unlawful firing of women that appear to be pregnant, the employment of children, the over hours that far exceed the legally permitted in Cambodia and the harsh treatment of whistle blowers. These four aspects, for instance, are intrinsically linked to the human dignity of the workers, this paper’s third and final point of analysis. However, the argument of unknowingness is a fragile one: as well put by Oliver (2015), after a company has been involved with a couple scandals and nothing significant is done in order to rectify their practices, it is no longer an isolated case, but instead a business pattern. Companies must be held accountable for violations and even more for accidents that occur in sweatshops that, whether they officially know it or not, produce for them. A change in paradigm must come, one that understands that the companies actual knowledge is unimportant if there is a historic of violations and if they have not done everything in their power to seek information on the subcontractors. Much like the responsibility of commandants in International Criminal Law, companies have the obligation to know what happens under their watch, and should be held accountable for breaches to the law and to human rights. Dignity: applying the concept of decent work to Cambodia´s situation The four main violations stated above (the unlawful firing of women that appear to be pregnant, the employment of children, the over hours that far exceed the legally permitted in Cambodia and the harsh treatment of whistle blowers) are intrinsically linked to the human dignity of the workers, this paper’s third and final point of analysis. They have been tackled by the Declaration on Fundamental Principles and Rights at Work and by several ILO Conventions (namely, Conventions 29, 111 and 182), documents to which Cambodia is signatory. In this line, and as will be clear as this section unfurls, the creation of more laws should not be the focus. Instead, to ensure the worker’s dignity, the ILO must push for

178

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

more commitment from the State to inspect industries and to investigate cases of blatant violations. The most relevant violations that occur will be addressed in sequence. Women’s rights, sexual harassment and the unlawful firing of pregnant women Over the last couple of years, Cambodia has taken important steps in expanding the access to healthcare to pregnant women and on passing legislation that protected women’s rights (Cambodia, 2014). However, on the work environment, harassments are still common. Despite over 90% of the workforce on garment industries being composed by women, the supervisors and managers of the industries are generally male, and sometimes abuse of their hierarchical superiority and power to take advantage of the female workers. Those actions often go unreported, because these women would rather endure daily pain and humiliation than have their contracts not be renewed. This situation is helped by the fact that short-termed contracts are the rule in Cambodian garment factories, even though both doctrine of Labor Law and the ILO discourage them, precisely because they put the workers on a position of fragility and disadvantage in relation to the employer (HRW, 2015). Pregnant women commonly face yet another form of harassment: accounts say that, despite Cambodian Constitution forbidding the deliberate firing of women because of their pregnancy, many do not have their contracts renewed when their supervisors discover that they are expecting a child. In 2012, the ILO Report on Gender Equality in Cambodia’s Garment Sector found that almost half of the women have faced some sort of unlawful discrimination, based on age, marital status or pregnancy. To worsen the situation, the burden of proof relies, under Cambodian labor law, on the discriminated person, which poses an extremely hard and unequal barrier to these women, given that their socioeconomic conditions shrink their access to justice (ILO, 2012). Child labor Child labor is also an issue in many Cambodian factories, especially in the smaller sweatshops. Apart from often being paid below minimum wage and working the same extra-hours as other workers (see topic 2.3.3.), child workers are also deprived from an important part of their lives: basic education. Their work is so demanding that they do not have the time or the energy to enroll in a school and have a chance at making a better future for themselves.

179

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Extreme poverty and hunger force children into the workforce, and their lack of education or specialization of some sort makes it virtually impossible for them to break the cycle of exploitation (Oliver, 2015). Cambodian law bans night work for children and allows kids from 15 years old on to be employed in factories – but only after their 18th birthday are they allowed to do heavy work (HRW, 2015). The law, therefore, is in compliance with the international standards put forth by the ILO; however, the effectiveness of such laws are highly questionable. The NGO Human Rights Watch found cases of children as young as 12 yearsold being employed. Oliver (2015) points in the same direction, and presents the case of a 17 years old girl who has been doing the same job (sewing piece of cloth onto a Tshirt) for over four years. Their work journey lasted 14 hours at times. In March 2014, the Cambodian Labor Ministry imposed sanctions on six factories that actively employed children aged below 15. Many union leaders, however, were concerned that those children would be dismissed and be put into a situation of socioeconomic vulnerability (HRW, 2015). There is no simple answer to this issue, but an economic support from the government to these extremely poor families (through a monthly payment of a minimum wage for each children that enrolls in a school, for example) could be a form to deal with this grave breach to human rights. Forced overtime, production targets and bonuses Even though the law states that workers should have a maximum 8-hour long workday, what happens in reality is quite the opposite in Cambodia. They are forced by their supervisors to take several extra-hours per day on a regular basis, so they can meet a given day’s production targets (Sweatshop, 2015). At times, their supervisors will not allow them to drink water or go to the bathroom, and will constantly scream at them to work faster, something that could be understood as keeping the workers in an inhumane work environment – and even maintaining them under slave-like conditions, for their journeys are extremely long, for they do not have time for much besides their work and for they are paid very poorly (Sweatshop, 2015; HRW, 2015). Some factories go even further with their exploitation: they tell workers that a financial bonus would be in order if they meet a daily quota (a factory, according to Human Rights Watch 2015 Report, Work Faster or Get Out, offered an extra 75 cents of dollar per worker if they were able to sew 130 blouses under 10 hours). Then, this quota would be met or even surpassed, and the supervisors would not pay the promised amount to the workers. Overtime also often goes unpaid by factories, and the workers,

180

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

due to their fear of being sent home, do not blow the whistle. According to Better Factories Cambodia (HRW, 2015), 82% of factories oblige workers to perform from 3 to 5 extra-hours per day, well above the limit allowed by Cambodian Law for urgent circumstances and special cases (2 per day, or 12 per week). The treatment to whistle blowers, the right to protest and to collectively demand The final point that should be addressed regards those brave workers who do not comply with the various forms of abuse that they are subjected to and decide to speak up – and for that are severely punished. Many factories fire workers that try to organize independent unions or simply do not renew their contracts. Human Rights Watch (2015) also presents a case of a competent woman that was rapidly fired after the supervisors discovered she gave some colleagues the number of an NGO that promotes decent labor in Cambodia. The fact that every union must give their employers a list with the names of its members and leaders makes it easy for them to identify and fire “unproductive workers” – that is, the recurring argument employers use to fire union leaders without causing a lot of backlash. When firings do not happen, persecution, verbal harassment and even physical threats are used to make these employees refrain from blowing the whistle. As one should imagine, if there isn’t enough inspection to prevent blatant violations such as child labor, there certainly isn’t for the protection of whistle blowers too. Moreover, given the brutal way with which the police treated peaceful protestors in October 2014 (as mentioned before, they asked for a raise in the minimum salary), it could also be said that the state is not the biggest ally to workers who want to improve their working (Kuo, 2015). Some NGOs, indeed, try to protect these workers and give them the necessary support to blow the whistle and even initiate legal proceedings against the factories they used to work for, but the situation is still much far from ideal (Sweatshop, 2015). CONCLUSION The main conclusions that can be drawn upon this analysis are: (i) Cambodia has begun to hear the desires of its population, and recently agreed upon a much-needed raise in the minimum wage; (ii) international corporations, especially those that take part in the UN Global Compact, must include the costs of the raise in the minimum wage into their supply chain, in order for jobs not to be lost and factories not to be

181

Revista dos Estudantes de Direito da UnB closed; (iii) Action that focus solely on Cambodia would not be effective if enterprises, due to the expansion of labor rights, migrated to other Southeast Asian countries; (iv) subcontracts are one of the main sources of labor rights violations, and the main reason why big chains are hardly ever held accountable for the recurring accidents; and (v) there are plenty of binding documents that defend the dignity of the workers and that promote decent work, what lacks in Cambodia is an effective inspection system, commanded by the state, that ensures the ruling of the law in the country. In addition, for the situation in Cambodia’s textile industries to improve, actions should be taken bearing in mind the following: (i) the strengthening of the inspection system of industries, with state officials ensuring that minimum standards respected; (ii) the immediate extinction of child labor, something that can only happen through more efficient state monitoring of industries; (iii) the effective protection by Cambodia’s state of the employees that blow the whistle on the wrongdoings that happen in factories, guaranteeing their right to association, to free speech and to non-retaliation; (iv) the creation of policies on a national level to promote gender equality in order to diminish the number of cases of discrimination and harassment women face on their workplace, especially when they are pregnant; and (v) the regulation of subcontracting on an international level, making it a duty of the enterprise to approve the addition of a subcontractor to its supply chain – this way, no company would be able to say they did not know their products were being made in sweatshops that violate multiple human rights and security standards. Finally, it is important to highlight that the role played ILO is and has been of paramount importance to improve the situation in Cambodia. Many studies have been made, some of which were used in this paper, and the Organization has worked closely with Cambodian authorities in order to push for improvements on its Labor policies. This is the ideal moment, however, for a broader action, and to bring due global awareness to the issue: the press has covered many scandals on the last couple years; reality TV has denounced the critical conditions; NGOs have released comprehensive reports on the topic. Now it is time that the international community as a whole addresses this, and there is no better stage to do this at than the International Labor Conference, ILO’s most representative instance. As not only state representatives would be present, but also unions from both employers and employees, the debate would certainly prove itself to be fruitful – and, perhaps, even some statements by industrie’s representatives

182

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

defending the broadening of labor rights in Cambodia could be expected. A speech by the Secretary-General of the ILO on the topic would make the situation in Cambodia a topic of discussion that cannot be ignored – if not by the strength carried by his position, then by the action of NGOs during the Conference, as they would most likely use their pressure mechanisms, such as naming and shaming, to make the countries publicly acknowledge the many violations to labor and human rights that occur within the scope of the garment industries in Cambodia. REFERENCES Cambodia (2010). Fast Track Initiative Road Map for Reducing Maternal and Newborn Mortality (2010-2015). Ministry of Health, Royal Government of Cambodia. Available at:

http://www.unfpa.org/sowmy/resources/docs/library/R123_MOHCambodi

a_2010_Fast_TrackInitiativeRoadMapforReducingMaternalandNewbornMortality.pdf. Cheang, S. (2013). Cambodia Building Collapse: Shoe Factory Accident Kills 2, Injures 7 In Phnom Penh. The Huffington Post. May 15th, 2013. Available at: http://www.huffingtonpost.com/2013/05/15/cambodia-buildingcollapse_n_3283555.html. Human Rights Watch – HRW (2015). Work Faster or Get Out: Labor Rights Abuses in Cambodia’s Garment Industry. United States of America: March 2015. Available at: http://www.hrw.org/sites/default/files/reports/cambodia0315_ForUpload.pdf. International Labor Organization (2012) “Practical challenges for maternity protection in Cambodia”. Available at: http://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---asia/---robangkok/---srobangkok/documents/publication/wcms_203802.pdf. Kourabas, M. (2014). In Wake of New Protests, H&M and Others Commit to Living Wages

in

Cambodia.

Triple

Pundit.

September

26th,

2014.

Available

at:

http://www.triplepundit.com/2014/09/hm-others-commit-living-wages-cambodia-wakenew-protests/.

183

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Kuo, L (2015). What three Norwegian fashionistas learned after a month in a Cambodian

textile

Factory.

Quartz.

January

27th,

2015.

Available

at:

http://qz.com/333940/what-three-norwegian-fashionistas-learned-after-a-month-in-acambodian-textile-factory/. Oliver, J (2015). Fashion. Last Week Tonight with John Oliver. United States of America:

HBO

(Production).

April

26th,

2015.

Available

at:

https://www.youtube.com/watch?v=VdLf4fihP78. Pheap, A.; Consiglio, A. (2015). Head-On Crash Kills 17 Factory Workers, Driver. The Cambodia

Daily.

May

20th,

2015.

Available

at:

https://www.cambodiadaily.com/news/head-on-crash-kills-17-factory-workers-driver83963/. Sweatshop – Deadly Fashion (2015). Documentary Series. Norway: AftenPostenTV – APTV

(Production).

Available

at:

http://www.aftenposten.no/webtv/#!/video/21032/sweatshop-ep-1-how-many-will-diehere-every-year. Unknown Author (2013). Second Cambodian factory collapse injures 23 workers who produce clothes for H&M. News.Com.Au. May 20th, 2013. Available at: http://www.news.com.au/world/cambodia-factory-accident-injures-23-workers-whoproduce-clothes-for-hm/story-fndir2ev-1226647249456. * All links were last visited on June 8th, 2015.

184

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

A INTERPRETAÇÃO DADA À LEI DE DROGAS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, APLICAÇÃO E DOGMÁTICA EM PERSPECTIVA THE INTERPRETATION OF THE DRUG LAW BY THE SUPERIOR COURT OF JUSTICE, APPLICATION AND DOGMATIC IN PERSPECTIVE Thales Cassiano Silva1 Submetido(submitted): 14 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 28 de setembro de 2016 RESUMO O presente artigo pretende discutir a argumentação jurisprudencial justificadora da criminalização do porte e uso de drogas e a perspetiva de despenalização desse comportamento, abordando criticamente o perigo de agravamento de tal conduta para o tráfico. Os resultados apresentados neste trabalho são preliminares e, a partir de pesquisa jurisprudencial em Acórdãos do Superior Tribunal de Justiça, intentam esclarecer as possíveis incongruências (ou não) da aplicação do Princípio da Insignificância nos casos envolvendo o crime de tráfico de drogas no Brasil. Posteriormente à pesquisa jurisprudencial, faz-se uma análise da forma com que todos os âmbitos da Lei de Drogas diferenciam o tratamento ao traficante em relação a outros crimes, atentando-se aos efeitos humanos decorrentes da criminalização. PALAVRAS-CHAVE: Lei de Drogas; STJ; jurisprudência; aplicação. ABSTRACT This article aims to discuss the jurisprudential argument justifying the criminalization of possession and use of drugs and the prospect of legalizing this behavior, critically addressing the danger of worsening of such conduct for trafficking. The results presented are preliminary and, from jurisprudential research on judgments of the Superior Court of Justice intend to clarify the possible inconsistencies (or not) of the application of Insignificance principle in cases involving drug trafficking crime in Brazil. After the jurisprudential research, there is an analysis of the way that all drug law areas have different treatment for trafficker in relation to other crimes, paying attention to the human effects of criminalization. KEYWORDS: Drug law; STJ; jurisprudence; application. INTRODUÇÃO As discussões legislativas e jurídicas que culminaram com a nova Lei de Drogas, em 2006, trouxeram também a tentativa de se avançar em algumas situações, como a despenalização do porte de drogas (VERÍSSIMO, 2010), sendo que tal providência legislativa manteve um problema básico, qual seja: o usuário continua sob o âmbito da atuação penal. A lei ainda criou, talvez, um problema mais grave: parte dos usuários passaram a ser

1

Graduando do 7º semestre de Direito da Universidade de Brasília (UnB).

185

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

condenados como traficantes (BOITEUX, 2006), satisfazendo a uma necessidade de “justiça” dos agentes de repressão. Entretanto, a nova legislação em nada avançou no que concerne aos critérios objetivos que permitam aos agentes de repressão separar, objetivamente, os traficantes dos usuários. Sendo assim, mesmo com a despenalização, a falta de critérios manteve o usuário duplamente sob o âmbito da atuação penal: manteve, de um lado, a tipificação do porte de drogas para consumo próprio e, por outro, não retirou a probabilidade de que o usuário seja condenado como traficante, haja vista a falta de critérios que a lei apresenta. Diante deste cenário, o artigo se propõe a avaliar, preliminarmente, diferentes aspectos da nova Lei de Drogas, por exemplo: a defesa da política criminal estatal pelo Judiciário e os efeitos sociais da guerra às drogas. Diante disto, fica clara a necessidade de se fazer um percurso teórico, mas também embasado em dados empíricos, que perpasse desde o processo legislativo e atravesse a atuação prática dos operadores do sistema de justiça criminal. Como foco principal, nos propomos a fazer uma análise de como alguns princípios jurídicos são aplicados jurisprudencialmente no que se refere ao crime de porte de drogas para consumo próprio. Porém, o objetivo não é dar um conteúdo mínimo de aplicabilidade para essas normas jurídicas, e sim buscar, por meio de uma análise qualitativa, descobrir de que maneira aparecem na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Posteriormente, adentramos, brevemente, no debate mais amplo sobre os efeitos humanos da criminalização do porte de drogas, e, de que maneira essa legislação tem permitido a condenação de usuários como traficantes, observando se existe (ou não) discricionariedade na aplicação e/ou quais critérios objetivos são utilizados para que se defina tais condutas. Em relação ao método, a busca jurisprudencial se deu por meio eletrônico. Estes dados, advindos dos acórdãos do STJ, foram analisados qualitativamente. Ressalva-se, ainda, que a amostragem não é representativa, haja vista que os Arestos foram escolhidos pela importância enquanto precedente no Tribunal, ou seja, os Acórdãos que firmaram entendimento, ou que de alguma forma interferem no posicionamento da corte atualmente no que tange à Lei de Drogas. Por fim, intenta-se debater as desproporcionalidades jurídicas advindas do processo legislativo da Lei de Drogas, e também de que forma o Judiciário reafirma esta política, sendo esta análise feita por meios dos discursos oficiais apresentados nos Arestos do STJ.

186

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E O JUDICIÁRIO: FOCO NO STJ Os ministros do STJ têm seguido majoritariamente um entendimento que pode ser considerado pacífico em relação à utilização do princípio da insignificância para crimes de perigo abstrato, como é o caso do tráfico de drogas ou do porte para consumo próprio. Este entendimento pode ser sintetizado no sentido de não ser possível a aplicação do princípio da insignificância aos casos envolvendo crimes de perigo abstrato, sendo que a estes é desnecessária a demonstração de perigo das condutas2. Dessa forma, o porte de uma quantidade mínima de drogas não invalidaria a persecução penal, visto que o bem jurídico tutelado já teria sido “atingido” pela conduta, ou seja, a saúde pública de alguma maneira seria prejudicada pela conduta de portar drogas. Entretanto, o que se vê na jurisprudência é uma discussão política acerca da criminalização de determinadas condutas, em outras palavras, pouco há de argumentação dogmática, o que há de fato é uma reafirmação constante de política criminal. Nota-se que a argumentação encontrada nos acórdãos do STJ é consequencialista, no sentido de se tentar proteger a criminalização primária, ou seja, na defesa das escolhas políticas do legislador. Diante disto, as argumentações jurídicas baseadas em princípios ou em quesitos da dogmática penal são colocadas de lado em nome da política de repressão às drogas. Esta afirmação fica muito clara em alguns Arestos, como no que segue: Quanto ao princípio da insignificância, a sua aplicação, em casos como este, seria o mesmo que tornar, ex ante, letra morta o disposto no art. 16, ou ainda, seria uma revogação juridicamente desamparada. Julgar não é, data venia, legislar. (REsp 290447)

Os Acórdãos se repetem com o mesmo argumento, excluindo de pronto a aplicação do princípio da insignificância, sem ao menos discuti-lo. Parece que tal fato já foi discutido e não merece mais delongas, mas não é o que se vê na jurisprudência do STJ. O afastamento deste princípio se deu pelo argumento das consequências indesejadas, enquanto política de Estado, ou seja, a aplicação causaria a liberação do consumo de drogas. O trecho a seguir expõe uma relevante argumentação: Não merece prosperar a tese sustentada pela defesa no sentido de que a pequena porção apreendida com o paciente – 9 g (nove gramas) de maconha – ensejaria a atipicidade da conduta ao afastar a ofensa à coletividade, 2

A pequena quantidade de substância entorpecente, por ser característica própria do tipo de posse de drogas para uso próprio (art. 28 da Lei 11.343/06), não afasta a tipicidade da conduta. Precedentes: HC 158.955/RS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 5ª Turma, julgado em 17/05/201. 187

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

primeiro porque o delito previsto no art. 28 da Lei 11.343/06 trata-se de crime de perigo abstrato e, além disso, a reduzida quantidade da droga é da própria natureza do crime de porte de entorpecentes para uso próprio. 2. Ainda no âmbito da ínfima quantidade de substâncias estupefacientes, a jurisprudência desta Corte de Justiça firmou entendimento no sentido de ser inviável o reconhecimento da atipicidade material da conduta também pela aplicação do princípio da insignificância no contexto dos crimes de entorpecentes. 3. Ordem denegada. (HC 174.361/RS, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 03/02/2011)

Situação relevante é o reconhecimento de que o tipo penal de porte para consumo está a mercê de que não se apliquem determinados princípios para que haja os devidos efeitos da política criminal. E, então, a argumentação da jurisprudência afasta sua aplicação, como no Acórdão a seguir: Como se vê, conceder a ordem no presente caso, considerando a conduta do paciente seja atípica, significaria negar vigência ao art. 16, da Lei 6.368/76, descriminalizando conduta típica.(RHC 9483 – Min. Jorge Scartezzini)

Entretanto, em nenhum momento se discute que, se a persecução penal está condicionada a não aplicação de princípios, este tipo estaria enviesado de atipicidade nata – advinda do próprio processo legislativo. Ora, se é concebido dentro do próprio ordenamento um princípio3, e este deve ser afastado para que haja a devida persecução a uma conduta criada pelo legislador, tem-se que o Judiciário, em especial o STJ, reafirma que mesmo a conduta sendo atípica, esta ainda é de interesse do Estado. Desse modo, é interessante notar que há, nessas decisões, um desvalor prévio à conduta do usuário de drogas, não individualmente, mas em relação ao próprio tipo penal, constatando-se assim que se trata claramente de um tipo de autor (GRECO, 2004), ou seja, o fato punível é quase que irrelevante e a demonstração da sua lesividade é dada preliminarmente, o que demonstra que essa conduta é uma daquelas que são inimigas de uma paz social almejada, e por isso merece ser punida. Consumo de drogas e autolesão A jurisprudência do STJ não reconhece que a conduta do uso de drogas seja autolesiva, e não podia ser diferente, visto que a aplicação do Direito Penal está condicionada a condutas que atinjam bens jurídicos essenciais à organização social, isto é, o poder criminalizante está

188

3 O princípio da insignificância não é positivado no ordenamento jurídico brasileiro, mas é aplicado para diversos tipos penais. Assim, deve-se admitir que este princípio integra a lógica argumentativa do Direito Penal brasileiro, mesmo que não reconhecido pelo legislador.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

adstrito ao princípio da subsidiariedade – ultimo ratio (ZAFFARONI et al, 2006, p. 8). Este norteia e dá um indicativo mínimo de quais condutas podem ser objeto de persecução penal, e a autolesão não pode, como pressuposto básico, ser criminalizada, em razão das lesões não excederem a órbita de liberdade do próprio agente. Isto posto, caso houvesse qualquer alusão ao reconhecimento da autolesão na conduta de consumir drogas, não seria possível a utilização de nenhum argumento jurídico para manter a criminalização. Daí nasce a resposta jurídica do legislador que, com o tipo penal, visa proteger a “saúde pública” e desestimular o consumo de drogas. A discussão sobre o bem jurídico tutelado na Lei de Drogas será alvo de debate posterior, porém, faz-se necessário entender de que forma o usuário é instrumentalizado pelo sistema para que se possa punir uma conduta autolesiva. Como visto acima, um dos argumentos do legislador é desestimular o consumo de drogas, o que de pronto deve ser rechaçado pelo sistema penal, ora, um agente não pode ser criminalizado para que a conduta do outro ou a dele mesmo seja desencorajada, a não ser que essa conduta atinja bens jurídicos essenciais tais como a vida, a integridade física etc. Caso contrário, se está diante de um utilitarismo penal (KANT, Immanuel apud ROXIN, 1993, p. 24), o que mais uma vez reforça que não existe uma conduta perseguida, e, sim, um autor determinável (KANT, Immanuel apud ROXIN, 1993, p. 2-4). Diante disso, talvez, mais importante que o legislador justificar a escolha da política criminal com o argumento acima citado, é que este foi aceito pelo STF, depois seguido pelo STJ, ipsi literis: Consoante entendimento já preconizado pelo STF em sede de controle de constitucionalidade pela via incidental, o artigo 28 da Lei de Drogas visa a resguardar bem jurídico correspondente à saúde pública, porquanto os objetivos visados pelo legislador, ao impor as diversas medidas alternativas à constrição da liberdade àquele que porta quantidade para consumo próprio, prestam-se ao desestímulo à circulação ilícita de entorpecentes por meio do usuário (consumidor final), atingindo, assim, a propulsora demanda do mercado proscrito. (AREsp 641071 SC 2015/0004571-1)

Convém observar que, na tentativa de demonstrar que a conduta de consumir drogas gera efeitos a terceiros – a fim de justificar minimamente a tipificação –, a jurisprudência ratifica que o consumidor de drogas é utilizado pelo sistema como um exemplo de agente reprovável pelo Estado, isto é, a apenação não é por lesar a saúde pública, como em tese deveria ser. Por conseguinte, nota-se, mais uma vez, um desvalor em relação ao usuário, e não

189

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

ao fato praticado por este, o que diverge, ou ao menos deveria, de um Estado Democrático, em que o Direito Penal deve punir, quando necessário, o fato (ZAFFARONI et al, 2002). Ainda que o usuário seja o fomentador do tráfico – o que carece de demonstrabilidade (BOTTINI, 2015) –, não haveria culpabilidade alguma do usuário em relação ao traficante, isto por uma razão bem simples: mesmo que o consumidor possibilite a conduta do traficante, aquele não tem a mínima condição de controlar os atos praticados por este, sendo o entendimento diferente, recorrer-se-ia diretamente a um tipo de imputação objetiva (MARONNA, 2012). Apesar de todo o exposto, o problema da criminalização do porte de drogas para consumo não está na interpretação da lei pela jurisprudência. Nota-se que as justificativas dogmáticas estão recobertas de falhas técnicas desde o processo de justificação legislativa desse crime. Na verdade, a proteção de bens jurídicos transindividuais é recente na doutrina penal, e, talvez por isso, apareçam tantos absurdos quanto à criação de novos bens jurídicos a serem tutelados, como a saúde pública, o que deturpa toda a ordem jurídica penal, relativizando-se, inclusive, garantias constitucionais. PROTEÇÃO À SAÚDE PÚBLICA Proteger bens jurídicos coletivos é imprescindível para a moderna dogmática penal, os quais não devem/podem ser totalmente rejeitados, como é feito por parte da doutrina (GRECO, 2004). No entanto, há de se tomar o cuidado, aprioristicamente, ao debater critérios materiais que possibilitem a separação de bens genuinamente coletivos daqueles que são utilizados como rota de fuga pelo legislador para converter crimes de perigo em crimes de lesão (MACHADO; MOURA, 2011, p. 8). Contudo, torna-se claro que a diferenciação material de bens coletivos verdadeiros e falsos não é o objetivo deste artigo. De todo modo, a legislação de drogas defende um bem jurídico coletivo, qual seja: a saúde pública, que é um exemplo de bem jurídico coletivo falso (GRECO, 2004, p. 115). Assim sendo, somente esse bem jurídico será analisado materialmente para que fique demonstrado que é uma invenção legislativa. Não há dúvida razoável quanto à necessidade de se tutelar bens supraindividuais, como o meio ambiente e a biossegurança, sendo que o principal eixo definidor destes bens é a indistributividade (GRECO, 2004, p. 107) , ou seja, o número de sujeitos passivos da conduta de determinado agente deve ser indeterminável, o que deve ser o primeiro parâmetro para a aferição da coletividade de um bem jurídico a ser tutelado.

190

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Por conseguinte, a saúde pública não passaria nem mesmo pelo critério utilizado para se aferir a coletividade, até porque é impossível a demonstração de que ela é objeto a ser gozado de maneira conjunta e indivisível por uma coletividade indeterminada. Observa-se que o legislador protege a saúde individual exaustivamente na legislação penal, o que se faz, indiretamente, quando protege a vida ou, também, quando tutela a integridade física. Não obstante, o legislador quando protege a saúde pública tenta dar coletividade a um bem que só pode ser disfrutado individualmente. Outros critérios são promissores na aferição da coletividade real de um bem jurídico, como a não exclusão no uso (Nicht-Ausschliessbarkeit) e a não rivalidade (Nicht-Rivalität) no consumo lícito (não desgaste) (MACHADO; MOURA, 2011, p. 5), mas tal análise fugiria da proposta deste artigo, até porque a saúde pública não prescinde de tal aprofundamento, visto que não passa nem pelo primeiro critério, que é a aferição da coletividade. Nesta mesma linha interpretiva, entende-se que não há como o Estado tipificar condutas para proteger uma suposta saúde pública coletiva, sendo que a única lesão que se nota no consumo de drogas é a quem as consome, o que nos leva ao problema central deste artigo: o usso da discricionariedade na aplicação da Lei de Drogas pelos operadores do Direito leva à criminalização e à consequente rotulação de usuários como traficantes e, orquestradamente, à política criminal explicitamente proibicionista. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todo o exposto, conclui-se que há, no âmbito da atuação penal, no que concerne à nova Lei de Drogas, um grau de discricionariedade, haja vista, por exemplo, que o próprio legislador conferiu ao juiz o dever de diferenciar as condutas de portar para consumir ou para traficar, e o pior, sem dar a eles critérios objetivos para que realizem tal diferenciação. Porém, ainda que existissem tais critérios, nem sempre o acusado tem contato com um juiz de imediato, o que permite, em última instância, que usuários fiquem meses presos preventivamente. Somado a estes fatos, nota-se que os tribunais de precedentes (STJ e STF) agem, também, como agentes legitimados de repressão, mesmo quando garantias constitucionais são relativizadas. Além disto, há de se atentar para o fato de as decisões modulam os efeitos indesejados, reafirmando a política de repressão às drogas, e para tanto a eficácia de alguns princípios é afastada, em especial, como apresentado ao longo do artigo: o princípio da insignificância.

191

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

O material empírico recolhido, principalmente por meio de pesquisa jurisprudencial, é suficiente no que tange às considerações preliminares a que o texto se propôs, mas, evidentemente, não podem oferecer critérios suficientes para analisar todo sistema de repressão e combate às drogas. Fato que fica claro quando se fez necessário identificar de que maneira os processos chegam ao Judiciário, por exemplo: como discutido anteriormente, como é realizada a filtragem dos suspeitos/acusados pelos agentes legitimados de repressão. Entretanto, é importante, ainda, notar que a Lei de Drogas de 2006 apresenta, por si só, desproporcionalidades jurídicas em todos os âmbitos, tanto de Direito material quanto processual, e estas desproporcionalidades são reforçadas ou legitimadas pelos tribunais de precedentes. Em contrapartida, o juízo de primeira instância legitima o depoimento do policial condutor do flagrante como prova fundamental para as condenações. O que demonstra, de fato, que a política encarceradora passa por todos os âmbitos de atuação dos agentes do sistema de justiça criminal. Por fim, considera-se que os objetivos traçados na proposta do artigo foram sensivelmente atingidos, haja vista que por meio da análise qualitativa dos Acórdãos do STJ foi possível observar que a problemática da seletividade do sistema de justiça criminal é legitimada de alguma maneira pelo Judiciário. O texto ainda foi capaz de demonstrar como são os efeitos desta política da perspectiva dos efeitos humanos da política de drogas brasileira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADARÓ, Gustavo. H. Processo Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. 944p. BOITEUX, Luciana.; PÁDUA, João. P. A desproporcionalidade da Lei de Drogas: os custos humanos e econômicos da atual política no Brasil. Rio de Janeiro: TNI, Rio de Janeiro, ago. 2013. Disponível em: < http://www.wola.org/sites/default/files/Drug%20Policy/Artigo%20desproporcionalidade%20 Brasil_rev.pdf>. Acesso em: 13 set. 2016. ________. A nova Lei Antidrogas e o aumento da pena do delito de tráfico de entorpecentes. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), ano 14. n. 167, p. 8-9, out. Disponível em: 2006. . Acesso em: 5 jun. 2015. ________. Controle Penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo no sistema penal e na sociedade. 2006. 273 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

192

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

________. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. In: SHECAIRA, S. (Org.). Drogas: uma nova perspectiva. (pp. 83104). São Paulo: IBCCRIM, 2014, p. 83-104. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crime de porte de drogas para uso próprio: com a palavra, o Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Viva Rio, 2015. 38p. BRASIL. Lei 11.343, 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2016. CARVALHO, Salo de. Política de Drogas: mudanças e paradigmas (nas trincheiras de uma política criminal com derramamento de sangue: depoimento sobre os danos diretos e colaterais provocados pela guerra às drogas). Revista EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 63 (Edição Especial), p. 46-69, out. – dez. 2013. ________. Política de guerra às drogas na América Latina entre o Direito Penal do inimigo e o estado de exceção permanente. Revista Crítica Jurídica, Porto Alegre, nº 25, p. 253-267, jul. 2006. FLAUZINA, Ana. L. Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, RJ, 2008. 186p. GRECO, Luís. “Princípio da ofensividade” e crimes de perigo abstrato: uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito. Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 12, n. 49, p. 89-93, jul.-ago. 2004. GRECO, Luís. Tipos de autor e Lei de Tóxicos, ou: interpretando democraticamente: uma lei autoritária. Revista IBCCRIM, São Paulo, n. 43, abr./jun. 2003. P. 2-4. Disponível em: . Acesso em: 13 set. 2016. JESUS, Maria. G. G. de; OI, Amanda Hildebrando; ROCHA, Thiago Thadeu da; LAGATTA, Pedro. Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. São Paulo, 2013. [recurso eletrônico] 154 p. p. 35. Disponivel em: < http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/23/Documentos>. Acesso em: 10 set. 2015. LEMGRUBER, Juliana. et al. Usos e abusos da prisão provisoria no Rio de Janeiro. Avaliação do impacto da Lei 12.403/2011. Rio de Janeiro: ARP/CESeC/Ucam, 2013. Rio de Janeiro, 2013. 52 f. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2007. MACHADO, Fábio. G. de P; MOURA, Bruno. Perspectivas políticos-criminais e dogmáticos do Direito Penal no contexto da sociedade de riscos. São Paulo: Revista dos Tribunais online de Ciências Penais, ano 8, v. 15 jul.-dez. 2011. MARONNA, Cristiano. Ávila. Drogas e consumo pessoal: a ilegitimidade da intervenção penal. Boletim Ibccrim, São Paulo, v. 20, p. 4-6, out. 2012. Informativo: Greco, Luís. “Princípio da ofensividade”... cit., p. 90, p. 112 e ss. 193

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

REZENDE, Beatriz. V. A ilusão do proibicionismo: estudo sobre a criminalização secundária do tráfico de drogas no Distrito Federal. 2011. 148 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de Brasília, Brasília, 2011. ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de Direito Penal. 2. ed. Lisboa: Univ. Direito e Ciência Jurídica, 1993. SILVA, Gilvan. G. A lógica da polícia militar do distrito federal na construção do suspeito. 2009. 187 f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade de Brasília, Brasília, 2009. VERÍSSIMO, Marcos. A nova lei drogas e seus dilemas. Apontamentos para o estudo das de desigualdade presentes nos interstícios do ordenamento jurídico-penal brasileiro. Civitas, Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 10, n. 2, p. 330-344, maio.-ago. 2010. Disponível em: . Acesso em: 5 jun. 2015. ZAFFARONI, Eugenio. R; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. ZAFFARONI, Eugenio. R; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal brasileiro: primeiro volume. Teoria Geral do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

194

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

NANOTECNOLOGIA, SAÚDE E SEGURANÇA NO TRABALHO: ESPAÇO PARA REGULAÇÃO Janaína Vieira de Castro1 Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto2 Submetido(submitted): 13 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 20 de outubro de 2016 RESUMO A crescente utilização da nanotecnologia (conjunto de técnicas para manipulação da matéria em escala nanométrica) não tem sido acompanhada de investimentos em estudos sobre os impactos da sua utilização na saúde das pessoas. Os elementos químicos, quando utilizados em nanoescala, podem provocar danos mais severos e até desconhecidos ao ser humano e ao meio ambiente e, consequentemente, ao trabalhador e ao meio ambiente do trabalho. Considerando a ausência de regulação da nanotecnologia no Brasil, levantamos a hipótese de que haveria altos índices de judicialidade na Justiça do Trabalho neste tocante. Não obstante, a pesquisa realizada nos vinte e quatro Tribunais Regionais do Trabalho e no Tribunal Superior do Trabalho, não confirmou a hipótese inicial. Passou-se, então, a investigar o atual estágio da regulação da nanotecnologia no país em matéria de saúde e segurança do trabalhador, em cotejo com a bibliografia levantada sobre os processos de regulação do tema nos Estados Unidos da América e na Europa, objetivando identificar os modelos de regulação adotados no exterior e as suas possíveis etapas de implementação, a fim de correlacioná-los com a realidade brasileira. Os resultados obtidos a partir desse estudo comparado demonstraram que o modelo regulatório brasileiro caminha em paralelo com o modelo europeu (modelo piramidal a partir da cooperação entre setor público e privado com transição regulatória de soft law para hard law), com destaque para o caso singular do Direito do Trabalho, o qual já presenciou mecanismos de hard law destinados à solução de conflitos que envolvam os trabalhadores e a nanotecnologia. PALAVRAS-CHAVE: nanotecnologia; regulação; saúde e segurança do trabalhador; convenção e acordo coletivo de trabalho; Direito do Trabalho. ABSTRACT The growing utilization of nanotechnology (set of techniques to manipulate matters in nanoscale) has not been accompanied by investments in studies about the impacts of nanotechnology’s use in people’s health. The chemical elements, when used in nanoscale, may provoke several damages, and even unkown damages, to the human being and to the environment and, thereafter, cause damage to the worker and to the

1 Doutoranda e Mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP). Pesquisadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Direito Sanitário (CEPEDISA), da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e Faculdade de Direito da USP parte da Rede Observatório de Recursos Humanos em Saúde do Brasil, da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e do Ministério da Saúde, no projeto de pesquisa sobre a regulação dos cursos de graduação na área da saúde, em parceria com a Organização Panamericana de Saúde (OPAS) e Organização Mundial da Saúde (OMS). 2 Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP. Mestranda em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FADUSP). Pesquisadora na Escola de Direito de São Paulo-FGV. Bolsista de Treinamento Técnico nível III da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

195

Revista dos Estudantes de Direito da UnB work environment. Considering the absence of nanotechnology’s regulation in Brazil, we question the high levels of judicialization in brazilian’s Labour Justice on this point. Despite of, the research made in the 24 Regionals Labour Courts (TRT) and in the Superior Labour Court (TST) did not confirm the question. Then, we started investigating the actual stage of regulation of nanotechnology in worker’s health and security comparing it with America’s and Europe’s regulation processes, looking for identificating the models of regulation adopted abroad and the possible ways of implementing it. The results show that the brazilian regulamental model is similar to the european model (pyramidal model based on the cooperation between public and private sector with regulatory transition from soft law to hard law), featuring the singular case of the Labour Justice, wich has had hard law mechanisms destined to the resolution of conflicts that involve workers and nanotechnology. KEYWORDS: nanotechnology; regulation; worker’s health and security; convention and collective work agreement; Labour Justice. INTRODUÇÃO A nanotecnologia3, conjunto de técnicas utilizadas para manipular a matéria em escala manométrica, empregada em diversos setores da indústria e de serviços, é apontada como uma verdadeira revolução tecnológica. Nada obstante, de acordo com o debate travado no Fórum Social Mundial 20154, em que pese as altas cifras envolvidas nas pesquisas em nanotecnologia, menos de 4% do montante de investimentos é direcionado a estudos que busquem analisar os impactos dessa inovação tecnologia na saúde das pessoas. Sabe-se que os elementos químicos – ainda que sejam conhecidos pela ciência –, quando estão em escala nanométrica, podem se comportar de maneira distinta, provocando consequências mais severas, perigosas e até mesmo desconhecidas ao ser humano e ao meio ambiente5. De acordo com a Agência Europeia para a Segurança e Saúde no Trabalho (EUOSHA) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), as nanotecnologias representam um dos principais riscos emergentes no mundo do trabalho. Apesar de sua



3 Os termos com prefixo “nano” relacionados à nanotecnologia, tais como nanomateriais, nanoestruturas, nano-objetos e nanoescala, recebem definições variadas. Embora não exista uma definição obrigatória para os termos com esse prefixo, as várias definições propostas até o momento, apenas identificam uma variação métrica entre 1 e 100 nanometros. 4 FUNDACENTRO. Nanotecnologia e os trabalhadores: reflexões, lutas e perspectivas. 2015. Disponível em: http://www.fundacentro.gov.br/noticias/detalhe-da-noticia/2015/3/nanotecnologia-e-ostrabalhadores-reflexoes-lutas-e-perspectivas. Acesso em: 13 de setembro de 2016. 5 MURASHOV, Vladimir; SCHULTE, Paul; GERACI, Charles e HOWARD, John. Regulatory Approaches to Worker Protection in Nanotechnology Industry in the USA and European Union. Industrial Health, 49, 280 - 296, 2011. Disponível em: https://www.jstage.jst.go.jp. Acesso em: 27 de junho de 2016.

196

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

importância, os riscos potenciais destas tecnologias para a segurança e saúde dos trabalhadores ainda são relativamente desconhecidos. Alguns autores vão além ao afirmarem que a nanotecnologia terá um impacto significativo na distribuição das vagas de emprego entre os setores, na divisão internacional do trabalho e nas qualificações exigidas para cada tipo emprego, o que causará efeitos desestabilizadores no mercado de trabalho nacional e internacional6. Nessa perspectiva, a questão do emprego ainda não consta na agenda das implicações sociais da nanotecnologia, os trabalhos desenvolvidos com o uso de nanotecnologia ainda não apareceram nas estatísticas e no caso brasileiro ainda não constam, por exemplo, do Código Brasileiro de Ocupações (CBO). METODOLOGIA Instigadas pelas ameaças e promessas dessa nova tecnologia, resolvemos investigar como ela estava sendo tratada no âmbito do Direito do Trabalho no Brasil. Para os fins dessa pesquisa, o recorte adotado será a regulação da nanotecnologia em matéria de saúde e segurança do trabalho, no âmbito da Justiça do Trabalho brasileira. Constatou-se que no Brasil, a nanotecnologia não é regulada – nos referimos à regulação tradicional, ou seja, não existe legislação sobre o assunto. A ausência desse tipo de regulação estatal nos levou a cogitar que a judicialidade em torno do assunto na Justiça do Trabalho poderia ser elevada. Para verificar essa hipótese, realizamos pesquisa jurisprudencial sobre o tema em todos os vinte e quatro Tribunais Regionais do Trabalho do país e no Tribunal Superior do Trabalho. Para tanto, foram utilizados os operadores booleanos disponíveis nos sítios eletrônicos de cada TRT. As palavras-chave de busca foram “nanotecnologia” e “nano”. Contrariando suposições iniciais da investigação, o resultado da pesquisa jurisprudencial indicou a existência de apenas dois dissídios coletivos de natureza econômica, no Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, cuja discussão envolvia o conteúdo de cláusulas de acordos coletivos de trabalho sobre nanotecnologia, saúde e segurança no ambiente de trabalho.

6

No mesmo sentido: INVERNIZZI, Noela; FOLADORI, Guillermo. Nanotechnology Implications for Labor. 7 Nanotech. L. & Bus. 68, 2010. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016.

197

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Neste ponto, importante fazer a seguinte ressalva: considerando que as duas ações encontradas foram ajuizadas pelo mesmo sindicato, entendemos que, apesar de termos encontrado indícios da atuação sindical frente à ausência de regulação pelo Estado, trata-se de uma atuação isolada – o que revela a inércia dos demais sindicatos com relação à proteção dos trabalhadores, em âmbito nacional, frente aos possíveis riscos trazidos pela nanotecnologia7. Considerando a presença da nanotecnologia em vários setores produtivos, esse dado por si só dá indícios de que a atuação sindical é insuficiente em matéria de saúde e segurança do trabalho. A partir da constatação de que a judicialidade em torno do tema não é elevada e da inércia da atuação sindical em âmbito nacional, passamos a questionar qual seria então o atual estágio de desenvolvimento do processo regulatório da nanotecnologia no país, especialmente no que diz respeito à regulação dos riscos impostos à saúde e segurança dos trabalhadores pelo uso da nanotecnologia. Foi a partir dessa inquietação que procuramos investigar o estágio em que se encontra o processo de regulação da nanotecnologia no Brasil. Optou-se por adotar como referencial, o modelo de regulação estrangeiro, haja vista a decisão do governo brasileiro, por intermédio do comitê interministerial de nanotecnologia, de integrar o projeto europeu de regulação internacional da nanotecnologia – NanoReg8. Assim, o estudo comparado se apresentou como referencial adequado, posto que os modelos regulatórios estrangeiros poderão nortear o modelo que aqui se pretende adotar. Foi realizado um levantamento bibliográfico sobre os processos de regulação da nanotecnologia, especialmente nos Estados Unidos da América e na Europa, com o objetivo de analisar os modelos de regulação da nanotecnologia adotados no exterior e 7

Para avaliar efetivamente a participação sindical no debate sobre a nanotecnologia, haveria necessidade de avaliar quanti e qualitativamente todos os instrumentos normativos celebrados por todos os sindicatos existentes em âmbito nacional, o que foge do escopo dessa pesquisa. Por isso, afirmamos que há indicativos de que a participação sindical é insuficiente. 8 “O Projeto NANoREG trata da regulação internacional em nanotecnologia. A iniciativa é proposta pela União Europeia e Coordenada pelo Ministério de Infraestrutura e Meio Ambiente da Holanda. O Projeto NANoREG tem como objetivos: 1. Disponibilizar aos legisladores um conjunto de ferramentas de avaliação de risco e instrumentos de tomada de decisão a curto e médio prazo, através da análise de dados e realização de avaliação de risco, incluindo a exposição, monitoramento e controle, para um número selecionado de nanomateriais já utilizados em produtos; 2. Desenvolver, a longo prazo, novas estratégias de ensaio adaptadas a um elevado número de nanomateriais em que muitos fatores podem afetar o seu impacto ambiental e de saúde; 3. Estabelecer estreita colaboração entre governos e indústria no que diz respeito ao conhecimento necessário para a gestão adequada dos riscos, e criar a base para abordagens comuns, conjuntos de dados mutuamente aceitáveis e práticas de gestão de risco”. MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INVOAÇÕES E COMUNICAÇÃO. Projeto NANoREG. Disponível em:http://www.mcti.gov.br/projeto-nanoreg. Acesso em: 25 de julho de 2016.

198

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

as suas possíveis etapas de implementação, a fim de correlacioná-los com a realidade brasileira. OS MODELOS ESTRANGEIROS DE REGULAÇÃO DA NANOTECNOLOGIA A doutrina estrangeira usa os conceitos de soft e hard law para definir os modelos de regulação da nanotecnologia. De acordo com a referida doutrina9, a nanotecnologia é atualmente regulada por institutos de soft law e em muitos casos, a partir da atuação conjunta dos setores público e privado10. Os instrumentos e mecanismos de soft law pertencem a um universo jurídico bastante fluido, que se reflete não apenas em sua normatividade, mas também em sua aplicabilidade e cogência. Os instrumentos de soft law (resoluções, diretivas, declarações, memorandos de entendimento e códigos de conduta) são mais brandos que os de hard law (normas jurídicas – direito positivado com obrigações claras e definidas), porque, via de regra, são desprovidos de coercitividade e não são vinculantes. Embora a regulação da nanotecnologia esteja em discussão em muitos países, ela ainda não se encontra efetivamente regulada por meio de normas jurídicas. Não existe uma legislação sobre o tema (hard law). Abbott et al. examinaram onze modelos regulatórios de soft law no campo da nanotecnologia, nos Estados Unidos da América e na Europa, e constataram que os mecanismos de regulação existentes têm características variadas: muitos incorporam compromissos superficiais, poucos promovem ativamente a sua implementação e nenhum se compromete a monitorar ou propõe incentivos para o seu cumprimento11. Muitos modelos regulatórios foram desenvolvidos na tentativa de auxiliar a ação combinada dos setores público e privado no campo da nanotecnologia12. O trabalho de Ayres e Braithwaite propõe uma pirâmide regulatória, que sugere uma simbiose entre a regulação privada e pública. Esse modelo piramidal propõe uma sequência de

9 ABBOTT, Kenneth W.; MARCHANT, Gary E. Marchant, CORLEY, Elizabeth A., Soft Law Oversight Mechanisms for nanotechnology, 52 Jurimetrics J. 279 – 312. 2012. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. 10 SNIR. Reut.Trends in Global Nanotechnology Regulation: the public-private interplay. 17 Vand. J. Ent. & Tec. L. 107 2014 - 2015. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2017. 11 ABBOTT, Kenneth W.; MARCHANT, Gary E. Marchant, CORLEY, Elizabeth A., Soft Law Oversight Mechanisms for nanotechnology, 52 Jurimetrics J. 279 – 312. 2012. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. 12 ABBOTT, Kenneth W.; MARCHANT, Gary E. Marchant, CORLEY, Elizabeth A., Soft Law Oversight Mechanisms for nanotechnology, 52 Jurimetrics J. 279 – 312. 2012. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016.

199

Revista dos Estudantes de Direito da UnB estratégias regulatórias que iniciam com a autorregulação na base da pirâmide, passando pela autorregulação supervisionada e obrigatória e por outras formas de interação no meio e evoluem até atingir o formato de legislação no topo13. Marchant et al. utilizaram esse mesmo modelo piramidal e estenderam essa estrutura no tempo, categorizando essas estratégias como sequenciais e encadeadas. Eles propõem que no futuro próximo, a regulação deveria concentrar esforços em produzir e coletar informações relevantes sobre o tema e com o passar do tempo, construir um modelo de regulamentação mais rígido. Sugerem, portanto, um processo de transição de soft para hard law14. Justamente por ter sua exigibilidade reduzida, os instrumentos de soft law são, muitas vezes, vistos como mecanismos para preenchimento de lacunas temporárias, os quais devem ser substituídos por mecanismos de regulação tradicionais (hard law ). No caso da nanotecnologia, muitos estudiosos reconhecem que, a velocidade e a complexidade com que ela se desenvolve excede a capacidade das regulações tradicionais15. Em razão de algumas de suas características únicas, incluindo a diversidade e a complexidade dos materiais nanotecnológicos, o ritmo da inovação e a informação assimétrica que produz, a regulação privada (soft law) continuarão a desempenhar um papel importante. Assim, por se tratar de uma realidade em construção, para a qual a regulação nos moldes tradicionais – a despeito de ser considerada fundamental, dificilmente será capaz de atuar de maneira eficiente e rápida, a soft law desponta como um complemento necessário. A análise empírica realizada por SNIR sugere (i) que o processo de regulação da nanotecnologia é marcado pela participação do setor privado, enquanto o poder público ocupa papel secundário e que (ii) em condições de incerteza científica ou de ausência de conhecimento técnico e científico suficientes para fundamentar uma regulação baseada no risco, o poder público tende a deixar um vazio regulatório16.

13 AYRES, Ian; BRAITHWAIT, John, Responsive regulations: Transcending the Deregulation Debate. Oxford Univ, Press 1992. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. 14 MARCHANT, Gary E. et al. Risk Managemet Principles for nanotechnologie, 2 NanoEthics, 43, 51, 2008. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. 15 ABBOTT, Kenneth W.; MARCHANT, Gary E. Marchant, CORLEY, Elizabeth A., Soft Law Oversight Mechanisms for nanotechnology, 52 Jurimetrics J. 279 – 312. 2012. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. 16 SNIR. Reut.Trends in Global Nanotechnology Regulation: the public-private interplay. 17 Vand. J. Ent. & Tec. L. 107 2014 - 2015. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016.

200

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

O referido autor conclui que, diante da ausência de regulação, as empresas desenvolvem estratégias internas de autogestão dos riscos, as quais acabarão servindo de modelo ou influenciarão a regulação a ser implementada pelo setor público. Assim, a diferença entre as abordagens adotadas pelos setores público e privado é notável. De acordo com a sua pesquisa, o setor privado teve atitude proativa em relação à regulação da nanotecnologia; enquanto os entes públicos ficaram na retaguarda e concentraram seus esforços em compreender a natureza e as limitações da nanotecnologia, por meio da coleta de dados, classificação das substâncias e materiais, bem como sua quantificação, antes de tomar qualquer iniciativa. Por isso, a regulação privada pode ser efetiva não apenas durante períodos de incertezas, nos quais os riscos não foram ainda totalmente delimitados e o tema não está suficientemente amadurecido pelo setor público, mas também durante a fase de transição de soft para hard law. Historicamente, o caminho regulatório percorrido em outras áreas mostra que a regulação via hard law em algum momento acaba atendendo e alcançando as necessidades práticas que envolvem o cotidiano das novas tecnologias. Isso porque, à medida que a área de conhecimento se desenvolve e amadurece, a respectiva regulação também toma corpo e se torna mais detalhada. Considerando que os estudos de regulação da nanotecnologia tendem a se basear em redes formadas internacionalmente – o que inclusive é desejável, tendo em vista a capacidade econômica dos países desenvolvidos financiarem pesquisas; que o setor público participa da regulação do tema de forma coadjuvante e que o caminho da regulação da nanotecnologia tem sido traçado pelas próprias empresas que aplicam essa tecnologia –, é momento de se questionar quem são os principais atores de processo, em que nível eles atuam, em que países as decisões são tomadas e principalmente quais são os interesses que dirigem a regulação do tema17. É importante ressalvar que esse modelo de atuação combinada deve ser analisado criticamente, pois o fato do setor privado ter assumido as rédeas da regulação no exterior e o fato desse modelo provavelmente se reproduzir em território nacional, é significativo. Devemos, portanto, questionar o que está nas entrelinhas dessa iniciativa.



17 SNIR. Reut.Trends in Global Nanotechnology Regulation: the public-private interplay. 17 Vand. J. Ent. & Tec. L. 107 2014 - 2015. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016.

201

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Algumas empresas se anteciparam na gestão dos riscos, na tentativa de evitar a imposição de leis mais rígidas e de direcionar o processo regulatório a partir das práticas por elas já adotadas internamente18. Assim, a ação conjunta pode, de um lado, ser benéfica para o setor público – sob o ponto de vista dos estudos e pesquisas que o setor privado pode financiar; mas, por outro lado, os consensos adotados podem privilegiar os interesses privados em detrimento do público. O que não é recomendável, especialmente tratando-se de saúde e segurança. Essa revisão bibliográfica nos permitiu concluir que a literatura especializada propõe a regulação da nanotecnologia pelo viés da soft/hard law e, para tanto, recomenda a adoção de um processo de transição de soft para hard law. Ocorre que a maioria da doutrina não se refere à questão específica da saúde e da segurança dos trabalhadores no ambiente de trabalho, cujo estudo ainda é incipiente. Essa tendência foi verificada tão somente com relação à regulação de eventuais questões que possam surgir dentro de um contexto mais amplo do meio ambiente, da saúde e da segurança em geral. De acordo com SNIR, A gestão de riscos envolve a sua redução a um nível considerado aceitável pela sociedade. A literatura geralmente se refere a três estratégias principais para a gestão dos riscos tecnológicos: 1) abordagem baseada no risco: identifica um potencial risco físico aos seres humanos ou ecossistema e analisa a probabilidade que esses eventos aconteçam ao longo do espaço e tempo. A partir da constatação de que esses riscos são severos o bastante para justificar a intervenção do governo, são estabelecidas metas de segurança qualitativa, limites ou padrões de exposição, dentre outros mecanismos para minimizar os riscos. No entanto, estabelecer essas medidas em condições de incerteza se torna desafiador. A efetividade dessa abordagem reside na sua habilidade de adquirir as informações necessárias para o processo de avaliação do risco. 2) abordagem baseada na precaução: a intervenção regulatória se justifica com base em uma conclusão científica de um risco sério e real à sociedade. De acordo com essa abordagem, a regulação adota medidas de redução da atividade tida como de risco. Para tanto estabelece: limites para a sua reprodução através de permissões e faixas de controle; limites e padrão de exposição – os quais serão estabelecidos nos níveis mais baixos quanto for razoavelmente possível e o constante monitoramento dos efeitos colaterais potencialmente perigosos.

18 SNIR. Reut.Trends in Global Nanotechnology Regulation: the public-private interplay. 17 Vand. J. Ent. & Tec. L. 107 2014 - 2015. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016.

202

Revista dos Estudantes de Direito da UnB 3) abordagem baseada no diálogo: delimita os riscos e decide os meios para endereçá-los através de mesas redondas, mediação, audiências públicas ou outros processos deliberativos com a participação dos envolvidos. O processo regulatório resultante dessa abordagem geralmente inclui códigos de conduta auto aplicáveis, cujo objetivo é fortalecer a longo prazo a responsabilidade da entidade reguladora e a coordenação internacional.19

O autor explica que, a escolha entre essas abordagens, depende do tipo de risco a ser tratado. Os riscos de rotina podem ser avaliados a partir da análise do custobenefício. Os riscos com complexidade ou incerteza científica, que requeiram estratégias mais elaboradas, têm como principal obstáculo para a sua gestão, a obtenção de dados para a determinação da sua complexidade de uma forma científica e confiável. Nesse caso, a abordagem regulatória deve envolver a deliberação de especialistas. Diferentemente, riscos altamente incertos não podem ser determinados apenas a partir de dados científicos, eles requerem o emprego de variáveis que se relacionam com a natureza do referido risco20. Em algumas hipóteses, o risco de manipulação do produto é tão grande que deve-se buscar a sua substituição (no caso brasileiro vide a discussão sobre o uso do amianto asbesto)21. Espera-se que, no Brasil, diferentemente do que já aconteceu em muitos casos relacionados à saúde e segurança do trabalhador (como a monetização dos riscos por meio de adicionais, por exemplo), a abordagem não seja restrita ao binômio custo x benefício. A utilização dos princípios da informação e da precaução em convenções coletivas, como se verá adiante, pode ser uma boa diretriz para abordagens mais ampliativas (precaução e diálogo). Não obstante, em situações de incerteza científica, como é o caso da nanotecnologia, a abordagem regulatória baseada no risco, a qual é largamente adotada pelo setor público, não é eficiente para orientar o desenvolvimento de tecnologias emergentes. É importante esclarecer que a ausência quantificável de prova científica do risco não afasta a possibilidade de risco real e, portanto, não pode ser utilizada para justificar a inação regulatória do ponto de vista da obrigação de impedir ações que causariam danos a outros.

19 SNIR. Reut.Trends in Global Nanotechnology Regulation: the public-private interplay. 17 Vand. J. Ent. & Tec. L. 107 2014 - 2015. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. 20 No mesmo sentido: CORLEY, Elizabeth A.; KIM Youngjae; SCHEUFELE, Dietram A. Public Challenges of Nanotechnology Regulation, 52 Jurimetrics, J. 371-381, 2012. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. 21 Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=ProcessosAudienciasPublicasAcoesAmianto.

203

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Fato é que a concepção do conceito de risco e do que requer controle varia não apenas entre indivíduos, mas também entre países. Pode-se dizer que não se trata apenas de uma definição técnica, mas de um construto social, que irá influenciar a estrutura e o escopo do processo regulatório. O reconhecimento da existência do risco justifica a intervenção regulatória para controlar os seus impactos na sociedade; enquanto que a forma como ele é definido determina a sua gestão. Muitas vezes, especialmente nos casos de riscos complexos, a gestão do risco envolve a consideração de múltiplas variáveis. A literatura estrangeira cita como exemplo o debate regulatório que foi travado durante o processo de regulação do uso dos organismos geneticamente modificados em alimentos, no qual as objeções da doutrina ao uso da biotecnologia se basearam não apenas no potencial risco à saúde (dano físico) que essa tecnologia poderia causar, mas também em argumentos culturais, étnicos, religiosos, ideológicos e competitivos22. Enquanto a regulamentação não avança, algumas iniciativas podem ser adotadas. Em termos de controle de saúde e segurança do trabalho, a US NIOSH publicou um guia sobre exames médicos específicos que podem ser realizados em trabalhadores assintomáticos, expostos a processos produtivos que utilizem a nanotecnologia, os quais podem ser ministrados até que pesquisas afastem ou reforcem a necessidade desse tipo de providência. Além disso, diversas organizações passaram a desenvolver limites de exposição ocupacional para nanossubstâncias. No entanto, nenhum desses limites foi até o momento adotado por qualquer agência regulatória. DA ANÁLISE DOS RESULTADOS A pesquisa realizada nos sítios eletrônicos dos TRTs encontrou apenas duas ações trabalhistas envolvendo a nanotecnologia. Trata-se de dois dissídios coletivos23. Em ambos os casos, o sindicato dos trabalhadores nas indústrias da fabricação do álcool, etanol, bioetanol, biocombustível, químicas e farmacêuticas de Ribeirão Preto e Região ingressou na Justiça do Trabalho, pleiteando o atendimento às suas 22

SNIR. Reut.Trends in Global Nanotechnology Regulation: the public-private interplay. 17 Vand. J. Ent. & Tec. L. 107 2014 - 2015. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. 23 A doutrina costuma classificar os conflitos coletivos ou dissídios coletivos em: (a) conflitos jurídicos ou de direito, que não tem por objeto a criação de novas condições de trabalho, apenas de interpretação e aplicação da legislação já existente, e (b) os conflitos de interesse ou econômicos, que visam à criação de novas condições de trabalho. Há ainda os conflitos de greve que são um misto de interesse coletivo e de interesse jurídico. SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho p. 1106. LTr, 4ª Ed., São Paulo.

204

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

reivindicações constantes de algumas cláusulas do acordo coletivo24 a ser entabulado entre o sindicato e uma determinada empresa do ramo, em relação às quais não houve comum acordo. 3.1 Resultado 1 Processo: TRT/15ª Região nº 0001625-13.2012.5.15.0000 Dissídio coletivo de natureza econômica e social Órgão julgador: Seção de Dissídios Coletivos (SDC) Relatora: Ana Maria de Vasconcelos Suscitante: Sindicato dos trabalhadores nas indústrias da fabricação do álcool, etanol, bioetanol, biocombustível, químicas e farmacêuticas de Ribeirão Preto e Região. Suscitado: LDC Serv Bioenergia S/A – unidade MB. Trata-se de dissídio coletivo de natureza econômica e social, instaurado pelo sindicato dos trabalhadores nas indústrias da fabricação do álcool, etanol, bioetanol, biocombustível, químicas e farmacêuticas de Ribeirão Preto e Região, buscando o atendimento das cláusulas constantes da pauta de reivindicações, com o objetivo de estabelecer a fixação de cláusulas econômicas e sociais, a partir de 1º de maio de 2012, para a categoria profissional por ele representada. Tendo em vista que as partes não se conciliaram. O Tribunal julgou o mérito das reivindicações nos seguintes termos: “Primeiramente, convém registrar que o suscitante apresentou proposta com reivindicações, não conseguindo chegar a um consenso para estabelecer as condições de trabalho no período de 1º de maio de 2012 à 30 de abril de 2013, sendo que sequer na audiência de 24/09/2012, a Presidência obteve a conciliação das partes. Destarte, considerando a impossibilidade de se chegar a um acordo entre as partes, as reivindicações serão analisadas tendo em vista os termos do § 2º do art. 114, da Constituição Federal, ou seja, deverão ser respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, além do entendimento firmado nos precedentes normativos deste E. TRT da 15ª Região como do C. TST. (...) CLÁUSULA 90ª - NANOTECNOLOGIA Reivindicação: A empresa garantirá que os membros da CIPA e do SESMT (Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e

24 De acordo com a definição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), acordo coletivo de trabalho é o pacto de caráter normativo pelo qual um sindicato representativo de certa categoria profissional e uma ou mais empresas da correspondente categoria econômica estipulam condições de trabalho aplicáveis, no âmbito das respectivas empresas, às relações individuais de trabalho (artigo 661, § 1º, da CLT).

205

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Medicina do Trabalho) sejam informados quando da utilização de nanotecnologia no processo industrial. A CIPA, o SESMT e os trabalhadores terão ainda acesso às informações sobre riscos existentes à sua saúde e sobre as medidas de segurança a adotar. (grifo nosso) Justificativa: Defiro. Trata-se de disposição que não contraria a legislação vigente possibilita ao trabalhador o acesso a informações relacionadas aos riscos à saúde. Redação final da cláusula: Não alterada.

Verifica-se que o sindicato pleiteia tão somente a aprovação de cláusula de norma coletiva que determina a obrigatoriedade da empresa fornecer informações sobre (i) a utilização de nanotecnologia no processo industrial, tanto aos órgãos de proteção à saúde e segurança do trabalhador (Serviço Especializado em Saúde e Medicina e Engenharia do Trabalho – SESMET e Comissão Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho – CIPA), como aos trabalhadores, (ii) os riscos à sua saúde e (iii) sobre as medidas de segurança a adotar. A reivindicação é uma reprodução do princípio da informação e foi atendida pelo Tribunal, que entendeu que tal reivindicação não contraria a legislação vigente, que garante ao trabalhador o acesso às informações relacionadas aos riscos à sua saúde. 3.2 Resultado 2 Processo 0006151-86.2013.5.15.000 Dissídio coletivo de natureza econômica e social Órgão julgador: Seção de Dissídios Coletivos (SDC) Relatora: Adriene Sidnei de Moura David Diamantino Suscitante: Sindicato dos trabalhadores nas indústrias da fabricação do álcool, etanol, bioetanol, biocombustível, químicas e farmacêuticas de Ribeirão Preto e Região. Suscitado: LDC Serv Bioenergia S/A – unidade MB. Trata-se de Dissídio Coletivo de natureza econômica e social, instaurado pelo sindicato dos trabalhadores nas indústrias da fabricação do álcool, etanol, bioetanol, biocombustível, químicas e farmacêuticas de Ribeirão Preto e Região, buscando o atendimento das cláusulas constantes da pauta de reivindicações, com o objetivo de estabelecer a fixação de cláusulas econômicas e sociais, a partir de 1º de maio de 2013,

206

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

para a categoria profissional por ele representada. Nesse caso, a reivindicação é bem mais abrangente que a anterior. Vejamos: “CLÁUSULA 101ª - NANOTECNOLOGIA Reivindicação: As empresas são obrigadas a informar a entidade sindical sobre o uso de nanotecnologia no processo industrial e no ambiente de trabalho. (grifo nosso) No uso de nanotecnologia serão tomadas as devidas providencias de proteção e monitoramento da saúde dos trabalhadores. (grifo nosso) Iniciar processo de informação ampla sobre os conceitos básicos de nanotecnologias: o que é, a importância, os possíveis usos e as incertezas; Utilizar os espaços de comunicação nas SIPATs, encontros anuais, comunicação visual e virtual sobre o tema; Transmitir informações específicas quando do início do uso de nanocompósitos na fabricação de fármacos, respeitando o Direito de Saber. Divulgar aos trabalhadores informações sobre as substancias e suas particularidades quando em escala nanométrica, medidas de verificação de vazamentos e/ou contaminações, medidas de primeiros socorros, estratégias de prevenção e monitoramento da saúde; (grifo nosso) As empresas que optarem por utilizar nanotecnologias destinarão recursos para pesquisa sobre as consequências e medidas de proteção ao trabalhador equiparadas aos recursos destinados a pesquisa de produtos; Obedecer ao princípio da precaução: adoção de medidas que devem ser implantadas visando prevenir danos à saúde dos trabalhadores, mesmo na ausência da certeza cientifica formal da existência do risco grave ou irreversível e de suas consequências à saúde; (grifo nosso) Estabelecer sistema de proteção coletiva eficaz; Estabelecer medidas específicas no PPRA e PCMSO para os trabalhadores expostos a nanocompósitos;25 A empresa garantirá que os membros da CIPA e do SESMT, sejam informados quando da utilização de nanotecnologia no processo industrial. A CIPA, o SESMT e os trabalhadores terão ainda acesso a informações sobre riscos existentes à sua saúde e as medidas de proteção a adotar. Justificativa: Defiro. Trata-se de disposição constante na sentença normativa anterior e que não contraria a legislação vigente, possibilitando ao trabalhador o acesso a informações relacionadas aos riscos à saúde. Redação final da cláusula: Não alterada.

25 Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA) e o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO). A legislação brasileira estabelece a obrigatoriedade da elaboração e implementação, por parte de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), visando a preservação da saúde e da integridade dos trabalhadores, através da antecipação, reconhecimento, avaliação e consequente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho, tendo em consideração a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais. A mesma obrigatoriedade se verifica em relação ao Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), cujo objetivo é promover e preservar a saúde do conjunto dos seus trabalhadores.

207

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Nota-se que no segundo dissídio coletivo, há uma preocupação maior por parte do sindicato com os riscos relacionados à nanotecnologia. As cláusulas são mais detalhadas, havendo inclusive previsão de destinação de recursos para pesquisa. Os princípios da informação e da prevenção também são invocados. A reivindicação do sindicato foi atendida pelos mesmos fundamentos da decisão anterior. A partir da análise dos resultados dessa pesquisa, é possível afirmar que a ausência de regulação tradicional sobre os riscos da nanotecnologia para a saúde e segurança dos trabalhadores deu ensejo à judicialização do tema. O sindicato, atuando na defesa dos direitos coletivos da categoria representada, ajuizou dissídio coletivo perante o Poder Judiciário, objetivando a regulação de questões relacionadas à saúde e segurança dos trabalhadores que exercem suas atividades na empresa LDC. Nos dois casos analisados, a Justiça do Trabalho solucionou o conflito mediante a aplicação do instituto da sentença normativa, que no direito pátrio é classificado como um instrumentos de hard law. A Justiça do Trabalho exerceu seu poder normativo, submetendo as partes coativamente à decisão judicial. Schiavi explica o uso do poder normativo da Justiça do Trabalho: [N]ão se trata apenas de aplicar o direito preexistente, mas de criar, dentro de determinados parâmetros, normas jurídicas. Por isso, se diz que o poder normativo da Justiça do Trabalho atua no vazio da lei, ou seja: quando não há lei dispondo sobre a questão. Em razão disso, a Justiça do Trabalho detém a competência constitucional para criar normas por meio da chamada sentença normativa.26

Nesse sentido, é possível inferir que, no âmbito dos conflitos trabalhistas, a ausência de legislação não impede que outros mecanismos de hard law, tais como, sentenças normativas, acordos e convenções coletivas sejam utilizados para a solução de conflitos envolvendo a nanotecnologia e os trabalhadores. Reconhecemos que a análise isolada desses dois casos, cujo âmbito de aplicação se resume à empresa LDC, não permite que os resultados encontrados sejam replicados para outras situações. No entanto, podemos interpretar esse dado como um indicativo de que, no âmbito das relações de trabalho, a dinâmica adotada pelo nosso ordenamento jurídico, em relação à proteção dos trabalhadores, frente aos riscos que a nanotecnologia pode apresentar – é diversa daquela adotada pela Europa e pelos Estados Unidos da 26

208

SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho p. 1106. LTr, 4ª Ed., São Paulo.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

América. Isso porque o ordenamento jurídico pátrio oferece mecanismos de hard law para a solução dos conflitos envolvendo nanotecnologia. A análise dos resultados nos permite concluir que, no Brasil, diferentemente do que ocorreu internacionalmente, a ausência de regulação abriu espaço para que mecanismos de hard law entrassem em ação. Apesar disso, é importante deixar claro que a nanotecnologia não deixa de representar uma ameaça à saúde e segurança dos trabalhadores brasileiros, porque, assim como no exterior, a matéria não se encontra regulada no país e os seus riscos são igualmente desconhecidos. Esses dois casos judicializados demonstram apenas que existe uma preocupação com o tema e que essa preocupação certamente não é suficiente para garantir a saúde e a segurança dos trabalhadores, frente à magnitude dos riscos que a nanotecnologia apresenta. Trata-se, portanto, de uma alternativa limitada à solução de conflitos envolvendo trabalhadores e a nanotecnologia e não da efetiva regulação do tema seja por soft ou hard law, tão esperada nacional e internacionalmente, para que mecanismos de proteção à saúde e segurança do trabalhador possam ser pensados e estudados a partir dessa regulação. Apesar de toda essa retórica em torno do poder normativo da Justiça do Trabalho, na prática, a efetividade das decisões da Justiça do Trabalho no cotidiano das empresas é reduzida. É o que demonstram as estatísticas de acidentes e adoecimento no trabalho. Nem sempre o direito é capaz de garantir a eficácia e eficiência de suas decisões e dificilmente o fará no caso de uma tecnologia cujos efeitos ainda são tão pouco conhecidos. CONCLUSÃO Embora no Brasil a disciplina da nanotecnologia no âmbito da saúde e segurança do trabalhador no meio ambiente de trabalho não se dê pela regulação estatal, eventuais conflitos sobre o tema já são passíveis de regulação por mecanismos de hard law previstos pela legislação trabalhista. Assim, o Brasil encontra-se em estágio inicial de desenvolvimento da regulação da nanotecnologia, quando comparado aos demais países estudados. No âmbito das relações de trabalho, destaca-se a existência de mecanismos de hard law para solucionar eventuais conflitos entre os trabalhadores e a nanotecnologia. Tais instrumentos, a despeito da sua importância, não são suficientes para garantir a saúde e a segurança dos

209

Revista dos Estudantes de Direito da UnB trabalhadores em processos produtivos que utilizem a nanotecnologia. É imperativo que os riscos gerados pela nanotecnologia sejam mapeados e que a regulação se dê a partir dessas informações. O ingresso do Brasil na NanoReg é um indício de que o processo regulatório brasileiro segue os caminhos já percorridos pelos Estados Unidos da América e pela Europa. Assim, considerando que o Direito do Trabalho já prevê institutos de hard law para resolver os conflitos que possam advir do emprego da nanotecnologia no âmbito das relações de emprego, caso o Brasil no futuro efetivamente adote o modelo de regulação europeu, a depender do modelo a ser implementado, aventamos a possibilidade de haver conflito entre tal modelo e o Direito do Trabalho. Por fim, antecipamos que a regulação estatal da temática relacionada à saúde e segurança

do

trabalho

muito

provavelmente

virá

no

formato

de

Normas

Regulamentadoras no Ministério do Trabalho. E quando esse momento chegar, e se chegar, recomendamos um estudo crítico desse modelo de regulação, haja vista as inúmeras deficiências que ele apresenta. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBOTT, Kenneth W.; MARCHANT, Gary E. Marchant, CORLEY, Elizabeth A. Soft Law Oversight Mechanisms for nanotechnology, 52 Jurimetrics J. 279 – 312. 2012. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. AYRES, Ian; BRAITHWAIT, John, Responsive regulations: Transcending the Deregulation Debate. Oxford Univ, Press 1992. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. CORLEY, Elizabeth A.; KIM, Youngjae; SCHEUFELE, Dietram A. Public Challenges of Nanotechnology Regulation, 52 Jurimetrics, J. 371-381, 2012. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. FUNDACENTRO. Nanotecnologia e os trabalhadores: reflexões, lutas e perspectivas. 2015.

Disponível

em:

http://www.fundacentro.gov.br/noticias/detalhe-da-

noticia/2015/3/nanotecnologia-e-os-trabalhadores-reflexoes-lutas-e-perspectivas. Acesso em: 13 de setembro de 2016.

210

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

INVERNIZZI, Noela; FOLADORI, Guillermo. Nanotechnology Implications for Labor. 7 Nanotech. L. & Bus. 68, 2010. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. LIN. Abert C. 31. Harvard Envtl. L. Rev. 349, 2007. Size matters: regulating nanotechnology. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. MARCHANT, Gary E. et al. Risk Managemet Principles for nanotechnologie, 2 NanoEthics, 43, 51, 2008. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2016. MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INVOAÇÕES E COMUNICAÇÃO. Projeto NANoREG. Disponível em: http://www.mcti.gov.br/projeto-nanoreg. Acesso em: 25 de julho de 2016. MURASHOV, Vladimir; SCHULTE, Paul; GERACI, Charles e HOWARD, John. Regulatory Approaches to Worker Protection in Nanotechnology Industry in the USA and European Union. Industrial Health, 49, 280 - 296, 2011. Disponível em: https://www.jstage.jst.go.jp. Acesso em: 27 de junho de 2017. SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 4 ed. São Paulo: LTr. SNIR. Reut.Trends in Global Nanotechnology Regulation: the public-private interplay. 17 Vand. J. Ent. & Tec. L. 107 2014 - 2015. Disponível em: http://heinonline.org. Acesso em: 27 de junho de 2017. SUPREMO

TRIBUNAL

FEDERAL.

Disponível

em:

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=ProcessosAudienciasPublicasAc oesAmianto.

211

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

PERCURSOS E PERCALÇOS DOS PROJETOS E LEIS SOBRE CASAMENTO CIVIL NO BRASIL: DO IMPÉRIO À REPÚBLICA Paula Machado Ribeiro1 Sarah Dam Freitas2 Vinícius Carloni Cypriano3 Submetido(submitted): 7 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 19 de outubro de 2016 RESUMO O presente artigo tem por finalidade fazer uma análise histórica e temporal do desenvolvimento do casamento civil no Brasil, além de destacar a forte influência eclesiástica no âmbito civil, que culminava no cerceamento de direitos civis daqueles cuja religião não fosse o catolicismo. Abordaremos todos os percalços e dificuldades impostos pelo domínio eclesiástico na tramitação do projeto de lei de Nabuco de Araújo no Segundo Império e na sanção do Decreto nº 1144. Também mostraremos como ocorreu a superação do controle católico na proclamação da República para culminar no Decreto nº 181, que tornou o casamento civil obrigatório. E, por fim, faremos uma avaliação de quão danoso foi o controle católico no que tange aos direitos dos acatólicos. PALAVRAS-CHAVE: Casamento civil; Direitos Civis; Domínio eclesiástico. ABSTRACT This article goals to realize an historical and temporal analysis of civil marriage in Brazil, furthermore pointing the big ecclesiastical influence at civil area, which reduced non-Catholic people’s civil rights. We’ll show all the difficulty provided by the ecclesiastical domain at Nabuco de Araújo’s bill at Second Empire and Decree nº 1144. Also, we’ll point how catholic control’s came to an end with Republic’s Proclamation, ending at Decree 181, which declared civil marriage mandatory. At the end, we’ll analyze how hurtful the catholic control was to non-Catholic people’s rights. KEYWORDS: Civil marriage; Civil rights; Ecclesiastical domain. INTRODUÇÃO Em 1824, foi outorgada a primeira Constituição do Brasil independente. Ainda assim, percebe-se a manutenção de heranças da administração portuguesa, como a permanência da religião católica apostólica romana como a religião oficial evidenciada no artigo 5° da Constituição – mesmo artigo que permitia culto doméstico ou particular a outras religiões, desde que este não tomasse forma exterior ao templo, evitando a perseguição religiosa e reafirmando tal direito individual. No entanto, cabe ressaltar que a nomeação dos bispos e a 1

Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 3 Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). 2

213

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

concessão de beneplácito imperial para a aplicação de leis eclesiásticas eram atribuições do Imperador (art. 102) (OBEID, 2013) e, ainda assim, a Igreja influenciava muito o Imperador, já que ela que concedia a ele a legitimação do poder. A Carta de 1824 assegurava também que os estrangeiros naturalizados seriam considerados cidadãos brasileiros, independente da religião que professassem (art. 6°) (RODRIGUES, 2008), e previa a criação de um Código Civil e de um Código Criminal em seu parágrafo 18. No Código Criminal em questão, protegeu-se o catolicismo como religião oficial do Império (art. 277) e, novamente, assegurou-se a possibilidade de professarem outras fés ao punir a perseguição religiosa (art. 191). Todavia, os dispositivos que permitiriam maior liberdade e dignidade àqueles cuja fé não fosse católica não eram colocados em prática de fato. Os direitos constitucionais civis de não católicos eram, frequentemente, limitados, tendo em vista o forte controle eclesiástico sobre a área civil, registrando nascimentos, casamentos, óbitos e conduzindo batismos (OBEID, 2013). Além disso, destaca-se a incumbência a tribunais eclesiásticos de julgar, de acordo com as leis canônicas, a legalidade ou ilegalidade de atos civis e o destino de propriedades e bens em última instância e a necessidade de ser católico para ter sua cidadania reconhecida (RODRIGUES, 2008). Assim, os protestantes não podiam ter atuação político-partidária, não tinham direito à transmissão de heranças devido aos entraves burocráticos causados pela inexistência do registro civil de nascimentos, casamentos e óbitos, dentre outros (RODRIGUES, p. 26, 2008).

Justamente por toda essa situação, havia grande resistência em regular a área civil, de modo que qualquer alteração das atribuições da Igreja incorreria em grandes custos e deveria ser justificada por uma real necessidade (OBEID, 2013). Como exemplo de tal resistência, cita-se a reação popular, em 1851 e 1852, contra uma lei que introduzia o registro civil de nascimentos e óbitos. Houve também a reação do líder messiânico de Canudos, Antônio Conselheiro, contra as medidas secularizadoras adotadas na República, como o casamento civil (CARVALHO, 2006). E, como outra relevante relutância popular, aponta-se para a existência de um periódico chamado “O Popular”, que contou com apenas oito edições, todas tratando a respeito do casamento civil, tendo como intuito fazer a população se posicionar contrária aos projetos que tramitavam na Câmara (SILVA, 2015). É importante destacar que tais discussões da tentativa de retirar o monopólio da área civil das mãos do Clero católico aconteceram, essencialmente, no Conselho de Estado – órgão

214

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

responsável por auxiliar o Imperador a interpretar e produzir a doutrina jurídica brasileira e por alertar sobre a necessidade de produção legislativa em campos de matérias ainda não redigidas por leis (OBEID, 2013). DESENVOLVIMENTO Os primeiros projetos sobre casamento civil no Brasil Império O casamento, durante o Império, era visto como um sacramento, não como contrato. O único matrimônio reconhecido pelo Estado era o casamento católico, realizados pelas autoridades religiosas competentes. Predominava um ambiente de pluralismo jurídico, em que coexistiam e se entrelaçavam leis estatais e Direito Canônico. A tolerância religiosa, garantida no art. 5° da Carta de 1824, favoreceria o crescimento de agremiações religiosas não católicas e, consequentemente, a aproximação de seus membros. No entanto, a população de judeus e protestantes não poderia contrair matrimônio, visto que a união entre súditos de religiões diferentes da fé oficial não gozavam de reconhecimento formal por parte do Estado. Alguns casamentos eram realizados por escritura pública, sem a cerimônia religiosa católica, porém não eram reconhecidos como válidos. Com a chegada de imigrantes europeus, em meados do século XIX, intensifica-se o debate sobre a regulamentação do casamento civil. Alguns casos, envolvendo debates sobre a tolerância religiosa e o direito ao matrimônio por súditos não católicos, chegam ao Conselho de Estado. Um desses casos é o de Catharina Scheid, alemã de religião evangélica, que se casara, em uma igreja luterana, com Francisco Fagundes, um português católico. Após menos de um ano depois do matrimônio, o marido abandona a esposa e muda-se para outra localidade. Por orientação de seu pastor protestante, Catharina aciona as autoridades do Império, a fim de requerer o divórcio – que é permitido, na religião da suplicante, em caso de abandono malintencionado. Segundo o pastor, as questões matrimoniais devem ser resolvidas pelos tribunais, e a Igreja Luterana só reconhece o casamento dissolvido depois de decisão do Estado. O Bispo do Rio, D. Manoel do Monte, afirma que, se o esposo católico requeresse, declararia o matrimônio como nulo. No caso de Catharina, as leis não reconheciam seu casamento protestante, sequer seu valor como contrato, pois fora realizado sob os auspícios de pessoa incompetente para tanto – um pastor evangélico (NABUCO, 1899). Esse caso expõe as incongruências e deficiências da legislação brasileira para lidar com o fluxo de imigrantes que chegavam ao Brasil – causando forte insegurança jurídica a esse grupo (SILVA, 2015) –, de modo a levar o Conselho de Estado a apontar a necessidade de

215

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

legislação nessa área. Ao mesmo tempo em que a Constituição Imperial reconhecia a tolerância religiosa, o Direito brasileiro não admitia o casamento dos acatólicos como válidos. Em poucos casos, a Igreja Católica aceitava o casamento entre católicos e não católicos, por meio de licença concedida por bispo autorizado ou pelo Sumo Pontífice, mas esse procedimento era fortemente desencorajado pela Cúria Romana. O cônjuge acatólico, nesse caso, deveria, necessariamente, comprometer-se a não interferir no exercício da crença do parceiro católico – além de aceitar a educação dos filhos do casal sob as normas da Igreja Apostólica Romana (GRINBERG, 2008). Em 7 de agosto de 1847, o deputado João Maurício Wanderley apresenta à Câmara a primeira proposta parlamentar sobre o casamento civil, afirmando a manutenção do casamento católico nas disposições canônicas, mas também buscando conceder os efeitos civis àqueles que não professavam a fé oficial (SILVA, 2015). O projeto, no entanto, nunca chegou a ser debatido no parlamento. Em 1855, o Ministro da Justiça, José Tomás Nabuco de Araújo Filho, responsável por elaborar o relatório do caso de Catharina Scheid (SILVA, 2015), propõe projeto de lei, com a mesma intenção do projeto de João Maurício Wanderley, a fim de regulamentar os casamentos civis mistos, entre católicos e protestantes, e matrimônios entre evangélicos. Nabuco de Araújo compreendia que os hábitos daquela sociedade não acolheriam uma reforma radical que tornasse o casamento um contrato sem razão de sacramento (SILVA, 2015). A redação do projeto é a seguinte:

216

Art. 1º O casamento evangélico e o misto entre católicos e protestantes considera-se distinto, como civil e religioso. § 1º O civil precede ao religioso; este não pode ser celebrado senão depois daquele, sob as penas estabelecidas no art. 147 do Código Criminal. § 2º Verificado o contrato pela forma determinada no Regulamento do Governo, o casamento, ainda mesmo não seguido do ato religioso, surtirá todos os efeitos civis que resultam do casamento contraído conforme o costume do Império. § 3º São competentes os Tribunais e Juízes do Império para decidirem as questões da dissolução ou nulidade dos casamentos evangélicos e mistos, quanto aos protestantes somente. § 4º Nos casamentos mistos os casos de divórcio serão regulados pelo Direito Canônico a respeito de ambas as parte, e o divórcio não importará nunca dissolução do contrato de casamento pela parte evangélica. § 5º O Juízo Eclesiástico do Império julgará como até hoje a nulidade do casamento e o divórcio da parte católica. § 6º A nulidade do contrato nos casamentos mistos só pode ser pronunciada pelos Juízes e Tribunais civis. Art. 2º É o Governo autorizado: 1º Para organizar e regular o registro dos referidos casamentos, assim como dos nascimentos que deles provierem.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

2º Para permitir a instituição de Consistório, Sínodos, Presbitérios e Pastores Evangélicos, determinando as condições de sua existência e exercício, assim como a regras de fiscalização e inspeção a que ficam sujeitos (NABUCO, 1899, pp. 298 – 299).

Assim, constata-se que era estabelecido o casamento civil apenas para correntes religiosas protestantes e para o casamento misto entre evangélicos e católicos. Para outras religiões, como o judaísmo, persistia o problema. O casamento, tanto misto quanto entre protestantes, era considerado um instituto civil e religioso. Para estes, a dissolução ou decreto de nulidade do casamento é de responsabilidade dos juízes e tribunais do Império – no caso de casamentos mistos, apenas para o cônjuge protestante. Para o parceiro católico, nos casamentos mistos, caberia ao tribunal eclesiástico decretar a nulidade. O contrato de casamento, no entanto, só poderia ser anulado pelos juízes ou tribunais do Império. Além disso, define-se que o Estado é responsável pelo registro desses casamentos e dos nascimentos decorrentes desses matrimônios. O projeto de lei de Nabuco de Araújo foi, então, submetido à análise da Seção de Justiça do Conselho de Estado Imperial, tendo como relator o Conselheiro Eusébio de Queirós (SILVA, 2015), o qual apresenta um longo parecer, concordando em partes com o projeto, mas sugerindo a expansão do casamento civil a todas as religiões não oficiais. A Seção propõe um projeto substitutivo, “estabelecendo o casamento civil obrigatório aos não católicos, e facultativo entre um acatólico e um católico que não quisessem casar-se segundo as normas canônicas” (SILVA, 2011). Foi apresentado à Câmara, em 19 de julho de 1858, pelo Ministro da Justiça Francisco Diogo de Campos. É acolhido e encaminhado, para receber parecer, às comissões de Justiça Civil e Negócios Eclesiásticos da Câmara dos Deputados. O parecer do projeto só seria apresentado em 1859, especialmente, pela pressão que os deputados sofriam, já que era um assunto “grave”, na concepção do deputado Pinto de Campos, o qual tocava em interesses da Igreja e do Estado (SILVA, 2015). No parecer, evidenciava-se que as leis imperiais sobre o matrimônio eram problemáticas no que concernia aos casamentos dos não católicos desde o aumento do número de imigrantes. Elogiava-se a manutenção dos procedimentos em casamentos católicos e mistos e concordava-se que, já que para pessoas acatólicas o casamento não era um sacramento, poder-se-ia regular tais casamentos por contratos civis, mas não deveria haver contratos civis para casamentos mistos – sendo esse o corte mais significativo do projeto (SILVA, 2015). O projeto foi reescrito e apresentado como um projeto substitutivo, contendo as mudanças quanto à aplicação de contratos civis a casamentos mistos – de modo que a

217

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

demanda inicial desse processo, o caso de Catharina Scheid, continuava sem solução e era evidente que se avançaria muito pouco na matéria envolvida (SILVA, 2015). Os debates e a votação do projeto “corrigido” tiveram início apenas em 11 de agosto de 1860, mas não antes do pedido para as substituições de algumas emendas do projeto do deputado Joaquim Pinto de Campos, autorizado pelo presidente da Câmara (SILVA, 2015). Cabe ressaltar que o deputado em questão se considerava ultramontano e era, constantemente, encorajado pelo Internúncio Monsenhor Falcinelli – mensageiro cujo dever era enviar ofícios à Santa Sé informando sobre o andamento dos debates quanto ao casamento civil – a defender a causa romana ou “a boa causa” (SILVA, 2015). Assim, as substituições de Pinto de Campos culminam em um texto sem nenhuma referência aos termos “casamento civil” e “contrato civil”. O impacto simbólico da palavra “casamento” é substituída por “efeitos civis”, de modo a reduzir ainda mais o alcance do projeto e conceder os efeitos civis apenas a uniões acatólicas (SILVA, 2015). Com o início dos debates, percebe-se, preponderantemente, o posicionamento de três deputados quanto à matéria. Jerônimo Vilela e Cândido Mendes lideravam os deputados contrários ao projeto, alegando que o conteúdo do projeto não era da competência do parlamento (SILVA, 2015). Francisco Otaviano liderava o segundo grupo, que defendia o projeto primitivo, oriundo do governo, por ser mais claro quanto ao estabelecimento de direitos (SILVA, 2015). Por fim, o terceiro grupo, liderado por Pinto de Campos, defendia o projeto substitutivo e conseguiu, ao final, a maior parte dos votos (SILVA, 2015). O projeto substitutivo é, então, aprovado e encaminhado ao Senado. Lei de 11 de setembro de 1861 Os debates no Senado se iniciaram em 30 de julho de 1861, data em que o discurso de Francisco Diogo Pereira de Vasconcelos, então Senador, prevaleceu, ao recapitular a tramitação do projeto desde os primórdios e afirmar que o fruto da medida seria insignificante e que ela traria complicações (SILVA, 2015). Apesar disso, o Senado homologa a decisão da Câmara e aprova o projeto. Assim, seis anos depois do projeto inicial de Nabuco de Araújo, o Imperador sanciona o projeto sob a epígrafe de Lei de 11 de setembro de 1861 (ou Decreto nº 1144), que, para ser aplicada, deveria ser regulamentada, o que só ocorreria em 1863 com o Decreto n° 3069. Agora, a primeira lei sobre o assunto no Brasil gera efeitos civis nos casamentos acatólicos, reconhece casamentos mistos celebrados fora do Brasil e possui caráter retroativo (SILVA, 2015). Sua exposição faz-se, então, aqui necessária para que ela possa ser mais bem analisada:

218

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Art. 1º Os efeitos civis dos casamentos celebrados na forma das Leis do Império serão extensivos: 1º Aos casamentos de pessoas que professarem Religião diferente da do Estado celebrados fora do Império segundo os ritos ou as Leis a que os contraentes estejam sujeitos. 2º Aos casamentos de pessoas que professarem Religião diferente da do Estado celebrados no Império, antes da publicação da presente Lei segundo o costume ou as prescrições das Religiões respectivas, provadas por certidões nas quais se verifique a celebração do ato religioso. 3º Aos casamentos de pessoas que professarem Religião diferente da do Estado, que da data da presente Lei em diante forem celebrados no Império, segundo o costume ou as prescrições das Religiões respectivas, com tanto que a celebração do ato religioso seja provado pelo competente registro, e na forma que determinado for em Regulamento. 4º Tanto os casamentos de que trata o § 2º, como os do precedente não poderão gozar do beneficio desta Lei, se entre os contraentes se der impedimento que na conformidade das Leis em vigor no Império, naquilo que lhes possa ser aplicável, obste ao matrimônio Católico. Art. 2º O Governo regulará o registro e provas destes casamentos, e bem assim o registro dos nascimentos e óbitos das pessoas que não professarem a Religião Católica, e as condições necessárias para que os Pastores de Religiões toleradas possam praticar atos que produzam efeitos civis (BRASIL, 1861, adaptado).

Tem-se, então, que, apesar de, em tese, procurar legitimar o casamento entre católicos e não católicos, essa lei acabou por, ao mesmo tempo, legitimar ainda mais a presença da religião nesse assunto, uma vez que, para o casamento “civil” de não católicos ser reconhecido, seria necessário, antes, que ele fosse celebrado por meio de um ritual religioso reconhecido pelo Império. Um impedimento a isso era, no entanto, o fato de que, na época, era difícil encontrar quem pudesse realizar tais celebrações. A inaplicabilidade do Decreto, tanto por pressões eclesiásticas quanto por falta de fiscalização, levou a duas décadas de discussões que culminaram em seis projetos submetidos à Câmara, mas não resultaram em nenhuma mudança da lei (SILVA, 2015). Assim, “correndo o risco de virar letra morta como outras tantas, e certamente sofrendo pressões das autoridades eclesiásticas, a primeira lei sobre o casamento civil do Brasil foi anulada pelo Conselho de Estado em 1865” (GRINBERG, 2008, p. 42). Depois da anulação da Lei de 11 de setembro de 1861, o casamento civil continuou a ser debatido no Império. Novos projetos de lei foram elaborados sem, contudo, serem aprovados, de modo que a questão não foi solucionada. Tinha-se, então, que “as leis civis do Império brasileiro, ao partilharem parte de suas obrigações eclesiásticas, instituíam na prática duas categorias de cidadãos, os católicos e os não católicos” (GRINBERG, 2008, p. 42, adaptado).

219

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

O esboço de Código Civil de Teixeira Freitas e a questão do matrimônio Ainda em 1855, Dom Pedro II determina que um jurisconsulto deva ser contratado, a fim de compilar toda legislação civil. Para tal empreitada, é escolhido Augusto Teixeira de Freitas. Após dois anos de trabalho, o jurista entrega uma primorosa obra, intitulada de “Consolidação das Leis Civis”. O governo, então, encomenda um projeto de Código Civil a Teixeira de Freitas, em 1858. O esboço, criado pelo jurista, não chegou a ser finalizado por inteiro, devido a divergências do autor com a comissão avaliadora. A empreitada é abandonada em 1866; no entanto, traz importantes inovações sobre o casamento civil (LÉVAY, 2016), além de trazer à tona algumas semelhanças com o projeto de Nabuco de Araújo. Em seu esboço de Código Civil, Teixeira de Freitas propõe um casamento civil ainda ligado a elementos religiosos – não há a superação do casamento como sacramento. O projeto ainda proíbe o casamento entre cristãos e pessoas que não professem o cristianismo. Não há mudança fundamental no casamento entre católicos – ele continua a ser celebrado na forma e com as solenidades estabelecidas pela Igreja e pela legislação do Império. Teixeira de Freitas faz uma importante divisão entre os tipos de casamento: quando há e quando não há autorização da Igreja Católica. O casamento misto, quando autorizado pelo Clero, é realizado tal qual as cerimônias católicas de praxe. Quando não há autorização, no entanto, o casamento deve seguir certos procedimentos perante o Judiciário, a fim de conseguir o alvará para celebração religiosa. Dispõe o esboço de Código Civil:

220

Art. 1275. O casamento misto não autorizado pela Igreja Católica, e o contraído entre cristãos não católicos, ou entre pessoas que não professarem o cristianismo, produzirão efeitos civis, se forem celebrados com observância das disposições que abaixo se seguem (...). Art. 1282. Com a escritura do contrato de casamento, ou sem ela , e obtida a dispensa dos impedimentos do Art. 1277 ns. 6° e 8º se o houver; os contraentes requererão ao juiz de seu domicílio comum, ou, se os domicílios forem diversos, ao juiz do domicilio de um deles, a fim de mandar correr os banhos, e autorizar a celebração do casamento (...). Art. 1291. O juiz mandará passar alvará de autorização, para ser celebrado o casamento pela forma, e com as solenidades, da religião professada pelos dois contraentes, ou por um deles (...). Art. 1293. Não celebrando-se o casamento no ano subsequente a expedição do alvará da autorização, ficará este de nenhum vigor; e as partes devem requerer para se mandar correr novos banhos (...). Art. 1296. Celebrado o casamento, as partes deverão fazer lançá-lo no Registro Público, que o Governo para tal fim instituir. Enquanto o casamento não for lançado no Registro Público, não produzirá algum efeito em prejuízo de terceiros (...). Art. 1298. Somente estas certidões, e as que forem extraídas do Registro Público, provarão a existência legal destes casamentos; e não se admitirá

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

outras provas, senão no caso de se terem perdido tais certidões, e também o Registro d'onde foram extraídas (FREITAS, 1860, pp. 549, 551, 553-555, adaptado).

Em suma, o casamento misto sem autorização da Igreja e o contraído entre cristãos não católicos ou entre não cristãos necessitariam de permissão, concedida judicialmente, a fim de realizar a cerimônia religiosa – e só são concretizados após lançamento no Registro Público. O rito religioso, mesmo nos casamentos não católicos, é parte essencial para celebração do matrimônio – sem ele, não há casamento. No entanto, a elaboração de um contrato de matrimônio não é condição sine qua non para a celebração do casamento, basta a anuência dos noivos quando na cerimônia religiosa. Quanto ao divórcio, Teixeira de Freitas mantém a diferenciação entre aqueles com e sem autorização da Igreja. Sobre o divórcio para os matrimônios com autorização, afirma o projeto de Código Civil: Art. 1381. Compete ao Juízo Eclesiástico decretar o divórcio entre pessoas casadas à face, ou com autorização, da Igreja Católica, se os cônjuges o requererem por alguma das causas que estatuem os Cânones recebidos no Império. Art. 1382. Compete, porém exclusivamente ao Juízo Civil conhecer de todos os efeitos civis do divórcio, à saber, de todos os seus efeitos em relação às pessoas dos cônjuges, à criação e educação dos filhos, e aos bens da sociedade conjugal (FREITAS, 1860, p. 586, adaptado).

Ou seja, mantém-se a competência dos tribunais da Igreja Católica para reconhecer o divórcio, que deve ser regido pelo Direito Canônico recepcionado pelo Império. Surge, no entanto, uma importante inovação: a definição dos efeitos civis decorrentes da declaração de divórcio cabe aos tribunais civis – jurisdição que, tradicionalmente, era da Igreja. Quanto aos divórcios de casamentos sem permissão da Igreja, o esboço define as condições em que cabem o recebimento dessa ação. É definido que o processo de divórcio deve ser analisado no juízo comum. Afirma o Código de Teixeira de Freitas: Art. 1386. Não haverão outras causas, que autorizem à intentar ação de divórcio, senão as seguintes: 1° Adultério da mulher, quaisquer que sejam as circunstâncias ; e o do marido, que tiver concubina teúda e manteúda. (Art. 1304.) 2° Tentativa de um dos cônjuges contra a vida do outro. 3° Sevicias de um para com o outro, isto é, ferimentos, outras ofensas físicas, e maus tratamentos. 4º Injúrias graves e repetidas de um para com o outro, atendendo-se à qualidade dos cônjuges e à sua educação.

221

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Art. 1387. A ação de divórcio não pode ser intentada senão pelo marido ou pela mulher, e correrá por via ordinária no Juízo comum do domicílio conjugal (FREITAS, 1860, p. 587, adaptado).

Percebe-se, assim, que o esboço de Código Civil de Teixeira de Freitas possui algumas semelhanças quando comparado ao projeto de Nabuco de Araújo – especialmente, por terem sido elaboradas num período de grande influência eclesiástica. As disposições mais inovadoras de Teixeira de Freitas não foram aceitas pela sociedade ou pelos legisladores. A partir do regime republicano, no entanto, a Igreja perde exponencialmente sua importância – em especial, na legislação. O regime republicano e os Decretos nº 181/90 e 521/90 A proclamação da República brasileira ocorreu em 1889, com a dissolução da Câmara e do Senado e instalação de um Governo Provisório, cujas funções giravam em torno de consolidar o regime, aprovar uma nova Constituição e fazer reformas administrativas (SILVA, 2015). Como reforma administrativa, o Governo cria o Conselho de Ministros, que deveria deliberar sobre as questões mais graves. Um dos membros desse órgão era Campos Sales, o qual foi de extrema importância nas discussões sobre a lei do casamento civil, por possuir ideias desvinculadas do clericalismo do Segundo Império, como a noção de casamentocontrato – uma das bandeiras do movimento republicano (SILVA, 2015). Como existia certo consenso entre os republicanos quanto ao casamento-contrato e a Igreja Católica passava por um momento de enfraquecimento, instituiu-se o casamento civil sem grandes polêmicas, em 24 de janeiro de 1890, por meio do Decreto nº 181 – o qual encerrava a obrigatoriedade da celebração religiosa do casamento, afastava o Clero das atividades da área civil matrimonial e declarava obrigatório o casamento civil. “Após quarenta anos de debates inócuos na Monarquia, bastou uma simples assinatura, nomeada coloquialmente de ‘penada’, para o casamento civil ser implantado na República” (SILVA, p. 409, 2015). Dispunha o decreto: Art. 108. Esta lei começará a ter execução desde o dia 24 de maio de 1890, e desta data por diante só serão considerados válidos os casamentos celebrados no Brasil, se o forem de acordo com as suas disposições. Parágrafo único. Fica, em todo caso, salvo aos contraentes observar, antes ou depois do casamento civil, as formalidades e cerimônias prescritas para celebração do matrimônio pela religião deles. Art. 109. Da mesma data por diante todas as causas matrimoniais ficarão competindo exclusivamente à jurisdição civil. As pendentes, porém, continuarão o seu curso regular, no foro eclesiástico (BRASIL, 1890a, adaptado).

222

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Para que houvesse o ato de celebração do casamento, era necessária a habilitação expedida por oficial do registro civil – a declarar que não havia impedimentos legais ao matrimônio dos nubente. Não há mais menção, tampouco restrição, referente à religião dos contraentes. Art. 1º As pessoas, que pretenderem casar-se, devem habilitar-se perante o oficial do registro civil. (...) Art. 3º Se, decorrido este prazo, não tiver aparecido quem se oponha ao casamento dos contraentes e não lhe constar algum dos impedimentos que ele pode declarar ex-officio, o oficial do registro certificará às partes que estão habilitadas para casar-se dentro dos dois meses seguintes àquele prazo (BRASIL, 1890a, adaptado).

O Decreto definia que a cerimônia de casamento deveria ser presidida por um juiz, com o auxílio do oficial de registro e com a presença de testemunhas e dos contraentes. O casamento religioso era secundário, inteiramente dispensável do ponto de vista legal. A cerimônia religiosa, segundo a norma, poderia ser realizada antes ou depois do casamento civil – por constituir uma união incapaz de produzir efeitos civis. Art. 23. Habilitados os contraentes, e com a certidão do art. 3º, pedirão à autoridade, que tiver de presidir ao casamento, a designação do dia, hora e lugar da celebração do mesmo. (...) Art. 26. No dia, hora e lugar designados, presentes as partes, as testemunhas e o oficial do registro civil, o presidente do ato lerá em voz clara e inteligível o art. 7º e depois de perguntar a cada um dos contraentes, começando da mulher, se não tem algum dos impedimentos do mesmo artigo, se quer casarse com o outro por sua livre e espontânea vontade, e ter de ambos resposta afirmativa, convidá-los-á a repetirem na mesma ordem, e cada um de por si, a fórmula legal do casamento (BRASIL, 1890a, adaptado).

O casamento civil na República, então, diferencia-se da forma pretendida pelo esboço de Código Civil de Teixeira de Freitas. Neste, o matrimônio deveria seguir os rituais da religião dos noivos – a fim de que fosse concretizado. Com o Decreto nº 181, apenas a cerimônia perante o juiz consolidava o matrimônio. É, portanto, um texto legislativo mais radical e incisivo do que as propostas no Império. Dentre as reminiscências da religião católica e do casamento no Império, é possível destacar o conservadorismo e patriarcalismo em relação ao papel da mulher no matrimônio. Segundo o decreto, a mulher perdia a plena capacidade quando se casava. O marido ficava

223

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

responsável pela administração dos bens comuns – além de ter o poder de autorizar ou negar permissão ao labor da esposa. Art. 56. São efeitos do casamento: (...) § 2º Investir o marido da representação legal da família e da administração dos bens comuns, e daqueles que, por contrato antenupcial, devam ser administrados por ele. § 3º Investir o marido do direito de fixar o domicílio da família, de autorizar a profissão da mulher e dirigir a educação dos filhos (BRASIL, 1890a, adaptado).

Com a resistência católica ao casamento civil, expediu-se outro dispositivo, o Decreto nº 521, de 26 de junho de 1890. Justificava-se, nas cláusulas preambulares, a promulgação desse dispositivo legislativo: Que ao principio de tolerância consagrado no Decreto nº 181 de 24 de janeiro último, que permite indiferentemente a celebração de quaisquer cerimônias religiosas antes ou depois do ato civil, tem correspondido uma parte do clero católico com atos de acentuada oposição e resistência à execução do mesmo decreto, celebrando o casamento religioso e aconselhando a não observância da prescrição civil; Que, por este modo, não só se pretende anular a ação do poder secular, pelo desrespeito aos seus decretos e resoluções, como ainda se põe em risco os mais importantes direitos da família, como são aqueles que resultam do casamento (BRASIL, 1890b, adaptado).

Assim, o Decreto nº 521 estabeleceu que – ao contrário do disposto no Decreto nº 181 – as cerimônias religiosas só poderiam ocorrer após a celebração do casamento civil, o único válido e que produzia efeitos civis. Do mesmo modo, os eclesiásticos que desrespeitassem o disposto no texto legislativo que regulava o casamento civil poderiam ser punidos com pena de prisão. Art. 1º O casamento civil, único válido nos termos do art. 108 do Decreto nº 181 de 24 de janeiro ultimo, precederá sempre às cerimônias religiosas de qualquer culto, com que desejem solenisá-lo os nubentes. Art. 2º O ministro de qualquer confissão, que celebrar as cerimonias religiosas do casamento antes do ato civil, será punido com seis meses de prisão e multa correspondente á metade do tempo. Parágrafo único. No caso de reincidência será aplicado o duplo das mesmas penas (BRASIL, 1890b, adaptado).

224

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Dessa forma, é possível compreender que ambos os Decretos (n° 181 e n° 521) republicanos sobre o matrimônio perduraram apenas parcialmente e apenas no que definia o casamento civil como válido. Atualmente, o Código Civil de 2002 prevê a possibilidade de o casamento religioso “ser feito com prévia habilitação ou habilitação posterior à cerimônia religiosa” (MORAU, 2015) e, em seu artigo 1515, “estabelece que o casamento produz efeitos a partir da data de celebração [...] equiparando-se ao casamento civil” (MORAU, 2015), “desde que atendidas as exigências legais e devidamente registrado no registro próprio” (MORAU, 2015), ou seja, desde que protocolado no Registro Civil. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, nota-se que as mudanças na instituição do casamento começaram a ser debatidas a partir da chegada de imigrantes de variadas religiões, que visavam substituir a mão de obra escrava, buscando, no fundo, compreender até onde se estendiam os direitos civis dos que não professavam a fé católica. Obviamente, a Igreja entendia que os direitos dos não católicos deveriam ser restringidos por não seguirem a “verdadeira fé”. É interessante notar como a Igreja Católica conseguiu mobilizar parlamentares clericais para defenderem seus interesses e lutarem contra a “secularização do casamento”, travando todos os projetos que citavam casamento civil, como se pode analisar nas diversas alterações sofridas pelo projeto inicial de Joaquim Nabuco – em especial, na versão de Pinto de Campos. Esse forte controle eclesiástico pode ser explicado pelo comprometimento constitucional com o catolicismo nas relações entre Igreja e Estado, já que “o catolicismo dava os meios simbólicos da legitimação do trono: a forma litúrgica do regime, a representação hierárquica da sociedade e o combustível de uma sociabilidade tradicional” (ALONSO, 2002, apud SILVA, p. 410, 2015). Assim, como foi explicitado no presente artigo, a segurança jurídica e os direitos civis dos acatólicos só seriam efetivados, de fato, na República, com o casamento civil e, posteriormente, em 1916, com o Código Civil, que retirava das mãos eclesiásticas o controle sobre registros de nascimentos, casamentos e óbitos (RODRIGUES, 2008); tudo isso devido ao fim da Monarquia e, consequentemente, de seu fundamento simbólico católico, porque, no Brasil, “as estruturas parecem ter tido um peso muito maior do que os indivíduos no processo histórico” (SILVA, 2015, p. 411). E, ainda assim, como mostrado, o casamento religioso – em especial, pela intervenção da Igreja Católica – não sofreu e, até hoje, não sofre todas as restrições que, anteriormente, foram impostas aos casamentos acatólicos.

225

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890. Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2016. BRASIL. Decreto nº 521, de 26 de junho de 1890. Disponível em : . Acesso em: 30 ago. 2016. BRASIL. Lei no 1.144, de 11 de setembro de 1861. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2016. CARVALHO, José Murilo de. Primeiros passos (1822-1930). In: CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, pp. 70 – 72. COSTA, Divalnir José da. A Família nas Constituições. Brasília, v. 43, n. 169, pp. 13 - 19, jan./ mar. 2006. FREITAS, A. T. de. Código Civil – Esboço. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert, 1860. 1103 p. GRINBERG, Keila. Código Civil e Cidadania. 3a edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. A Igreja e a codificação da união civil (pp. 37–43). LÉVAY, Emeric. A Codificação do Direito Civil Brasileiro pelo Jurisconsulto Teixeira de Freitas. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2016. MORAU, Caio. Casamento católico com efeitos civis: História do Casamento no Brasil. Disponível

em:

.

Acesso em: 26 jun. 2016. MARTINS, Maria Fernanda Vieira. A velha arte de governar: o Conselho de Estado no Brasil Imperial. Revista Topoi, v. 7, n. 12, jan.-jun., 2006, pp. 178-221. NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império: Nabuco de Araújo: sua vida, suas opiniões, sua época. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1899. 414 p.

226

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

OBEID, Rafael Issa. Regulação do casamento no século XIX: entre a Igreja e o Império. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 18, n. 3472, 2 jan. 2013, pp. 1 – 3. Disponível em: . Acesso em: 19 jun. 2016. RODRIGUES, Cláudia. Sepulturas e sepultamentos de protestantes como uma questão de cidadania na crise do Império (1869-1889). Revista de História Regional, [S.l.], v. 13, n. 1, pp. 25 – 26 e 35, Verão. 2008. SILVA, Ivo Pereira. Do Casamento Misto ao Casamento Civil no Brasil: debates parlamentares em torno do matrimônio na segunda metade do século XIX. Revista Portuguesa de História, Coimbra, v. 46, pp. 399-411, jul. 2015. SILVA, P. Demétrio Gomes da Silva. Os efeitos civis do casamento religioso a partir do Código Civil de 2002. Pontifício Instituto Superior de Direito Canônico. 2011. Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2016.

227

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

PUNITIVE DAMAGES NO DIREITO DO CONSUMIDOR BRASILEIRO Patricie Barricelli Zanon1 Submetido(submitted): 9 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 21 de outubro de 2016 RESUMO O presente artigo pretende analisar as controvérsias quanto à aplicação da doutrina dos punitive damages ao Direito do Consumidor no Brasil, a fim de identificar as vantagens e desvantagens da utilização dessa doutrina no âmbito das relações de consumo brasileiras. O método aplicado ao trabalho foi a pesquisa bibliográfica de doutrina nacional e internacional sobre o tema, bem como a análise de casos e jurisprudência. Ao fim da análise, constatou-se que enquanto parte da doutrina e da jurisprudência enfatiza as vantagens da aplicação do instituto ao Direito do Consumidor no Brasil, outra destaca elementos que considera uma ofensa ao sistema jurídico brasileiro. Desta forma, considerando os argumentos de ambos os entendimentos, o trabalho conclui que a aplicação do instituto ao Direito do Consumidor no Brasil pode torná-lo mais efetivo, desde que restrito a algumas hipóteses definidas, segundo determinados critérios e respeitando as particularidades do sistema jurídico brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: indenização punitiva; teoria do desestímulo; Direito do Consumidor. ABSTRACT This paper aims to analyze the contentious issues related to the introduction of punitive damages doctrine to Brazilian consumer law in order to verify if its application would make consumer protection more effective. The method applied to this paper was the bibliographic research in national and international doctrines and case law. At the end of the analysis, it was verified that while part of the scholars and judges highlight the advantages of the institute`s application in consumer law, others present some questionable elements that they consider a threat to Brazilian legal system. To sum up, considering the reasons from both positions, the paper concludes that the institute`s application to Brazilian consumer protection would make it more effective if it was applied in certain well defined hypothesis, according some determined criteria and respecting the particularities of Brazilian legal system. KEYWORDS: punitive damages; deterrence theory; consumer protection law. A DOUTRINA DOS PUNITIVE DAMAGES Embora as origens do instituto dos punitive damages remetam à Inglaterra, é inegável que foi nos Estados Unidos que tal instituto mais se desenvolveu. O primeiro precedente de aplicação de punitive damages nos Estados Unidos remonta a 1784, no caso Genay v. Norris, em que foi aplicado como punição à má-fé do réu. Contudo, não estando a doutrina bem delineada na época, o instituto era utilizado muitas vezes de forma compensatória. Apenas em 1851 seus contornos foram definidos, com a deliberação da 1

Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito das Relações de Consumo pela Pontifícia Universidade Católica PUC–SP.

229

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Suprema Corte do país, no sentido de que constituiria princípio estabelecido do Common Law a imposição pelo júri, em ações de indenização e em todos os casos de responsabilidade civil, de exemplary, punitive ou vindictive damages, tendo em consideração o grau da ofensa praticada pelo réu. Posteriormente, em 1964, com o julgamento do caso Rookes v. Barnard, estabeleceu-se, com maior precisão, a natureza punitiva dos exemplary damages (ANDRADE, 2009, p. 180). Segundo a doutrina firmada desde então, tem-se que o instituto dos punitive damages representa uma espécie de indenização punitiva, isto é, um tipo de indenização de valor variável que se soma à indenização compensatória, quando o dano advenha de uma conduta ofensiva baseada em grave negligência, má-fé ou dolo, com o intuito de punir o ofensor e não apenas de reparar o dano (MORAES, 2007, p. 7). Nesse diapasão, verifica-se que o instituto dos punitive damages nos Estados Unidos deve ser estudado no âmbito da Tort Law, isto é, ramo do Direito que estuda a indenização que visa remediar dano causado por um tort, isto é, um ilícito civil, também como conhecido como civil wrong (GARNER, 1999, p. 1195). Note-se que, dentro do ramo da responsabilidade civil norte-americana, uma categoria em que se destaca a utilização dos punitive damages é a product liability, categoria esta que integra a proteção do consumidor (GARNER, 1999, p. 982). Vale observar que a responsabilidade por danos causados ao consumidor, em regra, é imposta sem o conhecimento sobre a existência de culpa (como negligência ou intenção/dolo), nos moldes da chamada strict liability, que em muito se assemelha à responsabilidade objetiva do Direito brasileiro (MERRIAM-WEBSTER, 1996, p. 291). Neste sentido, verifica-se que, a princípio, segundo o texto do Restatement (Second) of Torts, parágrafo 908 (1) (1979), o instituto dos punitive damages possui duas finalidades principais: a punição do ofensor e o desestímulo de práticas semelhantes. Contudo, ressalta-se a existência de outras funções secundárias, dentre as quais se destaca a proteção do consumidor contra práticas comerciais fraudulentas ou ofensivas à boa-fé (OLIVEIRA, 2012, p. 32). Imperioso ressaltar que a doutrina dos punitive damages norte-americana é parte integrante de um sistema jurídico conhecido como Common Law (Direito Costumeiro), o qual tem como fundamento a regra do Stare Decisis, também conhecida como Doctrine of Precedents (Regra dos Precedentes). A referida regra determina que o precedente, isto é, uma única ou várias decisões de uma appelate court, órgão coletivo de segundo grau, obriga

230



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

sempre o mesmo tribunal ou os juízes que lhe são subordinados e constitui a principal fonte de Direito, embora existam leis e normas que também o integram (SOARES, 2000, p. 40). Nesta senda, convencionou-se dizer que a Common Law constrói-se basicamente a partir de fatos concretos, ou seja, de experiências vivenciadas, de forma que a evolução das regras e critérios de aplicação dos punitive damages se deu com base em casos concretos e emblemáticos. O primeiro caso de aplicação de punitive damages, em razão de defeito de produtos, data de 1852, ano a partir do qual a jurisprudência começou a moldar os contornos internos do instituto, que ganhou uma nova dimensão em razão de dois casos emblemáticos relacionados à comercialização do medicamento MER 29, cujo objetivo era a redução do colesterol. Descobriu-se que a referida droga era causa de sérios efeitos colaterais, como, por exemplo, catarata nos olhos, tendo a droga sido administrada em aproximadamente 4.000 pessoas, rendido por volta de US$ 7 milhões, e gerado 490 casos de catarata relatados, sendo que os dois primeiros julgamentos sobre o ocorrido tornaram-se leading cases. Em 1967, em Roginsky v. Richardson, em sede de apelação, houve reforma da decisão excluindo os punitive damages arbitrados na sentença, com base nos argumentos de que não havia provas bastantes que indicassem que a má-fé ou abuso na conduta do fabricante e que a distribuição do produto em larga escala dera causa a inúmeros processos judiciais, o que poderia resultar na imposição de indenizações punitivas cumulativas, gerando um valor punitivo excessivo. Contudo, dois meses mais tarde em Toole v. Richardson-MerrelInc, foi fixado pelo júri além da indenização, o valor de US$ 500.000,00 adicionais como punitive damages que, mais tarde, foram reduzidos pelo juiz para US$ 250.000,00, pois se constatou que a empresa fabricante agira com malícia, uma vez que sabia que o produto não era totalmente seguro, já que previamente havia realizado testes em animais e os resultados já apontavam a possibilidade do desenvolvimento de catarata nos olhos, além de distorcer alguns relatórios e não comunicar aos usuários sobre os efeitos colaterais (JUSTIA US LAW, 1967). Note-se que, a partir de então, definiu-se que os punitive damages, no sentido de dissuasão teriam papel relevante principalmente em casos em que seria economicamente mais vantajoso para o fabricante pagar indenizações compensatórias às vítimas do que investir na correção do defeito do produto. Nessa esteira, o caso mais representativo do uso dos punitive damages como mecanismo para buscar alterar a forma dos fornecedores de administrarem seus produtos, superando um raciocínio unicamente econômico, é conhecido como Ford Pinto case.

231

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

No referido caso, ocorrido em 1972, foram arbitrados punitive damages no valor de US$ 125 milhões, além de verbas compensatórias para Grimshaw e herdeiros de sua avó, pois em laudo técnico constatou-se que o tanque do combustível havia se rompido com o impacto de uma colisão traseira e o líquido vazara para o compartimento dos passageiros, sendo que verificou-se, em relatórios, que os engenheiros da Ford haviam descoberto em testes realizados antes da colocação do veículo no mercado, a possível ocorrência deste defeito. Porém, como a linha de produção já se encontrava pronta, passaram a comercializar o produto de acordo com o projeto original, embora cientes de que ajustes de baixo custo poderiam solucionar o problema. Cumpre informar que matéria jornalística publicada pouco tempo após o julgamento de Grimshaw, expôs que os defeitos do Ford Pinto teriam sido causa da morte de pelo menos 500 pessoas. Ainda na mesma matéria, foi revelado um memorando interno da empresa Ford, na qual fazia a comparação de gastos entre os custos que teria em média com as indenizações envolvendo o produto Ford Pinto e, de outro lado, o montante que seria gasto para corrigir os veículos com defeito. A conclusão do referido memorando era no sentido de que, estatisticamente, o pagamento de indenizações seria mais vantajoso sob o aspecto econômico, do que os gastos que teria para prevenir cerca de 180 mortes por ano, além de um número estimado de feridos (MOTHER JONES, 1977). Mais adiante, em 1990, em um novo precedente foi abordada a importância da existência de balizas que indicassem padrões para a fixação dos punitive damages, no julgamento do caso BMW of North America. Inc. v. Gore, no qual a Suprema Corte utilizouse de alguns critérios que desde então passaram a ser utilizados como fatores indicativos para cálculo da quantia devida a título de punitive damages (JUSTIA US LAW, 1995; MAYER BROWN, 2012). A partir de então, de acordo com o caso supramencionado, foram estabelecidos três guideposts, ou seja, critérios, a fim de orientar e balizar a fixação dos punitive damages, identificando eventual excessividade: grau de reprovabilidade do réu; proporção entre dano efetivo ou potencial e a indenização punitiva; e diferença entre indenização e penalidades civis ou criminais previstas para casos similares (MORAES, 2004, p. 62). Note-se que esses critérios foram confirmados no julgamento do caso State Farm v. Campbell e constituíram a estrutura da doutrina dos punitive damages (JUSTIA US LAW, 2002).

232



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NO BRASIL O sistema jurídico brasileiro, conhecido como civil law, baseia-se na tradição romanogermânica e tem como principal característica o fato de que seus princípios mais relevantes encontram-se compilados em códigos, os quais representam a fonte primária da lei, relegando a jurisprudência a segundo plano, ao contrário do que ocorre nos EUA. Note-se que no sistema legal brasileiro existe uma hierarquia entre as leis, dentre as quais a Constituição Federal (BRASIL, 1988) é considerada a lei maior, isto é, está em uma posição de supremacia entre as demais, servindo de fundamento de validade, de modo que todas devam estar adequadas a seus preceitos. Neste contexto, observa-se que o artigo 170 da Constituição Federal dispõe que a ordem econômica tem como objetivo garantir a todos uma existência digna, ou seja, condições mínimas e indispensáveis para que todo ser humano seja capaz de realizar-se de forma plena, sendo que a estruturação da ordem econômica a fim de alcançar o objetivo almejado deve, necessariamente, se pautar em determinados princípios, dentre os quais se destaca seu inciso V – defesa do consumidor. Insta salientar que a previsão constitucional da defesa do consumidor tem base no artigo X, inciso III, da Constituição Federal que, ao dispor sobre os fundamentos da República Federativa do Brasil, se refere à garantia à dignidade da pessoa humana, sendo que o conceito de dignidade deve ser entendido de forma ampla, abarcando além da vida biológica, a realização de diversos direitos fundamentais e sociais, que garantem não apenas a mera existência, mas uma existência sadia. Ademais, a defesa do consumidor, como um princípio obrigatório cujo intuito é garantir a qualidade de vida e protegê-la de eventuais violações foi construída em razão da observância de uma situação peculiar e intrínseca às relações de consumo: a existência de um grande desequilíbrio entre as partes do qual decorre a chamada vulnerabilidade do consumidor, uma vez que, conforme ensina Filomeno (2008, p. 3): “(...) diante do fornecedor, aquele que oferece produtos e serviços no mercado, ele é considerado a personagem menos informada, ao contrário do fornecedor, que detém todas as informações a respeito do seu produto ou serviço que presta. Além disso, tem pouco ou quase nenhum poder diante de um conflito que possa surgir entre eles. Por outro lado, é obrigado em última análise, a submeter-se às práticas de mercado e, sobretudo as cláusulas contratuais na sua grande maioria constantes de contrato de adesão, não tendo qualquer oportunidade de influir na sua redação”.



233

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Há que se observar que, com o intuito de viabilizar as realizações de seus próprios dispositivos constitucionais no que se refere à defesa e proteção do consumidor, a Constituição Federal prevê em seu artigo 275 a imposição ao Estado de criar uma política governamental própria, além de medidas de orientação e fiscalização, definidas em lei, que definirá, ainda, direitos básicos dos consumidores, bem como mecanismos de estímulo à autoorganização da defesa do consumidor, da assistência judiciária e policial especializada e de controle de qualidade e serviços públicos. Ademais, em seu artigo 276, a Constituição Federal prevê a criação de um Sistema Estadual de Defesa do Consumidor, isto é, um sistema integrado por vários órgãos públicos de diferentes áreas, com função de tutelar e promover os consumidores de bens e serviços, sendo que seu órgão deliberativo deve ser o Conselho Estadual de Defesa do Consumidor. Além disso, é imperioso ressaltar que o artigo 48 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) é mais específico ainda no que tange à necessidade de proteção e defesa do consumidor, pois impõe ao Estado o dever de elaborar lei específica sobre o tema, ou seja, o Código de Defesa do Consumidor. Neste diapasão, em resposta aos mandamentos constitucionais já analisados, é que em 11 de setembro de 1990, foi promulgada a Lei nº 8.078 de 1990 (BRASIL, 1990), a qual criou o Código de Defesa do Consumidor (CDC) que, embora seja norma privada, é considerado mandamento de ordem pública e força cogente, em razão de sua força constitucional. Tal norma representa uma compilação de normas que têm como ideia comum a proteção dos consumidores. Outrossim, o CDC, além de elencar princípios norteadores e direitos básicos do consumidor, procura trazer a proteção ao consumidor em diversos momentos, dentre os quais se destaca a questão da responsabilidade civil e o dever de indenização. O artigo 6 do referido diploma legal, ao elencar os direitos básicos do consumidor em seu inciso VI, estabeleceu a garantia do direito à efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos. Nesse sentido, em consonância com o artigo supramencionado, o capítulo IV do CDC – Da Qualidade de Produtos e Serviços, da Prevenção e da Reparação dos Danos –, em suas Seções II e III, trata, respectivamente da Responsabilidade pelo Fato do Produto e do Serviço e da Responsabilidade pelo Vício do Produto ou do Serviço. Cumpre esclarecer que, ainda que o Código Civil (BRASIL, 2002) já tenha regras

234

definidas sobre a aplicação da responsabilidade civil, no CDC foi instituído um sistema de

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

responsabilidade civil diferenciado, uma vez que enquanto o primeiro aborda as regras gerais para civis que se encontram em igualdade, o segundo prevê o tratamento especial, isto é, desigual para os consumidores, em razão de sua vulnerabilidade. Assim, observa-se que a responsabilidade civil no CDC em regra é objetiva, isto é, comprovada a existência de um dano e o nexo causal (a relação de causa entre a conduta do agente e o resultado danoso), configura-se a responsabilidade, independentemente da apreciação de culpa do ofensor (BENJAMIN et al, 2013, p. 163). Além da responsabilidade objetiva, vale destacar que outro aspecto marcante do sistema de responsabilidade civil do CDC é que, em regra, a responsabilidade civil é solidária (nos moldes do art. 264 do Código Civil) entre todos os agentes econômicos envolvidos na relação de consumo. MUDANÇA DE PARADIGMA DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO DIREITO DO CONSUMIDOR: RECONHECIMENTO DA FUNÇÃO PUNITIVA É cediço que, em relação à responsabilidade civil, a aplicação do Código Civil e seu modelo tradicional é meramente subsidiária, sendo a regra o sistema diferenciado do CDC, cunhado com o objetivo de proteger o consumidor vulnerável, garantindo-lhe a reparação devida por danos causados em razão de fato do produto ou de serviço. Não obstante todos os esforços no sentido de blindar os direitos do consumidor, garantindo seu direito de reparação e assegurando sua tutela, parte da doutrina tem entendido que o atual modelo de responsabilidade civil por danos aos consumidores, embora proporcione a reparação, não tem sido suficiente para garantir, com eficácia, a violação de seus direitos. Há que se considerar que, de acordo com parcela da doutrina, atualmente, se a produção se dá em série, os conflitos também se dão em série, uma vez que os fornecedores, movidos pela busca incessante do lucro, costumam serem adeptos à prática do “capitalismo selvagem”, isto é, avaliar economicamente se seria mais vantajoso atender às demandas dos consumidores e apresentar produtos seguros e de boa qualidade, ou apenas pagar eventuais indenizações quando necessário (ROLLO, 2011, p. 73). Segundo Andrade (2009, p. 256), muitos fornecedores deixam de investir em mecanismos de prevenção e controle de qualidade mais rigorosos sobre os serviços prestados, ou ainda colocam no mercado produtos de qualidade inferior ou que não atendem a determinados padrões de segurança, pois tem certeza de que os eventuais gastos relacionados ao pagamento de verba indenizatória seriam economicamente mais vantajosos.

235

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Diante do referido fenômeno, parcela da doutrina entende que uma das causas que vem estimulando o comportamento antiético dos fornecedores pode ser representada pelas indenizações afixadas em valores irrisórios (ROLLO, 2011, p. 73). Verifica-se, portanto, que este cenário é propício para o desenvolvimento e a intensificação do debate sobre a aplicação de indenização com caráter punitivo no âmbito das relações de consumo, pois grande parte da doutrina e da jurisprudência tem defendido a introdução do instituto como uma forma de elevar seu poder de punir os fornecedores que desrespeitam os direitos dos consumidores, bem como coibir a reincidência de suas condutas maliciosas. Segundo Andrade (2009, p. 220), este é o momento para discutir, seriamente, a introdução do paradigma penal no âmbito da responsabilidade civil, isto é, a superação da premissa de que, na esfera civil, a resposta jurídica ao dano deve ser, exclusivamente, a reparação. A corroborar, Oliveira (2012, p. 53) afirma que, é necessária a alteração do referido modelo e reconhece ao lado de sua tradicional função reparatória as funções preventivas e punitivas. Saliente-se que, além de prevenir as práticas abusivas, a fim de superar a crise de eficácia do atual paradigma de responsabilidade civil na defesa do consumidor, para parte da doutrina tem se mostrado essencial a introdução da função punitiva, pois há situações em que a reparação e a prevenção do dano não obterão a eficácia pretendida. Nessas hipóteses, é importante que exista a função punitiva da responsabilidade civil, a fim demonstrar ao consumidor que ainda que não tenha sido possível prevenir o dano ou repará-lo integralmente, haverá alguma retribuição (ANDRADE, 2009, p. 299). APLICAÇÃO DOS PUNITIVE DAMAGES AO DIREITO DO CONSUMIDOR NO BRASIL: TEORIA DO DESESTÍMULO E DA JURISPRUDÊNCIA Conforme demonstrado, houve uma intensificação no debate sobre a função punitiva da indenização por dano moral, bem como sobre a necessidade de alteração do paradigma tradicional de responsabilidade civil no âmbito das relações de consumo no Brasil. Verificou-se, ainda, que os defensores da aplicação do instituto dos punitive damages encontram os fundamentos para sua introdução no ordenamento jurídico pátrio. Nesse diapasão, com base na teoria norte-americana, desenvolveu-se no Brasil a chamada teoria do desestímulo, cujo rol de renomados defensores alberga o ilustre Professor Carlos Alberto Bittar, e, por vezes, tem sido o fundamento das decisões judiciais nacionais

236

que aplicam os punitive damages.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Insta salientar que, de acordo com a referida doutrina, na fixação da indenização pelos danos morais sofridos, deve o Magistrado estabelecer um valor capaz de impedir ou dissuadir práticas semelhantes, assumindo forma de verdadeira punição criminal no âmbito civil (DELGADO, 2004, p. 217). A corroborar, Bittar complementa afirmando que, se por um lado é necessário que o agente sinta as consequências da resposta do ordenamento jurídico para que o sistema tenha eficácia, por outro se faz mister dotar-se a reparação cabível de expressão que sirva de exemplo para a sociedade, tudo para a realização de sua função inibidora (BITTAR, 1994, p. 229). Frise-se que, embora não seja pacífica a aplicação da teoria em análise, existindo divergências sobre seu conteúdo, esta vem sendo bastante utilizada pela jurisprudência. Em notícia de 2009 do Superior Tribunal de Justiça (STJ ) sobre a quantificação do dano moral, o então presidente da Terceira Turma, ministro Sidnei Beneti, ao discorrer sobre os critérios adotados pelo STJ para quantificação do dano moral, destacou a avaliação do comportamento do ofensor para determinar o valor da indenização e a importância do fator do desestímulo: “Quanto ao ofensor, considera-se a gravidade de sua conduta ofensiva, a desconsideração de sentimentos humanos no agir, suas forças econômicas e a necessidade de maior ou menor valor, para que o valor seja um desestímulo efetivo para a não reiteração” (MIGALHAS, 2009). Ainda tratando da importância da teoria do desestímulo, tem-se o voto da ministra Nancy Andrighi, em que ambas as partes pediam a alteração do quantum indenizatório fixado em razão de acidente de carro, cuja causa fora defeito de fabricação do produto e provocou a morte de familiares dos autores. A ministra, levando em conta critérios de razoabilidade para quantificação (inclusive a possibilidade de enriquecimento ilícito), ressalta que em razão das circunstâncias do caso concreto, em caráter de excepcionalidade, o valor da indenização não pode ser aquele comumente aplicado pelo Tribunal, a fim de que se possa atender à função social da condenação, qual seja, o desestímulo da reincidência (STJ, 2008). Nessa mesma linha de entendimento, em recente decisão que versa sobre recusa da operadora de plano de saúde em autorizar tratamento a que estivesse legal ou contratualmente obrigada, o ministro Sidnei Benneti, a exemplo do já decidido em 2012 (STJ, 2012), considerou devidos os danos morais, observando o caráter de desestímulo e o combate ao enriquecimento ilícito (STJ, 2013).



237

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Insta salientar que, além do STJ, os Tribunais de Justiça (TJ) também vem entendendo ser cabível o caráter punitivo da indenização como forma de desestímulo, desde que observados os parâmetros da razoabilidade. À guisa de exemplo tem-se a decisão do desembargador Paulo Barcellos Gatti do Tribunal de Justiça de São Paulo, bem como a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em razão da discussão sobre quantum indenizatório devido em ação contra empresa de telefonia (TJ-RS, 2013; TJ-SP, 2014). Entretanto, não se pode olvidar que, independente da tendência jurisprudencial de aplicação da teoria da indenização punitiva ao direito brasileiro, inclusive no âmbito das relações de consumo, ainda existem decisões no sentido contrário, como o julgamento de apelação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, segundo o qual o ordenamento jurídico pátrio prescinde de amparo legal para a existência da teoria do desestímulo (TJ-MG, 2011). Há que se observar que os fundamentos das decisões que denegam a aplicação da teoria do desestímulo e da indenização punitiva, em geral são compartilhados por parcela da doutrina e representam objeto das controvérsias quanto à aplicação no Brasil. Desse modo, faz-se mister analisar as principais controvérsias relativas à aplicação da indenização punitiva no Brasil, em especial no âmbito das relações de consumo. PRINCIPAIS CONTROVÉRSIAS QUANTO À APLICAÇÃO DA INDENIZAÇÃO PUNITIVA NO BRASIL Separação entre direito público e privado Sem dúvida uma das principais objeções à aplicação da indenização punitiva no Brasil que se destaca é a alegação de contrariedade ao modelo jurídico tradicional brasileiro de separação das esferas pública e privada do Direito, na medida em que se trata de um instituto civil, embora possua natureza penal. Vale lembrar que no ordenamento jurídico brasileiro parte-se do princípio que responsabilidade civil somente seria destinada a reparar ou ressarcir o dano, tanto material quanto moral, de modo que às situações voltadas ao caráter pedagógico ou sancionador, deveriam ser aplicados os preceitos de direito público e a questão da censura ao ato ilícito ficaria restrita apenas à responsabilidade penal que, em razão de pertencer a outro grupo, se manteria afastada da civil (RESEDÁ, 2009, p. 271). Nesse sentido, segundo parcela da doutrina, a introdução do instituto da indenização punitiva no Brasil ensejaria a criação de um sistema paralelo, que se situaria entre o âmbito

238

civil e o penal, configurando um sistema misto civil-penal, um sistema eclético, inadmissível

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

e impraticável dentro da técnica jurídica, uma vez que se trata de ramos que possuem particularidades muito específicas que os distinguem e os colocam em lados diametralmente opostos (DELGADO, 2004, p. 219). Entretanto, não obstante as críticas que se faz em relação à mescla de ramos do Direito, insta salientar que parcela da doutrina defende a aplicação da teoria do desestímulo no Direito brasileiro e considera saudável e necessária a fusão dos ramos público e privado, de modo a admitir o caráter sancionatório da indenização civil como forma de equilibrar as novas relações econômicas e sociais, das quais decorrem comportamentos reincidentes e abusivos, principalmente no que se refere ao Direito do Consumidor (MORAES, 2007, p. 25; ANDRADE, 2009, p. 230). Ademais, Oliveira afirma que “no que tange ao fato a aplicação de uma sanção de natureza penal no âmbito do Direito Civil, temos que tal fusão não é, nem deve ser, novidade para o nosso direito pátrio” e exemplifica citando a cláusula penal, juros de mora, pagamento em dobro, astreintes e a restituição em dobro prevista no Código de Defesa do Consumidor (OLIVEIRA, 2012, p. 72). Por outro lado, Theodoro Junior, reafirmando seu posicionamento em defesa da separação absoluta entre os ramos do Direito, assevera que ainda para tais institutos a separação se mantém, pois não possuem verdadeiramente a função de punir, mas apenas de assegurar obrigações civis (THEODORO JUNIOR, 2001, p. 61). Os defensores da aplicação do instituto no Brasil, por sua vez, a exemplo de Salomão Resedá, entendem que a insistência na separação absoluta dos sistemas e a negação do caráter punitivo em relação à responsabilidade civil representam um retrocesso para o Direito brasileiro, pois atualmente deve-se ter em mente o objetivo de garantir a efetiva proteção à pessoa e, consequentemente, à sociedade (RESEDÁ, 2009, p. 274). Desse modo, resta claro que inexiste uma convergência de opiniões no que tange à separação entre direito público e privado. Uma vez que, enquanto uns negam o caráter punitivo da indenização, outros enxergam na pena privada uma mudança necessária para o processo evolutivo da responsabilidade civil, a fim de assegurar a resolução dos novos conflitos da sociedade moderna. Ofensa ao princípio da legalidade Outra crítica feita com frequência à aplicação do instituto da indenização punitiva é a ofensa ao princípio da legalidade. Conforme citado previamente, o Brasil é um país regido pelo sistema jurídico da civil law, isto é, se desenvolve com base em leis e normas e, nesse contexto, destaca-se o artigo 5,

239

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

inciso II, da Constituição Federal, que explicita o princípio da legalidade, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e consagra a importância da lei no sistema jurídico nacional. Note-se que, de acordo com o princípio mencionado, o qual se espraia por todos os ramos do Direito, para que um instituto jurídico exista no ordenamento jurídico brasileiro, deverá obrigatoriamente encontrar respaldo em algum dispositivo legal, não podendo ser introduzido meramente em razão da experiência. Nesta esteira, para parcela da doutrina, a introdução da indenização punitiva no sistema brasileiro não encontra guarida no ordenamento jurídico nacional, uma vez que a indenização punitiva não encontra sustentação em qualquer dispositivo do nosso sistema legal. Frise-se que a ofensa ao princípio da legalidade tem ainda sido levantada como argumento para questionar decisões jurisprudenciais baseadas na teoria do desestímulo, a qual importa a utilização da indenização punitiva para território pátrio (THEODORO JUNIOR, 2001, p. 52). Outrossim, faz-se mister salientar que foram feitas inúmeras tentativas de tentar suprir a ausência de legalidade do instituto em questão, contudo, sem sucesso. Destacam-se dois projetos de lei: um na área cível e outro no ramo do Direito do Consumidor a fim de, respectivamente, introduzir no CDC, de forma expressa, uma versão brasileira do instituto; e outro de acrescentar um parágrafo segundo o artigo 944 do Código Civil, estipulando que a indenização constituir-se-ia tanto da compensação, como do adequado desestímulo ao lesante. Ressalte-se que ambos os projetos de lei não foram aprovados, uma vez que enquanto aquele referente à seara civil não se mostrava suficiente e eficaz (pois não estabelecia os critérios para aplicação do instituto, deixando-os nas mãos dos magistrados, o que poderia resultar em decisões arbitrárias), o outro que incluía o instituto no CDC foi vetado ante a alegação de que outras normas do próprio Código já dispunham “de modo cabal” sobre a reparação do dano sofrido pelo consumidor. Evidencia-se, portanto, que apesar das tentativas de dizimar esta celeuma, a questão da compatibilidade do instituto dos punitive damages com o princípio da legalidade ainda persiste e constitui um dos principais argumentos contrários à sua introdução no país. Todavia, embora de fato não exista no ordenamento jurídico brasileiro vigente qualquer referência explícita à aplicação dos punitive damages, há quem defenda que o instituto encontra raízes constitucionais no artigo 1o, inciso III e 5, incisos V e X da Carta Magna, os quais versam, respectivamente, sobre o princípio da dignidade humana (um dos fundamentos

240

do próprio estado democrático de direito), sobre o reconhecimento dos direitos de

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

personalidade e o direito à indenização por dano moral, além de configurar um instrumento para proteção das referidas garantias, uma vez que têm como objetivo trazer maior eficácia à responsabilidade civil, garantindo indenizações justas e preservando os direitos da personalidade e a dignidade dos indivíduos (ANDRADE, 2009, p. 238). Outrossim, os defensores da indenização punitiva no Brasil afirmam que embora se aproxime mais da seara penal do que outros institutos civis, este seria sim um instituto de ordem civil e, portanto, não estaria sujeito aos desdobramentos do princípio da reserva legal nessa seara (RESEDÁ, 2009, p. 276). Além disso, os defensores da aplicação da indenização punitiva no Brasil entendem que o artigo 944 do Código Civil, que preconiza que a reparação mede-se pela extensão do dano, combinado com seu parágrafo único, o qual determina a aferição de equidade e grau de culpa do ofensor pelo juiz no momento da fixação do dano, representa uma relativização do caráter exclusivamente restritivo da responsabilidade civil e, portanto, a indenização punitiva é aplicável ao Direito brasileiro (OLIVEIRA, 2012, p. 76). Por outro lado, segundo parcela da doutrina que possui opinião diametralmente oposta, o artigo 944 do Código Civil constitui uma proibição expressa em relação à utilização da indenização punitiva no Brasil. Especificamente em relação ao Direito do Consumidor, frisa-se que, embora alguns doutrinadores entendam não ser aplicável a indenização punitiva em razão da ausência de menção expressa, como já mencionado, na opinião de Oliveira há que se observar que o CDC já traz em seu bojo institutos civis que abarcam a função punitiva-preventiva (restituição em dobro do parágrafo único do artigo 42 e a astreintes que consta do artigo 84) e destacam sua importância, de tal sorte que não haveria qualquer óbice à aplicação do instituto dos punitive damages no âmbito das relações de consumo, pois estariam de acordo com a tendência que o diploma legal persegue. Desse modo, evidencia-se que a questão da legalidade da indenização punitiva no Brasil alberga opiniões díspares e, embora existam duras críticas a sua aplicação, parte da doutrina rebate-as, procurando demonstrar perfeita harmonia do instituto com o princípio da legalidade. Excesso nas indenizações Outra das principais críticas à aplicação dos punitive damages no Brasil é que, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, a introdução do instituto no Brasil poderia ensejar o arbitramento de indenizações completamente desproporcionais em relação ao dano, ou ainda, concedidas com base em motivos insignificantes.

241

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Segundo Moraes, nos EUA, desde os anos 70, observa-se uma tendência, especialmente no que se refere a danos decorrentes de acidentes de consumo (product liability), de que o valor das indenizações, quando em presença dos punitive damages, supera com alguma frequência a faixa de um milhão de dólares (MORAES, 2004, p. 56). Note-se que, como consequência natural deste arbitramento excessivo de indenizações, tem-se a criação de um estado de instabilidade da sociedade norte-americana, isto é, as pessoas convivem com o medo constante de serem processadas, em razão das circunstâncias comezinhas e de somenos importância (DELGADO, 2004, p. 277). Contudo, inobstante à ideia de que a aplicação dos punitive damages autoriza a fixação de indenizações excessivas e injustas, há quem defenda que esta tendência não atingiria o Brasil do mesmo como se deu nos EUA, em função da estrutura do sistema jurídico vigente. Como mencionado, nos EUA a indenização é arbitrada pelos júris, composto por cidadãos leigos, de forma que a ausência de tecnicidade e imparcialidade, para alguns autores, contribuiria para um excesso na fixação do quantum indenizatório, especialmente nas questões relativas ao Direito do Consumidor. No Brasil, contudo, as causas de responsabilidade civil são julgadas por juízes togados que devem julgar de maneira técnica e imparcial. Ademais, os defensores da aplicação dos punitive damages no Brasil ressaltam que a garantia ao duplo grau de jurisdição garante a revisão de decisões de primeiro grau, de tal sorte que, havendo uma sentença excessivamente desproporcional, o Tribunal poderá reformá-la (ANDRADE, 2009, p. 273). Além do mais, sendo a indenização por dano moral matéria de cunho constitucional, tanto o STJ, como o Superior Tribunal Federal (STF) apresentam competência para julgamento, de tal sorte que pode haver revisões sucessivas em relação ao quantum indenizatório (ANDRADE, 2009, p. 274). Assim, embora o excesso no valor das indenizações seja objeto de grande indignação em relação à aplicação da indenização punitiva no Brasil, há quem entenda desnecessária tal preocupação, em razão da estrutura legal que resguarda nosso sistema de responsabilidade civil. Enriquecimento sem causa e indústria do dano moral Outra crítica que se faz à aplicação da indenização punitiva no Brasil é o enriquecimento sem causa do ofendido, já que no Brasil o valor fixado a título de punitive damages tem sido direcionado à vítima (SCHREIBER, 2013, p. 213).

242



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Nesse sentido, Delgado alerta para o fato de que o possível enriquecimento sem causa pode ensejar a criação de uma indústria do dano moral, na qual as pessoas sentir-se-iam estimuladas pelo vultoso valor das indenizações a ingressar em juízo, com ações temerárias, visando à reparação de danos morais (DELGADO, 2004, p. 243). Inobstante os argumentos de parcela da doutrina que corrobora com o entendimento acima exposto, há que se ressaltar a existência de opiniões diversas segundo as quais não há que se falar em enriquecimento sem causa, pois os punitive damages se fundam na previsão legal de reparação de um dano causado por ato lesivo (MORAES, 2007, p. 302). Ainda, vale lembrar que tem se desenvolvido no Brasil uma corrente que admite a existência do enriquecimento da vítima, embora este não seja sem causa, porém entende que esse não pode ser um óbice à função social de sua aplicação, uma vez que, segundo o princípio da proporcionalidade, o enriquecimento não seria uma consequência relevante ante os benefícios sociais da indenização punitiva (ANDRADE, 2009, p. 276). Dessa forma, diante das controvérsias e a fim de evitar o enriquecimento sem causa do ofendido, mas garantindo a função social da indenização punitiva, alguns doutrinadores sugerem a destinação da verba indenizatória a estabelecimentos de beneficência ou fundos públicos em benefício da sociedade, assim como já ocorre, em alguns casos, nos Estados Unidos e na Polônia. Assim sendo, conclui-se que há grande celeuma em relação à existência ou não do enriquecimento sem causa como decorrência da aplicação dos punitive damages no Brasil, sem que haja um consenso de opiniões. Pressupostos específicos da aplicação dos punitive damages ao Direito do Consumidor no Brasil Compreendidas as principais controvérsias acerca dos punitive damages no Direito brasileiro, faz-se mister ressaltar que os defensores desta doutrina entendem que o instituto é perfeitamente aplicável ao ramo do Direito do Consumidor desde que, além dos pressupostos gerais do dever de indenizar (dano, nexo causal e conduta) já estudados em capítulo anterior, estejam presentes os seguintes pressupostos específicos: ocorrência de dano moral e culpa grave do ofensor. Ocorrência de dano moral Como já explanado, em outros países, a exemplo dos Estados Unidos, a aplicação dos punitive damages não exclui as hipóteses de indenização por dano material. Contudo, no Brasil, a utilização do referido instituto encontra grande resistência por parte da doutrina e da

243

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

jurisprudência não apenas pela ausência de regra expressa, mas, principalmente, em razão da disposição legal no sentido que a indenização material será medida pela extensão do dano. Desse modo, ao se aplicar uma indenização punitiva majorada ainda que com caráter preventivo, haveria uma violação direta a esta, razão pela qual entende-se ser pressuposto para a aplicação dos punitive damages no Direito brasileiro a ocorrência de dano moral. Segundo Andrade, no que tange aos danos morais, a ausência de regra específica no ordenamento jurídico brasileiro sobre a aplicação dos punitive damages não impede a utilização do instituto, pois este se fundamenta em princípios constitucionais que têm como objetivo a proteção de determinados direitos. Outrossim, no que se refere aos danos morais, inexiste a correlação entre indenização e extensão do dano, uma vez que este é de valor imensurável, implicando uma aferição subjetiva, sem qualquer precisão. Dessa forma, considerando que o Direito do Consumidor no Brasil admite reparações tanto de danos patrimoniais como extrapatrimoniais, não haveria óbices à aplicação dos punitive damages nessa seara, desde que a aplicação de tal instituto se limite às hipóteses de ocorrência de dano moral (ANDRADE, 2009, p. 263). Culpa grave do ofensor Primeiramente, vale lembrar que, no que tange à responsabilidade civil no Brasil, tanto no âmbito do Direito Civil como no Direito do Consumidor, a culpa é tratada de forma ampla, ou seja, desconsidera-se o grau de culpa (grave, leve, levíssima) do agente ofensor, sendo a indenização medida pela extensão do dano. Contudo, de acordo com Andrade (2009, p. 265) quando se trata de indenização punitiva, em razão de seus aspectos retributivo e preventivo, é imprescindível que se faça a referida diferenciação entre as espécies e os graus de culpa, de tal sorte que a indenização punitiva somente pode ser aplicada quando a conduta do agente tenha sido dolosa, isto é, intencional e consciente, ou quando este tenha agido com culpa grave que nos dizeres de Cavalieri é a atuação com “grosseira falta de cautela” (CAVALIERI FILHO, 2005, p. 57). Assim, parcela da doutrina se opõe à aplicação da indenização civil especificamente nas relações de consumo no Brasil, uma vez que a identificação da culpa grave é pressuposto desse instituto (MARTINS-COSTA; PARGENDLER, 2005, p. 21). De fato, os punitive damages não devem ser aplicados àqueles que respondem objetivamente, uma vez que essa responsabilidade é baseada apenas no risco de determinada atividade. Entretanto, segundo Andrade (2009, p. 268) devem-se fazer duas ressalvas à regra

244

geral supracitada: sempre que o dano moral decorrer de obtenção de lucro com ato ilícito, será

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

possível a aplicação dos punitive damages independentemente do grau de culpa do agente, uma vez que não seria razoável a manutenção por este da vantagem que obteve; na hipótese de responsabilidade objetiva, agindo o ofensor, comprovadamente, com dolo ou culpa grave, poderão ser aplicados os punitive damages, uma vez que a responsabilidade objetiva em nada impede que durante o trâmite do processo judicial seja comprovada a existência de dolo ou culpa grave. Assim, verifica-se que, segundo os defensores da aplicação dos Punitive Damages estes são aplicáveis ao Direito brasileiro e inclusive no Direito do Consumidor, porém requer-se que a conduta do agente tenha sido praticada com dolo ou culpa grave, configurando uma aplicação excepcional em hipóteses determinadas. CONCLUSÃO Ante todo o exposto, verifica-se que, embora a jurisprudência já aplique a indenização punitiva há algum tempo, com grande destaque na área consumerista, tendo inclusive construído uma teoria para aplicação dos punitive damages no Brasil, esta ainda é uma matéria incipiente e de grande celeuma na doutrina, pois enquanto alguns autores encontram verdadeiras impossibilidades na sua aplicação, outros afirmam que mais do que viável, se faz necessária a sua aplicação para criar um novo paradigma de responsabilidade civil que traga mais eficácia à proteção dos direitos do consumidor. Assim, levando em conta os argumentos de ambas as correntes, entende-se ser mais plausível um terceiro posicionamento que procura fundir ambos os argumentos. Ainda, entende-se ser necessária e relevante a aplicação do instituto enquanto instrumento de proteção dos direitos do consumidor, porém com as devidas adaptações ao sistema jurídico brasileiro (civil law) e reservado apenas para situações excepcionais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Dano moral e indenização punitiva: os Punitive Damages na experiência do common law e na perspectiva do direito brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. 340 p. BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos e Benjamin; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. 512 p.

245

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. 352 p. BRASIL. Código Civil. Congresso Nacional, 2002. BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Congresso Nacional, 1990. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Assembleia Nacional Constituinte, 1988. CAVALIERI FILHO, S. Programa de responsabilidade civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2005. 584 p. DELGADO, Rodrigo Mendes. O valor do dano moral: como chegar até ele. 2. ed. Leme: J.H Mizuno, 2004. 418 p. FILOMENO, José Geraldo de Brito. Curso fundamental de direito do consumidor. 2. ed. São Paulo, Ed. Atlas, 2008. 218 p. GARNER, Bryan A. Black’s law dictionary. 7. ed. Saint Paul: West Group, 1999. 1323 p. JUSTIA US LAW. BMW of North America, Inc. v. Gore case, 11 out. 1995. Disponível em: . Acesso em: 12 dez. 2013. JUSTIA US LAW. State Farm Mut.Automobile Ins. Co. v. Campbell case, 11 dez. 2002. Disponível em: . Acesso em: 13 dez. 2013. JUSTIA US LAW. Toole v. Richardson-Merrell Inc, 12 jun. 1967. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2015. MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva (punitive damages e o direito brasileiro). Revista CEJ, Brasília, n. 28, p. 15-32, jan/mar, 2005. MAYER BROWN. Punitive Damages After BMW of North America, Inc. v. Gore, 27 abr.

246

2012. Disponível em: . Acesso em: 11 dez. 2013. MERRIAM-WEBSTER. Merriam-Webster’s dictionary of law: your easy-to-understand guide to the language of law. Springfield: Merriam-Webster, 1996. 634 p. MIGALHAS. STJ busca parâmetros para uniformizar valores de danos morais, 14 set. 2009. Disponível em: . Acesso em: 7 set. 2015. MORAES, Maria Cecília Bodin. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 356 p. MORAES, Maria Cecília Bodin. Punitive Damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas. Revista trimestral de direito civil, v. 5, n. 18. Brasília: IBDCivil, 2004, p. 45-78. MOTHER JONES. Pinto Madness, set. 1977. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2013. OLIVEIRA, Rodrigo Pereira Ribeiro de. A responsabilidade civil por dano moral e seu caráter desestimulador. Belo Horizonte: Arraes Editora, 2012. 108 p. RESEDÁ, Salomão. A função social do dano moral. Florianópolis: Conceito Editorial, 2009. 316 p. ROLLO, Arthur Luis Mendonça. Responsabilidade civil e práticas abusivas nas relações de consumo: dano moral e punitive damages nas relações de consumo; distinções institucionais entre consumidores. São Paulo: Atlas, 2011. 183 p. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013. 278 p. SOARES, Guido Fernando Silva. Common law – introdução ao direito dos EUA. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. 197 p. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – STJ. AgRg no AREsp nº 148.113, 29 jun. 2012. Rel. Min. Sidnei Benneti. Disponível em: < stj.jus.br>. Acesso em: 12 out. 2015.

247

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

_______. AgRg no AREsp nº 1.373.969, 19 jun. 2013. Rel. Min. Sidnei Benneti. Disponível em: < stj.jus.br>. Acesso em: 12 out. 2015. _______. REsp. nº 1.036.485, 18 dez. 2008. Rel. Min. Nancy Andrighi. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2015. THEODORO JUNIOR, Humberto. Dano moral. 4. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2001. 369 p. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS – TJ-MG. Apelação nº 1.0701.09.2913378/001, 26 mai. 2011. Rel. Des. Dídimo Inocêncio de Paula. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2015. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL – TJ-RS. Apelação nº 70056112337, 18 dez. 2013. Rel. Des. Walda Maria Melo Pierro. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2015. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO – TJ-SP. Apelação nº 002717848.2011.08.26.0224, 3 fev. 2014. Rel. Des. Paulo Barcellos Gatti. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2015.

248



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

A ANÁLISE DO REQUISITO DE ADMISSIBILIDADE DA REPERCUSSÃO GERAL NOS RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS PELO STF, DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO E SUA RELAÇÃO COM O WRIT OF CERTIORARI NORTE-AMERICANO Arthur de Oliveira Calaça Costa1 Karen França de Oliveira2 Submetido(submitted): 16 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 24 de outubro de 2016 RESUMO Tomando como referência funcional no Direito Comparado o writ of certiorari do ordenamento jurídico norte-americano, o presente trabalho tem como objetivo investigar se há indícios de que tenha ocorrido violação do dever de fundamentação das decisões proferidas em plenário virtual que julgam a existência de repercussão geral nos recursos extraordinários e quais as suas implicações no Direito brasileiro face à regra do art. 93, IX, da Constituição Federal. Neste sentido, foi feito um estudo da conformação histórica do recurso extraordinário e do writ of certiorari, para que, em seguida, se procedesse a pesquisa empírica no portal do STF a fim de constatar a ocorrência, ou não, da hipótese de pesquisa, qual seja, a possibilidade de, uma vez vencido o relator quanto à existência de repercussão geral, restarem documentados um voto reconhecendo a existência e uma ementa, contraditoriamente, reconhecendo a inexistência de repercussão geral. PALAVRAS-CHAVE: Direito Comparado; dever de fundamentação; repercussão geral. ABSTRACT Having chosen the american writ of certiorari as a functional reference, the following article has as its main purport to analyze whether there is any indication that the grounding duty, displayed in the article 93, IX, of the Brazilian Constitution, has been violated by decisions ruled by the Virtual Court (“Plenário Virtual”), in which is decided the existence of general repercussion (“repercussão geral”), necessary requirement for the admission of appeals to the Brazilian Supreme Court. In such sense, a previous study concerning the historical development of the Brazilian extraordinary appeal and of the writ of certiorari made itself necessary; in the following step, we proceeded to an empirical research on the Brazilian Supreme Court website in order to assess whether this article’s research hypothesis had in fact occurred or not, which is, the possibility that, contradictorily, existed a judgement abstract against the existence of general repercussion once the referendary vote for its existence was not followed by the others. KEYWORDS: Comparative Law; constitutional jurisdiction; Brazilian Supreme Court.

1

Graduando em Direito pelo Instituto Brasiliense De Direito Público (IDP). Graduanda em Direito pelo Instituto Brasiliense De Direito Público (IDP). Mestre e graduada em Engenharia Elétrica pela Universidade de Brasília (UnB). 2

249

Revista dos Estudantes de Direito da UnB INTRODUÇÃO O problema de pesquisa que orientou este trabalho se consubstancia na seguinte pergunta: em que medida seria atendido o dever de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, da CF) caso, em Plenário Virtual, o relator ficasse vencido no tocante à existência de repercussão geral – uma vez que, regimentalmente, não há exigência de que seja proferido o voto vencedor? Nessa hipótese, contraditoriamente, ao final do julgamento, constaria apenas um voto, em favor da repercussão geral, e uma ementa, pela inexistência da repercussão geral consoante leitura do art. 324, § 3º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal3 (RISTF). O arbítrio judicial não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, fase então vigente em nosso ordenamento jurídico, caracterizado pela superação do positivismo normativo com a afirmação do pós-positivismo, marcado pela ascensão de valores, pelo reconhecimento normativo de princípios e, principalmente, pela essencialidade dos direitos fundamentais. C. Queiroz leciona que o próprio Kelsen já havia advertido que os conteúdos das decisões judiciais se incorporam ao preceito constitucional na qualidade de “norma subconstitucional”, de tal sorte que há um espaço de deliberação reservado ao aplicador da norma que não se encontra plenamente definido pelos elementos normativos, muito embora a ordem objetiva trace uma moldura para o exercício da jurisdição4. Já considerando o cenário hodierno, em que a lógica formal não mais é suficiente para dar respostas satisfatórias à complexidade das questões jurídicas, conclui a eminente jurista que “o instrumento decisivo do ‘método’ de interpretação constitucional não é mais a subsunção, mas a retórica e o argumento”5. Na mesma linha de argumentação, cita-se ensinamento de Alexy, evidenciando que “[e]m todos os casos minimamente problemáticos são necessárias valorações que não são dedutíveis diretamente do material normativo preexistente”6.

3 Art. 324 [...] § 3º No julgamento realizado por meio eletrônico, se vencido o Relator, redigirá o acórdão o ministro sorteado na redistribuição, dentre aqueles que divergiram ou não se manifestaram, a quem competirá a relatoria do recurso para exame do mérito e de incidentes processuais. 4 QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial. Sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 161. 5 QUEIROZ. Op. cit., p. 153 Apud NÓBREGA, Guilherme Pupe da. Jurisdição Constitucional - Limites ao subjetivismo judicial. Saraiva (Série IDP - pesquisa acadêmica): São Paulo, 2014, p. 23. 6 NÓBREGA. Op. cit., p. 31.

250

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Dessa forma, reconhecida a insuficiência de um discurso fundado em elementos puramente normativos e, consequentemente, a superação da busca por verdades absolutas em prol do atingimento daquilo que é provável e razoável, o principal objeto de análise da legitimidade do provimento jurisdicional passa a ser o discurso jurídico que o alicerça7, denotando a essencialidade do dever de fundamentação das decisões. Em que pese se reconheça espaço à discricionariedade judicial, no sentido acima exposto, impende observar que com ela não se confunde o subjetivismo. Isto é, não é dado ao aplicador da norma o direito de decidir segundo seus próprios valores, sob pena de manifesta afronta à segurança jurídica, especialmente no tocante à previsibilidade dos vereditos. Com essa preocupação, inúmeros estudos atinentes ao campo da teoria da argumentação se sucederam para traçar requisitos minimamente objetivos para o exercício legítimo da jurisdição, no sentido de promover um controle racional, tais como aqueles desenvolvidos por Chaim Perelman, Neil MacCormick, Theodor Viehweg e Robert Alexy8. Nesse constitucionalismo de vanguarda, portanto, exsurge como tarefa inerente à garantia da segurança jurídica a aferição da racionalidade dos fundamentos dos provimentos judiciais. Isto posto, apresenta-se como escopo do presente trabalho a investigação do efetivo cumprimento do dever de fundamentação das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em sede de apreciação de recursos extraordinários, dada a característica de extrapolação dos limites subjetivos da demanda que os veicula, uma vez que se destinam, ao fim e ao cabo, à garantia da supremacia da Constituição. Conforme ensina Gilmar Mendes, esse dever, ao qual chamou de “accountability hermenêutica”, foi erigido à categoria de direito fundamental do cidadão, na medida em que constitui elemento essencial de controle das decisões e condicionante do próprio direito de defesa9. Dada a relevante tarefa do Recurso Extraordinário para a proteção de nossa ordem constitucional, e considerando a abertura hermenêutica consignada em seus requisitos de admissibilidade pela Emenda Constitucional nº 45/2004, ao acrescentar nesse rol a

7

Idem. Ibidem, pp. 45 e ss. MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lênio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang; CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. Saraiva: São Paulo, 2013, p 1385. 8 9

251

Revista dos Estudantes de Direito da UnB demonstração de Repercussão Geral, propõe-se, neste trabalho, analisar de que forma o dever de fundamentação é cumprido pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da aludida espécie recursal. Com esse intuito, a Seção II dedicar-se-á a um breve histórico da inserção do Recurso Extraordinário (RE) em nosso ordenamento pátrio, evidenciando a influência do modelo norte-americano na definição de seus contornos. A Seção III, por sua vez, aprofundará o estudo das semelhanças entre o requisito da repercussão geral imposto ao RE com o writ of certiorari, característico do Direito daquele país. A partir de um estudo do Regimento Interno do STF (RISTF), a Seção IV apresentará indícios de que o dever de fundamentação das decisões de REs não seja cumprido em plenitude, dada a possibilidade de o recorrente ter negado o conhecimento da exordial tendo, como fundamentação, apenas o voto vencido do Relator reconhecendo a existência de repercussão geral da matéria. Já a Seção V destinar-se-á a descrever a metodologia de pesquisa utilizada para aferir a robustez prática da problemática aventada. Por fim, nesta mesma Seção, os resultados obtidos serão expostos, enquanto que a Seção VI sumariza toda a discussão.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ORIGEM E ARCABOUÇO NORMATIVO REGENTE Segundo Araken de Assis, a criação do instrumento em análise remonta ao prelúdio da República10, e teve origem em dois modelos bem discerníveis11. Em primeiro lugar, o writ of error norte-americano, posteriormente designado de writ of appeal e, desde 1928, praticamente abandonado; em segundo lugar, o writ of certiorari, instrumento por meio do qual, hodiernamente, se dá o acesso à Suprema Corte norteamericana (que será discutido na seção seguinte). Pontes de Miranda não diverge deste entendimento: para o autor, “[t]al como o temos e o concebemos, veio-nos êle [o recurso extraordinário] dos Estados Unidos da América, onde o criou o Judiciary Act de 1789”12.

10 No mesmo sentido: “O recurso extraordinário [...] penetrou no direito brasileiro com a República Federativa”. PONTES DE MIRANDA Francisco Cavalcante. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1967, p. 79. 11 ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 727. 12 PONTES DE MIRANDA. Op. cit., p. 79.

252

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Além destes, também se fitou o modelo consagrado no polo de atração da política externa do Império brasileiro, qual seja, a República Argentina e a “apelação” para a respectiva Corte Suprema cabível contra sentenças definitivas dos tribunais superiores das províncias, nos termos do art. 14 da Lei nº 48 de 14 de setembro de 186313. Nossa Constituição Imperial, de 1824, desconhecia instituto semelhante, prevendo apenas, em seu art. 164, I, a possibilidade do então denominado Supremo Tribunal de Justiça (STJ) “[c]onceder, ou denegar Revistas nas Causas, e pela maneira, que a Lei determinar”, e se destinava a manter a integridade formal da lei ferida por julgados contaminados por nulidade manifesta ou injustiça notória14. Segundo Assis, a República tomou por objetivo garantir tanto a supremacia da Constituição como também a integridade do direito positivo como um todo15. Para tal, aponta o autor, antes mesmo de votada a Constituição de 1891, o Decreto nº 848/1890, espelhado no Judiciary Act de 1789, dos Estados Unidos, e no mencionado writ of error, já havia organizado a Justiça Federal, tendo o Supremo Tribunal Federal (STF) como órgão de cúpula16. O artigo 9º, parágrafo único, alínea c desse normativo criou recurso para o STF “quando a interpretação de um preceito constitucional, ou de lei federal, ou de cláusula de um tratado, ou convenção, seja posta em questão”. Do texto importado do Direito estrangeiro, Assis destaca que já se depreende a tríplice função acometida ao STF até a Carta de 1988: o controle de constitucionalidade difuso e a preservação da uniformidade da aplicação e da supremacia do Direito federal17. Destacando o que chamou de “desequilíbrio estrutural congênito” de nossa federação, e considerando a ampla concentração de competências da União em face dos Estados-membros, Araken de Assis evidenciou que tal modelo de atribuições ao STF estava fadado ao fracasso desde o início18. Isso porque o papel de corte de apelação das sentenças da Justiça Federal já seria suficiente para assoberbar a recém-criada Corte, solapando o desempenho das funções primárias de corte constitucional. Com a criação do Superior Tribunal de Justiça, pela Constituição de 1988, o autor considera que a

13

Ibidem, p. 91. ASSIS. Op. cit., p.728 Idem. 16 Idem. 17 Ibidem, p. 728. 18 ASSIS. Op. cit., p. 729. 14 15

253

Revista dos Estudantes de Direito da UnB questão simplesmente foi repassada para o novo órgão, sem, contudo, resolver o problema do STF19. Da previsão no Decreto nº 848/1890, o recurso extraordinário migrou para a CF/1891, cabível em duas hipóteses, a teor do parágrafo 1º de seu artigo 59: a) “quando se questionar sobre a validade ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do tribunal do Estado for contra ela”; b) “quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas”. Destaca-se que a fórmula acima transcrita já consignava em sua redação o verbo questionar, o que terminou originando o recorrente e atual problema do prequestionamento como requisito de admissibilidade do RE20. Assis prossegue afirmando que as alterações constitucionais se sucederam sem mudanças de grande monta, até que a CF/1988 limitou o recurso extraordinário às questões constitucionais, uma vez criado o STJ e o recurso especial, situando o aludido remédio no topo do controle difuso de constitucionalidade21. Gilmar Mendes e Lenio Streck ressaltam que, sob a égide da referida Carta Política, o assoberbamento do STF com recursos se acentuou, parcialmente em razão da massificação de certos tipos de demanda (como discussões relativas a planos econômicos) e da falta de instrumental institucional que possibilitasse o julgamento dessas demandas de maneira minimamente objetiva, consideradas reciprocamente22. Atualmente, as hipóteses de cabimento encontram-se descritas no inciso III do artigo 102 da Constituição Federal, a saber: Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) III - julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida: a) contrariar dispositivo desta Constituição; b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal; c) julgar válida lei ou ato de governo local contestado em face desta Constituição; d) julgar válida lei local contestada em face de lei federal.

19

Idem. Ibidem, p. 730. Ibidem, pp. 731-4. 22 MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz. Art. 102, II e III. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz (coord.), op. cit., p. 1382. 20 21

254

Revista dos Estudantes de Direito da UnB (...) § 3º No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.

O parágrafo 3º, incluído pela EC 45/2004, acrescentou a demonstração do requisito da repercussão geral para que o recurso extraordinário seja conhecido, constituindo verdadeira tentativa de solucionar a crise de assoberbamento do STF, tal como será aprofundado na sessão seguinte. A Lei nº 11.418/2006 regulamentou a matéria, inserindo no Código de Processo Civil (Lei nº 5.869, de 1973) os artigos 543-A e B, que, por sua vez, trata do Recurso Extraordinário nos artigos 541 a 546, além de outros dispositivos esparsos. O Novo Código de Processo Civil, Lei nº 13.105 de 2015, transferiu a regulamentação do remédio em análise para os artigos 1.029 ao 1.041. Dentre as inovações, cumpre destacar, por relevante, iniciativas para mitigar o exercício de jurisprudência defensiva, tal qual disposto nos artigos 1.032 e 1.033, por exemplo, em que o STJ e o STF, reconhecendo que o caso trata de questão constitucional ou de ofensa reflexa à Constituição, respectivamente, deverão remeter os autos ao Tribunal competente ao invés de apenas não conhecer do recurso23. Diante da manifesta importância dada ao requisito da repercussão geral, que passou a funcionar como verdadeiro filtro para a admissão dos recursos extraordinários no STF, passa-se a abordar a questão, evidenciando a inspiração desse instituto no Direito estrangeiro, seu conteúdo e a problemática que se assenta sobre sua demonstração pelo recorrente.

23 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. Coordenação: Teresa Arruda Alvim Wambier et al. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, pp. 1499-500.

255

Revista dos Estudantes de Direito da UnB REPERCUSSÃO GERAL E WRIT OF CERTIORARI Segundo Ulisses Schwarz Vianna, citando o Webester’s Unabridged Dictionary, a palavra latina certiorari tem o significado de que “um writ de uma corte superior chamando para si os registros de uma corte inferior para revisão”24. Neste ponto do trabalho, importa traçar os contornos das relações existentes entre o instituto brasileiro da repercussão geral e o juízo de admissibilidade do writ of certiorari norte-americano, em razão das fortes influências que aquele instituto recebeu deste. Neste sentido, Ulisses Schwarz Vianna afirma que, desde a Constituição de 1891, o modelo de controle de constitucionalidade brasileiro recebe influência do sistema norte-americano: Não há como negar que o sistema estadunidense de controle difuso de constitucionalidade inspirou o modelo brasileiro de controle de constitucionalidade, desde a primeira Constituição republicana de 1891, a qual no seu § 1º de seu art. 59, assim dispunha: Art. 59 (...) Das sentenças das justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: (...) a) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal do Estado considerar válidos estes atos, ou essas leis impugnadas. Já no seu art. 60, a Constituição de 1891 estabelecia: Art. 60. Compete aos juízes ou tribunais federais processar e julgar: a) causas em que alguma das partes fundar a ação ou a defesa, em disposição da Constituição Federal; Daí, sem dúvida, seguindo a esteira histórica, o instituto do writ of certiorari, de 1925, deu sua quota de inspiração ao modelo da repercussão geral no recurso extraordinário, de 2004.25

Com efeito, ambos os institutos partilham de um aspecto funcional semelhante, qual seja, restringir a atuação da Suprema Corte a temas de questões relevantes, quer o sejam do ponto de vista jurídico, econômico, social ou político. A inserção de mecanismos de filtragem recursal, isto é, que visem a conter a chegada de processos em massa às secretarias dos tribunais superiores, decorre de uma necessidade institucional: reduzir a quantidade de recursos julgados em seu mérito pelas cortes. Esta medida tem como escopo tornar viável a análise das controvérsias em lapso

24 VIANNA, Ulisses Schwarz. A repercussão geral sob a ótica da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 68. 25 Ibidem, p. 69.

256

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

temporal satisfatório – “a justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”26 –, exigência esta que, hodiernamente, consubstancia-se no princípio da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), trazido ao texto constitucional pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Além disso, visa também a permitir que os tribunais superiores se ocupem da uniformização do Direito, e não se sobrecarreguem com a função de mera revisão dos julgamentos das instâncias inferiores. Tal preocupação, no entanto, há muito persiste. Saul Tourinho explica que “[o] problema da avalanche de recursos remetidos ao STF não é novo. O ministro Victor Nunes Leal dele já tratava em 1960”27. Nessa esteira, a compreensão da evolução histórica do papel da Suprema Corte norte-americana e do desenvolvimento do writ of certiorari faz-se necessária à compreensão de parte da funcionalidade do instituto da repercussão geral, em razão da inequívoca inspiração que o modelo norte-americano forneceu ao instituto brasileiro, motivo pelo qual o presente trabalho se socorre desse estudo comparativo. Portanto, passemos, agora, a um breve apanhado histórico do desenvolvimento da formação última da funcionalidade do writ of certiorari. Segundo Bruno Dantas, a Constituição norte-americana de 1789 previa a distribuição de competências da Suprema Corte. As hipóteses de competência originária eram previstas expressamente no texto constitucional; e as de competência recursal seriam fixadas pelo Congresso, em lei ordinária28. De acordo com o autor, há um consenso doutrinário de que o writ of certiorari já existia desde 1789, quando a Constituição norte-americana já previa que as Cortes poderiam conceder writs “que poderiam ser necessários ao exercício de sua jurisdição e fossem compatíveis com os princípios e usos gerais do Direito”29.

26

BARBOSA, Rui. A oração dos moços. 1921. LEAL, Saul Tourinho. Controle de Constitucionalidade Moderno. Niterói: Impetus, 2014, p. 204. 28 DANTAS, Bruno. Repercussão geral. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2011, pp. 95 e ss. 29 Judiciary Act of 1789, Chapter 20, Section 14, in verbis: “And be it further enacted, That all the before mentioned courts of the United States, shall have power to issue writs of scire facias, habeas corpus, (e) and all other writs not especially provided for by statute, which may be necessary for the exercise of their respective jurisdictions, and agreeable to the principles and usage of law”. Disponível em: . Acesso em: 9 mai. 2015. 27

257

Revista dos Estudantes de Direito da UnB À época, no entanto, não havia discricionariedade quanto à escolha dos casos que seriam julgados: vigia a mandatory jurisdiction. Uma vez preenchidos os requisitos de admissibilidade, a Suprema Corte teria que julgar todos os casos que a ela fossem submetidos. “Porém, como afirma Hartnett, a referida lei não conferiu poderes para utilização do certiorari para decidir diretamente um caso, mas, tão somente, como um procedimento auxiliar para suprir imperfeições nos autos sob seu exame, o que restringia o alcance que o certiorari veio a obter após a reforma de 1925”30. No entanto, com o início da Guerra Civil e o consequente aumento da quantidade de processos remetidos à Suprema Corte, uma reforma legislativa de 1891 promoveu um decréscimo na competência recursal do Tribunal. O texto legal previu a criação de cortes de apelação e a irrecorribilidade de suas decisões, salvo em situações de certificação de questões de direito – isto é, quando houvesse dúvida por parte das cortes de apelação e estas desejassem que a Suprema Corte se manifestasse a respeito do tema – ou quando estas enviassem à Suprema Corte um certiorari e por esta o writ fosse admitido31. “Vê-se, pois, que, a esta altura, o writ of certiorari era mecanismo de inclusão de causas na competência recursal da Suprema Corte Americana, e não de rejeição”32. Somente em 1916, teve início um movimento pela limitação da competência recursal da Suprema Corte, liderado por William Howard Taft. Era defendido que a mandatory jurisdiction se limitasse a questões de interpretação constitucional. É deste momento em diante que nos apercebemos da tendência limitadora da competência da Corte, à qual nos remeteremos mais à frente, ao final do recorte histórico. A partir de 1921, quando Taft foi nomeado Chief Justice da Suprema Corte, a ideia de ampliação da discricionariedade passou a ser operacionalizada de forma mais enfática. Em 1922, foi enviado ao Congresso um projeto de lei segundo o qual nenhum jurisdicionado teria direito a ver seu recurso julgado pela Suprema Corte, e, em 1925,

30

DANTAS. Op. cit., p. 100. Circuit Courts of appeal act of 1891. SECTION 6. [...] “And excepting also that in any such case as is hereinbefore made final in the circuit court of appeals it shall be competent for the Supreme Court to require, by certiorari or otherwise, any such case to be certified to the Supreme Court for its review and determination with the same power and authority in the case as if it had been carried by appeal or writ of error to the Supreme Court”. Disponível em: . Acesso em: 9 mai. 2015. 32 DANTAS. Op. cit., p. 101. 31

258

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

foi aprovada a Judge’s Bill, que previa apenas quatro hipóteses de mandatory jurisdiction para a Suprema Corte – a) writ of error, b) writ of appeal, c) writ of certiorari e d) certification of question – sendo obrigatório o julgamento somente das duas primeiras espécies. Em 1928, foi trazida a ideia da limited grants of certiorari. No caso Olmstead vs. United States, William Taft firmou o entendimento de que a Corte poderia selecionar, dentre as questões de interpretação constitucional levadas a juízo, quais seriam interessantes e, portanto, dignas de serem apreciadas naquele momento. Contudo, discricionariedade judicial nos Estados Unidos teve seu ápice somente em 1988, com a Supreme Court Case Selection Act, que possibilitava à Corte selecionar quais casos julgar, sem qualquer vinculação. Neste sentido, Dantas explica que [a] partir da aprovação dessa lei, em sede recursal, um processo só pode chegar à Suprema Corte por meio do certiorari ou da ceritifcation of questions. Cabe salientar que, desde longa data, por obra da Suprema Corte, a certification of questions fora esvaziada, de modo que, na prática, apenas por writ of certiorari, vale dizer, mediante exercício da discricionariedade judicial da Corte, é que um assunto pode ser levado a seu conhecimento33.

Quanto ao procedimento de apreciação dos writs, os recursos interpostos são reunidos na lista de discussão (discussion list). Bruno Dantas explica que o presidente da Suprema Corte faz circular um rol no qual qualquer membro pode fazer incluir os casos que pretenda discutir e votar sobre a concessão dos certiorari na sessão seguinte. Ao ser concluída a lista de discussão dos casos que serão levados à sessão, têm-se por rejeitadas todas as petições que dela não constem, sem necessidade de manifestação expressa34.

Depois de fechadas as listas de discussão, os juízes da Suprema Corte, em sessão secreta, se reúnem para decidir a quais petições concederão o certiorari. Dantas narra que a sessão é iniciada com a enunciação do primeiro caso constante da lista e, em seguida, os juízes votam pela concessão ou não da ordem, por ordem de antiguidade. O quorum é definido por uma regra costumeira da casa: a chamada rule of four. Se quatro juízes votarem pela concessão do certiorari, tem-se como admitido o recurso, embora

33 34

Ibidem, p. 104. Ibidem, p. 106.

259

Revista dos Estudantes de Direito da UnB não seja composta a maioria35, configurando certa presunção de aceitabilidade recursal. Por fim, admitido o certiorari, procede-se normalmente ao julgamento do seu mérito. Continuando a comparação, Saul Tourinho Leal explica que “[a] finalidade do instituto é a de delimitar a competência do Tribunal, no julgamento de recursos extraordinários, às questões constitucionais com relevância social, política, econômica ou jurídica, que transcendam aos interesses subjetivos da causa”36. É o que estabelece o § 1º do art. 543-A do CPC/73, que incorporou a tendência de “purificação” e restrição da temática tratada na Suprema Corte americana, observada ao longo do séc. XX, com seu ápice, como já mencionado, em 1988. Além disso, também a rule of four, aparentemente, foi trazida ao ordenamento jurídico brasileiro. Isso porque o § 4º37 do mesmo artigo prevê a possibilidade de reconhecimento da repercussão geral por uma das turmas do STF, mediante o voto de 4 (quatro) ministros nesse sentido. Por oportuno, vale ressaltar que a referida regra já não encontra correspondência no Código de Processo Civil de 2015. Ulisses Schwarz Vianna observa, no entanto, que, de modo geral, os sistemas da repercussão geral e da admissibilidade do writ of certiorari não se assemelham decisivamente. Enquanto este é dotado de caráter altamente discricionário, sem constituir sequer direito subjetivo do apelante a sua apreciação38, existem hipóteses de cabimento vinculante para aquela, como as dispostas no § 3º do art. 543-A do CPC/7339. Tendo em vista nosso sistema constitucional, cremos que não poderia ser diferente. O art. 93, IX, da Constituição Federal de 198840 fixa o dever de fundamentação das decisões judiciais, que se conforma não só em garantia do jurisdicionado mas também do próprio Estado Democrático de Direito. Um juízo discricionário como o que ocorre em relação à admissibilidade do writ of certiorari, não

35

Idem. LEAL. Op. cit., p. 205. § 4º Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário. 38 VIANNA. Op. cit., p. 70 e ss. 39 § 3º Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. 40 Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: [...] IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação. 36 37

260

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

se coadunaria, a princípio, com a referida cláusula. Ademais, restaria ainda prejudicada a garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição, consagrada no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição de 1988, uma vez permitida a negativa arbitrária de apreciação. Esta é a problemática que suscita a investigação desenvolvida neste trabalho.

PROBLEMA Os arts. 322 e 323 do RISTF assim dispõem: Art. 322. O Tribunal recusará recurso extraordinário cuja questão constitucional não oferecer repercussão geral, nos termos deste capítulo. Art. 323. Quando não for caso de inadmissibilidade do recurso por outra razão, o(a) Relator(a) ou o Presidente submeterá, por meio eletrônico, aos demais ministros, cópia de sua manifestação sobre a existência, ou não, de repercussão geral. (grifamos).

Trata-se do chamado Plenário Virtual. Saul Tourinho Leal esclarece que se trata de um instrumento tendente a conferir maior segurança e celeridade aos julgamentos de admissibilidade dos recursos extraordinários41. Funciona da seguinte maneira: distribuído o processo ao relator, este terá de elaborar seu relatório e seu voto, admitindo ou negando a existência de repercussão geral. Feito isso, os demais ministros terão vinte dias (prazo comum) para se manifestarem a respeito da repercussão geral da matéria42. A manifestação ocorre em um espaço virtual de deliberação, em que cada um dos ministros tem acesso à matéria em discussão no RE. Logo ao lado, o ministro tem dois campos de marcação opcional, o campo “Há” e o “Não há”, devendo selecionar aquele que esteja de acordo com seu posicionamento no que tange à existência de repercussão geral da matéria. Como visto acima, para ser reconhecida a repercussão geral, bastam quatro votos, de modo que pode ser reconhecida na turma. No entanto, só será negada a existência de repercussão geral por votação de 2/3 dos membros do STF – ou seja, por oito membros. 41

LEAL. Op. cit., pp. 235-6. RISTF. “Art. 324. Recebida a manifestação do(a) Relator(a), os demais ministros encaminhar-lhe-ão, também por meio eletrônico, no prazo comum de vinte dias, manifestação sobre a questão da repercussão geral. § 1º Decorrido o prazo sem manifestações suficientes para recusa do recurso, reputar-se-á existente a repercussão geral”. 42

261

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Se o relator votar pela existência de repercussão geral, presume-se que acompanham o relator aqueles que não se manifestarem dentro dos vinte dias, isto é, presume-se o voto pela existência de repercussão geral. Mesmo quando o relator vota pela inexistência de repercussão geral, da mesma forma, presume-se que aqueles que não se manifestaram votaram pelo reconhecimento de repercussão geral. A exceção a esta regra do “quem cala reconhece a repercussão geral” é a hipótese em que o relator vota pela inexistência de repercussão geral por não ter sido suscitada questão constitucional. Nestes casos, quem cala vota pela ausência de repercussão geral43. Após a análise da repercussão geral, o processo segue para exame do mérito – se positivo aquele juízo – ou é extinto tão logo seja reconhecida a ausência de repercussão geral. É em relação a este último ponto que o problema se coloca. Nessa sistemática, é possível vislumbrar situação em que, uma vez vencido o relator – tendo este votado pela existência de repercussão geral –, o recurso seja extinto sem que haja manifestação expressa de qualquer um dos ministros neste sentido. Tal possibilidade se vislumbra da leitura do art. 324, § 3º, do RISTF, segundo o qual caberá ao novo relator, designado entre os que se manifestaram contrariamente ao vencido a relatoria para o exame de mérito (mas não da repercussão geral). O que aconteceria, ao final, seria um RE não admitido por ausência de repercussão geral, com uma única manifestação reconhecendo a existência daquela, qual seja, o voto vencido do relator. Nessa esteira, Marina Cardoso de Freitas destaca que o próprio STF já se atentou para essa situação: Parece que o STF tem se preocupado com esse problema. Em discussão em Plenário no dia 26 de março, os ministros acordaram sobre a necessidade de que o primeiro ministro que divergir do voto do relator disponibilize seus motivos no sistema eletrônico de votações. No entanto, isso ainda não foi formalizado. Nenhuma alteração no Regimento Interno da Corte foi realizada nesse sentido.

43

RISTF. “Art. 324 [...] § 2º Não incide o disposto no parágrafo anterior quando o Relator declare que a matéria é infraconstitucional, caso em que a ausência de pronunciamento no prazo será considerada como manifestação de inexistência de repercussão geral, autorizando a aplicação do art. 543-A, § 5º, do Código de Processo Civil, se alcançada a maioria de dois terços de seus membros”.

262

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Certamente o tema ainda será debatido em futuras discussões pela Corte44.

Na ocorrência daquela hipótese, a violação ao dever de fundamentação se apresentaria de forma evidente. Ademais, suas consequências seriam tanto mais danosas, uma vez que, nos termos do art. 326 do RISTF: “Toda decisão de inexistência de repercussão geral é irrecorrível e, valendo para todos os recursos sobre questão idêntica, deve ser comunicada, pelo(a) Relator(a), à Presidência do Tribunal, para os fins do artigo subsequente e do art. 329”.

METODOLOGIA Dessa forma, para comprovar o respaldo prático de nossa preocupação, procedemos à pesquisa de jurisprudência para aferir se, de fato, ocorrem situações como a narrada logo acima. Fizemos, então, um recorte temporal. Acessamos o canal no portal do STF por meio do qual é possível realizar uma pesquisa na jurisprudência restrita à repercussão geral45 e escolhemos os anos de 2014 e de 2015 para analisar, dentre os processos em que foi julgada a existência de repercussão geral, a ocorrência da nossa hipótese, qual seja, um caso em que o relator original tenha restado vencido em seu voto, afirmando a existência de repercussão geral, sem que fosse redistribuída a relatoria do processo, o que ocasionaria a não admissão do RE concomitantemente à existência de um voto afirmando a existência de repercussão geral e dando seguimento ao recurso.

EXPOSIÇÃO DOS RESULTADOS Nossa hipótese se concretizou nos Agravos em Recurso Extraordinário (ARE) nos 790.813 e 728.181. Neste último, tratou-se de agravo interposto pelo Ministério Público Eleitoral contra decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que não conheceu de seu RE por este não versar sobre matéria constitucional. A controvérsia era relativa aos requisitos

44 FREITAS, Marina Cardoso de. Análise do julgamento da repercussão geral nos recursos extraordinários. 2009. 129 f. Monografia (especialização em Direito Público). Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP, 2009, p. 82. 45 Disponível em: . Acesso em: 8 jun. 2015.

263

Revista dos Estudantes de Direito da UnB necessários para a elegibilidade, e dentre estes questionava-se a suficiência da apresentação de contas de campanha para a configuração da quitação eleitoral. Após relatar o caso, o ministro relator Marco Aurélio assim se manifestou: 2. O Tribunal Superior Eleitoral assentou a constitucionalidade da interpretação do § 7º do artigo 11 da Lei nº 9.504/97 segundo a qual se tem como atendida condição de elegibilidade, proclamando o pleno exercício dos direitos políticos, quando haja ocorrido a apresentação de contas de campanha, embora verificada a rejeição. Está-se diante de tema a reclamar o crivo do Supremo. 3. Conheço do agravo interposto e o provejo para que o recurso extraordinário tenha sequência. Ao mesmo tempo, pronuncio-me no sentido da existência de repercussão geral da matéria.

Todavia, o que se encontra sobre a ausência de repercussão geral é somente a seguinte ementa, de redação do ministro Luiz Fux, que dispõe o seguinte: DIREITO ELEITORAL. REQUISITOS NECESSÁRIOS À OBTENÇÃO DE CERTIDÃO DE QUITAÇÃO ELEITORAL. ART. 11, §7º, DA LEI N. 9.504/1997. CONTROVÉRSIA QUANTO À SUFICIÊNCIA DA MERA APRESENTAÇÃO DAS CONTAS DE CAMPANHA ELEITORAL. MATÉRIA DE TEOR INFRACONSTITUCIONAL. NECESSIDADE DE ANÁLISE DA LEI N. 9.504/1997 E DE RESOLUÇÕES DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. POTENCIAL DE OFENSA MERAMENTE REFLEXA À LEI MAIOR. INEXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO NÃO CONHECIDO. Decisão: O Tribunal, por maioria, reconheceu a inexistência de repercussão geral da questão, por não se tratar de matéria constitucional, vencido o ministro Marco Aurélio. Não se manifestou o ministro Joaquim Barbosa.

Observa-se, então, que o relator original afirma a existência de repercussão geral por haver questionamento sobre matéria constitucional – qual seja, “o pleno exercício dos direitos políticos” – e o redator afasta a repercussão geral por haver “potencial de ofensa meramente reflexa”, ou seja, não se vislumbra ofensa direta à Constituição. Nota-se, também, que não foi cumprida à risca a regra do § 3º do art. 324 do RISTF46, uma vez que não houve um novo relator, mas tão somente uma nova redação da ementa. Parece, neste caso, que o fato de haver uma ementa não torna sua fundamentação insuficiente – não pelo menos se tomarmos como parâmetro a fundamentação do relator. De todo modo, em nenhuma das duas ocasiões é apresentada uma

46 “§ 3º O recurso extraordinário será redistribuído por exclusão do(a) Relator(a) e dos ministros que expressamente o(a) acompanharam nos casos em que ficarem vencidos”.

264

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

fundamentação satisfatória. Exemplificando, no voto do ministro Marco Aurélio não se demonstrou a existência de relevância política, econômica, social ou jurídica da causa, sequer porque se enquadraria este caso em alguma das hipóteses vinculantes de repercussão geral; por outro lado, a nova ementa se limita a afirmar que há somente violação reflexa, sem explicitar as razões da inexistência da repercussão geral. Já no ARE 790.813, a controvérsia versava sobre conflito de princípios constitucionais. Ali, discutia-se os limites do princípio da liberdade de expressão quando em conflito com a liberdade religiosa: no caso, questionava-se a legitimidade da publicação de uma revista masculina em que se apresentava uma modelo nua portando apenas um rosário, símbolo da religião católica. Em sua manifestação, o ministro Relator Marco Aurélio assim se posicionou: 2. Eis controvérsia a ser solucionada por um Tribunal encarregado da guarda maior da Carta da República. Conforme asseverado, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assentou consubstanciar censura prévia e violação da liberdade de expressão artística a proibição de circulação de revista contendo foto de mulher despida com rosário à mão. Os recorrentes alegam que atividades pornográficas não se confundem com imprensa e que a associação do rosário a imagem erótica revela abuso da liberdade de expressão e ofensa ao sentimento religioso. Presente conflito entre direitos fundamentais, compete ao Supremo definir, com vista à orientação de casos futuros, o equilíbrio adequado entre bens tão caros à Constituição e à sociedade brasileira como o são as liberdades religiosa e de expressão artística. Cabe elucidar se a jurisprudência do Tribunal acerca das garantias de imprensa é observável no tocante às publicações destinadas ao público adulto, ou mesmo se essas, por si sós, são merecedoras da tutela prevista nos artigos 5º, inciso IX, e 220 da Carta Federal. 3. Conheço do agravo e o provejo, determinando a sequência do extraordinário e reconhecendo configurada a repercussão geral.

O Tribunal, entretanto, embora reconhecendo a existência de questão constitucional, afirmou a ausência de repercussão geral. Dentre outras razões, o Tribunal afirmou que a demanda não ultrapassava os interesses subjetivos da causa. A ementa, de redação do ministro Dias Toffoli, ficou assim transcrita: Direito constitucional. Convivência entre princípios. Limites. Recurso extraordinário em que se discute a existência de violação do princípio do sentimento religioso em face do princípio da liberdade de expressão artística e de imprensa. Publicação, em revista para público adulto, de ensaio fotográfico em que modelo posou portando símbolo cristão. Litígio que não extrapola os limites da situação concreta e específica. Plenário Virtual. Embora o Tribunal, por unanimidade, tenha reputado constitucional a questão, reconheceu, por maioria, a inexistência de sua repercussão geral. Decisão: O Tribunal, por

265

Revista dos Estudantes de Direito da UnB unanimidade, reputou constitucional a questão. O Tribunal, por maioria, reconheceu a inexistência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, vencidos os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux. Não se manifestou o ministro Roberto Barroso.

Novamente, como ocorreu no caso anterior, a ementa possui elementos – embora não dispostos em formato redacional, mas em períodos desconexos textualmente – que carregam significado e possibilitam a um jurisdicionado a compreensão dos motivos que levaram o Colegiado a negar reconhecimento à repercussão geral. Em termos de robustez da fundamentação, a decisão ementada e o voto são equivalentes.

CONCLUSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS Desta forma, a conclusão do trabalho é a de que, de fato, houve violação ao dever de fundamentação judicial, uma vez que configurada a hipótese aventada nos precedentes mencionados. Com efeito, a contradição entre voto e ementa constitui afronta à garantia insculpida no art. 93, IX, da CF, uma vez que não foram dispostas as razões que, ao final do julgamento da repercussão geral, ensejaram o não conhecimento dos recursos extraordinários. No entanto, os resultados da pesquisa empírica conduzem a um destino que se encontrava além da hipótese de pesquisa deste trabalho. Se bem observadas, o conteúdo das ementas equivale ao dos votos em termos de consistência e abrangência argumentativa – isto é, não é impossível, da leitura do voto e da ementa, aferir que razões levaram cada um dos relatores a concluir pela existência e pela inexistência da repercussão geral. No entanto, é de se ressaltar a singeleza argumentativa das ementas e dos votos, que sequer se voltam à análise dos requisitos vinculantes da existência de repercussão geral (art. 543-A do CPC/73) – isto é, nenhum dos relatores deixou registrado em sua decisão o porquê da existência, e da inexistência, da repercussão geral nos casos reportando-se à relevância política, jurídica, social ou econômica do tema (ou à falta destas). Neste sentido, haveremos de nos questionar: o que deve ser uma fundamentação satisfatória, suficiente? Deve a fundamentação de um voto que se manifesta pela existência de repercussão geral se pronunciar a respeito de cada um dos requisitos responsáveis pela configuração de repercussão geral da matéria? E quanto àquele voto

266

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

que nega a existência deste requisito de admissibilidade? Basta pronunciar-se a respeito de cada elemento? A depender das respostas que dermos a cada uma destas perguntas, até mesmo os votos acostados nos referidos AREs podem se mostrar insatisfatórios à exigência do dever de fundamentação. O voto poderia estar, então, apresentando uma fundamentação meramente pro forma, que não provesse o jurisdicionado de qualquer satisfação (accountability) da decisão tomada. Portanto, quer parecer, o descumprimento do dever de fundamentação pelo STF quando do julgamento da repercussão geral nos REs se configura nas hipóteses aventadas, e não só pela razão inicialmente concebida a partir da leitura do RISTF. De início, aventou-se a possibilidade de ocorrência de decisões contraditórias, em que o veredito do Tribunal negasse o pleito recursal sem a devida motivação. Todavia, nas situações em que o Relator restou vencido, não só se constatou a ocorrência das aventadas decisões contraditórias, como também se encontrou fundamentação tão singela no voto quanto a da ementa do julgado definitivo, de sorte que preocupa refletir se o ocorrido não se extrapola para os todos os demais casos, isto é, para aqueles em que o Tribunal acompanha o Relator, provocando um enfraquecimento geral do dever de fundamentação. No contexto de um Estado Democrático de Direito, a pretexto da preservação da garantia do dever de fundamentação, é necessária a discussão a respeito da composição de elementos da controvérsia concreta, bem como os elementos normativos, que devem ser levados em consideração para que se possa falar em uma fundamentação satisfatória, motivo pelo qual entende-se relevante ampliar o lapso temporal do espaço amostral e avaliar a fundo a fundamentação das decisões em sede de RE, sob pena de se exercer verdadeira judicial discretion nos moldes americanos travestida de simulacro de fundamentação, em manifesta ofensa ao mandamento constitucional prescrito no art. 93, IX, da CF e, com isso, mitigar a segurança jurídica e a inafastabilidade da jurisdição, pilares de nosso ordenamento jurídico. Em síntese, portanto, a pesquisa se incumbiu, a princípio, a) de um recorte histórico da conformação dos institutos do recurso extraordinário, brasileiro, e do writ of certiorari, norte-americano, a fim de buscar subsídios para a compreensão de suas aproximações funcionais, para, em seguida, b) expor sumariamente o modo de funcionamento da votação da repercussão geral em Plenário Virtual e, logo adiante, c)

267

Revista dos Estudantes de Direito da UnB explanar o problema de pesquisa, qual seja, a possibilidade de, havendo um relator vencido quanto à existência de repercussão geral, o novo relator, designado aleatoriamente entre os que se posicionaram contrariamente ao relator vencido, lavrar uma ementa afirmando, contraditoriamente, a inexistência de repercussão geral. Por fim, d) procedeu-se à exposição da metodologia de pesquisa empírica realizada no portal do STF, para que e) se alcançasse a conclusão de que, com efeito, ocorrem situações tais como a da hipótese da pesquisa, em que se configura violação ao 93, IX, da CF pelo fato de constarem do acórdão decisões contraditórias e, além disso, pela insuficiência argumentativa das próprias decisões, que sequer se reportam aos fundamentos vinculantes do reconhecimento da repercussão geral.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Araken de. Manual dos Recursos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, 1051 p. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. ______. Congresso Nacional. Código de Processo Civil (Lei nº 5.869/1973). ______. Congresso Nacional. Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015). ______. Supremo Tribunal Federal. Regimento Interno. DANTAS, Bruno. Repercussão geral. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2011, 384 p. FREITAS, Marina Cardoso de. Análise do julgamento da repercussão geral nos recursos extraordinários. 2009. 129 f. Monografia (especialização em Direito Público). Escola de Formação da Sociedade Brasileira de Direito Público – SBDP, 2009. LEAL, Saul Tourinho. Controle de Constitucionalidade Moderno. Niterói: Impetus, 2014, 612 p.

268

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

MENDES, Gilmar Ferreira; STRECK, Lenio Luiz; SARLET, Ingo Wolfgang; CANOTILHO, J. J. Gomes (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. Saraiva: São Paulo, 2013, 2380 p. NÓBREGA, Guilherme Pupe da. Jurisdição Constitucional – Limites ao subjetivismo judicial. Saraiva (Série IDP - pesquisa acadêmica): São Paulo, 2014, 141 p. QUEIROZ, Cristina. Interpretação constitucional e poder judicial. Sobre a epistemologia da construção constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000. VIANNA, Ulisses Schwarz. A repercussão geral sob a ótica da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann. São Paulo: Saraiva, 2014, 233 p. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil: artigo por artigo. Coordenação: Teresa Arruda Alvim Wambier et al. 1ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, 1555 p.

269

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

DESDEMOCRATIZAÇÃO E NÃO FRUIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: A ATUAÇÃO DO JURISTA CONTEMPORÂNEO EM FACE DO GOVERNO À DISTÂNCIA DAS AGÊNCIAS DE RATING Marcello Lavenère Machado Neto1 Submetido(submitted): 15 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 19 de outubro de 2016 RESUMO Em 2008, o mundo se viu mergulhado em uma crise financeira global gerada, em grande medida, pela atuação irresponsável das maiores agências de classificação de risco de crédito do mundo. Alguns anos depois da eclosão da crise, essas agências estão ainda mais influentes e economicamente consolidadas do que se encontravam antes de 2008. Governança à distância, aparente despolitização e desdemocratização são alguns dos sintomas gerados por tais agências que afetam diretamente ordens econômicas e jurídicas a nível transnacional. Este artigo intentou imaginar formas de atuação do jurista contemporâneo que objetivem evitar que o poder dessas agências venha a interferir negativamente na fruição de direitos fundamentais e da liberdade do ser humano ao redor do globo. PALAVRAS-CHAVE: Agência de Classificação de Risco de Crédito; governança à distância; desdemocratização. ABSTRACT In 2008 the world was involved in a deep global financial crisis, which was, for the most part, engendered by irresponsible actions taken by Credit Rating Agencies. A few years after the outbreak of this crisis, these Agencies are even more influential and economically powerful than they were prior to 2008. As a consequence of this, governance at distance, seeming depolitization and dedemocratization are directly impacting economic and legal orders at a transnational level. This paper has sought to imagine how a contemporary jurist could act so as to keep this Agencie’s power from negatively affecting the enjoyment of fundamental human rights and freedoms around the world. KEYWORDS: credit rating agencies; governance at distance; desdemocratization. INTRODUÇÃO “Novo rebaixamento pode fazer Brasil perder até U$S 20 bi em investimento”2. Essa era a manchete de uma revista de grande circulação brasileira, em dezembro de 2015, após o Brasil ter seu selo de bom pagador rebaixado pela agência de notação de risco (de rating) norte-americana Fitch. Curioso notar que notícias deste tipo, que expressam o enorme poder de influência das agências rating sobre o investimento global, continuam a ser corriqueiras 8 anos após a

1

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília. Pós-graduando em Direito Tributário pelo IBET. 2 Disponível em: http://veja.abril.com.br/economia/novo-rebaixamento-pode-fazer-brasil-perder-ate-us-20-bi-eminvestimentos/. Acesso em: 05/08/2016. 271

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

economia mundial ter entrado em colapso pelo fato de tais agências terem possivelmente fraudado3 o grau de créditos subprimes, durante a crise do mercado financeiro em 2008. Mais que isso, dados recentes apontam que elas nunca estiveram tão fortes4. Para se medir a importância do impacto de tais agências, vale mencionar, a título de comparação, que o valor de investimento possivelmente perdido pelo Brasil acima mencionado, por exemplo, foi maior que o PIB anual de 10 estados brasileiros no ano de 20135. Mesmo após comprovadas falhas de classificação de risco na crise econômica de 2008, a ainda imensa influência destas agências na economia global faz com que acadêmicos das mais diversas áreas tentem responder à seguinte pergunta: como elas conseguem legitimidade para exercer tamanho poder? O trabalho que se inicia intentará responder tal pergunta, mapeando os possíveis efeitos do poder destas agências no cenário global, a fim de, posteriormente, contribuir para a reflexão sobre possíveis formas de atuação de juristas que visem evitar que o poder de tais agências venha a interferir na promoção de direitos fundamentais, da justiça e na liberdade do ser humano. Para isso, primeiramente, será necessário entender o pertencimento dessas agências a uma dinâmica contemporânea do cenário global de “governança à distância”. Entender a formação histórica dos construtos matemáticos que são os pilares dessa dinâmica é fundamental para entender de onde vem a legitimidade que tais agências recebem de entes privados e públicos pelo globo. Em um segundo momento, será necessário mapear os principais efeitos que a “governança” exercida por tais agências exercem sobre o globo, a quais consequências que tal forma de governança pode levar e como elas podem afetar a fruição de direitos fundamentais pelo mundo. Ao final, diante de toda problematização apresentada, serão feitas algumas reflexões acerca de possíveis formas de atuação dos juristas, a fim de evitar que o poder de tais agências venham a comprometer uma devida fruição de direitos fundamentais, a promoção da justiça e a liberdade do ser humano.

3

272

Vários processos foram ajuizados pelo Departamento de Justiça estadunidense, alegando conduta fraudulenta das agências de risco, mas até o momento todos eles acabaram em acordo, tendo as agências pagado multas milionárias para fechar tais acordos. 4 Disponível em: http://br.wsj.com/articles/SB10620507992549273295504581599534095941222. Acesso em: 05/08/2016. 5 São menores que o valor mencionado os PIBs de RR, AC, AP, TO, RO, PI, SE, AL, PB e RN. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/pibmunicipios/2010_2013/default_ods.shtm. Acesso em: 05/08/2016.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

AS AGÊNCIAS DE RISCO E A DINÂMICA DE GOVERNANÇA À DISTÂNCIA POR MEIO DE INDICADORES Segundo Rudden (2005), as agências de risco surgiram por volta de 1850 com a expansão da malha ferroviária norte-americana. A necessidade de investimentos de grande envergadura fez as empresas envolvidas no projeto buscarem investimento fora do país. Assim, o meio encontrado para captação de recursos foi a venda de títulos de dívida corporativas a investidores europeus. Como naquela época existia uma carência muito grande de informações acerca de empresas sediadas em outros países, em um cenário de préglobalização, esses investidores começaram a exigir análises objetivas, imparciais e técnicas que pudessem oferecer informações consistentes sobre as empresas nas quais iriam investir (RIBEIRO, 2014). A fim de sanar essa exigência dos investidores externos, Henry Varnum Poor publicou em 1860 o livro History of the Railroads and Canals of the United States, no qual buscou reunir a maior quantidade possível de informações acerca das companhias ferroviárias americanas. Tal livro foi o passo predecessor para criação da agência de risco Standard and Poor’s, que juntamente com a Fitch e a Moody’s, abocanham atualmente uma fatia de mais de 90% do mercado mundial de rating6. Assim como descrito pela Companhia de Valores Mobiliários (CVM), que regula as agências de rating no Brasil, uma Agência de Classificação de Risco de Crédito “é uma empresa que avalia determinados produtos financeiros ou seus emissores e classifica esses ativos ou empresas segundo o grau de risco de não pagamento no prazo fixado”7. Neste sentido, os créditos e outros produtos financeiros são classificados de acordo com uma escala de indicadores que vai de “D”, a pior nota possível, a “AAA”, a melhor nota possível, comumente conhecido como triplo “A”8. Para mensurarem tais indicadores, as agências recorrem tanto a análises quantitativas, como, por exemplo, análise de balanço, fluxo de caixa e projeções estatísticas, quanto a análises qualitativas, como ambiente externo, questões jurídicas, contexto político e outras percepções sobre o emissor e o ambiente no qual ele está inserido. Vale relatar que esta atividade de indexação de risco não consiste em uma produção isolada de indicadores exercida somente por tais agências nesta área de rating. Pelo contrário, esta produção de indicadores tem sido generalizada nas mais variadas searas de atuação

6

Disponível em: https://www.oecd.org/competition/sectors/46825342.pdf, p. 1. Acesso em: 05/08/2016. Disponível em: http://www.cvm.gov.br/menu/regulados/agenciasrisco/agclass_risco.html. Acesso em: 05/08/2016. 8 Em anexo segue uma tabela com os graus de rating e suas explicações resumidas. 273 7

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

profissional e acadêmica, sendo este fenômeno da indexação um dos resultados de um processo de matematização percebido em diversas áreas do conhecimento, como, por exemplo, no Direito e na Economia, tal como exposto por Krever (2013, pp. 131-150) e Castro (2016, pp. 50-55), respectivamente. Esta matematização que hoje influencia a ciência moderna somente foi possível por meio de um processo evolutivo pelo qual passou a própria matemática. Números que na Grécia antiga possuíam apenas significado concreto passaram a ser vistos sob outra perspectiva a partir da descoberta da existência de números irracionais. A matemática começa a ter que lidar com elementos que não mais se explicam pela dinâmica de um universo regido pela logos. A partir do “surgimento” da incógnita 9 , os matemáticos começam a buscar e achar formas de trabalhar com o desconhecido, com o abstrato. Nasce a álgebra. Após os primeiros estudos de gregos e árabes, a álgebra volta a ganhar força no meio matemático durante os séculos XVI e XVII, por meio dos trabalhos de Galileu Galilei, Stevin, Kepler e Descartes, que estavam interessados na produção do conhecimento que fosse capaz de resolver problemas práticos, utilizando-se para tanto da matemática aplicada em áreas como a engenharia mecânica, ótica, arquitetura, pintura e outras (CASTRO, 2016). Esta produção científica aplicada, todavia, baseava-se em um novo tipo de linguagem. A ciência começa a não mais se expressar por meio da linguagem natural, regida pela lógica aristotélica, e passa a funcionar a partir de um “novo modo de generalização”, baseado em construções matemáticas de alto grau de abstração, expressadas por meio de símbolos algébricos. Pouco a pouco, a álgebra moderna foi ocupando um espaço central na ciência. Pautada pelo desenvolvimento da álgebra, essa evolução do conhecimento possibilitou ao indivíduo a criação das mais úteis e variadas formas de tecnologia, como, por exemplo, os smartphones, ou mesmo, os indicadores aqui abordados. Entretanto, como exposto por Castro (2016), é perceptível que muitas destas criações tecnológicas acabam por destruir quase que por completo vários dos significados existenciais que possuímos acerca da vida em sociedade. Neste sentido, em face do surgimento cada vez mais acelerado destas novas tecnologias e dos problemas sociais ainda existentes no mundo

9

274

Grandeza ou valor desconhecido que se deve determinar na solução de um problema ou de uma equação (são usados, também, o símbolo y, para indicar uma segunda incógnita, e o símbolo z, para indicar uma terceira). Símbolo: x. Disponível em: http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=incognita. Acesso em: 05/08/2015.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

contemporâneo, o autor relata ser necessário se fazer a seguinte pergunta: são estas tecnologias capazes de promover a justiça e a liberdade do ser humano? No que tange aos indicadores de risco de crédito, objeto do presente estudo, algumas críticas têm sido levantadas nas últimas décadas acerca dos reais objetivos de sua difundida utilização no mundo globalizado, fazendo crer que tais indicadores apresentariam uma resposta negativa à pergunta acima colocada. Casos como o da crise do sudeste asiático em 199710, da empresa de energia Enron em 200111, do Banco Santos em 200412 e da crise financeira mundial de 200813, colocaram em profundas dúvidas a credibilidade dos indicadores produzidos pelas agências de ratings. Como relatado por Castro (2016), os indicadores podem ser enxergados de duas perspectivas distintas, uma positiva e uma negativa. A positiva expressa a ideia de que tais indicadores possibilitam uma produção científica mais objetiva, técnica e imparcial sobre determinados fenômenos sociais, econômicos e jurídicos, permitindo comparações, análises e mensurações que dariam segurança e fundamento científico para tomada de decisões no momento de se escolher determinada política pública, ou na hora de decidir onde investir determinado recurso financeiro. Já a forma negativa enxerga tais indicadores como instrumento de o mercado e alguns governos nacionais do norte global imporem sua agenda neoliberal a Estados soberanos, exercendo assim uma espécie de governança à distância. Neste sentido, indicadores de rating de crédito, indicadores globais de educação, de saúde e de desenvolvimento produzidos por instituições internacionais como Banco Mundial,

10

“Na Sudeste Asiático em 1997, pouco antes da desvalorização do baht tailandês, que deu início ao colapso, as agências de rating tinham confirmado as classificações favoráveis que atribuíam às economias da região, ignorando a deterioração de seus fundamentos macroeconômicos (FARHI & CINTRA, 2002)”. RIBEIRO, 2014, p. 66. 11 “Em 2001, a empresa de energia Enron era considerada a sétima maior empresa dos Estados Unidos, e suas ações bateram o recorde naquele ano, sendo classificada com a maior nota pelas agências de risco. Entretanto, a empresa possuía uma série de fraudes contábeis e uma dívida gigantesca. O maior problema foi que a Standard & Poor’s e a Moody’s somente rebaixaram a nota da companhia na véspera de sua concordata”. Loc.cit. 12 “O Banco Santos, permaneceu avaliado com nota ‘A’ pela Austin Rating até um dia após a intervenção feita pelo Banco Central, quando, então, passou a ser cotado em ‘CCC’ (baixa solidez financeira)”. Loc.cit. 13 Em 2008, a Moody’s, a Fitch e a SeP avaliaram a nota de crédito de títulos hipotecários como muito boas. Investidores de todo o mundo confiaram nessa avaliação e compraram os papéis. Os títulos eram baseados em empréstimos que tinham como garantia propriedades norte-americanas. Quando a bolha do mercado imobiliário nos Estados Unidos estourou, descobriu-se que esses títulos, classificados com a nota máxima AAA, eram na realidade títulos de classificação mais baixa, entre C e BBB. Os títulos então podres, passados de mão em mão entre os bancos como garantia de pagamento, levaram à crise financeira mundial após a quebra do banco de investimentos Lehman Brothers, em setembro de 2008. Disponível em: http://www.dw.com/pt/eua-cobramresponsabilidade-de-ag%C3%AAncias-de-rating-em-crise-financeira-mundial/a-16577597. Acesso em: 05/08/2016. Uma explicação mais detalhada e técnica pode ser encontrada em BRESSER- PEREIRA; A crise financeira de 2008; Revista de Economia Política, vol. 29, nº 1 (113), pp. 133-149, janeiro-março/2009; Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rep/v29n1/08.pdf. Acesso em: 05/08/2016. 275

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

OMC, ONU e outras, possuiriam o objetivo de direcionar as políticas públicas e os investimentos em determinados países, com fins outros que não aqueles que normalmente aparentam possuir. Segundo Broome e Quirk (2015), agências de notação de risco, por exemplo, por meio de seus ratings soberanos14 e relatórios, consolidam e rejeitam normas de conduta fiscal de governos nacionais pelo mundo, moldando assim a percepção do que deve ser um comportamento de comportamento econômico “normal” dos governos, e não somente com o intuito de esclarecer ao investidor onde seria mais interessante ele aportar seu capital econômico. Uma prova disso são as costumeiras falas de Ministros da Fazenda mundo a fora pautando suas políticas econômicas de acordo com o que tais agências “esperam” ou “indicam” em seus relatórios sobre determinado país. Recentemente no Brasil, o ex-ministro Joaquim Levy, por exemplo, se pronunciou diversas vezes preocupado a respeito dos sucessivos rebaixamentos do Brasil dados pelas três grandes agências anteriormente mencionadas e, para revertê-los, propôs ao Congresso um projeto de ajuste fiscal que acabou não sendo aprovado. Outro exemplo de como os indicadores seriam um instrumento para se governar à distância é apresentado por Krever (2013) ao comentar como os relatórios do projeto “Doing Business” 15 do Banco Mundial reportaram os efeitos da reforma trabalhista de 2006 da Georgia. Pautado por parâmetros de observação neoliberais, os relatórios de 2008 elogiaram

276

14 “A classificação de risco (rating) soberana é a nota dada por instituições especializadas em análise de crédito, chamadas agências classificadoras de risco, a um país emissor de dívida. Tais agências avaliam a capacidade e a disposição de um país em honrar, pontual e integralmente, os pagamentos de sua dívida. O rating é um instrumento relevante para os investidores, uma vez que fornece uma opinião independente a respeito do risco de crédito da dívida do país analisado”. Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/classificacao-derisco. Acesso em: 05/08/2016. 15 Como explanado no site do Banco Mundial, o projeto Doing Business supostamente proporciona uma medida objetiva dos regulamentos para fazer negócios e a sua implementação em 189 países pelo mundo. “O Doing Business mede, analisa e compara as regulamentações aplicáveis às empresas e o seu cumprimento em 189 economias e cidades selecionadas nos níveis subnacional e regional. Lançado em 2002, o projeto Doing Busines examina as pequenas e médias empresas nacionais e analisa as regulamentações aplicadas a elas durante o seu ciclo de vida. Assim, este estudo serve de ferramenta para se medir o impacto das regulamentações sobre as atividades empresariais ao redor do mundo. Ao reunir e analisar dados quantitativos abrangentes, podemos comparar os ambientes regulatórios das atividades empresariais em várias economias ao longo do tempo. Desta forma, o Doing Busines incentiva os países a competirem para alcançar uma regulamentação mais eficiente; oferece padrões de referência sobre reformas regulatórias; e serve como uma ferramenta para acadêmicos, jornalistas, membros do governo, empresários, pesquisadores do setor privado e outros interessados no ambiente de negócios de cada país. Além disso, o projeto Doing Business inclui relatórios subnacionais, que analisam em detalhes a regulamentação das atividades empresariais e as reformas em diferentes cidades e regiões de uma nação. Esses relatórios fornecem dados sobre a facilidade de se fazer negócios, classificam cada localidade e fazem recomendações sobre reformas para melhorar o desempenho em cada uma das áreas dos indicadores. As cidades selecionadas podem comparar as regulamentações de suas empresas com as de outras cidades no país ou região e com 189 economias no mundo”. Disponível em: http://portugues.doingbusiness.org/about-us. Acesso em: 7/08/2016.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

as mudanças realizadas naquela legislação que, por exemplo, eliminaram o pagamento de prêmio por horas extras trabalhadas. Para se ilustrar o poder de influência de tais relatórios, segundo seus próprios autores, o projeto “Doing Business” foi responsável por induzir 287 reformas em 131 economias pelo mundo, no período compreendido entre junho de 2008 e maio de 2009. Nem mesmo as possíveis vantagens trazidas pelos indicadores estariam livres de críticas. Segundo Broome e Quirk, o caráter técnico, imparcial e objetivo que formam tais indicadores são resultados de um processo de simplificação, extrapolação, comensuração, ratificação e julgamento simbólico16, que dão a estes indicadores a capacidade de tornarem eventos complexos e inseridos em contextos diversos, em números supostamente claros, incontestes e impessoais. Nesta linha, esse processo de indexação de fenômenos complexos não representaria com fidelidade e equivalência devida o que de fato significariam tais fenômenos, tendo em vista que para transformá-los em indicadores, muitas informações e variáveis importantes seriam desconsideradas pelo caminho. Para além disso, Engle Merry (2011) explica que reside exatamente neste suposto caráter técnico, imparcial e objetivo dos indicadores a chave do poder e legitimidade que as agências possuem diante dos mais diversos entes privados e públicos pelo mundo. Segundo a autora, a suposta imparcialidade, tecnicidade e objetividade presentes nesses constructos matemáticos, conferem a eles uma legitimidade científica tal que os tornam praticamente incontestáveis. Apesar de parecerem estar abertos ao escrutínio e debate público, tais indicadores representariam mais uma forma de elitização do conhecimento, estando acessíveis apenas de fato a especialistas que possuíssem capacidade suficiente para compreender e dominar as metodologias e a matematização que os constroem. 16

BROOME & QUIRK, op. cit., p. 827-829. Segundo os autores, na simplificação a complexidade e os detalhes contextuais são perdidos na tradução, em nome da busca por uma quantificação e uma comparabilidade possíveis. Na extrapolação, são feitos esforços para conectar vácuos de informação aos dados existentes. Essa fase é baseada em especulação. Essa construção de indicadores com base em vácuos de informação não aparece na representação numérica. Na comensuração, características representadas por diferentes unidades acabam se ajustando a uma métrica comum. Diferentes condições sociais, políticas e econômicas se transformam facilmente em “coisas” comparáveis pela tradução de QUALIDADE por QUANTIDADE. Essa fase se baseia na ideia de que os números são mais facilmente acessíveis, como formato de informação, a uma plateia de não especialistas. Na fase de retificação, ocorre a tradução de fenômenos complexos em observáveis e quantificáveis categorias conceituais, presumidamente universais e independentes de contextos culturais e históricos. É nessa fase que o caráter de complexidade e contestabilidade de categorias, como democracia, liberdade e outras, é estabilizado. Já na última fase, de julgamento simbólico, normalmente são produzidas consequências políticas indiretas através de processos de constrangimento, comparações desfavoráveis com os seus pares, e outras formas de danos à reputação. Esses julgamentos símbolicos também podem gerar parâmetros que são transpostos a práticas transnacionais, tais como empréstimos multilaterais, relações diplomáticas bilaterais, acesso aos mercados de capitais, ou programas internacionais de reforma e intervenção política. 277

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Deste modo, os especialistas integrantes de governos do norte global e de entes privados internacionais, decidindo o que cada indicador representa, seriam capazes de alocar recursos, moldar políticas públicas e direcionar investimentos pelo globo (MERRY, 2011). No que se refere aos indicadores de risco, a legitimidade que possuem ainda é mais fortemente contestada por um aparente conflito de interesses, visto que atualmente quem paga pelo rating oferecido pelas agências são as próprias empresas que possuem seus produtos ranqueados, diferentemente do que ocorria em 1860, quando investidores europeus solicitavam informações para saber em que companhia ferroviária investir. Esta dinâmica faz vários críticos afirmarem que na verdade as empresas “encomendam” os indicadores das agências de risco, possuindo como fundamento para tal afirmação, por exemplo, o caso do Banco Santos de 2004 e a crise econômica de 2008. INDUÇÃO AO ERRO, DESDEMOCRATIZAÇÃO E NÃO FRUIÇÃO DEVIDA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Analisando os indicadores de risco de crédito, e os indicadores de uma maneira geral, por meio dessa ótica negativa acima apresentada, faz-se necessário ao jurista contemporâneo, em um primeiro passo, mapear quais são as consequências negativas que a utilização de tais indicadores poderiam trazer ao mundo jurídico. Servindo como instrumento de imposição de uma agenda neoliberal, de simplificação de temas complexos e de elitização do conhecimento, é cabível dizer que o lado negativo dos indicadores pode gerar ao menos três efeitos indesejáveis à busca de promoção da justiça e de liberdade do ser humano: 1) a indução ao erro na tomada de decisão; 2) a desdemocratização; e 3) a não fruição devida de direitos fundamentais. Em primeiro lugar, é de se anotar que a simplificação de fenômenos complexos por meio de indicadores pode acabar levando o jurista, por exemplo, na hora de tomada de decisão sobre que política pública adotar ou que sentença proferir, à escolha da pior opção existente, tendo em vista que os indicadores por vezes apresentam graves falhas de “tradução”, ao transformarem eventos complexos em símbolos algébricos e números abstratos, como acima restou relatado. Assim, os direitos afetados por essa escolha errada, induzida por uma tradução mal realizada, restam preocupantemente ameaçados. Em segundo lugar, é de se notar que a elitização do conhecimento apontada no tópico anterior acaba permitindo o uso desses indicadores a criarem uma situação de “desdemocratização” em nível transnacional. O que ocorre, como apontado por Holmes

278

(2014), é que se vive hoje em um cenário de privatização da regulação, onde o mundo se vê

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

permeado por várias ordens jurídicas (ou não jurídicas), coexistentes, que se implicam e se regulam a todo tempo e que muitas vezes não consistem em ordenamentos advindos de um determinado Estado soberano, possuidor de um sistema jurídico constitucional hierarquizado. Surgem cada vez mais formas de regulação privada como, por exemplo, a governança à distância, exercida pelas agências de rating. Passa a se perceber uma sociedade mundial transnacionalizada, onde as autoridades soberanas não apresentam poder suficiente para aplicar normas vinculantes em âmbito global. Banco Mundial, OMC, Agências de Risco de Crédito, ONU, OIT, entre outras, passam a criar e “aplicar” seus “ordenamentos regulatórios” próprios pelo mundo. Como explanado por Holmes, cria-se uma “babel de vocabulários técnicos” (HOLMES, 2014, p.1143), comandada por especialistas, que passa a conviver com ordenamentos jurídicos supostamente soberanos que não mais conseguem se impor verticalmente. Neste sentido, cidadãos do mundo inteiro passam a estar sujeitos a tomadas de decisões que não mais se originam necessariamente de seus representantes democraticamente eleitos e passam a se sujeitar aos efeitos resultantes das tomadas de decisões realizadas por atores que não foram escolhidos por esses cidadãos, como especialistas e governos estrangeiros. Assim a sociedade contemporânea começa a se ver inserida em um processo de fragmentação da democracia representativa, antes centralizada nos ordenamentos estatais, e passa a conviver com uma nova dinâmica que aqui chamamos de “desdemocratização”. Dessa perspectiva, comenta Holmes (2014, p.1152): Em lugar de uma democracia fundada no Estado, poderíamos estar observando o surgimento de uma democracia desagregada, em que uma série de stakeholders controlam reciprocamente o seu poder regulatório, sem a existência de um centro último capaz de funcionar como órgão decisório de última instância.

No desenvolver de seu raciocínio, e em harmonia com o que fora apresentado nos tópicos anteriores, Holmes relata uma preocupação pertinente acerca dessa nova dinâmica de democracias desagregadas, comandada por especialistas (HOLMES, 2014, p.1153): Ao invés de tornar as decisões mais informadas e mais sujeitas ao escrutínio de uma esfera pública nacional e internacional, a densificação de redes transnacionais de contatos entre agentes públicos parece tornar ainda mais invisível e informal o saber regulatório global. As redes fortaleceriam, assim, o caráter tecnocrático e apolítico da governança global, reduzindo ainda mais as decisões a problemas gerenciais, cuja resolução é reservada a profissionais especializados.

279

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

É exatamente nesta linha que Krever (2013) expõe o quanto pode ser prejudicial aos cidadãos à ideia de que os indicadores possam estar desprovidos de qualquer grau de politização. É pelo fato de vários cidadãos e profissionais acreditarem em um caráter despolitizado desses indicadores, e por muitas vezes não contestá-los devidamente, por os considerarem construções técnicas neutras, que os players globais, produtores, “vendedores” e “compradores” dos indicadores, conseguem impor suas agendas e interesses de forma aparentemente legítima e invisível, como anotado por Holmes. Desse contexto, nasce a possibilidade de os indicadores gerarem o terceiro efeito negativo acima mencionado, qual seja, uma não devida fruição dos direitos fundamentais. Ora, com a possibilidade de muitas vezes estes indicadores estarem a serviço dos interesses de outros atores, que não os dos cidadãos que elegeram seus representantes democraticamente, nada garante que tais indicadores serão produzidos e utilizados a fim de garantir uma devida fruição dos direitos fundamentais aos cidadãos de todo o mundo. Pelo contrário, a fim de tentar garantir seus próprios interesses, existem vários indícios que apontam que tais entidades privadas internacionais, se necessário for, não se preocuparão em sobrepor suas agendas aos interesses do cidadão, como ocorreu no caso Enron em 2001 e na crise de 2008, por exemplo. Ou, como bem citado por Krever, quando essas organizações funcionam a serviço do mercado, como ele relata ser a atuação do Banco Mundial no caso dos relatórios do projeto “Doing Business”, acima mencionados, nos quais os autores parecem muito preocupados em estimular legislações que proporcionem o aumento do lucro das empresas, em detrimento de direitos do trabalhador. Krever comenta que, nesta lógica, deixa de haver um Estado de Direito e passa a existir uma rule of market (KREVER, 2013). Diante dos efeitos negativos que tais indicadores podem apresentar, a pergunta que se coloca ao jurista contemporâneo é, como imaginar formas de atuação que possam ser suficientemente eficientes diante de indicadores que governam à distância, inseridos na dinâmica de um sistema financeiro mundial integrado, que possui seus pilares fundados em uma perspectiva econômica altamente matematizada? IMAGINANDO A ATUAÇÃO DO JURISTA CONTEMPORÂNEO DIANTE DOS PROBLEMAS APRESENTADOS E A NECESSIDADE DE POPULARIZAÇÃO DO DEBATE ACERCA DOS INDICADORES Diante dos possíveis efeitos negativos apresentados e do imenso poder que as agências de notação de risco exercem pelo mundo, faz-se necessário que o jurista contemporâneo

280

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

reflita sobre novas formas de atuação que possam evitar condutas danosas das agências de notação de risco e do uso de seus indicadores. Após a crise de 2008, algumas medidas foram tomadas pelo mundo a fim de tentar evitar e punir condutas indevidas de tais agências. Nos Estados Unidos, além dos inúmeros processos ajuizados contra as agências de notação de risco, que acabaram resultando, por exemplo, para Standard and Poor’s em mais de US$ 1,3 bilhão em multas pagas17, houve também, em julho de 2010, a edição da Lei Dodd-Frank (‘‘Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act’’)18, que teria como objetivo promover maior transparência e segurança para investidores, exigindo a elaboração de estudos e relatórios periódicos sobre diversos temas de interesse do investidor. Seis anos após a lei ter entrado em vigor, ainda existe forte debate acerca de sua real eficiência, tendo muitos especialistas afirmado que ela não mudou muito o cenário de vulnerabilidade do mercado, dos investidores, dos Estados e dos cidadãos, frente ao poder dessas agências. Ao Wall Street Journal 19 , James H. Gellert, diretor-presidente da Rapid Ratings International Inc., uma firma paga por investidores e não pelas empresas cujos produtos financeiros são ranqueados, afirma que “não está acontecendo uma mudança sistêmica”. Reformas também foram realizadas em outros lugares do globo. Em 2011, a União Europeia criou a Autoridade Europeia dos Valores Mobiliários e dos Mercados (AEVMM/ESMA) para registrar, acompanhar e supervisionar as agências de notação de risco20. Em fevereiro de 2016, o Tribunal de Contas Europeu, emitiu um relatório especial a fim de relatar possíveis avanços com a fiscalização desenvolvida pela ESMA nos últimos anos. O TCE concluiu que “embora a ESMA tenha estabelecido boas bases, as suas regras e orientações ainda não estão completas e continuam a existir riscos significativos que devem ser resolvidos no futuro.”21. O relatório apontou que muitos desses riscos ainda existentes se dão, dentre outros motivos, pela baixa competitividade no mercado de notação de risco, pela enorme quantidade de informação a ser supervisionada, por não dominarem completamente todos os aspectos das metodologias supervisionadas e pela transparência do mercado que é prejudicada pelas diferentes práticas de divulgação das agências de notação. 17

Disponível em: http://br.wsj.com/articles/SB10620507992549273295504581599534095941222. Acesso em: 05/08/2016. Disponível em: https://www.sec.gov/about/laws/wallstreetreform-cpa.pdf. Acesso em: 05/08/2016. 19 Disponível em: http://br.wsj.com/articles/SB10620507992549273295504581599534095941222. Acesso em: 05/08/2016. 20 Disponível em: http://www.eca.europa.eu/Lists/News/NEWS1602_01/INSR_ESMA_PT.pdf. Acesso em: 05/08/2016. 21 Disponível em: http://www.eca.europa.eu/pt/Pages/DocItem.aspx?did=35152. Acesso em: 05/08/2016. 281 18

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

No Brasil, houve a promulgação da Instrução nº 521 de 2012 da CVM22 também com fim de regular as agências de notação de risco. Pode-se dizer que em comparação com a regulação estadunidense e europeia, a regulação brasileira não traz muitas novidades. A instrução trouxe requisitos de registro das agências domiciliadas no Brasil e de reconhecimento das estrangeiras, exigiu a divulgação de informações periódicas pelas agências e obrigou-as a terem uma área de compliance, para fazer a supervisão do cumprimento das normas. Todavia, não se encontrou qualquer relatório de acompanhamento da fiscalização da CVM sobre estas agências, diferentemente do que existe no caso europeu. Tampouco, percebe-se no país um debate acadêmico aprofundado sobre o tema. Expostas as medidas tomadas pelo mundo após a crise de 2008, alguns comentários se fazem necessários. Apesar de agora parecer existir ao menos algum controle em relação a essas agências, ainda existem muitas dúvidas acerca da efetividade desse controle sobre suas possíveis práticas danosas. No que tange aos problemas apresentados e debatidos neste trabalho, pode-se dizer que estas regulações pouco evitam os efeitos negativos que os indicadores e o poder dessas agências podem apresentar, por meio da existente dinâmica de governança à distância por indicadores. Explica-se. Terceiros afetados e danos sociais coletivos Em primeiro lugar, é importante ressaltar que essas regulações estão muito focadas na defesa do investidor, logicamente por serem os primeiros afetados com as práticas irregulares dessas agências. Todavia, poucos (ou nenhum) mecanismos, além de possíveis multas, foram desenvolvidos de modo a se preocupar com a responsabilização dessas agências perante terceiros não investidores, não contratantes, que são afetados indiretamente pelos ratings dessas agências. Diante dos enormes impactos que tais agências podem causar às diversas economias ao redor do mundo, seria devido que tais regulações previssem, por exemplo, meios de ressarcimento coletivo em caso de indevidas afetações à ordem econômica e aos direitos difusos. A previsão de dispositivos nestas regulações que respaldassem a atuação do Ministério Público em Ações Civis Públicas de Danos Coletivos seria talvez algo a se pensar. Afinal de contas, pelo poder e influência que possuem, os impactos sociais e econômicos por elas causados transpassam e muito as barreiras que circundam somente os atores do mercado financeiro. O bem-estar social de populações inteiras pode ser afetado por ações irresponsáveis de tais agências e é necessário que existam meios efetivos para conscientizá-las e responsabilizá-las por essas afetações. 22

282

Disponível em: http://www.cvm.gov.br/export/sites/cvm/legislacao/inst/anexos/500/inst521.pdf. Acesso em: 05/08/2016.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Tratamento transnacional Em segundo lugar, como já explanado e experimentado durante a crise de 2008, a atuação dessas agências possui afetação global. Agências sediadas nos EUA, por condutas praticadas naquele país, conseguiram danificar economias em todo mundo e isso se deve pelo fato curialmente conhecido de o sistema financeiro mundial ser altamente interligado. Assim, cumpre dizer que qualquer regulação que seja pensada de modo primordialmente interno pouco solucionará a capacidade de os indicadores dessas agências “governarem à distância”. Basta que a regulação estadunidense falhe para que o mundo sinta os impactos novamente. Ademais, tratando-se de rating soberano, por exemplo, o que ocorre é que agências situadas em outros países analisam a capacidade de bom pagador do Brasil, não tendo a regulação brasileira qualquer efeito sobre as condutas e parâmetros que estão sendo utilizadas para construir o rating23. Assim, os indicadores produzidos no exterior continuam apontando ao Brasil que política econômica adotar e que política fiscal escolher24. É interessante ressaltar aqui que não se está defendendo que essas agências estão somente comprometidas com interesses próprios ou do mercado e buscando sempre uma forma de se beneficiar em detrimento do resto do mundo. Reconhece-se aqui a importância do trabalho realizado por elas, que permite maior transparência e segurança aos investidores na hora de aportar recursos em determinado negócios. De certa forma, foram elas uma das grandes responsáveis pela globalização da economia, permitindo que o fluxo transnacional financeiro pudesse deslocar investimentos de economias mais favorecidas para países em desenvolvimento. É necessário esclarecer que a dinâmica existente atualmente na área de rating as colocam em situação de enorme poder político, econômico e jurídico, inclusive frente aos Estados soberanos, e é dever do jurista contemporâneo buscar saídas que possam amenizar os efeitos negativos que elas possam apresentar. Muito dessa situação de poder político-econômico, “desregulação” e “impunidade” na qual se encontram estas agências se dá pelo desequilíbrio existente entre a integração das diversas ordens jurídicas existentes no mundo, em comparação à integração da ordem econômica global. Enquanto vivemos em um mundo em que os sistemas econômicos nacionais se refletem e interagem em grande harmonia, os sistemas jurídicos Estatais, por sua 23

Atualmente, o Brasil possui contrato com as três grandes agências americanas, uma canadense e duas japonesas. Disponível em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/classificacao-de-risco. Acesso em: 05/08/2016. Alguns pesquisadores poderiam dizer que o Brasil não é obrigado a contratar tais agências de rating e que, portanto, seria do país a “escolha de ser ou não governado por esses indicadores”. Ocorre, todavia, que os maiores investidores do mundo somente investem em países ranqueados por determinadas agências. Assim, é de se dizer que os Estados nacionais são praticamente forçados pelo mercado a contratarem essas agências. 283 24

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

vez, possuem assimetrias profundas e muitas vezes não estão abertos ao convívio e interação com um sistema jurídico diverso, o que acaba gerando, a nível global, uma situação de subordinação do Direito ao poder econômico e político. Neste sentido, comenta Neves (2014, p.26): With regard to the lex mecatoria, for example, while the reflexivity of the economy is high and solid, reflexivity of law is weak, given that the code of law in this context is fragile in relation to the code of the economy. This applies to other situations, such as the law of the World Trade Organization, which is relevant here, beyond economic interests, to political power. The relationship in such contexts is not a structural (horizontal) coupling between law and politics or any other functional system on the reflexive plane, but a structural subordination of the law to a certain social sphere.

Assim, é de se afirmar que, em face das situações acima descritas, a formulação de regulações meramente intraestatais não parece ser a forma mais acertada de se tratar um problema de caráter global. É preciso que as diversas regulações existentes possam interagir e serem pensadas de forma transnacional, caso contrário os interesses econômicos e políticos continuarão sendo suficientemente fortes para se sobreporem ao Direito, e, em específico, aos direitos fundamentais. Importante pontuar que, quando se fala em pensar nas diversas regulações de forma transnacional, não se está querendo com isso sugerir a criação de um sistema mundial regulatório único de agências de notação de risco. Existe aqui a convicção de que, pelas particularidades sociais, jurídicas e culturais, intrínsecas a cada Estado, tal sistema mundial não seria de tangível concepção atualmente, nem mesmo em médio prazo. Ademais, as experiências atuais de organizações internacionais que visam uma coordenação interestatal única nos sugerem que sempre os países em melhor posição econômica e política acabarão impondo seus interesses às outras nações. Assim, a transnacionalidade aqui mencionada consiste em reconhecer que existem atualmente várias ordens normativas se implicando a todo tempo, que os possíveis problemas advindos das agências de rating possuem muitas vezes caráter transnacional e que o Estado nacional, neste contexto, seria insuficiente para a resolução do problema. Deste modo, seria interessante a estas diversas ordens normativas “independentes” refletirem sobre este problema em comum de forma conjunta. Entendendo e respeitando a autonomia de cada ordem distinta e estando abertas para aprender e ensinar com as experiências exitosas percebidas em cada uma destas ordens.

284

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Consistiria em criar uma identidade de reflexão acerca da problemática enfrentada nas agências de rating que se baseasse e trabalhasse com as diferenças existentes em cada ordenamento, podendo esta forma de reflexão conjunta não levar necessariamente ao encontro de uma solução consensual ou única, mas, por exemplo, ao aprimoramento de duas ou mais ordens distintas, e de suas respectivas atuações em face do problema em comum. Seria uma tratamento próximo, se não igual, ao que propõe Neves através do “transconstitucionalismo” (NEVES, 2014, pp. 26-30): Transconstitutionalism means that two or more legal orders or organizations, whether of the same kind or of different kinds, engage simultaneously in the same constitutional case or problem. State legal orders (based on a constitution), international (founded on treaties and conventions that primarily involve states), supranational (founded on constitutional treaty integrating states) and transnational (built by agreements or practices established between private and quasi-public actors) legal orders as well as extra-estate native normative orders (based on customs of indigenous communities) increasingly come face to face, as they are involved in solving the same constitutional problem.(…) Transconstitutionalism, involving both empirical and normative dimensions, is ambivalent, since the transversal rationality that it unfolds–the ‘transition’ and ‘entanglement’ (Welsch 1996: 748 ff) between heterogenic rationalities involved therein–constitutes, on the one hand, dialogues and, on the other hand, agonic communications. Both of these forms are related to a process of permanent learning in conditions of double contingency.45 We should not presume, however, that these are communicative forms designed to secure a consensus. On the contrary, they are aimed at absorbing and dissipating structural dissent involving the constitutional problems of world society. The transconstitutional dialogues between legal orders indicate that there is a willingness to learn from each other, and a readiness to rebuild identity based on alterity.

Contudo, em que pese a discussão existente acerca de qual solução escolher, dentre as diversas possibilidades que uma reflexão transnacional possa encontrar para os impactos negativos das atuações das agências de notação de risco, uma coisa é certa, o êxito dessas soluções dependerá cada vez mais de uma atuação do jurista contemporâneo que ultrapasse os limites de um universo meramente jurídico. O jurista contemporâneo e a necessidade de popularização do debate acerca dos indicadores Como relatado, os indicadores de rating governam à distância por força de toda legitimidade, neutralidade, objetividade e tecnicidade aparentes que o processo de matematização que os constroem lhes dá. Para além disso, tais indicadores conseguem ver seu poder e influência potencializados por integrarem e movimentarem a ordem econômica

285

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

global, a qual consegue impor seus interesses ao mundo, em grande parte, por ser muito mais integralizada transnacionalmente que o universo jurídico. Como sugerido no tópico anterior, a sugestão para se diminuir/fiscalizar o poder das agências passa pela necessidade de tratar seus efeitos a nível transnacional, de modo que a eficácia da solução se faça adequada à abrangência do problema. Todavia, resta ainda um desafio aos juristas: como lidar com a aparente neutralidade, objetividade, legitimidade e tecnicidade que estes indicadores encontram na matematização que os constroem e que os permitem exercer esta governança a distância? De modo resumido e simplificado, a resposta correta seria: desconstruindo, entendendo e debatendo essa matematização. Ora, como poderiam os juristas discutirem propriamente os indicadores sem compreendê-los de fato? O grau de abstração desses indicadores e a técnica matemática avançada para criá-los é o que possibilita que somente os especialistas possam utilizá-los como bem entendam. Como explicado, é essa matematização que permite que eles desdemocratizem o mundo e assumam um enorme poder de agenda. Desta forma, para fazer com que o Direito seja incluído no debate e não mais fique subordinado a esses indicadores, é necessário que o jurista se capacite tecnicamente para discutir a matematização. É necessário que o jurista entenda a metodologia que os cria e a desconstrua para constatar se ela possui alguma falha, ou se aparenta ter sido escolhida para legitimar determinada posição política. É necessário que ele analise as simplificações que foram feitas durante o processo de tradução matemática, que transforma fenômenos socioeconômicos em indicadores, e consiga relatar se as simplificações realizadas comprometerão ou não a tradução final, verificando assim se a equivalência entre indicador e fenômeno traduzido é ou não satisfatória. Neste sentido, pontua Castro (2016, p.53): Jurists acquire training in mathematics and artificial languages in order to exert legal assessment of mathematical infrastructures that underlie public policies, regulations, indicators, commodified indices, softwares and the like while helping to avoid instances of power exertion that may generate dominant DIAs. Instead, with the help of law, multiple evolving configurations of social assemblages promote economic decentralization through the creation by individuals and communities of ever new forms of free human existence. Legal work would have to go beyond deconstruction and engage in exercises of constructive reaction to encounters with a-logos in ways that help to reassemble social relations in ever new freedomenhancing arrangements, often with the help of mathemata.

Assim, é necessário, em síntese, que o jurista contemporâneo transpasse o mundo

286

jurídico, para poder garantir devidamente direitos fundamentais. Neste mundo onde a

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

economia matematizada governa, é necessário ir além do Direito, para garantir o Direito. Caso contrário, os juristas também ficarão marginalizados da discussão e com isso os direitos fundamentais, a justiça e a liberdade do ser humano, continuarão estando subordinados aos interesses econômicos e políticos dos especialistas. A fim de capacitar o jurista para tanto, Castro (2009) propõe uma nova forma de atuação por meio da Análise Jurídica da Política Econômica (AJPE), que visa uma abordagem interdisciplinar do estudo do Direito no trato de questões economicamente relevantes para que as falhas existentes em uma análise estritamente jurídica possam ser mapeadas e solucionadas, otimizando, de tal feita, a fruição de direitos fundamentais por parte dos cidadãos. Como exposto por Castro (2009), essa abertura interdisciplinar busca uma ampliação dos canais de abordagem dos fatos sociais, de modo a reforçar e organizar a capacidade do jurista de proceder a apreciação crítica da realidade empírica. Deste modo, seria acertado sugerir a AJPE e outras possíveis formas de se pensar o Direito que permitam ao jurista discutir os fenômenos sociais para além de seus aspectos jurídicos, como modo adequado de observação do poder de governança a distância de tais indicadores, a fim de fiscalizar adequadamente as agências de rating e evitar uma não afetação indevida dos direitos fundamentais. Contudo, vale ainda imaginar que somente a inclusão dos juristas nesse debate matematizado talvez não seja suficiente para devida garantia dos direitos fundamentais. Ora, se somente os juristas tiverem acesso ao debate, passarão eles, juntamente com os especialistas, a possuírem poder de construção e imposição de agenda, não modificando, desta forma, drasticamente o cenário de desdemocratização anteriormente mencionado. Por mais bem intencionados que sejam os juristas, é necessário que o debate seja ainda mais inclusivo. É necessário que os indicadores possam ser debatidos pela população tal como é discutido o aborto, a pena de morte, a legalização da maconha e outros temas que são acessíveis e fiscalizados diariamente pelo cidadão. A pressão e a fiscalização social são essenciais para que os juristas, por exemplo, após desconstruírem e analisarem os indicadores, consigam a força política necessária para implementar reformas no sistema financeiro. Neste sentido, pensar a democratização dessa discussão, não somente é uma tarefa para o jurista contemporâneo, como é essencial para que ele consiga garantir uma devida fruição de direitos fundamentais. Como se daria essa inclusão da população ao debate é algo que este trabalho ainda não conseguiria responder satisfatoriamente. Imaginar bilhões de pessoas discutindo indicadores tecnicamente e de forma apropriada parece algo impensável no momento. Entretanto, exigir

287

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

que os indicadores sejam também explicados e divulgados em linguagem cada vez mais natural, sem gerar a perda de fundamentação técnica, pode ser um primeiro passo para se imaginar a popularização da discussão acerca dos indicadores. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como apontado por Desrosières (1990)25, a relação entre política e indicadores não pode ser reduzida a uma eventual manipulação dos fatos “por quem está no poder”. É necessário ao jurista atual enxergar os dois lados de uma mesma moeda: 1) que tais indicadores são uma ferramenta avançada de mapeamento, quantificação e criação de novas tecnologias; 2) bem como, que também podem servir de instrumento para imposição de agendas que contemplem os interesses de quem os produz, os nomeia, os vende e os encomenda. Em que pese o presente trabalho ter se dedicado mais a imaginar possíveis atuações jurídicas que visem evitar o lado negativo dos indicadores, tendo em vista que este é o lado que mais diretamente ameaça a fruição dos direitos fundamentais, vale ressalvar que também é necessário ao jurista contemporâneo dominar a codificação que os constrói, a fim de utilizar a tecnologia que eles proporcionam para tornar mais eficiente a fruição de direitos que aqui objetivamos proteger. É isso, por exemplo, que a AJPE faz, por meio de sua Análise Posicional, ao calcular o Índice de Fruição Empírica e o Patamar de Validação Jurídica, objetivando mapear a efetividade e as falhas de determinada política pública na promoção de um direito apontado, e, com base nisso, posteriormente pensando uma reforma que aprimore esta promoção. É nesse sentido que Castro anota que é necessário ao jurista contemporâneo ir além da desconstrução dos indicadores e começar a propor reações construtivas que trabalhem o a-logos de modo a recriar relações sociais que reforcem a liberdade do ser humano (CASTRO, 2016). Neste sentido, e diante do problema apresentado, qual seja, as afetações negativas da governança à distância dos indicadores aos direitos fundamentais, à justiça e à liberdade do ser humano, o trabalho que se encerra tentou imaginar algumas formas de pensar o problema, tendo como base um contexto mundial mapeado, onde existe uma situação de desdemocratização, com várias ordens jurídicas e não jurídicas se implicando e interagindo, e no qual alguns players conseguem impor uma agenda, por meio de constructos matemáticos que governam à distância e invisivelmente.

288



25 Desrosières fala mais especificamente em “estatística”, todavia a problematização por ele abordada é a mesma que engloba os indicadores.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Responsabilização por danos sociais coletivos, problematização transnacionalizada, capacitação à matematização e popularização do debate foram as principais formas que se imaginou como adequadas para resolver o problema apresentado. Todas elas dependem de um remodelamento acerca do que se pensa ser uma adequada atuação do jurista contemporâneo, cada uma de uma forma distinta. De modo geral, o que se conclui é que formalismos em excesso, ordenamentos soberanos, teorias gerais, positivismo e a fragmentação do conhecimento em sistemas observados separadamente, são hoje absolutamente insuficientes para solucionar os problemas que uma sociedade cada vez mais dinâmica apresenta ao Direito. Smart

contracts (FAIRFIELD,

2014,

p.

35-50),

economia

compartilhada,

desdemocratização, indicadores, problemas transnacionais, regulação privada e outros desafios do mundo atual exigem do jurista uma reinvenção do Direito do Consumidor, do Direito Regulatório, do Direito Econômico e do Direito como um todo. Faz-se necessário neste momento uma mudança de cultura jurídica que comece desde já a implementar um processo permanente de desconstrução e posterior reação construtiva. Nesse processo só uma coisa é certa: será necessário ir além do Direito, para garantir os direitos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANCO

MUNDIAL.

Sobre

o

Projeto

Doing

Business;

Disponível

em:

http://portugues.doingbusiness.org/about-us. Acesso em: 07/08/2016. BRESSER-PEREIRA. A crise financeira de 2008; Revista de Economia Política, vol. 29, nº 1 (113),

pp.

133-149,

janeiro-março/2009;

Disponível

em:

http://www.scielo.br/pdf/rep/v29n1/08.pdf. Acesso em: 05/08/2016. BROOME, Andre; QUIRK, Joel. Governing the world at a distance: the practice of global benchmarking.

2015.

Review

of

International

Studies,

41,

pp.

819-841.

doi:10.1017/S0260210515000340. CASTRO, Marcus Faro de. “Análise Jurídica da Política Econômica”. Revista da Procuradoria-Geral do Banco Central, v. 3, 2009.

289

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

______. “From Numbers to Post-Logocentric Normative Craft: On the Use of Indicators and Comparable Constructs in Contemporary Legal Analysis”, 2016, – Trabalho apresentado no 3rd ISA Forum of Sociology (International Sociological Association). Research Committee on the Sociology of Law (RC12) – The Futures We Want in Numbers: Searching Legal Indicators for a Better World – Vienna, July 10-14, 2016. CVM:

Agências

Classificadoras

de

Risco.

Disponível

http://www.cvm.gov.br/menu/regulados/agenciasrisco/agclass_risco.html.

Acesso

em: em:

05/08/2016. DESROSIÈRES, A. (1990) “How to Make Things which Hold Together: Social Science, Statisticsand the State”, in Wagner, P., Wittrock, B., and Whitley, R.P. (eds.) Discourses on Society:The Shaping of the Social Science Disciplines. Dordrecth: Kluwer Academic Publishers, pp. 195–218. DEUTSCH WELLE. EUA cobram responsabilidade de agências de rating em crise financeira mundial.

Disponível

em:

http://www.dw.com/pt/eua-cobram-responsabilidade-de-

ag%C3%AAncias-de-rating-em-crise-financeira-mundial/a-16577597.

Acesso

em:

05/08/2016. FAIRFIELD, Joshua. Smart Contracts, Bitcoin Bots, and Consumer Protection, 71 Wash. & Lee L. Rev. Online 36 (2014). Disponível em: http://scholarlycommons.law.wlu.edu/wlulronline/vol71/iss2/3. Acesso em: 05/08/2016. HOLMES, Pablo. O Constitucionalismo entre a Fragmentação e a Privatização: Problemas Evolutivos do Direito e da Política na Era da Governança Global. Dados[online]. 2014, vol.57,

n.4

[cited

2016-08-12],

pp.

1137-1168.

Available

from:

.

ISSN

0011-

5258. http://dx.doi.org/10.1590/00115258201435. IBGE, 2015, Produto Interno Bruto dos Municípios 2010-2013. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/pibmunicipios/2010_2013/default_ods.sht

290

m. Acesso em: 05/08/2016.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

KREVER, Tor, Quantifying Law: Legal Indicator Projects and the Reproduction of Neoliberal Common Sense (January 6, 2013). Third World Quarterly, Vol. 34, 2013. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=2196988. Acesso em: 05/08/2016. MARTIN, Timothy. Processadas depois da crise, agências de classificação de crédito estão mais fortes que nunca; WALL STREET JOURNAL, 15 de março de 2016. Disponível em: http://br.wsj.com/articles/SB10620507992549273295504581599534095941222. Acesso em: 05/08/2016. MERRY, Sally Engle. "Measuring the World: Indicators, Human Rights, and Global Governance". Current Anthropology 52.S3 (2011): S83-95. MICHAELIS.

Disponível

em:

http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=incognita. Acesso em: 05/08/2016. NEVES, Marcelo. From Constitutionalism to Transconstitutionalism: Beyond Constitutional Nationalism, Cosmopolitan Constitutional Unity and Fragmentary Constitutional Pluralism. 2014. OCDE.

Competition

and

Credit

Rating

Agencies;

2010;

Disponível

em:

https://www.oecd.org/competition/sectors/46825342.pdf; p. 1. Acesso em: 05/08/2016. REDAÇÃO DA REVISTA VEJA; Novo rebaixamento pode fazer Brasil perder até US$ 20 bi em investimentos; 16 de dezembro de 2015. Disponível em: http://veja.abril.com.br/economia/novorebaixamento-pode-fazer-brasil-perder-ate-us-20-bi-em-investimentos/.

Acesso

em:

05/08/2016. RIBEIRO, Gabriel. Onde está a credibilidade das agências de rating?; 2014; in; Revista Ensaios & Diálogos – Nº 7. RUDDEN,

Ruty.

Evolution

of

credit

ratings.

2005.

http://legacy.guardian.co.tt/archives/2005-03-28/bussguardian12.html. 05/08/2016.

Disponível

em:

Acesso

em:

291

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

TESOURO NACIONAL BRASILEIRO. Classificação de risco da República Soberana do Brasil;

Disponível

em:

http://www.tesouro.fazenda.gov.br/pt_PT/classificacao-de-risco.

Acesso em: 05/08/2016. TRIBUNAL DE CONTAS EUROPEU. Relatório Especial nº 22/2015: Supervisão das agências de notação de risco pela União Europeia — Bem estabelecida, mas ainda não completamente

eficaz;

2

de

fevereiro

de

2016.

Disponível

em:

http://www.eca.europa.eu/pt/Pages/DocItem.aspx?did=35152. Acesso em: 05/08/2016. U.S SECURITIES AND EXCHANGE COMISSION. Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act. Disponível em: https://www.sec.gov/about/laws/wallstreetreformcpa.pdf . Acesso em: 05/08/2016.

292

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

TABELA ANEXA

(Tabela citada na nota de rodapé nº 10. Disponível em: http://www.interest.co.nz/credit-ratings-explained. Acesso em: 05/08/2016.)

293

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

JUDICIAL CREATIVITY, SEPARAÇÃO DE PODERES E O PROBLEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DOS EFEITOS (EXTRA)JURÍDICOS DO HC 126.962 À LUZ DO FEDERALISTA JUDICIAL CREATIVITY, SEPARATION OF POWERS AND THE PROBLEM OF THE BRAZILIAN PRISON SYSTEM: AN ANALYSIS OF THE (EXTRA)JUDICIAL EFFECTS OF THE HC 126.292 IN LIGHT OF THE FEDERALIST PAPERS Eloisa Yang1 João Pedro Viegas de Moraes Leme2 Submetido(submitted): 11 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 18 de outubro de 2016 RESUMO O presente artigo visa analisar os aspectos constitucionais e penais da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do HC 126.292, que permitiu a expedição de mandado de prisão antes do trânsito em julgado da sentença ao delimitar um novo conteúdo essencial do princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII da CF/88). O estudo se vale de uma análise sistemática das normas infraconstitucionais pertinentes ao tema em relação ao conteúdo do princípio da presunção de inocência, definido tanto em lei quanto em tratados internacionais de direitos humanos, bem como uma análise mais aprofundada sobre teoria e prática da pena privativa de liberdade e dados sobre o sistema carcerário brasileiro, de forma a traçar perspectivas e futuros impactos da decisão sobre o encarceramento no Brasil. PALAVRAS-CHAVE: Limites de interpretação; Desafios da execução penal brasileira; Violação de direitos humanos. ABSTRACT This work intends to analyze the constitutional and criminal aspects of the precedent established by the Federal Supreme Court (STF) on the ruling HC 126.292, which allowed the expedition of arrest warrants before the matter becomes res judicata by determining a new essential core to the scope of protection of the presumption of innocence (in dubio pro reo) principle. The study utilizes a systematic analysis of the pertinent infra-constitutional laws in respect to the essence of the presumption of innocence, defined both by the Constitution and several international Human Rights treaties, as well as a more substantial analysis of the theory and practice of the terms of deprivation of liberty and empirical data from the Brazilian Prison System, in order to construct prospects and possible impacts of the decision on incarceration in Brazil. KEYWORDS: Limits of judicial interpretation; Challenges to the brazilian penal execution; Violation of human rights.

1

Graduanda do 6º semestre de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Graduando do 6º semestre de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Bolsista de Iniciação Científica do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). 2

295

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

INTRODUÇÃO O primeiro bimestre de 2016 foi marcado por um dos mais polêmicos julgamentos da história recente do Supremo Tribunal Federal (STF): o HC 126.292. Largamente noticiado pela mídia brasileira3, a discussão dos autos trata, em breve síntese, da decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) na Apelação Criminal nº 0009715-92.2010.8.26.0268 que, além de negar o habeas corpus apresentado em face da confirmação da sentença condenatória, determinou a expedição de mandato de prisão contra o acusado (a título de cumprimento de pena), ainda que houvesse a possibilidade de interposição de recurso (ou seja, sem que estivesse configurado o trânsito em julgado da sentença). Pelo placar de 7 votos favoráveis e 4 contrários, o Plenário do STF decidiu por alterar o entendimento jurisprudencial até então vigente4, que impunha o trânsito em julgado da sentença condenatória como conditio sine qua non para a execução da pena – excepcionada apenas a prisão preventiva, que deveria ser fundamentada de acordo com os requisitos impostos pelo artigo 3125 do Código de Processo Penal –, tendo em vista resguardar o princípio da presunção de inocência (derivado do art. 5º, inciso LVII6 da Constituição Federal de 1988). Ainda que o voto-condutor tenha afirmado que o teor da decisão não teria comprometido de forma alguma o princípio constitucional ali debatido, parte da comunidade jurídica não admitiu a novidade7, tendo o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Partido Ecológico Nacional (PEN) ingressado imediatamente com ações no próprio Supremo visando a 3

A título de ilustração, inserimos aqui alguns exemplos de reportagens sobre o tema em discussão: ,, e . 4 Entendimento firmado no julgamento do HC nº 84.078, de relatoria do Ministro Eros Grau, julgado em 05/02/2009. O acórdão pode ser acessado em: . 5 Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares. 6 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; 7 Destacamos as manifestações contrárias do Movimento de Defesa da Advocacia (MDA), do Instituto de Advogados de São Paulo (IASP), do Instituto de Garantias Penais (IGP), da Associação Nacional de Defensores Públicos Federais (ANADEF), do Instituto de Advogados Brasileiros (IAB) e da Federação de Associações dos Advogados do Estado de São Paulo (FADESP).

296

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

desconsideração do novo posicionamento adotado pelo Tribunal8, que contaram com contribuições de importantes entidades, como a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPERJ), a Defensoria Pública da União (DPU), o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), dentre outros. As questões que o presente trabalho busca responder são as seguintes: (i) o novo entendimento adotado pelo STF seria resultado de um exercício de Judicial Creativity9 ou de uma usurpação de competência do Poder Legislativo ao excluir/anular uma norma constitucional?, e (ii) seria o impacto da decisão no contexto social brasileiro adequado aos fins enunciados pelos ministros, isto é, as consequências de tal determinação seriam positivas tanto à sociedade quanto ao nosso ordenamento jurídico, levando em conta a realidade do sistema carcerário e da execução penal? Para responder aos questionamentos propostos acima, optamos por segmentar este trabalho em duas frentes, quais sejam (i) os efeitos abstratos da decisão e (ii) os efeitos concretos em nosso contexto social. O primeiro prisma de análise visa averiguar se (a) a decisão do STF é compatível e coerente com as demais disposições da ordem jurídica brasileira, além de (b) buscar entender quais seriam os limites institucionais e políticos que deverão ser observados pelos ministros em seu exercício de interpretação das normas jurídicas, estabelecendo paralelos, quando necessário, ao modelo de estrutura organizacional do Estado proposto por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay n’O Federalista – documento que serviu como principal meio de expressão para os criadores da

8 Confira em: http://jota.uol.com.br/oab-tenta-derrubar-no-stf-execucao-de-pena-antes-transito-em-julgado. A íntegra da petição inicial da ADC 44, interposta pelo CFOAB, pode ser obtida no endereço http://d2f17dr7ourrh3.cloudfront.net/wp-content/uploads/2016/05/ADC-Artigo-283-CPP-Lenio-StreckVers%C3%A3o-final-Assinado-Assinado.pdf. Já a íntegra da petição inicial da ADC 43, interposta pelo PEN, encontra-se no seguinte endereço: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=549829633#1%20%20Peti%E7%E3o%20inicial%20(25554/2016)%20-%20Peti%E7%E3o%20inicial. 9 Uma possível definição do termo seria a interpretação não usual (inovadora ou criativa) de uma norma jurídica positivada por um juiz em determinado caso. Tal conceito é amplamente reconhecido pela literatura acadêmica estrangeira, como pode ser visto em (i) DARCY, Shane; POWDERLY, Joseph. Judicial Creativity at the International Criminal Tribunals. Oxford Scholarship Online, [s.l.], 16 dez. 2010. Oxford University Press (OUP). http://dx.doi.org/10.1093/acprof:oso/9780199591466.001.0001, (ii) HARRISON, John. Robert Bork. Judicial Creativity, and Judicial Subjectivity. The University Of Chicago Law Review, Chicago, v. 205, n. 80, p. 205-217, out. 2013, Disponível em: . (iii) Raimondo, Fabián, General Principles of Law, Judicial Creativity, and the Development of International Criminal Law (May 30, 2010). S. Darcy and J. Powderly (eds.), Judicial Creativity at the International Criminal Tribunals, Oxford University Press, 2010, 45-59. Disponível em SSRN: http://ssrn.com/abstract=2594729; etc.

297

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

para evitar eventuais abusos de direito ou restrições ilegais aos seus direitos fundamentais, como o próprio habeas corpus. Os ministros Edson Fachin e Roberto Barroso acrescentaram o argumento de que a norma jurídica que prevê a presunção de inocência não pode, nem deve ser absoluta, dada sua caracterização como princípio12. Num juízo de proporcionalidade13, dado o interesse constitucional na efetividade da lei penal (art. 5º, LXXVIII14 e art. 14415 da CF/88) e a já mencionada grande probabilidade do réu ser de fato culpado (tendo em vista o acórdão fundamentado nas evidências fático-probatórias), o sopesamento deveria tender, portanto, à mitigação da presunção de inocência. EFEITOS ABSTRATOS DA DECISÃO Núcleo essencial, sopesamento e sistemática constitucional: críticas à ratio decidendi Como que se define o núcleo essencial de um princípio? Qual é a efetividade mínima que deve ser respeitada de forma a preservar as garantias individuais no caso concreto? Estas são questões complexas e não podem ser respondidas de forma abstrata. Por não se tratar de uma regra de aplicação dicotômica16, e sim de um mandamento de otimização17 – ou seja, podendo ser satisfeito em graus variados –, o princípio da presunção de inocência (ou de não culpabilidade18) deve ser analisado e ponderado sempre em vista do caso concreto, de forma que sua proteção seja compatível à efetividade dos demais princípios em jogo. Em que pese nosso respeito pelos argumentos trazidos à tona pelos Ministros, entendemos que a decisão do HC 126.292 comprometeu de forma desmedida a presunção de não

12 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo, Malheiros, 2008. p. 90-91. Optamos por adotar tal construção do conceito de “princípios” e “regras” por considerá-la axiologicamente neutra, não se restringindo a quaisquer disposições fundamentais ou constituição específicas. 13 Ibidem, p. 116 e ss. 14 LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. 15 Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: 16 DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978. 368 p. 17 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 90. 18 Cumpre esclarecer que adotamos aqui o posicionamento defendido pelo Prof. Gustavo Badaró, que enxerga as duas nomenclaturas como intercambiáveis, isto é, não possuem distinção material suficiente para que sejam entendidas como princípios autônomos. Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 57 e ss.

298

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Constituição Americana de 1787 e que figura até hoje como uma das principais influências no campo da ciência política. De outro lado, a segunda parte deste trabalho busca determinar se (c) a função declarada da pena privativa de liberdade, isto é, o papel institucional desenhado pela doutrina penal em sua evolução histórica, condiz com a realidade do sistema carcerário brasileiro, além de (d) identificar possíveis consequências negativas trazidas pela decisão do HC 126.292 ao status quo da prisão no Brasil. COMO DECIDIU O STF? Em seu voto, o Ministro Relator Teori Zavascki busca demonstrar que o cumprimento de prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória sempre foi reconhecido pela jurisprudência brasileira pós-Constituição Federal de 1988, sendo tal entendimento substituído apenas em 2009, quando do julgamento do HC 84.078. Ao estabelecer o “núcleo essencial” do princípio da presunção de inocência como seu único óbice, o Ministro passa a defender a compatibilidade da conduta ao comando constitucional. Para Zavascki, a seara penal depende principalmente do material fático-probatório, cuja análise é restrita às duas primeiras instâncias10. Como os recursos destinados aos tribunais superiores estão restritos à matéria de direito propriamente dita, o juízo de incriminação – no segundo grau – estaria fundado em provas e fatos insuscetíveis à revisão judicial ou reexame posterior, parecendo então ao Ministro “inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado”11. A lógica é bastante simples: se o acusado foi condenado nas duas instâncias, ainda que não haja trânsito em julgado da sentença e que seja possível a interposição de recurso, existiria uma boa chance de que o réu seja de fato culpado, fazendo necessária, portanto, sua prisão. Por fim, não haveria prejuízo ao princípio da ampla defesa por conta de uma possível decisão equivocada, uma vez que ainda seriam concedidos ao acusado mecanismos processuais

10 Nesse sentido, vide a Súmula nº 7/STJ e Súmula nº 279/STF, in verbis: Súmula nº 7/STJ – A pretensão de simples reexame de prova não enseja Recurso Especial; Súmula nº 279/STF – Para simples reexame de prova não cabe Recurso Extraordinário. 11 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, HC 126.292/SP, p. 10.

299

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

culpabilidade do acusado e acabou por ferir a separação de poderes, usurpando competência legislativa. No Brasil, a doutrina penal majoritária concebe a teoria do crime sob uma lógica tripartite: a conduta deve ser típica, antijurídica e culpável19. A culpabilidade só é concretizada após o trânsito em julgado da sentença condenatória, como expressamente disposto no artigo 5º, inciso LVII da CF/88. Além disso, o artigo 28320 do CPP impede a prisão de um indivíduo salvo em três condições, quais sejam (i) situação de flagrante delito, (ii) por ordem escrita e fundamentada da autoridade judicial em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado e (iii) por prisão temporária ou preventiva no curso do processo ou investigação. Não por outro motivo a Lei de Execução Penal (LEP), em seus artigos 10521 e 14722 impõe a irrecorribilidade da sentença como condição de legitimidade para as penas privativas de liberdade e mesmo as restritivas de direito. A interpretação sistemática dos dispositivos mencionados acima impõe o seguinte silogismo: (i) se uma pessoa só é considerada culpada após o trânsito em julgado de sentença condenatória e (ii) a prisão a título de cumprimento de pena só é possível por meio de ordem fundamentada de autoridade judiciária em face de sentença condenatória transitada em julgado, é preciso concluir que (iii) a culpabilidade é imprescindível para a prisão de determinado indivíduo, que, por sua vez, está inserida no rol de proteção do princípio da presunção de inocência. Adotando a conclusão acima como prisma de análise da decisão do STF no HC 126.292, percebe-se que há incongruências na argumentação vencedora na Corte, haja vista que a interpretação do dispositivo constitucional (art. 5º, LVII) torna-o absolutamente incompatível com as normas infraconstitucionais, especialmente em relação ao artigo 283 do CPP que, como demonstra a exposição de motivos do projeto de lei que o incluiu no ordenamento jurídico em

19 Adotam essa perspectiva Luis Regis Prado, Cezar Bitencourt, Rogério Greco, Edgard Magalhães Noronha, Juarez Tavares, Nélson Hungria, Guilherme Nucci, dentre outros. 20 Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. 21 Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução. 22 Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares.

300

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

2011, foi criado especificamente para harmonizar e reafirmar o princípio da presunção de inocência23. Como não foi declarada a inconstitucionalidade dos artigos anteriormente mencionados, depreende-se que sua aplicação ainda é plenamente possível pelos magistrados brasileiros. Ocorre que, devido à construção do STF no caso em tela, tais dispositivos estariam em frontal desacordo com o conteúdo do princípio constitucional no qual se espelharam. Em um possível exercício de reductio ad absurdum, para evitar a afronta à reserva de Plenário (art. 9724, CF/88) e do disposto na Súmula Vinculante nº 1025 em decorrência da aplicação do precedente criado pelo julgamento

do

HC

126.292,

os

dispositivos

mencionados

deverão

ser

declarados

inconstitucionais em sede de controle concentrado de constitucionalidade, que, por sua vez, seria equivalente a declarar inconstitucional um princípio constitucionalmente consagrado26. Entretanto, muito embora a argumentação empregada no voto-condutor possa ser amplamente questionada sob o ponto de vista normativo, consideramos que também é necessária uma análise sobre a compatibilidade do novo entendimento adotado pelo STF frente ao seu papel institucional declarado, isto é, se no exercício de sua função jurisdicional, o Tribunal respeitou os limites de ação impostos pela Constituição – os checks and balances que garantem a separação dos Poderes.

23

“O projeto sistematiza e atualiza o tratamento da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória, com ou sem fiança. Busca, assim, superar as distorções produzidas no Código de Processo Penal com as reformas que, rompendo com a estrutura originária, desfiguraram o sistema [...] Nessa linha, as principais alterações com a reforma projetada são [...] impossibilidade de, antes da sentença condenatória transitada em julgado, haver prisão que não seja de natureza cautelar”. 24 Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público. 25 SV nº 10 – Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte. 26 Apesar de ser considerada uma situação possível no âmbito da doutrina constitucional comparada, vale lembrar que tal entendimento não foi adotado pela maioria esmagadora da doutrina brasileira, além de não encontrar respaldo tanto na legislação quanto na jurisprudência pátria, não sendo possível, assim, sua ocorrência no contexto do ordenamento jurídico brasileiro. Cf. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 2014.

301

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Judicial Creativity e o limite à interpretação jurisprudencial: separação de poderes e mecanismo de checks and balances na construção dos Federalistas27 Os Artigos Federalistas, como dito anteriormente, são os documentos mais importantes da história da ciência política. Não seria impossível imaginar que a aprovação da Constituição Americana de 1787 se deu, em grande parte, pela defesa de suas instituições inovadoras a partir dos trabalhos de “Publius” (pseudônimo adotado pelos 3 autores que compuseram os textos: Hamilton, Madison e Jay). No artigo 5128, Publius procura defender a ideia de que a separação dos Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário) não seria praticável em sua literalidade. Argumenta que, muito embora a ideia de Montesquieu seja, inegavelmente, desvincular as principais formas de exercício de poder de uma única autoridade, seria impossível conceber um sistema funcional que promovesse, de forma absoluta, a separação de todas as suas funções. Nesse sentido, reconhecendo uma saudável e controlada ingerência de cada Poder sobre as funções dos outros, de forma que possa garantir sua liberdade tanto política quanto funcional, foi concebido o sistema de checks and balances, que melhor delineava os limites tais limites e seus principais objetivos. No que diz respeito ao Poder Judiciário, os magistrados foram incumbidos da árdua tarefa de interpretar as leis e resguardar sua harmonia com o quanto disposto na Constituição – inclusive, como concretizado após o famoso caso Marbury vs. Madison (5 U.S. 137 – 1803), decretar a inconstitucionalidade de ato administrativo ou legislativo, no caso da Suprema Corte. Nas palavras de Publius: The interpretation of the laws is the proper and peculiar province of the courts. A constitution is, in fact, and must be, regarded by the judges as a fundamental law. It therefore belongs to them to ascertain its meaning as well as the meaning of any particular act proceeding from the legislative body.29

Entretanto, ainda que tenha sido delegada ao Judiciário a tarefa de interpretar as leis, tal exercício possui um claro limite: o sentido dado ao comando normativo em decorrência da 27 Seguindo a tendência de autores como Sotirios A. Barber em seu artigo “Judicial Review and ‘The Federalist’”, as referências ao Federalista serão feitas em nome do pseudônimo “Publius”, adotado por Hamilton, Madison e Jay, ao invés de individualizar cada opinião ou visão. 28 PUBLIUS, The Federalist nº 78, Barnes & Noble Classics, New York, 2006, p. 287-292. 29 Ibidem, p. 430.

302

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

interpretação não pode ser um mero exercício de vontade do magistrado30, uma vez que, caso assim o fosse, estaríamos diante de uma situação que cria uma nova norma, incorrendo, inevitavelmente, na usurpação de competência legislativa. No caso do HC 126.292, como já discutido, pensamos estar diante da exata situação que se procura evitar a partir do mecanismo dos pesos e contrapesos. Ao delimitar o princípio da não culpabilidade da forma que o fez, não estava o STF exercendo seu papel de interpretação, de criatividade (i.e., não se estava fazendo uma interpretação, ainda que pouco usual, da norma jurídica em debate), mas sim de ativismo judicial, usurpando competência legislativa ao criar um sentido, uma norma que não se depreende do texto constitucional, muito menos das normas infraconstitucionais diretamente relacionadas31. Outro ponto que entendemos ser questionável na decisão ora discutida é a falta de diálogo entre o voto-condutor e o precedente anteriormente firmado pelo Tribunal. No artigo 78, Publius destaca que a vinculação da Corte aos seus precedentes é de extrema importância para o controle de possíveis arbitrariedades dos magistrados32. Apesar de ter citado alguns julgados anteriores ao HC 84.078, não houve um debate mais fundamentado que combatesse a ratio decidendi empregada pelo precedente e estabelecesse justificativas plausíveis para a repentina mudança de entendimento da Corte. Dada a ausência de um exercício dialógico mais aprofundado com o julgado anterior, entendemos razoável supor que a nova decisão do Supremo Tribunal Federal não conseguirá se firmar como um precedente forte ou de referência no assunto33. Neste sentido, nos reportamos à dicotomia apresentada por Gerald N. Rosenberg em seu livro The Hollow Hope: Can Courts 30 “The courts must declare the sense of the law; and if they should be disposed to exercise WILL instead of JUDGEMENT, the consequence would equally be the substitution of their pleasure to that of the legislative body. The observation, if it proved anything, would prove that there ought to be no judges distinct from that body”. Ibidem, p. 432. 31 Nesse sentido, pensamos ser oportuno indicar o voto do Ministro Dias Toffoli quando do julgamento da ADI nº 4.451: “Tenho muito receio da principiolatria, que, no início deste novo século, parece substituir a antiga legislatria. Fala-se hoje em uma nova figura jurídica, a legisprudência, um direito nascido da mescla – muitas vezes espúria – entre as fontes democráticas da atividade legislativa e a criação jurisprudencial livre. Esse papel de agente ponderador, que escolhe entre valores, deve ser primordialmente cometido ao Legislativo. O juiz pode e deve interpretar o Direito com referência a valores. Isso não é mais posto em causa. No entanto, não se pode usar dos princípios como meio de substituição da vontade geral da lei pela vontade hermética, esotérica de um juiz, que, em diversas situações, busca modelos teóricos para ajustar exteriormente as conclusões internas a que ele chegou por meios obscuros e de impossível sindicância por critérios de aferição universal”. 32 Ibidem, p. 434. 33 Sobre a importância dos precedentes, Cf. VOJVODIC, Adriana de Moraes, MACHADO, Ana Mara França, CARDOSO, Evorah Lusci Costa. Escrevendo um romance, primeiro capítulo: precedentes e processo decisório no STF. Revista Direito GV, São Paulo. p. 21-44. jan-jun 2009.

303

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Bring About Social Change?, que analisa as formas pelas quais a Corte Constitucional pode influenciar a sociedade a partir de sua decisão, quais sejam: (i) a maneira estritamente judicial ou (ii) a maneira extrajudicial. Enquanto a primeira parte do pressuposto que a mudança social se dará em face da autoridade e do poder da Corte responsável pela decisão, a segunda entende que a decisão da Corte pode influenciar as pessoas a adotarem tal ponto de vista ou ao menos refletir sobre o tema em discussão, colocando-o em pauta pública e afetando, assim, o “clima intelectual” da sociedade, isto é, o tipo de ideias sendo discutidas pelos indivíduos de uma sociedade. Entendemos que, mais do que um precedente persuasivo, esperávamos que o precedente firmado pelo STF no julgamento do HC 126.292 tivesse seus efeitos principais na esfera extrajudicial, servindo como uma decisão simbólica na lógica do Estado Democrático de Direito. Entretanto, como será demonstrado a seguir, além das consequências negativas para a coesão e organicidade de nosso ordenamento jurídico, o novo posicionamento do STF pode comprometer, de forma séria e inescusável, a proteção e garantia dos direitos humanos no Brasil. EFEITOS CONCRETOS DA DECISÃO Os efeitos da pena de prisão: construção teórica da dogmática penal Para além das consequências abstratas da alteração de posicionamento do STF no âmbito do Direito – como a incoerência interna do conteúdo do princípio da presunção de inocência frente aos demais dispositivos do ordenamento jurídico interno e dos tratados internacionais de direitos humanos (que serão abordados com maior profundidade mais adiante) –, cabe ainda questionar: qual a relevância prática da decisão em questão? Quais serão seus efeitos concretos? Não é possível falar em um novo entendimento sobre trânsito em julgado das sentenças criminais sem levar em conta a realidade do sistema carcerário e de como o processo e a execução penal vêm se dando na prática; a pena privativa de liberdade e o Direito Penal, enquanto ultima ratio, devem ser utilizados com a máxima cautela. Com esta análise, buscamos traçar um panorama de quais serão os efeitos concretos da decisão do STF. No campo da teoria, a pena privativa de liberdade se justifica pela sua necessidade; parte considerável da doutrina a vê como um mal necessário, sem o qual a convivência em sociedade não seria possível. Este entendimento evoluiu consideravelmente desde os primórdios das teorias

304

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

sobre a função da pena, de maneira simultânea à evolução das próprias concepções de Estado e culpabilidade, como sinaliza Bitencourt: (...) a uma concepção de Estado corresponde, da mesma forma, uma de pena e a esta uma de culpabilidade. (...) Apesar de existirem outras formas de controle social – algumas mais sutis e difíceis de limitar que o próprio Direito Penal – o Estado utiliza a pena para proteger de eventuais lesões determinados bens jurídicos, assim considerados em uma organização socioeconômica específica. Pena e Estado são conceitos intimamente relacionados entre si. O desenvolvimento do Estado está intimamente ligado ao da pena.34

Fato é que o interesse estatal em proteger determinados bens jurídicos é uma constante ao longo do percurso histórico do Direito Penal. A concepção de pena, no entanto, passou por uma série de disrupções neste trajeto. Evoluiu, pois, das suas raízes retributivas, segundo as quais a pena era fundamentada como uma exigência moralista por justiça, uma maneira de compensar os males causados pelo autor. No entanto, isto vai além do escopo do Direito Penal, que é garantir a convivência social – este é um objetivo muito mais racional do que qualquer derivação do “olho por olho, dente por dente”. Com base nisto, surgem as teorias preventivas, com suas orientações gerais, especiais ou mistas; estas entendiam a pena como um instrumento de prevenção de delitos, inibindo a sua prática – seja por meio da coação psicológica da ameaça da pena, seja pela ressocialização do sujeito delinquente por meio da violência estatal. Tais teorias resultaram no paradigma atual da prevenção geral positiva. Esta concepção é fruto de pesquisas que resultaram da insatisfação com os paradigmas que a antecederam, podendo ser dividida em seus aspectos (i) fundamentador e (ii) limitador. Segundo a primeira, representada por autores como Hanz Welzel e James B. Jacobs, a pena garante não só a proteção de bens jurídicos, mas também a vigência real dos valores de ação da atitude jurídica. A prevenção geral positiva limitadora defende, por sua vez, uma limitação do poder punitivo do Estado, de forma a garantir os direitos individuais do cidadão; o Direito Penal serve para evitar condutas socialmente indesejáveis, e estas podem partir tanto do indivíduo como do Estado. Assim, enquanto a pena serve, sim, para a prevenção especial no seu aspecto de ressocialização daquele que praticou o delito; mas, mais importante, serve de baliza para evitar abusos e violações de direitos fundamentais por parte daquele que detém o monopólio da violência. 34 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 115.

305

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

No entanto, embora a teoria da prevenção geral positiva condiga com a ideia de Estado Democrático de Direito, é impossível analisá-la sem levar em conta a prática da execução penal. Não basta formular dogmas, interpretações e teorias no campo do dever ser se estes forem alheios à realidade concreta, especialmente se tratando de um instrumento consagrado como ultima ratio. Neste sentido, a realidade do sistema carcerário e da pena de prisão nos mostra que o objetivo ressocializador da pena privativa de liberdade não só não é alcançado, como acaba por gerar o seu revés. O cárcere, por ser um meio antinatural, mecânico, nos moldes de uma instituição total (na caracterização de Goffman35), dificilmente reabilita o recluso para a vida em sociedade e, para além da própria natureza da prisão no plano teórico, as condições reais, materiais e humanas nas quais se dão a execução penal acabam por agravar os efeitos negativos do cárcere. Nas palavras de Antonio Garcia-Pablos de Molina: a pena não ressocializa, mas estigmatiza, não limpa, mas macula, como tantas vezes se tem lembrado aos expiacionistas; que é mais difícil ressocializar uma pessoa que sofreu uma pena do que outra que não teve essa amarga experiência; que a sociedade não pergunta por que uma pessoa esteve em uma prisão, mas tão somente se lá esteve.36

Por óbvio, são vários os fatores que fazem com que o adiantamento da prisão para antes do trânsito em julgado seja negativa, e não pretendemos esgotá-los neste artigo. Cabe, no entanto, fazer um exercício de comparação entre a realidade do sistema carcerário brasileiro e o cenário esperado a partir da construção da teoria da prevenção geral positiva adotada pelos nossos legisladores penais, onde buscaremos demonstrar a patente insuficiência dos mecanismos institucionais criados para controlar, evitar e corrigir os problemas já endêmicos de tal realidade. Por fim, traçaremos possíveis consequências fáticas geradas pelo novo posicionamento do STF, amparando nossos prognósticos nos dados empíricos e pesquisas mais recentes a respeito do sistema de justiça criminal brasileiro.

35

Diversos autores definem as instituições totais como aquelas em que todos os aspectos e atividades do cotidiano desenvolvem-se (i) no mesmo local; (ii) na companhia imediata de outras pessoas; (iii) de maneira estritamente programada; (iv) integradas em um único plano racional. 36 MOLINA, Antonio Garcia-Pablos y. Régimen abierto y ejecución penal. Revista de Estudios Penitenciarios, Madri, 1988.

306

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Realidade da pena privativa de liberdade Em primeiro lugar, a prisão é um meio criminógeno, que estimula a prática de condutas socialmente indesejadas, ao invés de preveni-las. Isso se dá seja porque sua estrutura e suas circunstâncias favorecem a produção de danos nas condições físico-psíquicas dos presos, seja por criar no detento o hábito e a aprendizagem de condutas tidas como ilegais por meio do contato com facções criminosas. Isso resulta em elevados índices de reincidência, que comprovam a pouca eficácia do sistema carcerário para a ressocialização dos detentos – importante destacar que as estatísticas sobre o assunto variam de acordo com o critério adotado e o conceito de reincidência estudado, no entanto, os índices são sempre elevados, com as menores estimativas girando em torno de 30%, e as maiores, em torno de 70%37. Outros fatores relevantes são os danos sociológicos e psicológicos gerados por períodos prolongados em instituições carcerárias. Como dito anteriormente, a prisão é caracterizada como instituição total, que absorve todos os aspectos da vida do preso. Isto faz com que o interno se transforme em um ser passivo, cujas necessidades dependem inteiramente da instituição38. A prisão gera, também, uma verdadeira mutilação do ego do preso, despersonalizando o mesmo, violando sua intimidade e gerando um processo de desculturação e aculturação39, que culmina na perda da capacidade de habituar o detento a realizar condutas socialmente desejadas. Há que se citar, também, os problemas psíquicos e desequilíbrios ocasionados tanto pelo isolamento quanto pelo simples ingresso do indivíduo em um estabelecimento penal, e que invariavelmente prejudicam a ressocialização do detento – quando não acabam por anular a mesma. Na realidade carcerária brasileira – que, cabe dizer, segue o padrão mundial –, encontramos diversos fatores que acabam por potencializar os danos que já são intrínsecos à pena privativa de liberdade. O Brasil possui, em números absolutos, a 4ª maior população carcerária mundial com 567.655 pessoas presas em 201440; em números relativos, o país possui a taxa de 306 pessoas presas por 100 mil habitantes, a 6ª maior do mundo, mais do que o dobro da média mundial de

37 Cf. . Último acesso em: 10/09/2016. 38 Ver nota 33. 39 Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 6. ed. Rio de Janeiro. Revam, 2011, p. 183-187. (Coleção Pensamento Criminológico). 40 Cf. . Último acesso em: 09/09/2016.

307

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

144. No estado de São Paulo, que possui a maior população carcerária do país (221.636 detentos), uma pessoa é presa a cada 5 minutos, segundo estatísticas de janeiro a julho de 201541. Embora exista um contínuo crescimento do número de vagas no sistema carcerário, este não é de longe suficiente para acompanhar a velocidade de crescimento da população prisional, que teve um aumento de 167,32% ao longo dos últimos 14 anos42, muito acima do crescimento populacional. Há, atualmente, um déficit de 250.318 vagas no sistema carcerário43, o que gera casos como o dos presídios de lata, no Espírito Santo, nos quais os detentos eram colocados em contêineres por conta da falta de vagas; ou o do presídio Urso Branco, em Rondônia, no qual ocorriam diversas violações graves aos direitos humanos, que culminaram na morte de 27 detentos por conta da superlotação do estabelecimento; ou ainda o presídio de Pedrinhas, no Maranhão, aonde casos de canibalismo e tortura por conflitos entre facções foram reportados recentemente. Cabe lembrar aqui que, apesar dos casos citados serem emblemáticos, as violações aos direitos humanos são constantes no sistema carcerário brasileiro inteiro. Soma-se a isso o fato de 40,1% dos presos no Brasil serem provisórios44, e que, segundo dados de 2008-2012, 27,86% das decisões de segunda instância são revertidas no STJ45; quando se tratam de recursos da Defensoria Pública de São Paulo, com dados de fevereiro a abril de 2015, cerca de 64% das decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo são revertidas nos Tribunais Superiores, o que significa que este será o percentual de presos cumprindo pena injustamente com base no precedente aberto pelo STF46. Diante destes dados, torna-se evidente que a decisão do STF não é coerente com preceitos constitucionais de presunção de inocência47 e nem com garantias básicas de direitos humanos, uma vez que tende a aumentar a população carcerária de maneira vertiginosa, piorando o problema já citado das superlotações e violações de direitos básicos. Como dito anteriormente, o 41 Cf. . Último acesso em: 09/09/2016. 42 Cf. . Último acesso em: 09/09/2016. 43 Idem. 44 Idem. 45 Cf. . Último acesso em: 09/09/2016. 46 Cf. . Último acesso em: 09/09/2016. 47 Artigo 5º, LVII CF/88: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”; Pacto San Jose da Costa Rica, artigo 8º, § 2: “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa (...)”; Pacto de Direitos Civis e Políticos, art. 14, § 2: “Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.

308

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Direito Penal deve ser sempre a ultima ratio, concepção que se torna incoerente com a possibilidade de prisão antes do trânsito em julgado da sentença. Assim, tendo em vista as atuais perspectivas da justiça criminal, com suas elevadas taxas de reversão nos Tribunais Superiores, a realidade da superlotação e da dificuldade de prover garantias básicas constitucionais aos detentos, pode-se concluir que a decisão do STF representa um enorme retrocesso para os direitos humanos. As perspectivas dos resultados práticos deste precedente são, entre outros, o aumento do processo de encarceramento em massa já em curso no país e o aprofundamento das violações citadas, sem que haja, contudo, a redução do índice de criminalidade que serviu de fundamento para tal mudança de posicionamento. CONCLUSÃO Desde a aprovação da Emenda Constitucional nº 45/2004, uma série de reformas foram introduzidas ao Judiciário brasileiro, com especial ênfase na criação de uma cultura de força e deferência dos magistrados à jurisprudência dos Tribunais Superiores, aproximando nosso sistema jurídico ao Common Law a partir da introdução de mecanismos como a Repercussão Geral e as Súmulas Vinculantes (no caso do STF), além dos Recursos Repetitivos (no caso do STJ). Tal tendência ganhou posição de destaque no Novo Código de Processo Civil, que, para além do que já havia sido introduzido quando da alteração constitucional, reforçou a observância das instâncias inferiores às súmulas editadas pelos Tribunais Superiores, sendo razão, inclusive, para o (im)provimento, em sede liminar, da peça inicial48. Assim, neste cenário de progressiva valorização dos precedentes judiciais, torna-se imperativo um maior cuidado na elaboração e julgamento dos mesmos, buscando, dessa forma, evitar externalidades negativas que possam ter seus efeitos estendidos a escalas nacionais. Contudo, o novo posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal quanto ao núcleo essencial do princípio da presunção de inocência no julgamento do HC 126.292 é, ao nosso ver, completamente injustificável, sob qualquer ponto de vista (seja institucional, normativo, dogmático ou factual/estatístico) num cenário de respeito, promoção e concretização dos direitos humanos e do ideário do Estado Democrático de Direito. Ainda que o efeito desejado, em um primeiro momento, possa ser justificado sob o véu de uma suposta maior celeridade processual – i.e., privilegiando os princípios da economia 48

Ver Arts. 311, II, 332, 489, 496, § 4o, I, dentre outros do NCPC/15.

309

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

processual e a duração razoável do processo –, a consequência mais importante de tais medidas deveria ser a otimização da segurança jurídica, ponto essencial para a organização de qualquer democracia. Como demonstramos ao longo deste presente artigo, por mais que a Corte Constitucional tenha procurado uma suposta compatibilidade entre os efeitos concretos de sua decisão e os efeitos gerados no ordenamento jurídico a partir de um suposto exercício de judicial creativity e de seu papel institucional imposto pela Constituição, a inobservância da sistemática (infra)constitucional, do direito supranacional e da complicada realidade fática enfrentada por um segmento já excessivamente marginalizado da população brasileira, tal mudança de entendimento acabou por (i) criar um sentido não planejado e nem corroborado pelo conteúdo normativo definido pelos legisladores, (ii) gerar uma inconsistência entre o conteúdo essencial do princípio em discussão, as normas infralegais que se reportam ao mesmo (no âmbito da execução penal, em especial) e aos tratados de direitos humanos já aprovados e ratificados pelo Brasil e, por fim, (iii) desencadear uma mudança na aplicação das leis penais de tal forma a piorar a já péssima condição de garantia dos direitos humanos da população carcerária brasileira, além de prejudicar a já nefasta realidade de superlotação nos presídios nacionais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. 669 p. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais. Coimbra: Almedina, 2014. 92 p. Tradução de José Manuel M. Cardoso da Costa. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 1200 p. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 6.ed. Rio de Janeiro: Revam, 2011. 256 p. (Coleção Pensamento Criminológico).

310

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

BARBER, Sotirios A. Judicial Review and "The Federalist". The University of Chicago Law Review, Vol. 55, No. 3 (Summer, 1988), pp. 836-887. BASTOS, Celso Ribeiro; MEYER-PFLUG, Samantha. A Interpretação como Fator de Desenvolvimento e Atualização das Normas Constitucionais. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 145-164. (Teoria & Direito Público). BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: Causas e Alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 379 p. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Coletânea temática de jurisprudência: Direito Penal e Processual Penal [recurso eletrônico] / Supremo Tribunal Federal. – 2. ed. – Brasília: Secretaria de Documentação, Supremo Tribunal Federal, 2016. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978. 368 p. FREIRE, Christiane Russomano. A Violência do Sistema Penitenciário Brasileiro: O caso RDD (Regime Disciplinar Diferenciado). São Paulo: Ibccrim, 2005. 169 p. HAMILTON, Alexander, MADISON, James e JAY, John. The Federalist. 2. ed. New York: Barnes & Noble Classics, 2006. 510 p. MELLIM FILHO, Oscar. Criminalização e Seleção no Sistema Judiciário Penal. São Paulo: Ibccrim, 2010. 282 p. MOLINA, Antonio Garcia-Pablos y. Régimen abierto y ejecución penal. Revista de Estudios Penitenciarios, Madri, 1988.

311

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: The Belknap Press Of Harvard University Press, 1971. 607 p. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. 279 p. (Teoria & Direito Público). STONE, Martin. Focalizando o Direito: O que a interpretação jurídica não é. In: MARMOR, Andrei (Ed.). Direito e Interpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2004. Cap. 2. p. 47-143. (Justiça e Direito). TEBET, Diogo. Súmula Vinculante em Matéria Criminal. São Paulo: Ibccrim, 2010. 238 p. VIEIRA, Oscar Vilhena. A Moralidade da Constituição e os Limites da Empreitada Interpretativa, ou Entre Beethoven e Bernstein. In: SILVA, Virgílio Afonso da (Org.). Interpretação Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 217-254. (Teoria & Direito Público). WANG, Daniel Wei Liang et al (Org.). Constituição e política na democracia: Aproximações entre direito e ciência política. São Paulo: Marcial Pons, 2013. 272 p.

312

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

UM ENSAIO SOBRE O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS Lia Rodrigues Fontoura1 Raissa Oliveira Carmo2 Thomaz Muylaert de Carvalho Britto3 Submetido(submitted): 5 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 14 de outubro de 2016 SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Convenção americana de direitos humanos e carta da organização dos estados americanos; 3. Comissão interamericana de direitos humanos; 4. Corte interamericana de direitos humanos; 5. Análise do caso “damião ximenes lopes contra o brasil”; 6. Conclusão; 7. Referências bibliográficas. RESUMO Este ensaio visa a elaborar uma análise institucional do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a partir do estudo da Convenção Americana de Direitos Humanos, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Pretende-se apresentar a estrutura do sistema em tela, além de problematizar temas decorrentes do mesmo. PALAVRAS-CHAVE: Sistema Interamericano de Direitos Humanos; Convenção Americana de Direitos Humanos; Comissão Interamericana de Direitos Humanos. ABSTRACT The objective of this essay is to make an institutional analysis of the Inter-American System Human Rights, from the study of the American Convention on Human Rights, the InterAmerican Commission on Human Rights and the Inter-American Court of Human Rights. Additionally, the article intends to present the structure of the system on screen and discuss topics related to it. KEYWORDS: Inter-American System Human Rights; American Convention on Human Rights; Inter-American Commission on Human Rights. INTRODUÇÃO Os direitos humanos são concebidos como direitos pertencentes ao ser humano, os quais objetivam resguardar sua dignidade, de modo que o desenvolvimento de aspectos concernentes ao ser humano seja viabilizado. A partir dessa perspectiva, traz-se o

1 Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista de iniciação científica do PIBIC. 2 Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordenadora-geral da Revista de Direito dos Monitores da UFF. 3 Bacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista de iniciação científica do PIBIC. Coordenador-geral da Revista de Direito dos Monitores da UFF.

313

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

entendimento no sentido de que, em virtude da condição humana, caso haja desrespeito a um direito, as searas internacional e nacional podem ser invocadas no intuito de solucionarem tal violação. Posteriormente à Segunda Guerra Mundial, os Estados vislumbraram a realização de pactos no sentido de preservação dos direitos humanos. No presente ensaio, objetiva-se a compreensão acerca do sistema interamericano de direitos humanos, o qual é composto pela Carta da Organização dos Estados Americanos e pela Convenção Americana de Direitos Humanos. Nesse sentido, é importante uma investigação sobre o conteúdo da Carta e da Convenção ora em exame. Além disso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos compõem o referido sistema, sendo pertinente uma investigação acerca de suas estruturas e funções desempenhadas. O sistema interamericano de direitos humanos traduz a função precípua da sociedade internacional de proteção em face dos direitos humanos. Não obstante os direitos humanos carreguem em sua essência perspectivas de universalidade para seres humanos, no Brasil, por exemplo, a hierarquização social ameaça tal prerrogativa. Diante disso, esse trabalho pretende apresentar a estrutura do sistema em tela, além de problematizar temas decorrentes do mesmo. CONVENÇÃO

AMERICANA

DE

DIREITOS

HUMANOS

E

CARTA

DA

ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS Na esteira da obra de Valerio Mazuolli, destacam-se os sistemas regionais de proteção de direitos humanos, dentre os quais residem o europeu, o africano e o interamericano. Flávia Piovesan, ao explanar sobre o tema, menciona o “componente geográfico-espacial” como um instrumento a partir do qual as regras se tornam mais complexas. A autora elucida, outrossim, vantagens dos sistemas regionais dos direitos humanos, como a semelhança de hábitos e, por conseguinte, das culturas relativas aos nacionais dos Estados pertencentes àquela localização geográfica. O principal meio de proteção dos direitos humanos no âmbito interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, que estabeleceu a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Comissão Interamericana. André de Carvalho Ramos ressalva, entrementes, que à Comissão foram incumbidas novas atribuições, ao passo que a Corte foi criada pelo Pacto em exame. Celso Amorim4, que já foi ministro das Relações Exteriores do Brasil, sustenta que as organizações internacionais se norteiam, sobretudo atualmente, com fundamento na proteção 4

314

AMORIM, Celso. O Brasil e os direitos humanos: em busca de uma agenda positiva. Política externa, v. 18, n. 2, p. 67-75, set./nov. 2009.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

aos direitos humanos. Assim, o desenvolvimento e a paz, segundo ele, são apontados como consequência do respeito a esses direitos, os quais devem ser observados mesmo nos momentos de crise econômica. Ao comentar sobre o sistema de direitos humanos, Fábio Konder Comparato5 o estipula na condição de essencial no ordenamento jurídico, sendo, além disso, uma ferramenta de intersecção entre o direito interno e o direito externo. Logo, sob um ângulo crítico, pode-se formular uma opinião segundo a qual, mesmo que os direitos humanos devam ser encarados como fundamentais, precisam de instrumentos para efetivá-los. De acordo com Hildebrando Accioli, a sobredita Convenção afirmou uma mudança de perspectiva do sistema interamericano de direitos humanos, posto que foi perpassada a etapa de intenções dos Estados para a consolidação de uma fase associada a obrigações. Valerio Mazzuoli esclarece que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos também é conhecida como Pacto San José da Costa Rica. O doutor em Direito Internacional aduz, ademais, que a Convenção em apreço corroborou a tese de proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, consoante preconiza o artigo terceiro da Carta da OEA. A assinatura da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos ocorreu em San José, Costa Rica, em 1969, entrando em vigor em 1978 com onze depósitos. Nos moldes do entendimento de André de Carvalho Ramos, é válida uma análise tangente à Carta da OEA. A Carta em tela engendrou o respeito aos direitos humanos pelos Estados-membros. A liberdade individual e a justiça social, portanto, seriam essenciais, em sua concepção. Consigna o doutrinador que: Os Estados americanos reconhecem ainda “os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo...” (art. 3, alínea k). Já o artigo 16 da Carta estipula que o desenvolvimento deve ser feito respeitando-se “os direitos da pessoa humana e os princípios da moral universal”6.

Com o escopo de perceber os aspectos históricos do sistema interamericano de direitos humanos, disserta Valerio Mazzuoli que a origem do sistema decorreu da proclamação da Carta da Organização dos Estados Americanos (Carta de Bogotá, 1948), mesmo momento em que foi celebrada a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Salienta-se, destarte, que a referida Declaração serviu como substrato teórico para a

5 COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 14, 2001. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. 6 CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014. v. 1. p. 235. 315

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Somente podem aderir à Convenção os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), conforme reitera Flávia Piovesan. A professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo demonstra que: Substancialmente, ela reconhece e assegura um catálogo de direitos civis e políticos similar ao previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Desse universo de direitos, destacam-se: o direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a não ser submetido à escravidão, o direito à liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o direito à privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e expressão, o direito à resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar do governo, o direito à igualdade perante a lei e o direito à proteção judicial7.

A Convenção em epígrafe concedeu maior efetividade à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, assim como delineia Valerio Mazzuoli. O Brasil a ratificou em 1992 e ela foi internalizada por via do Decreto nº 678. A proteção ensejada pela Convenção Americana é definida, pela doutrina, como complementar no que diz respeito ao amparo encontrado no Direito interno dos Estados-membros. Nesse ínterim, caso não haja uma legislação adequada acerca dos direitos humanos na seara interna, recorre-se ao respaldo normativo do precitado pacto. Flávia Piovesan repisa a ideia de que a Convenção não elenca, especificamente, os direitos econômicos, sociais e culturais, mas remete à possibilidade de os Estados-membros, pelo Direito interno, editarem leis a fim de que esses direitos sejam resguardados. Os Estadospartes têm a obrigação de atribuir efetividade aos direitos enunciados na Convenção. Não apenas o respeito é necessário, é fundamental a efetividade dos direitos catalogados no pacto. Assevera André de Carvalho Ramos que, por intermédio do cotejo entre a Declaração e a Convenção, reputa-se perceptível uma distância estabelecida em decorrência da vinculação dos Estados. A Declaração não vinculou os Estados-partes, porque não tem natureza jurídica de tratado internacional, enquanto a Convenção se enquadra, perante o conhecimento jurídico, como um pacto internacional, em função do qual se pode exigir do Estado-parte o cumprimento das obrigações celebradas. Em 1988, como dispõe Flávia Piovesan, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos adotou o Protocolo de San Salvador, definido como um Protocolo

316

7 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo, Saraiva: 2013, p. 334.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Adicional à Convenção Americana atinente a direitos sociais, econômicos e culturais. Frise-se que entrou em vigor em 1999, pela ratificação de onze Estados-membros. O Brasil ratificou o Protocolo em 1999, internalizado pelo Decreto nº 3.321. Para a implementação dos direitos constantes na Convenção, apresentam-se a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mediante uma perscrutação empreendida por Valerio Mazzuoli, pondera-se que a Convenção Interamericana de Direitos Humanos prevê genericamente os direitos humanos. Assim sendo, a efetividade dos direitos citados no pacto internacional ocorreria progressivamente pelas medidas adotadas pelos Estados-partes. Quanto à expressão “pessoa sujeita à jurisdição do Estado-parte”, presente no artigo primeiro do pacto sob investigação, obtempera o ilustre doutrinador que ela diz respeito a todas as pessoas presentes no território do Estado-parte quando da ocasião na qual sejam desrespeitados os direitos humanos. O autor, além disso, determina outros instrumentos que compõem o sistema interamericano de direitos humanos, quais sejam: O Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte (I990); a Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura (1985); Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), conhecida como Convenção Belém do Para: a Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994); e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999)8.

No que concerne à atuação da Organização dos Estados Americanos (OEA), André de Carvalho Ramos sustenta a importância da Defensoria pública no acesso à justiça por todas as pessoas. Os defensores são responsáveis pela realização de direitos humanos, os quais provêm da condição humana, afastando-se, nesse sentido, de uma perspectiva discriminatória. Por meio de Resolução, a OEA informou aos Estados que a independência funcional dos defensores seria essencial para o cumprimento da função que desempenham. A OEA instituiu, também, Relatorias Especiais, concatenadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão é a mais relevante, tendo em ótica a transição vivenciada por alguns Estados entre regimes ditatoriais e a democracia. Compete à Relatoria a produção de um relatório anual sobre a liberdade de expressão nos Estados e invocar a Comissão em situações urgentes. Os 8

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5 ed. Editora Revista dos Tribunais. p. 883-884. 317

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Relatórios temáticos não são vinculantes, visto que configuram recomendação. No entanto, são capazes de subsidiar um processo iniciado pela Comissão em desfavor dos Estadosinfratores diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sobre a estrutura da Convenção, André de Carvalho Ramos salienta que: A Convenção Americana é composta por 82 artigos, divididos em três partes: Parte I sobre os Deveres dos Estados e Direitos Protegidos; a Parte II sobre os “Meios de Proteção” e a Parte III, sobre as “Disposições Gerais e Transitórias”. A Parte I, portanto, enuncia os deveres impostos aos Estados Partes por meio da Convenção e os direitos por ela protegidos. O Capítulo I enumera os deveres dos Estados: respeitar os direitos e garanti-los, adotando disposições protetivas de direito interno9.

No viés da Convenção, a discriminação não pode ser perpetrada. Não podem, assim, embasá-la motivos de raça, cor, sexo, religião e opiniões políticas. Pessoa corresponde a todo ser humano. O segundo dever dos Estados-partes engloba as questões de direito interno, em virtude das quais leis devem ser editadas, internamente, para tornar efetivos os direitos tratados na Convenção. Os direitos civis e políticos recebem fundamentação no Capítulo II. Averiguam-se hipóteses em que os direitos em estudo precisam ser garantidos. O artigo terceiro indica o direito à percepção da personalidade jurídica, o artigo quarto abrange o direito à vida, sendo correto dizer que o aborto e a eutanásia são exceções. Merece observação a expressão utilizada no artigo em comento: “proteção desde a concepção”. A Convenção alude a requisitos para a imposição da pena de morte nos Estados que ainda não a aboliram. O artigo quinto segue o direito à integridade pessoal, nas esferas física, psíquica e moral e veda, portanto, a utilização de penas cruéis e degradantes, bem como vai ao encontro da separação entre condenados e processados, menores e adultos e descreve a pena como ressocializadora. O artigo sexto proíbe a sujeição de qualquer pessoa à escravidão ou à servidão. A dignidade da pessoa não pode ser atingida pelo cumprimento de pena com fulcro em trabalho forçado. O artigo sétimo implica direito à liberdade e segurança pessoais. Para que uma pessoa seja presa, as razões que motivaram a prisão devem ser informadas. A pessoa pode, ainda, recorrer a um juiz sobre a legalidade de sua prisão, na reflexão de André de Carvalho Ramos. Ninguém deve ser detido por dívidas, salvo no caso de ausência de pagamento de obrigação alimentar. O Supremo Tribunal Federal, com esteio na Convenção, vedou a prisão civil por dívidas do depositário infiel.

318

9

CARVALHO RAMOS, André de. Op. cit. p. 239.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Estão insculpidas, no artigo oitavo, as garantias judiciais, como a duração razoável do processo. Faz-se mister discorrer no sentido de que as garantias em comento compreendem o devido processo legal, ou seja, para que um processo se desenvolva validamente, os prazos devem ser respeitados, um tempo adequado precisa ser percorrido, o contraditório, o direito ao duplo grau de jurisdição e a ampla defesa tem que ser assegurados, a título de ilustração. Nos artigos seguintes, garantem-se o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica e da legalidade, o direito à indenização por erro judiciário, o direito à proteção da honra e da dignidade, a liberdade de religião e consciência, a liberdade de pensamento e expressão, o direito de retificação ou resposta, o direito de reunião, a liberdade de associação, a proteção da família e da criança, o direito a uma nacionalidade, o direito à propriedade privada, os direitos políticos, a isonomia e a proteção judicial, os quais fazem parte do Capítulo II, em consonância à doutrina de André de Carvalho Ramos. Posteriormente, o Capítulo III refere-se aos direitos sociais, econômicos e culturais, coadunando-os às medidas a serem adotadas pelos Estados-partes no intuito de que sejam efetivados gradativamente, ou, como prefere o pacto, progressivamente. O Capítulo IV versa sobre as hipóteses de suspensão, interpretação e aplicação da Convenção. A suspensão pode ocorrer em caso de guerra, por exemplo, desde que não sejam desconsideradas as vedações à discriminação. O Capítulo V relaciona direitos e deveres, estabelece os direitos da coletividade em cotejo com os direitos individuais e prevê os instrumentos de proteção. O Capítulo VI especifica os órgãos concernentes ao cumprimento das obrigações pelos Estados-partes, que são a Comissão e a Corte em análise. Os Capítulos VII, VIII e IX contêm disposições sobre as mesmas. Acerca do Protocolo Adicional de San Salvador, André de Carvalho Ramos denota que: o Protocolo ressalta a estreita relação existente entre os direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos, uma vez que as diferentes categorias de direito constituem um todo indissolúvel que protege a dignidade humana. As duas categorias de direitos exigem uma tutela e promoção permanentes, com o objetivo de conseguir sua vigência plena, sem que jamais possa ser justificável a violação de uns a pretexto da realização de outros. O Protocolo é composto por 22 artigos, não divididos expressamente em seções, mas que podem ser assim classificados: (i) obrigações dos Estados (arts. 1º a 3º), (ii) restrições permitidas e proibidas e seu alcance (arts. 4º e 5º), (iii) direitos protegidos (arts. 6º a 18), (iv) meios de proteção (art. 19), disposições finais (arts. 20 a 22)10.

10

Ibidem, p. 250.

319

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS A Comissão Interamericana de Direitos Humanos consiste no primeiro organismo efetivo de proteção dos direitos humanos, cuja competência alcança todos os Estados-partes da Convenção Americana, em relação aos direitos nesta consagrados. No mesmo diapasão, Fernando Gonzaga Jayme dispõe: A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, com sede em Washington DC é o órgão de primordial importância no sistema de proteção dos direitos humanos no continente americano. Integram-na sete pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos, eleitas pela Assembleia Geral da OEA, a partir de uma lista de até três candidatos apresentada pelos estados-membros11.

Salienta-se, desse modo, uma compreensão do autor sob o ângulo de proteção efetiva dos direitos humanos. A Comissão Interamericana, diante disso, não pode se restringir a uma atuação distante da realidade afeta ao plano interamericano, mas precisa se pautar em um direcionamento eficaz e coerente acerca dos casos recebidos para valoração. A Convenção foi assinada em San José da Costa Rica em 22 de novembro de 1969, entrando em vigor em 18 de julho de 1978, após ter sido obtido o mínimo de 11 ratificações. No Brasil, somente entrou em vigor em 25 de setembro de 1992, sendo promulgada pelo Decreto presidencial nº 678, de 6 de novembro desse mesmo ano, reconhecendo, assim, sua competência contenciosa 23 anos após sua assinatura. Entretanto, nem todos os 35 Estados-partes da Organização dos Estados Americanos (OEA) ratificaram a Convenção Americana. Atualmente, muitos deles, como os de origem anglo-saxã e a maioria dos países do Caribe, com exceção de Barbados, ainda não ratificaram a Convenção. Porém, muitos países que ratificaram a Convenção ainda não aderiram à competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Sua origem é de resolução e não um tratado. Trata-se da Resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, ocorrida em Santiago (Chile) em 1959. No entanto, a Comissão começou a funcionar no ano seguinte, seguindo o estabelecido pelo seu primeiro estatuto, segundo o qual sua função seria promover os direitos estabelecidos tanto na Carta da Organização dos Estados Americanos, quanto na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem. De acordo com a Carta da OEA, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos é, além de órgão da Organização dos Estados Americanos, também órgão da Convenção

11

320

JAYME, Fernando Gonzaga. Direitos humanos e sua efetivação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. p. 71.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Americana de Direitos Humanos, tendo, assim, funções ambivalentes ou bifrontes. Embora todos os Estados-partes da Convenção Americana sejam obrigatoriamente membros da OEA, a reciproca não é verdadeira, uma vez que nem todos os membros da OEA são partes na Convenção Americana. A Comissão é composta por sete membros (denominados Comissários), que deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos. Os membros da Comissão serão eleitos por quatro anos e só poderão ser reeleitos uma vez, sendo que o mandato é incompatível com o exercício de atividades que possam afetar sua independência e sua imparcialidade, ou a dignidade ou o prestígio do seu cargo na Comissão. Logo depois da referida eleição, serão determinados por sorteio, na Assembleia Geral, os nomes desses três membros. É vedado fazer parte da Comissão mais de um nacional de um mesmo país. Os membros da Comissão serão eleitos a título pessoal, pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, de uma lista de candidatos propostos pelos Governos dos Estados-membros. Cada Governo pode propor até três candidatos (ou seja, pode propor apenas um nome), nacionais do Estado que os proponha ou de qualquer outro Estadomembro. Quando for proposta uma lista tríplice de candidatos, pelo menos um deles deverá ser nacional de Estado diferente do proponente. A Comissão é um órgão principal da OEA, porém autônomo, pois seus membros atuam com independência e imparcialidade, não representando o Estado de origem. Em um artigo sobre a efetividade das recomendações produzidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Brasil, Cristina Figueiredo Terezo12 entende que a Comissão em epígrafe é o órgão mais importante do sistema interamericano, tendo em vista as recomendações que emite, bem como a verificação de que poucos casos chegam à Corte IDH. A autora reconhece medidas brasileiras no intuito de resposta às violações a direitos humanos, todavia, não inferiu uma continuidade na execução dos projetos, de forma que não se busca sequência no plano dos próximos governos. A Comissão representa todos os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos e tem como principal função promover a observância e a defesa dos direitos humanos. No exercício de seu mandato, a Comissão Interamericana tem as seguintes funções 12

TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Brasil. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 46, p. 211-234, jul./ dez. 2006. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. p. 232-233. 321

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

e atribuições: a) estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; b) formular recomendações aos governos dos Estados-membros, quando considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos; c) preparar estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções; d) solicitar aos governos dos Estadosmembros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos (podendo, inclusive, realizar inspeções in loco nesses Estados); e) atender às consultas que, por meio da Secretaria Geral da OEA, lhe formularem os Estados-membros sobre questões relacionadas aos direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestarlhes o assessoramento que solicitarem; f) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, em conformidade com o disposto nos arts. 44 a 51 da Convenção Americana; e g) apresentar um relatório anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Uma das principais competências da Comissão é, seguramente, a de examinar as comunicações de indivíduos ou grupo de indivíduos, ou ainda de entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da Organização dos Estados Americanos, atinentes a violações de direitos humanos constantes na Convenção Americana por Estados que dela sejam parte. Nos termos do art. 44 da Convenção Americana: “Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estadosmembros queixas de violações desta Convenção por um Estado-parte”. Trata-se de uma exceção à clausula facultativa, uma vez que a Convenção permite que qualquer pessoa ou grupo de pessoas recorram à Comissão Interamericana independentemente de declaração expressa do Estado reconhecendo essa sistemática. Em relação à Convenção Americana de Direitos Humanos, a Comissão pode receber petições individuais e interestatais contendo alegações de violações de direitos humanos. O procedimento individual é considerado de adesão obrigatória e o interestatal é facultativo. A Convenção Americana de Direitos Humanos dispõe que qualquer pessoa – não só a vítima – pode peticionar à Comissão, alegando violação de direitos humanos de terceiros. No entanto, para que uma petição sobre violação da Convenção e dos direitos humanos por ela reconhecidos seja admitida, deve a mesma preencher os requisitos previstos no art. 46, § 1°, da Convenção Americana, quais sejam: a) que tenham sido interpostos e

322

esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

internacional geralmente reconhecidos; b) que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva; c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; d) que, no caso do art. 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição. O esgotamento dos recursos internos exige que o peticionante prove que tenha esgotado os mecanismos internos de reparação, quer administrativos, quer judiciais, antes que sua controvérsia possa ser apreciada perante o direito internacional. Fica respeitada a soberania estatal ao se enfatizar o caráter subsidiário da jurisdição internacional, que só é acionada após o esgotamento dos recursos internos. Contudo, os Estados têm o dever de prover recursos internos aptos a reparar os danos porventura causados aos indivíduos. No caso de inadequação destes recursos, o Estado responde duplamente: pela violação inicial e também por não prover o indivíduo de recursos internos aptos a reparar o dano causado. Atualmente, a Corte IDH consagrou o entendimento que a exceção de admissibilidade por ausência de esgotamento dos recursos internos tem que ser invocada pelo Estado já no procedimento perante à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Assim, se o Estado nada alega durante o procedimento perante a Comissão, subentende-se que houve desistência tácita dessa objeção. Após, não pode o Estado alegar a falta de esgotamento, pois seria violação do princípio do estoppel, ou seja, da proibição de se comportar de modo contrário a sua conduta anterior. O art. 49 da Convenção Americana dispõe que, caso haja uma solução amistosa, a Comissão redigirá um relatório que será encaminhado ao peticionário e aos Estados-parte e posteriormente transmitido, para sua publicação, ao Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos. O referido relatório conterá uma breve exposição dos fatos e da solução alcançada. Se qualquer das partes no caso o solicitar, ser-lhe-á proporcionada a mais ampla informação possível. Insta salientar que há vários exemplos bem-sucedidos de conciliação perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, envolvendo diversos países. O primeiro caso brasileiro que foi objeto de conciliação foi o Caso dos “Meninos Emasculados do Maranhão” em 2005. Caso não seja possível chegar a uma solução dentro do prazo que for fixado pela Comissão, esta redigirá um relatório no qual exporá os fatos e suas conclusões. Se o relatório

323

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

não representar, no todo ou em parte, o acordo unânime dos membros da Comissão, qualquer deles poderá agregar ao referido relatório seu voto em separado. Também se agregarão ao relatório as exposições verbais ou escritas que houverem sido feitas pelos interessados em virtude do § 1º, alínea e, do art. 48. O relatório será encaminhado aos Estados interessados, podendo estes não publicá-lo. Ao encaminhar esse documento, a Comissão poderá formular as proposições e recomendações que julgar adequadas. Se o Estado não cumpre tais recomendações e estando o peticionário de acordo, o caso é submetido à Corte pela Comissão. Se no prazo de três meses, a partir da remessa aos Estados interessados do relatório da Comissão, o assunto não houver sido solucionado ou submetido à decisão da Corte pela Comissão ou pelo Estado interessado, aceitando sua competência, a Comissão poderá emitir, pelo voto da maioria absoluta de seus membros, sua própria opinião e conclusões sobre a questão submetida à sua consideração, sendo este o segundo informe. Nesta fase a Comissão fará as recomendações pertinentes e fixará um prazo dentro do qual o Estado deve tomar as medidas que lhe competir para remediar a situação examinada. Decorrido esse tempo fixado, a Comissão decidirá pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, se o Estado tomou ou não as medidas adequadas e se publica ou não seu relatório. Convém ainda lembrar que os Estados que não ratificaram a Convenção Americana não ficam desonerados de suas obrigações assumidas nos termos da Carta da Organização dos Estados Americanos e da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, podendo acionar normalmente a Comissão Interamericana, que fará recomendações aos governos para o respeito aos direitos humanos violados no território do Estado em questão. Em caso de não cumprimento do estabelecido pela Comissão, esta poderá acionar a Assembleia Geral para que tome as medidas sancionatórias contra o Estado. Apesar de não constar expressamente dentre as atribuições da Assembleia Geral a de impor aos Estados violadores dos direitos humanos sanções internacionais, o certo é que, enquanto órgão político, a ela incumbe zelar pelo cumprimento dos preceitos da Carta da Organização dos Estados Americanos, o que seria a violação dos direitos humanos. Esse sistema subsidiário da OEA somente será extinto quanto todos os Estados houverem ratificado a Convenção Americana e aceito a jurisdição contenciosa da Corte Interamericana. Dessa forma, percebe-se que existe um desdobramento funcional relativamente às atribuições da Comissão, que pode atuar tanto como órgão da Organização dos Estados Americanos quanto órgão da Convenção Americana. Assim, a Comissão é um órgão de

324

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

“vocação geral” do sistema interamericano e órgão processual desse sistema. Trata-se do aspecto ambivalente ou bifronte da Comissão. Não há dúvidas que o sistema da Convenção Americana é superior ao sistema da OEA, primeiro porque abrange um número bem maior de direitos do que os mencionados tanto na Carta da OEA como na Declaração Americana, e segundo porque as sentenças da Corte Interamericana são vinculativas aos Estados-partes da Convenção, o que não ocorre com as recomendações emanadas do sistema quase judicial da Carta da Organização dos Estados Americanos. Diante de todo o exposto, depreende-se que a Comissão desempenha um papel de suma importância na proteção dos direitos humanos previstos na Convenção Americana, bem como quanto àqueles nominados na Declaração Americana de 1948. Afinal, a ampla capacidade processual conferida ao indivíduo neste órgão possibilita que muitas violações aos direitos humanos que não chegariam ao conhecimento da Comissão sejam apreciadas. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS A Corte Interamericana é o órgão jurisdicional do sistema interamericano de direitos humanos. A sede fica, atualmente, em São José da Costa Rica, mas pode ser alterada em Assembleia Geral, por dois terços dos votos dos Estados-membros (art. 58 da Convenção). É interessante ressaltar que a Corte pode realizar suas reuniões no território de qualquer dos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), mediante prévia aquiescência. No que toca à sua criação, tem-se que a Corte foi concebida pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, cuja aprovação data de 1969, mas cuja entrada em vigor se deu quase dez anos depois, no ano de 1978. Em 1979, foram eleitos os primeiros juízes da Corte e o Estatuto da mesma foi aprovado no ano de 1980, pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos13. A Corte é composta por sete juízes nacionais. A eleição é feita pela Assembleia Geral da OEA, composta por todos os Estados-membros desta, sejam ou não partes da Convenção Americana. Os juízes, por outro lado, apenas podem ser indicados e eleitos pelos Estados-partes da Convenção. Seu mandato dura seis anos e só pode haver uma reeleição. 13

REINSBERG. Lisa J. Prevenindo e Reparando Violações de Direitos Humanos através do Sistema Internacional: Atuação perante o Sistema Interamericano – Manual para advogados e ativistas. 2ª Ed., 2014, p. 8. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. 325

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

A Corte Interamericana tem como propósito aplicar e interpretar a Convenção Americana de Direitos Humanos e outros tratados de direitos humanos. Para tanto, apresenta uma atribuição de natureza consultiva – qual seja, a de interpretação da Convenção e dos tratados – e outra de natureza contenciosa – sendo sua função decidir acerca de eventuais controvérsias no tocante à interpretação da Convenção e dos tratados. Na esfera da atribuição consultiva da Corte, tem-se que qualquer membro da Organização dos Estados Americanos (OEA) possui a faculdade de solicitar um parecer sobre questões envolvendo direitos humanos protegidos e assegurados pelo sistema regional de proteção. Além disso, também é certo que a Corte, em certa medida, pode proceder ao chamado “controle de convencionalidade das leis”, ao opinar acerca da compatibilidade (ou incompatibilidade) de determinados dispositivos das legislações nacionais em face dos instrumentos de proteção internacionais. Nesse sentido, Nádia de Araújo ensina: Cabe mencionar ainda que os pareceres consultivos são de dois tipos: de controle da interpretação das normas americanas de direitos humanos, nos quais se fixa a orientação da Corte para os operadores internos do Direito; de controle de leis ou projetos com relação às disposições da Convenção Americana, em que se analisa a incompatibilidade entre os primeiros e a Convenção14.

Nesse ínterim, faz-se imprescindível abordar o papel de destaque da Corte Interamericana de Direitos Humanos enquanto instrumento capaz de conferir uniformidade, unidade e consistência às interpretações decorrentes da Convenção Americana e também de outros tratados de proteção dos direitos humanos. Isso porque, no majestoso exercício de sua competência consultiva, análises profundas e significativas a respeito da interpretação dos direitos humanos protegidos pelo sistema interamericano têm sido realizadas. Merecem ser trazidos à tona os ensinamentos de Mônica Pinto acerca da questão em tela: A Corte tem emitido opiniões consultivas que têm permitido a compreensão de aspectos substanciais da Convenção, dentre eles: o alcance de sua competência consultiva, o sistema de reservas, as restrições à adoção da pena de morte, os limites do direito de associação, o sentido do termo “leis” quando se trata de impor restrições ao exercício de determinados direitos, a exigibilidade do direito de retificação ou resposta, o habeas corpus e as garantias judiciais no estado de exceção, a interpretação da Declaração



14

326

ARAUJO, Nadia de. A influência das opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. R. CEJ, Brasília, n. 29, p. 64-69, abr/jun.2005. Disponível em: . Acesso em: 14 de out. de 2016.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Americana, as exceções ao esgotamento prévio dos recursos internos e a compatibilidade de leis internas em face da Convenção (...)15.

Esclarecidos os principais aspectos da competência consultiva da Corte Americana de Direitos Humanos, parte-se agora à análise do seu plano contencioso. Primeiramente, há de se destacar que a referida Corte só possui competência para julgar os casos que envolvam os Estados-partes da Convenção que reconheçam a sua jurisdição de forma expressa e inconteste, nos termos do art. 62. É preciso tecer uma crítica ao que se acaba de afirmar. Isso porque não parece fazer sentido que se limite a jurisdição da Corte apenas aos Estados-partes que a reconheçam expressamente. Tal delimitação impede uma apreciação mais ampla e eficaz dos direitos humanos, posto que exclui do campo de abrangência da Corte os Estados-partes que não procederem ao reconhecimento expresso. Ora, parece muito mais sábio estabelecer que todo Estado-membro passe a reconhecer como obrigatória, sem convenção especial ou qualquer tipo de restrição, a competência da Corte Interamericana para apreciar todos os litígios envolvendo a interpretação da Convenção e de outros tratados de proteção dos direitos humanos. Além do mais, faz-se ainda necessário demonstrar insatisfação quanto ao fato de apenas a Comissão Interamericana e os Estados-partes poderem submeter seus litígios à Corte, uma vez que esta exclui de sua jurisdição os indivíduos (art. 61 da Convenção). Quanto ao assunto, contudo, a Corte já revisou algumas de suas regras de procedimento, a fim de permitir que os indivíduos/vítimas não sejam afastados de sua apreciação. Dessa forma, não obstante os indivíduos não terem acesso direto à Corte, criou-se a possibilidade de que a Comissão Interamericana possa submeter o caso perante a Corte, impedindo que os direitos humanos sejam afrontados em seu aspecto universal. Nesse sentido, os ensinamentos de Roberta Emanuelle Rosa Alves: Desde o ano de 1996, com o III Regulamento, a Corte Interamericana de Direitos Humanos passou a autorizar que, tanto familiares quanto representantes das vítimas, pudessem fazer alegações e trazer provas sobre as reparações devidas. Já o IV Regulamento passou a prever que vítimas, seus familiares ou representantes, além das alterações já citadas, figurem também como partes do processo nas audiências públicas celebradas, fazendo, inclusive, uso da palavra16.

15 PINTO, Mônica. Derecho internacional de los derechos humanos: breve visión de los mecanismos de protección en el sistema interamericano. Montevidéu, 1993. Apud. PIOVESAN, Flávia. Op. cit., p. 351. 16 ALVES, Roberta Emanuelle Rosa. A Corte Interamericana de Direitos Humanos na defesa das liberdades fundamentais. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 107-128, jul./dez. 2013. 327

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

A Corte deverá ser acionada sempre que chegar à sua apreciação denúncia acerca da violação de um direito humano protegido pela Convenção por parte de um Estado-membro. Se reconhecer que de fato houve uma violação, ela deverá adotar uma série de medidas cabíveis a fim de que haja a restauração do direito violado. Além disso, a Corte tem o poder de impor uma punição pecuniária ao Estado com vistas a compensar monetariamente a vítima. No mais, vale lembrar que as decisões da Corte possuem – e não poderia ser diferente – força jurídica vinculante, não restando ao Estado outra saída que não a obediência. Inclusive, quando houver a fixação de compensação monetária à vítima, a decisão terá natureza jurídica de título executivo. O Brasil só reconheceu a competência jurisdicional da Corte Interamericana em dezembro de 1998, por meio do Decreto Legislativo nº 89, de 3 de dezembro de 1998. Antes disso, ainda que o país violasse frontalmente os direitos humanos protegidos pelo sistema interamericano, não podia ser “julgado” perante a Corte. Mas como bem prenuncia o brocardo popular, “antes tarde do que nunca”. Foi esse reconhecimento expresso da competência jurisdicional da Corte que permitiu que, em 24 de novembro de 2010, o Brasil fosse condenado no caso “Gomes Lund e outros contra o Brasil”. Nessa ocasião, o país respondeu internacionalmente pelo desaparecimento de integrantes da guerrilha do Araguaia durante a Ditadura Militar na década de 70. Em sua lendária sentença, a Corte estabeleceu que a Lei da Anistia de 1979 é manifestamente incompatível com a Convenção Americana, o que representou uma grande vitória para os entusiastas dos direitos humanos em terras brasileiras. A Corte enfatizou que anistiar violações de direitos humanos é algo incompatível com a sistemática de proteção do sistema interamericano. Vale também ressaltar outra ocasião em que o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso chamado “Damião Ximenes Lopes contra o Brasil”. A problemática girou em torno da morte de pessoa com deficiência mental, após ficar três dias internada em hospital psiquiátrico. Foi o primeiro caso sobre doença mental a ser decidido pela Corte. O Estado brasileiro foi condenado por sua omissão, que ocasionou violação direta e inadmissível aos direitos à vida e à integridade física. Esses dois exemplos de decisões destacadas, somadas a muitas outras que compõem um vasto repertório de julgamentos da Corte Interamericana, demonstram a consolidação de uma jurisprudência no sistema interamericano. Isso, por si só, já é sinal de grandes avanços e

328

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

de tempos mais prósperos de proteção aos direitos humanos. Contudo, não é o suficiente. Como bem aponta Flávia Piovesan, faz-se necessária à adoção de outras medidas: A primeira proposta atém-se à exigibilidade de cumprimento das decisões da Comissão e da Corte, com a adoção pelos Estados de legislação interna relativa à implementação das decisões internacionais em matéria de direitos humanos. (...) Outra proposta refere-se à previsão de sanção ao Estado que, de forma reiterada e sistemática, descumprir as decisões internacionais. (...) Uma terceira proposta compreende a demanda por maior democratização do sistema, permitindo o acesso direto do indivíduo à Corte Interamericana – hoje restrito apenas à Comissão e aos Estados. (...) Uma quarta proposta, de natureza logística, seria a instituição do funcionamento permanente da Comissão e da Corte, com recursos técnicos, financeiros e administrativos suficientes17.

O que se pode concluir acerca da Corte Interamericana de Direitos Humanos é que ela vem logrando êxito na missão de defender os direitos humanos, prevenindo e reprimindo eventuais violações. De maneira geral, a Corte contribui inequivocamente para o fortalecimento das democracias na região, para a preservação dos direitos humanos e para a consolidação de uma leitura de mundo realizada através das lentes da dignidade da pessoa humana. ANÁLISE DO CASO “DAMIÃO XIMENES LOPES CONTRA O BRASIL” Em virtude pesquisa ora desenvolvida, insta compreender o caso “Damião Ximenes Lopes”, o qual foi o primeiro proveniente do Brasil a ser julgado pelo Corte Interamericana de Direitos Humanos. Consoante o que dispõem os relatos, Damião Ximenes Lopes tinha trinta anos e foi submetido à internação, balizada pelo consentimento de sua mãe, em uma clínica psiquiátrica em Sobral, no Ceará. Reitere-se que a instituição na qual se procedeu a internação era vinculada ao Sistema Único de Saúde. Quatro dias após a internação, a mãe retornou à Casa de Repouso, contudo não foi permitida a sua entrada. Após algumas tentativas, ela obteve o seu pleito deferido e adentrou a Casa. Conforme ela percebeu, Damião Ximenes Lopes foi submetido a maus tratos, tendo em vista que estava machucado e chorava. Depois de ter retornado à sua moradia, um preposto da Casa informou que seu filho havia falecido. A necropsia indicou causa indeterminada para a morte, contudo, concluiu-se como motivo de sua morte a tortura praticada. A família de Damião elaborou uma petição contra o Brasil diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a qual recebeu, também, denúncias referentes ao caso. 17

PIOVESAN, Flávia. Op. cit., pp. 366-367.

329

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

A Comissão considerou que houve violação a diversos direitos da pessoa humana na ocasião da morte de Damião. Em 2004, a demanda foi apresentada à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Posteriormente, depois de ter sido omisso, o Brasil se manifestou e se comprometeu a auxiliar na investigação do caso. A Corte decidiu pela reparação material e moral da família Ximenes pelo Brasil, o que ocorreria por intermédio de indenização e outras medidas. No tocante à indenização pecuniária a ser paga pelo governo brasileiro, houve a edição de um Decreto (nº 6185/2007), que autorizava a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República a dar cumprimento à sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, considerando a criação prévia de uma rubrica orçamentária para pagamento de indenização às vítimas de violações das obrigações contraídas pela União por meio de adesão a tratados internacionais de direitos humanos18. Em uma perscrutação acerca dos casos submetidos à Comissão, Cecília Macdowell 19

Santos

depreende um ativismo jurídico transnacional. A doutrinadora, contudo, investigou

situações concretas veiculadas por Organizações Não Governamentais (ONGs), tendo concluído, no âmbito de seu trabalho, que existe ainda uma carência no cumprimento dos direitos humanos internacionalmente. Ressalte-se que a escritora pesquisou casos nos quais o Brasil figurava enquanto requerido. Por força da obra “A eficácia do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos: uma abordagem quantitativa sobre seu funcionamento e sobre o cumprimento de suas decisões”, conclui-se que é, até hoje, questionável o efetivo cumprimento dos direitos humanos, motivo pelo qual os autores advogam no sentido de permitir um estudo possivelmente empírico com o escopo de identificar em que medida os direitos em tela são aplicados. Em suas palavras, Apesar da repetida necessidade de fortalecer o SIDH e de aumentar sua capacidade de influência, ainda precisamos encontrar respostas para várias questões relevantes para avançar em debates e análises mais ricos e detalhados. Em que medida as decisões do SIDH são efetivamente cumpridas? Podemos chegar a uma descrição comum e empiricamente sustentável para dar essa resposta? É possível mensurar de forma consistente ao longo do tempo as variações no grau de cumprimento das decisões do 18

330

LASCALA, M.C.F. As sentenças da corte interamericana de direitos humanos e o ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, 2010. Disponível em: . Acesso em: 14. out. 2016. 19 SANTOS, Cecília MacDowell. Ativismo jurídico transnacional e o Estado: reflexões sobre os casos apresentados sobre o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 4, n. 7, 2007. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. p. 28-29.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

SIDH? Certamente não se pode responder a essas questões de maneira definitiva20.

CONCLUSÃO Portanto, este ensaio vislumbrou a reunião de concepções de renomados autores do Direito Público no que toca aos componentes do sistema interamericano de direitos humanos. As normas estabelecidas na seara internacional, conforme assevera a doutrina, possuem uma coercibilidade mitigada ou atenuada em plano geral. A referida nomenclatura reflete as naturezas jurídicas das declarações, bem como dos tratados internacionais. Enquanto as declarações, em regra, não produzem efeitos passíveis de coerção internacional no sentido de exigência relativa a seu cumprimento, os tratados internacionais, desde que seja efetuado o depósito, acarretam uma possibilidade de eventual arguição de descumprimento pelos Estados-partes. Discute-se, ademais, a soberania interna frente às decisões da sociedade internacional, ou seja, o tênue limite entre as recomendações e os julgamentos constituídos por órgãos internacionais e a preponderância de uma política interna de cada Estado frente aos demais. A Convenção Americana de Direitos Humanos traduz a opção dos Estados-membros na perspectiva de arquitetarem um arcabouço normativo com o intuito de assegurar o respeito interno aos direitos humanos, de maneira que os vindouros documentos normativos ocasionem um conjunto coercitivo apto a adentrar o território nacional e permanecer como instrumento de garantia do respeito a direitos culturais, econômicos e sociais, por exemplo. Em outras palavras, um dos objetivos da CADH é o de estimular uma produção normativa complementar e eficaz. Assim, os ditames da Convenção são parâmetros a partir dos quais se delineiam as futuras normas. Inobstante os Estados tenham subscrito e se comprometido a perfilhar o teor da Convenção Americana, não basta uma postura inerte frente aos anseios da sociedade nacional. Espera-se, a partir de uma interpretação teleológica, uma conduta proativa do Estado com o escopo de propiciar a aplicação dos fundamentos inerentes à Convenção em apreço. Alguns doutrinadores compreendem que, posteriormente à internalização dos tratados internacionais, os mesmos adquirem eficácia imediata. Com a internalização, via de regra, as normas abarcadas pelos tratados internacionais passam a ser passíveis de exigência no plano nacional. Entrementes, a eficácia a ser vislumbrada deve ser aquela que ultrapasse a mera



20 BASCH, Fernando et al. A eficácia do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos: uma abordagem quantitativa sobre seu funcionamento e sobre o cumprimento de suas decisões. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 7, n. 12, p. 9-35, jun. 2010. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. p. 10. 331

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

expectativa de produzir efeitos. Nos casos julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, como o de Damião Ximenes, apreende-se uma coerência das decisões emanadas da Corte e os dispositivos indicados pela Comissão, de modo que, empiricamente, não merece reforma, a priori, a estrutura mediante a qual se desenvolvem os trabalhos de coordenação das tarefas em sede de julgamento no sistema interamericano de direitos humanos. Por sua vez, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos se manifesta na condição de primeiro organismo efetivo de proteção dos direitos humanos. Os Estados-partes são abarcados pela competência da Comissão no que diz respeito aos direitos inscritos em sua composição. Em decorrência da pesquisa realizada, foi notória a ilação de que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem como uma de suas principais funções a recepção de petições afetas à inobservância dos direitos assegurados pela Convenção Americana no âmbito dos Estados-membros. A Comissão, nesse diapasão, analisa as manifestações de indivíduos ou de grupos, exercendo a função, outrossim, de um órgão consultivo em matéria de direitos humanos. Saliente-se, ainda, que os indivíduos ou grupos de indivíduos devem juntar, às petições encaminhadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as provas de que todos os meios possíveis foram utilizados no Direito interno antes de se socorrer ao Direito Internacional. Se ainda há algum recurso interno em andamento, não será obtido êxito com a petição destinada à Comissão. A título de comparação, faz-se mister uma alusão ao funcionamento dos recursos excepcionais no direito brasileiro, os quais dependem do esgotamento das instâncias judiciais ou, em outros casos, se pautam em competência originária. Apesar da tentativa didática nesse cotejo, metodologicamente, pela melhor doutrina, não se afigura adequada a comparação ora em análise, eis que os recursos brasileiros e o esgotamento de instâncias no sistema interamericano de direitos humanos são institutos de natureza intrinsecamente distintas e com finalidades diversas. Reputa-se pertinente a menção, em etapa conclusiva, aos muitos casos que foram resolvidos na própria Comissão Interamericana de direitos humanos, ou seja, não foi necessária a remessa do relatório à Corte Interamericana. Nesses casos, costuma-se optar pelos meios alternativos de resolução de conflitos, especialmente a conciliação. O Caso dos “Meninos Emasculados do Maranhão” em 2005 foi solucionado sob esse ângulo, por

332

exemplo.

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Todavia, em vários casos, o conflito não é solucionado em uma etapa inicial. Em tais ocasiões, a Comissão encaminha o seu parecer ou relatório aos Estados-membros, emitindo, se for o caso, recomendações que devem ser cumpridas a fim de que o caso não seja submetido ao crivo da Corte Interamericana. Caso não seja submetida e com a aquiescência da vítima, o conflito é repassado à Corte. A Corte Interamericana possui duas funções essenciais, que são o julgamento de casos concretos submetidos ao seu crivo e a emissão de pareceres em virtude de seu viés consultivo. A aplicação da Convenção Americana é um de seus principais fundamentos, razão pela qual a interpreta e concatena seus dispositivos ao teor empírico. O Brasil apenas reconheceu a competência jurisdicional da Corte Interamericana em 1998, o que, de acordo com boa parcela da doutrina, demonstrou um despreparo do Estado para se sujeitar a inúmeros casos de violação a direitos humanos, tendo em vista, por exemplo, o período de ditadura militar, no qual as torturas eram aplicadas como método para conter movimentos revolucionários e atrelados a anseios democráticos. A função do presente trabalho concerne a um entendimento geral acerca do sistema interamericano de direitos humanos, contudo, sem se olvidar da problemática contida na estrutura ratificada e internalizada no Brasil no que toca aos direitos humanos e a justiça decorrente do cumprimento dos mesmos. Estabelece-se uma problemática atinente aos casos relegados pelo Estado brasileiro à luz dos momentos atravessados em sua história, tanto que o reconhecimento da competência jurisdicional da Corte ocorreu em 1998. Por intermédio de uma perscrutação atenta perante os casos concretos julgados na Corte envolvendo o Brasil, denotam-se, mormente, torturas decorrentes de condições específicas da vítima, tanto por razões ideológicas, como físicas e psicológicas que se materializam. De todo o exposto, averigua-se que o sistema interamericano de direitos humanos, por meio dos órgãos apresentados, visa à proteção dos direitos humanos no âmbito americano. Malgrado as medidas inovadoras dele advindas, ainda são consideráveis os casos de desrespeito aos direitos humanos na America Latina e, no caso do presente ensaio, em face do contexto brasileiro. Um suposto discurso de integração e de concretização dessas normas não pode se sobrepor ao que efetivamente acontece nos Estados-membros e não se publiciza. Não se pode deixar de considerar a função exercida pelo sistema interamericano ao proporcionar a releitura das Américas sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana, todavia, não se deve olvidar das situações circunscritas no plano interno dos Estados,

333

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

uma vez que a observância à dignidade da pessoa humana material não depende apenas de uma ótica formal e escrita. Reconhecem-se os avanços produzidos pela Convenção Americana, a qual serve como um instrumento a conduzir e incentivar a elaboração de diplomas internos nos Estados. Considera-se como imprescindível, também, o cumprimento das decisões emanadas pela Corte Interamericana e das recomendações da Comissão com o objetivo de assegurar os direitos humanos, conforme se acordou no momento em que os Estados-membros ratificaram e, posteriormente, internalizaram os tratados. Pela via da desconstrução dos juízos ínsitos ao senso comum, o ensaio em exame visou propiciar um questionamento lógico-crítico das estruturas utópicas trazidas pelos documentos normativos e sua aplicação pratica, sobretudo no que diz respeito ao alcance dos jurisdicionados e peticionários do sistema interamericano de direitos humanos. Em que pese os inúmeros benefícios aventados a respeito do sistema interamericano de direitos humanos, foi possível, em função de pesquisa de casos concretos, a averiguação de acordo com a qual existem diversos casos de desrespeito aos direitos consagrados internacionalmente no âmbito dos Estados latino-americanos. É de curial conhecimento, assim como se depreende do ensaio em epígrafe, os trabalhos desenvolvidos pela doutrina no sentido de que os direitos fundamentais se associam a uma perspectiva nacional, ao passo que os direitos humanos são implicações naturais de um fenômeno de internacionalização dos direitos afetos aos seres humanos. Demonstrou-se, na presente investigação, o caso de Damião Ximenes, qual seja, a primeira situação brasileira a ensejar o escrutínio da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Coerentemente, a Corte em tela decidiu pela reparação a título de danos morais por parte do Brasil em relação à família da vítima. Todos os procedimentos percorridos pela família de Damião no intento de obter uma resposta do Estado se esgotaram e, em razão disso, foi procurada a justiça perante a Corte Interamericana. Com a devida vênia, não se concorda, no presente, com o termo “última instância”, utilizado por alguns doutrinadores para a remissão ao papel da Corte IDH, até mesmo porque são jurisdições distintas, apesar de se consubstanciarem no cumprimento da justiça. Conforme se observou, nesse sentido, o sistema interamericano de direitos humanos se ordena com fulcro em declarações e diplomas normativos, os quais, em tese, dependem da subscrição e da internalização para lograrem eficácia nos Estados, em virtude de suas

334

soberanias internas. Pretendeu-se, neste ensaio, alem de atentar para a organização do citado

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

sistema, a emissão de críticas acerca de seu funcionamento no que concerne aos próprios consumidores de seus fins, os seres humanos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACCIOLY, Hildebrando. Manual de Direito Internacional Público. 20ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. ALVES, Roberta Emanuelle Rosa. A Corte Interamericana de Direitos Humanos na defesa das liberdades fundamentais. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 107-128, jul./dez. 2013. AMORIM, Celso. O Brasil e os direitos humanos: em busca de uma agenda positiva. Política externa, v. 18, n. 2, p. 67-75, set./nov. 2009. ARAUJO, Nadia de. A influência das opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos no ordenamento jurídico brasileiro. R. CEJ, Brasília, n. 29, p. 64-69, abr/jun.2005. Disponível em: . Acesso em: 14 de out. de 2016. BASCH, Fernando et al. A eficácia do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos: uma abordagem quantitativa sobre seu funcionamento e sobre o cumprimento de suas decisões. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 7, n. 12, p. 9-35, jun. 2010. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. p. 10. CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Tratado Internacional (1967). Disponível

em:

. Acesso em: 13 out. 2016. CARVALHO RAMOS, André de. Curso de Direitos Humanos. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014. v. 1. COMPARATO, Fábio Konder. O papel do juiz na efetivação dos direitos humanos. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 14, 2001. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016.

335

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Tratado Internacional (1969). Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2016. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Regulamento (2009). Disponível em: < http://www.cidh.org/basicos/portugues/u.regulamento.cidh.htm>. Acesso em: 14 out. 2016. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Regulamento (2009). Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. DECLARAÇÃO AMERICANA DOS DIREITOS E DEVERES DO HOMEM. Disponível em: . Acesso em: 13 out. 2016. JAYME, Fernando Gonzaga. Direitos humanos e sua efetivação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2005. LASCALA, M.C.F. As sentenças da corte interamericana de direitos humanos e o ordenamento jurídico

brasileiro.

Revista

Jus

Navigandi,

2010.

Disponível

em:

. Acesso em: 14. out. 2016. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 5 ed. Editora Revista dos Tribunais. PINTO, Mônica. Derecho internacional de los derechos humanos: breve visión de los mecanismos de protección en el sistema interamericano. Montevidéu, 1993. Apud. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo, Saraiva: 2013 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14ª ed. São Paulo, Saraiva: 2013. PROTOCOLO

DE

SAN

SALVADOR.

Tratado

Internacional

(1988).

Disponível

em:

Acesso em: 14 out. 2016.

336

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

REINSBERG. Lisa J. Prevenindo e Reparando Violações de Direitos Humanos através do Sistema Internacional: Atuação perante o Sistema Interamericano – Manual para advogados e ativistas. 2ª Ed., 2014, p.8. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. SANTOS, Cecília MacDowell. Ativismo jurídico transnacional e o Estado: reflexões sobre os casos apresentados sobre o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. SUR: Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 4, n. 7, 2007. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. p. 28-29. TEREZO, Cristina Figueiredo. A efetividade das recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no Brasil. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 46, p. 211234, jul./ dez. 2006. Disponível em: . Acesso em: 14 out. 2016. p. 232-233.

337

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



JURISDIÇÃO, CONFRONTOS EPISTÊMICOS E DEMOCRATIZAÇÃO DO DISCURSO JURÍDICO-PROCESSUAL JURISDICTION, EPISTEMIC CONFLICTS AND DEMOCRATISATION OF LEGAL AND PROCEDURAL DISCOURSE Rafael da Escóssia Lima1 Teo Faggin Pastor2 Submetido(submitted): 8 de setembro de 2016 Aceito(accepted): 18 de outubro de 2016 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Teoria Geral do Processo: partidários e críticos. 3. Traços gerais de um conceito unitário de jurisdição. 4. Aspectos problemáticos da jurisdição unitária: 4.1. A justiça como escopo jurisdicional; 4.2. A lide; 4.3. O caráter substitutivo da jurisdição. 5. Contornos de um conceito penal de jurisdição. 6. Conclusões. RESUMO Neste artigo problematiza-se, à luz do Processo Penal, o conceito de jurisdição conforme postulado por Ramiro Podetti e pela Teoria Geral do Processo clássica. Primeiramente, listarse-ão as principais posições críticas e defensivas em relação a um conceito unitário de jurisdição. Após, abordar-se-ão, em três facetas, algumas posições críticas à adoção de tal conceito: a) a justiça como fim da jurisdição; b) o polêmico conceito de lide no Processo Penal; e c) o caráter substitutivo da jurisdição. Por fim, concluir-se-á pela necessidade de um conceito independente de jurisdição penal, conforme se depreende dos estudos de Eugenio Raúl Zaffaroni e Nilo Batista. PALAVRAS-CHAVE: Teoria Geral do Processo; jurisdição; conceito unitário; lide. ABSTRACT This article examines the concept of jurisdiction, as postulated by Ramiro Podetti and the classic General Theory of Procedure, in the light of Criminal Procedure. Firstly, we will list some of the main critiques and defences of a unitary concept of jurisdiction. Thereafter, the unitary concept will be criticised in three axes: a) justice as an objective of jurisdiction; b) the controversial concept of litigation in criminal procedure; c) the substitutive feature of jurisdiction. Finally, the conclusion will bring the need of an independent concept of criminal jurisdiction, as is recommended by Eugenio Raúl Zaffaroni and Nilo Batista. KEYWORDS: General Theory of Procedure; jurisdiction; unitary concept; litigation. 1.

INTRODUÇÃO A chamada Teoria Geral do Processo (TGP), um desconforto para grande plêiade dos

processualistas, ainda consta no currículo de diversas universidades brasileira3. A prevalência

1 2



Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Graduando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB).

339

Revista dos Estudantes de Direito da UnB de instituições de Direito Processual Civil nos cursos ministrados e a sedimentação da trajetória dos docentes – na maioria das vezes – em Processo Civil ou em outros ramos jurídicos com pouco ou quase nenhum ponto de contato com Direito Processual Penal4 podem servir como pontos de partida para a formulação de problemas tais como os limites da disciplina e a viabilidade teórica de um curso propedêutico que se pretenda válido para os mais diversos “ramos” processuais. Tal o incômodo, o presente artigo buscará apresentar um aporte didático do conceito de jurisdição como pilar da “trilogia estrutural” da suposta Teoria Geral do Processo5 . Serão confrontadas as formulações teóricas de tal conceito mediante a apartação de dois grupos acadêmicos: um representado pelos autores “unitários” 6 e outro consubstanciado na obra dos chamados teóricos “dualistas”7. Frisamos, ademais, a finalidade essencialmente didática e não totalizante do presente artigo, a partir de que se poderá tão somente problematizar aspectos controversos do conceito de jurisdição e submeter a TGP a um procedimento de refutação epistêmica, de forma a verificar – ainda que parcialmente – sua conformação aos pressupostos políticos e jurídicos do Processo Civil, mas sobretudo, do Processo Penal. 2.

TEORIA GERAL DO PROCESSO: PARTIDÁRIOS E CRÍTICOS Deve-se grandemente aos postulados de Francesco Carnelutti a conformação atual da

Teoria Geral do Processo 8 . Sob a notória assertiva de que o “Direito Processual é substancialmente uno e que o Processo Civil se distingue do Processo Penal, não porque

3

Ilustrativamente: Universidade de Brasília (UnB), Universidade de São Paulo (USP), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), entre outras. 4 A saber, vide o perfil acadêmico dos últimos professores de Teoria Geral do Processo na Universidade de Brasília (UnB): Prof. Me. Ricardo Barretto de Andrade (Currículo disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4240363U0), docente de TGP I no primeiro semestre de 2013; Prof. Dr. Henrique Araújo Costa (Currículo disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4744939T0), atual docente de TGP I; Prof. Dr. Vallisney de Souza Oliveira (Currículo disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4765860U8), atual docente de TGP II; e Prof Dr. Ítalo Fioravanti Sabo Mendes (Currículo disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4137040Z8), atual docente de TGP I. 5 Ramiro Podetti, Teoria y Técnica del Proceso Civil y Trilogia Estrutural de la Ciencia del Proceso Civil, Buenos Aires, Ejea, 1963, pp. 335-415, Apud ALVIM, J. E. Carreira. Teoria Geral do Processo. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010, p. 41. 6 ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit., p. 36. 7 Idem. 8 EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Teoria Geral do Processo: uma crítica à teoria unitária do processo através da questão da sumarização e do tempo no/do processo penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 21.

340

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



tenham raízes distintas, mas pelo fato de serem dois grandes ramos em que se bifurca, a uma boa altura, um tronco único” 9, o processualista italiano fundou as bases teóricas que seriam a seguir perseguidas por inúmeros autores, dentre os quais destacam-se Giovane Leone10 e, mais recentemente, Ada Pellegrini, Antonio Carlos de Araújo Cintra, Cândido Rangel Dinamarco, Fábio Gomes, Hortencio Catunda de Medeiros, José Eduardo Carreira Alvim, Mauro Cunha, Ovídio Baptista da Silva e Roberto Geraldo Coelho Silva. De outro lado, tem-se a variante dualista, contra-majoritária, crítica de uma Teoria Geral do Processo e partidária de que “o Direito Processual Civil e o Direito Processual Penal são substancialmente distintos, constituindo, pois, duas ciências jurídicas distintas” 11 . Em sua linha de frente, situam-se autores tais como Vicenzo Manzini, Eugenio Florian, Aury Lopes Jr., Cláudia Ebling, Jacinto Coutinho e Lauria Tucci. Conforme já indicamos, o objetivo do presente artigo não visa a uma resposta definitiva no sentido da viabilidade ou não de uma Teoria Geral do Processo, senão a uma discussão acerca do conceito de jurisdição (aspecto nevrálgico da disciplina) a partir de argumentos de ambas as correntes. 3.

TRAÇOS GERAIS DE UM CONCEITO UNITÁRIO DE JURISDIÇÃO De saída, rende-se grande felicidade a Ramiro Podetti ao enumerar os principais

aspectos indicados pela doutrina em favor de um conceito de unitário de jurisdição. A saber: (i) seu caráter substitutivo; (ii) a justa pacificação social enquanto orientação finalística; e (iii) o processo como instrumento para sua efetivação. Tal construto revela um esforço teórico da corrente majoritária em favor de uma generalização conceitual supostamente válida para todas as disciplinas processuais12. Nessa esteira, afirma Carreira Alvim que a contraposição da jurisdição civil à jurisdição penal não infirma a tese unitarista, uma vez que tal apartação não reflete uma incompatibilidade teórica, em termos de estruturação analítica e principiológica, senão uma mera divisão de trabalhos13. Carnelutti, na mesma esteira, atribuiu à jurisdição um teor essencialmente teleológico, isto é, a “justa composição da lide” como seu objetivo maior. Assim, a jurisdição deveria,

9

ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit., p. 36. Idem. Idem. 12 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 29 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p. 156. 13 ALVIM, J. E. Carreira. Op. cit., p. 37. 10 11

341

Revista dos Estudantes de Direito da UnB sempre e necessariamente, pressupor a existência de lide, ou, em outras palavras, “o conflito de interesses qualificado pela pretensão de alguém e a resistência de outrem” 14. Tal conflito, pressuposto indeclinável da jurisdição 15 , seria solucionado, portanto, mediante a substituição dos sujeitos em disputa pelo Estado16, de forma a dirimir, com justiça, a conflituosidade social. Cabe ressaltar que a corrente unitária, embora reconheça as substanciais diferenças entre os vários ramos do Direito Processual, ainda se pauta – majoritariamente – em um conceito unitário de lide, mesmo que se entenda que os interesses em conflito sejam essencialmente diversos daqueles do Direito Processual Civil, tal como se pode depreender da abordagem de Cintra, Grinover e Dinamarco17: “quem admitir que existe a lide penal [....] dirá que ela se estabelece entre a pretensão punitiva e o direito à liberdade”. 4.

ASPECTOS PROBLEMÁTICOS DA JURISDIÇÃO UNITÁRIA Uma vez delineados os contornos básicos de uma concepção unitária de jurisdição – e a

sua construção como pilar nevrálgico da Teoria Geral do Processo – deve-se proceder à enumeração de algumas críticas à adoção desse conceito. Para tanto, sugerimos a sistematização do estudo em três eixos estruturais: (i) a problematização da justiça como escopo jurisdicional, (ii) o confronto do conceito de lide com os pressupostos técnicos e políticos do Processo Penal e (iii) o caráter substitutivo da jurisdição a partir de uma perspectiva finalística das funções da pena. 4.1. A justiça como escopo jurisdicional À parte do uso problemático da expressão “justa composição da lide” – com todas as implicações filosóficas que a palavra “justa” traz consigo –, o conceito tradicional (e carnelutiano) de jurisdição mostra-se, a princípio, controverso, mesmo no que diz respeito à órbita civil. Em contraposição à promessa de justiça e pacificação social, observou-se, a partir da década de 70, um crescente movimento em “busca por formas de solução de disputas que auxiliassem na melhoria das condições sociais envolvidas” nos conflitos 18 , tais como a

14

EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Op. cit., p. 30. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit., p. 158. 16 Idem. 17 Idem. Destaca-se que os autores fazem ressalva ao uso do termo “controvérsia penal” como possível substituição à “lide penal”. 18 AZEVEDO, André Gomma (org.). Manual de Mediação Judicial. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2009, p. 17. 15

342

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



mediação e a conciliação. Tal afirmação pode levar à ideia de que a pretensão pacificadora da jurisdição possui uma falha operativa, isto é, as relações sociais subjacentes à disputa de interesses, ao se sujeitarem à tutela jurisdicional, são passíveis de não se fortalecerem, mas, ao contrário, de se aniquilarem mutuamente. Ademais, são características contemporâneas dos métodos alternativos de resolução de conflitos a desformalização (como fator de celeridade), a gratuidade e a delegalização 19 , características essas que distanciam, em definitivo, tais métodos autocompositivos da jurisdição e contribuem para evidenciar falhas sistêmicas que colocam em cheque propostas de justiça (ao menos no que tange ao acesso amplo e irrestrito à jurisdição) ou de pacificação social (como conceito problemático que é). Se tais limitações se mostram significativas na jurisdição civil, essas – conforme se buscará demonstrar – tornam-se muito mais problemáticas na esfera penal. A título ilustrativo, tal análise pode ser feita – de uma maneira um pouco abrupta, diga-se de passagem – a partir de duas perspectivas. Em primeiro lugar, a crítica criminológica evidencia que as promessas de isonomia de que se vale o Sistema de Justiça Criminal esbarram no funcionamento seletivo das agências punitivas 20 . Critérios não autorizados de seleção – tais como gênero, idade, raça/etnia, vestimenta e pertencimento a determinado grupo social – contribuem, tal como destacam Zaffaroni e Nilo Batista, para a formação de zonas de vulnerabilidade e imunidade perante a situação concreta de perigo penal, constatação essa que encontra respaldo no perfil da população carcerária, bem como na criminalização prioritária de certos tipos penais (sobretudo tráfico de drogas e delitos patrimoniais21). Em segundo lugar, além do caráter flagrantemente criminógeno do cárcere – conforme se perquirirá mais adiante neste trabalho –, não é difícil observar que os custos sociais específicos para a pessoa e a família do condenado – assim como para a sociedade, em geral – são enormes, uma vez que, de forma geral, a criminalização secundária agrava o conflito social representado pelo crime22.

19 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit., p. 35. 20 Nesse sentido, SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 13; e ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, pp. 43-51. 21 Vide dados de 2012 do Infopen. Disponível em: http://goo.gl/mQ9VoA. Acesso em: 9 de julho de 2014. 22 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 29.

343

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Dessa forma, pode-se conjecturar que, se o conceito de jurisdição como pacificação social e promoção da justiça mostra-se problemático na seara civil, ele – a partir de constatações empíricas do funcionamento do Sistema de Justiça Criminal – inviabiliza-se, em grande medida, na ótica penal. 4.2. A lide Não menos importante é considerar criticamente o conceito de lide. Tradicionalmente, como elemento da ideia de jurisdição, considera-se a lide a partir das lições de Carnelutti, isto é, o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Seguindo a linha de raciocínio desenvolvida por Cláudia Ebling 23 , é possível ainda destrinchar tal conceito segundo o entendimento predominante na doutrina: -

-

o interesse como posição favorável à satisfação de uma necessidade; sendo ilimitadas as necessidades do homem e restritos os bens aptos a satisfazê-las, poderá surgir conflito de interesse quando a situação favorável à satisfação de uma necessidade exclui a situação favorável à satisfação de necessidade diversa; [...] verificando-se entre distintos sujeitos, poderá surgir pretensão, que é a exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio; eventualmente, um dos titulares de interesses em conflito a ela se sujeitará. (grifou-se)

Não é de se estranhar uma lógica privatista, quiçá econômica, na estruturação do conceito unitário de lide. Curiosamente, foi Carnelutti um dos primeiros autores a dissertar acerca das diferenças substanciais entre o Processo Civil e o Processo Penal, ao destacar que o Processo Civil é um âmbito de “possuidores”, enquanto o Processo Penal trata, sobretudo, da liberdade e do “ser” do indivíduo24. Embora ainda seja possível a ressalva de que a vinculação do Direito Penal à existência (ao “ser”) individual pode levar a uma atuação criminal discriminatória, norteada por elementos típicos de “Direito Penal de autor”25; é de se reconhecer a estruturante diferença 23

EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Op. cit., p. 57. CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el Proceso Penal. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas EuropaAmérica, 1961, pp. 18 e 19. 25 Acerca das relações do tema aqui estudado com o conceito de Direito Penal/culpabilidade de autor, segue excerto de Eugenio R. Zaffaroni (Culpabilidade por vulnerabilidade. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, n. 14, pp. 31-49, 2004, pp. 34 e 36): “Por tal motivo, a conexão punitiva deveria reprovar algo mais que o ilícito, passando a desvalorar normativamente toda a existência, a conduta de vida [...] ou diretamente a personalidade do agente. [...] [Na culpabilidade de ato pura], se reprovará o que se fez em função de seu catálogo de possíveis condutas condicionadas pela sua personalidade (na culpabilidade de autor, reprova-se a personalidade, da qual seu ato é somente um sintoma).” Dessa forma, é possível concluir que, embora na atuação punitiva se desvalore inevitável e indiretamente a personalidade do autor, tal desvalor não deve ocupar 24

344



Revista dos Estudantes de Direito da UnB



delineada por Carnelutti, a partir de que se viabilizou a crítica à lide criminal e à pertinência do conceito de pretensão ao Processo Penal. Isso porque não haveria como o Ministério Público exigir a sujeição de alguma outra pessoa – e menos ainda do imputado – à pena, uma vez que, nas palavras do autor, “uma ‘exigência’ só se coloca em face de outrem que a deva satisfazer” 26. De certa forma, uma vez que a reivindicação de legitimidade do jus pudiendi está inevitavelmente a cargo do Estado, não pode o réu – pessoalmente – satisfazer a pretensão punitiva. Tal conclusão – um tanto óbvia, é verdade – é sintomática de uma simples e patente inadequação do termo “interesse” em Processo Penal. Mesmo que se o reconheça, só se poderia assumir um “contrastes de opiniões a respeito de um mesmo interesse – e que é o interesse, único e exclusivo, do imputado” 27 em não ser punido. Questão interessante se assoma quanto à possibilidade de o réu estar de acordo com a condenação imposta, o que também afastaria, supostamente, a noção de conflito de interesses28. Sobre a questão, no entanto, vale uma digressão mais atenta. Em primeiro lugar, conforme afirmam Aury Lopes Jr. e a Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, “a própria confissão do acusado não constitui, fatalmente, prova plena de sua culpabilidade. [...] [A confissão, portanto,] não deve mais ser buscada a todo custo, pois seu valor é relativo e não goza de maior prestígio que as demais provas” 29 . Assumir o contrário pressuporia, em primeiro lugar, uma violação ao plexo constitucional de garantia individual e proteção à pessoa. Tais princípios são indisponíveis e, por isso, nem mesmo a assunção de culpa – a qual, do ponto de vista técnico, carece de caráter peremptório e não encerra as exigências probatórias do processo de imputação – possui o condão de legitimar a aflição do Estado. Em segundo lugar, a punição individual reflete um déficit estatal de legitimidade política, o qual deve ser necessariamente contido por todas as agências punitivas – até mesmo (e sobretudo) pelo Ministério Público. Não há dúvidas de que se trata de uma afirmação um pouco precipitada, mas que se torna indispensável em um trabalho como este. posição central na quantificação do juízo de reprovação, o qual deve ser norteado por parâmetros tais como a culpabilidade de ato pura e as circunstâncias objetivas e subjetivas de cometimento do delito. 26 CARNELUTTI, Sistema di diritto processuale civile, I, p. 40; Instituizioni del processo civile italiano, I, p. 8;/ e Teoria generale del diritto, p. 20, Apud SOARES, Fernando Luso, p. 75, Apud EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Op. cit., pp. 54 e 55. 27 EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Op. cit., p. 55. 28 OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 103. 29 JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 663.

345

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Em diálogo com a filosofia política, podemos cogitar um frontal rompimento com a tradição weberiana, isto é, alocar o fundamento de legitimidade do Estado fora dos contornos do monopólio do uso “legítimo” da violência – tal como destaca Hanna Arendt30 – e, então, compreendê-la a partir da vivência fraterna dos direitos fundamentais e da busca incessante pelo consenso. Nesse sentido, segundo propõe Zaffaroni31, poderíamos cogitar a existência de dois modelos ideais de Estado contidos no Estado Democrático de Direito, isto é, o estado de direito em sentido estrito e o estado policial. A contraposição de tais modelos refletiria um déficit de legitimidade quando da ampliação da coerção estatal, esta caracterizada como mera expressão do poder político. A base da legitimidade do Estado residiria, portanto, não no uso da violência, senão na ampliação do estado de direito, mediante a resolução horizontal dos conflitos, o diálogo, a profunda observância aos direitos fundamentais. Entendemos que a assunção de tais pressupostos implica uma certa antipatia; isso porque, de antemão, não há como disputar politicamente o campo dogmático sem nos valer da assunção do paradoxo abolicionista, por assim dizer. A função contentiva residiria, portanto, na demarcação dos campos de intervenção punitiva, sem, no entanto, produzir um discurso legitimante. Ocorre que a própria atividade jurisdicional, em certa medida, parte do pressuposto da autorização/desautorização de poder punitivo, o que, dicotomicamente, reflete uma “necessidade de coerção”, a partir de que se conclui – tautologicamente – por uma suposta legitimidade. Nossa posição também se mostra antipática, pois não cria distinções dos réus a partir do crime cometido. Em geral, até mesmo as posturas mais críticas em relação ao Direito Penal são uníssonas ao afirmar a indispensabilidade da punição para crimes que lesionem gravemente a vida, a dignidade sexual ou a liberdade da vítima. Assumir, de antemão, que a pena não é legítima – mas, tão somente, justificável – problematiza, inclusive, a punição de delitos gravíssimos, cujos autores – para todos os efeitos – devem estar submetidos às mesmas garantias constitucionais de proteção à pessoa. Assim, valendo-nos jocosamente da expressão privatista, haveria sempre um “interesse” direto do Estado em não punir, pois, mesmo a punição pelo crime atroz materializaria um método ilegítimo de “resolução” de conflito e, inevitavelmente, um aumento do âmbito de abrangência do estado policial. 30

Para um discussão aprofundada, leia-se: ARENDT, Hannah. Da Violência. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1985. ZAFFARONI; BATISTA; et al. Op. cit., p. 93.

31

346

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



Ora ousada, ora frustrante, trata-se de uma assunção controversa, a qual encontra limite nas próprias vivências coletivas e nas expectativas sociais da população como um todo. Reflete, ademais, uma pressão minoritária de deslegitimação do poder punitivo – o que não é censurável, mas demanda grande vigor estratégico para surtir efeitos práticos – e esbarra em seu intrínseco teor hermético. Entendemos, no entanto, que, em vista de dois motivos principais, não se pode prescindir dela. Primeiro, porque submete teórica e politicamente toda a atuação das agências punitivas à contenção do arbítrio e à demarcação precisa das zonas do lícito e do ilícito. Segundo, porque, em Processo Penal, resulta na refutação do termo “interesse”, cuja verificação na prática mostra-se absolutamente dispensável. A pressão deslegitimante é uma exigência que deve partir do Estado para fins de manutenção de sua própria legitimidade. Assim, é indiferente se o réu concorda ou não com a condenação, já que não deve haver – isso sim – “interesse” estatal na imposição de pena, senão o contrário, isto é, um constante dever de redução dos mecanismos punitivo-decisórios. Assim, consideramos procedente a posição de Lauria Tucci, corroborada por Jacinto Coutinho, de expurgação do conceito de lide da gramática penal32, bem como a eliminação de tal conceito da linguagem processual penal e a adoção alternativa do termo “caso penal”33. Destaca-se também – conforme foi aqui demonstrado – que a crítica de que “o essencial para que exista o processo [...] é a pretensão e não a lide” 34 não vale prevalecer, pois a própria “pretensão punitiva” não é um conceito válido em um Direito Penal de garantia. Conclui corretamente Antonio Alberto Machado35, ainda, que “o autor da ação penal, o Ministério Público, é uma parte desinteressada, porquanto pode até mesmo pedir a absolvição do réu”, o que, com mais razão, obriga-nos a concluir – mais uma vez – que a pressão de contenção do poder de punir impera, sem exceção, sobre todos agentes da criminalização, inclusive o órgão acusador. 4.3. O caráter substitutivo da jurisdição Já na seara civil podem ser observadas as incongruências do pressuposto unitário do caráter substitutivo da jurisdição. A título ilustrativo, Ebling cita decisões acerca de algumas questões processuais – tais como aquelas que dizem respeito à competência e suspeição –



32

JÚNIOR, Aury Lopes. Op. cit., p. 57. EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Op. cit., p. 51. Afirmação de Afrânio Silva Jardim. Disponível em: http://goo.gl/36a7oF. Acesso em: 5 de maio de 2015. 35 MACHADO, Antonio Alberto. Curso de Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 11. 33 34

347

Revista dos Estudantes de Direito da UnB como exemplos de situações onde jamais será possível vislumbrar qualquer traço de substitutividade a uma atuação originária, direta e própria das partes36. Entendemos, no entanto, que a enunciação de um conceito genérico de jurisdição, muito embora se pretenda totalizante, não se inviabiliza quando da verificação de uma inadequação episódica, tal como nos exemplos mencionados. O que se pretende aqui, ao contrário, é confrontar tal pretensão totalizante do conceito de jurisdição em face dos pressupostos basilares do Processo Penal e das características punitivas hegemônicas que o norteiam. Uma suposta inadequação, no caso, não deve ser aferida a partir de situações-limite, mas com fulcro nas linhas estruturais da disciplina processual penal. Isso posto, se, “no Processo Civil, temos claro, na maioria dos casos, o aspecto substitutivo da atividade jurisdicional” 37 , no Processo Penal, esse entendimento deve ser problematizado em face dos eventuais sentidos que a substitutividade pode assumir. Em um primeiro momento, poder-se-ia dizer que a substituição dos particulares em conflito pela jurisdição penal se apresenta como uma contradição em termos. Em nos valendo da distinção entre modelos decisórios proposta por Nilo Batista e Zaffaroni, o modelo punitivo 38 – hegemônico, por sua vez, na jurisdição penal – é caracterizado pela suspensão do conflito no tempo e pela exclusão da vítima do processo decisório. Isso não significa que a vítima seja desprovida de papel no Processo Penal, mas que – via de regra – ela não compõe a “solução” para o conflito social representado pelo crime. Tal conflito, destaque-se, não se resolve, materialmente, mediante a punição. Em um segundo momento, a substituição dos particulares pelo Estado – quando da atuação punitiva manifesta – pode refletir um sentido essencialmente retributivo para a punição. Isto é, a “vingança privada” se transmutaria, mediante a jurisdição, em “vingança institucional”. Não obstante, a assunção legitimante de um teor retributivo para pena, esta exaurida na mera conexão punitiva entre culpa e sanção, não é autorizada pela ordem jurídica, uma vez que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual entrou em vigor em julho de 1978 e que atualmente é vinculante para os Estados membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual o Brasil faz parte 39 , ressalta que a reforma e a readaptação dos condenados, como finalidade essencial das penas privativas de

36

EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Op. cit., pp. 52 e 53. Ibidem, p. 52. ZAFFARONI; BATISTA; et al. Op. cit., p. 87. 39 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe sobre los derechos humanos de las personas privadas de libertad en las Américas. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 64. 31 deciembre 2011. Disponível em: www.cidh.org. Acesso em: 28 de abril de 2015, p. 9. 37 38

348

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



liberdade, são garantias da segurança cidadã e direitos das pessoas privadas de liberdade40. Trata-se, portanto, de uma implícita deslegitimação normativa de quaisquer finalidades para a pena de prisão que não guardem estrita relação com a prevenção especial positiva41. Assim sendo, podemos proceder a algumas conclusões preliminares: (A) Quando da atuação punitiva manifesta, a jurisdição penal – seja em razão dos contornos teóricos do modelo decisório-punitivo, seja em virtude da deslegitimação normativa decorrente das determinações convencionais do Pacto de São José da Costa Rica – não pode ser compreendida como substituição dos particulares em conflito pelo Estado. (B) Não obstante, conforme indica a Comissão Interamericana de Direitos Humanos42, o sistema prisional brasileiro não apresenta as condições mínimas para a realização do projeto técnico-corretivo de ressocialização, reeducação ou reinserção social do sentenciado. Ademais, não nos parece audacioso conjecturar que o sistema carcerário, além de não apresentar os pressupostos basilares para a concretização do plano político de reinserção, possui uma eficácia invertida quanto a tal objetivo manifesto e, destaque-se, apresenta uma atuação deformadora43 e estigmatizante44 sobre o condenado. Conforme ainda afirma Juarez Tavares45, a condenação implica ao sentenciado um mal-estar psicológico duradouro, o qual não pode sequer ser afastado pelo seu próprio reconhecimento de que se encontra ressocializado. Tal suposição conta, inclusive, com o reconhecimento explícito do caráter criminógeno do cárcere pela Exposição de Motivos da nova Parte Geral do Código Penal46. (C) Por mais uma razão, pois, é válida a adoção de um sentido finalístico essencialmente negativo para a pena, de forma a compreendê-la à parte de seus objetivos manifestos – sobretudo no que tange à prevenção especial positiva – e, portanto, como mera expressão do poder e realidade política a ser contida pelas agências punitivas.



40

Ibidem, p. 8. Com esse entendimento, também, Juarez Tavares, em parecer que instruiu ADPF ajuizada pelo PSOL acerca do sistema carcerário nacional. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/juarez-tavares-diz-que-nao-sepode-prender-no-brasil-falta-responsabilidade-do-estado-e-de-seus-magistrados/. Acesso em: 9 de agosto de 2015. 42 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., prefácio. 43 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 531. 44 Vide “Labeling Approach” em: BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. 45 TAVARES, Juarez. Los objetos simbólicos de la prohibición: lo que se devela a partir de la presunción de evidencia. In: Racionalidad y derecho penal. Lima: Idemsa, 2014, p. 39. 46 A saber: “Uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa da liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação criminógena cada vez maior do cárcere”. 41

349

Revista dos Estudantes de Direito da UnB Assim, pode-se afirmar que, se no Processo Civil é flagrante, na maioria dos casos, o aspecto substitutivo da atividade jurisdicional, no Processo Penal “não podemos concluir como sendo escopo da jurisdição (até então, tratada como una), o caráter substitutivo”47. 5.

CONTORNOS DE UM CONCEITO PENAL DE JURISDIÇÃO Uma vez apresentadas as críticas ao problemático conceito unitário de jurisdição, ora

propõem-se alguns contornos genéricos de uma atuação jurisdicional-penal democrática. Trata-se, conforme se verá, de linhas de norteio, as quais estão inteiramente vinculadas a um propósito político e estratégico de contenção do poder de punir. Em primeiro lugar, pois, partindo, mais uma vez, da apartação entre modelos decisórios (reparador, conciliador, corretivo, terapêutico e punitivo) proposta por E. Raúl Zaffaroni e Nilo Batista 48 , não se deve prescindir, pelos motivos anteriormente destacados, de uma interpretação negativa do modelo punitivo, isto é, cética quanto aos propósitos manifestos da pena. Tal aferição, no entanto, não se confunde com óbice delimitativo, vez que “o poder estatal concede às suas instituições funções [ora] manifestas, que são expressas, declaradas e públicas”, ora latentes ou reais, isto é, o que a instituição realiza efetivamente na sociedade49. Por conseguinte, é necessário concluir, do ponto de vista empírico, que as leis penais podem ser manifestas, latentes ou ainda eventuais50. Não raro, no entanto, a prisão provisória, a título ilustrativo, pode se acossar de conteúdo eventualmente penal, segundo o uso que delas façam as agências punitivas. Nesse caso, quando forem tais momentos reconhecidos, estes “devem passar a fazer parte do objeto de interpretação do Direito Penal como saber jurídico, porque consubstanciam casos de criminalização indevidamente subtraídos dos limites do Direito Penal, que este deve recuperar para exercer sua função limitativa” 51 e, assim, excluí-los52. Dessa forma, pode-se afirmar que a jurisdição penal deve, primordialmente, identificar os momentos punitivos manifestos e latentes, de forma a, no primeiro caso, submetê-los a todas as limitações e garantias constitucionais e legais (tais como os princípios de proteção à pessoa, presunção de inocência, legalidade, contraditório e ampla defesa, culpabilidade); e, no 47

EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Op. cit., p. 53. ZAFFARONI; BATISTA; et al. Op. cit., p. 87. Ibidem, p. 88. 50 Ibidem, p. 89. 51 Idem. 52 Ibidem, p. 90. 48 49

350

Revista dos Estudantes de Direito da UnB



segundo caso, expurgá-los mediante o reconhecimento de inconstitucionalidade e/ou ilegalidade. Em segundo lugar, no que tange à aplicação de medidas cautelares, uma vez excluído seu teor punitivo latente, a jurisdição penal deve restringir sua aplicação, em caráter sempre excepcional, à neutralização de um dano em curso ou de um perigo iminente; em suma, à prevenção de maiores lesões a bens jurídicos e à contenção emergencial da conflituosidade social53. Em quaisquer dos casos mencionados acima, os quais correspondem – quantitativa e qualitativamente – às principais atividades da chamada jurisdição penal, não se pode vislumbrar um caráter substitutivo à atividade originária das partes ou ainda a existência de uma lide a ser solucionada. Deve-se reconhecer, no entanto, que se parte de um pressuposto material de justiça, o qual corresponde ao sempre válido propósito político de deslegitimação do poder punitivo. Tal assunção, no entanto, distancia-se, para todos os efeitos, do conceito de justiça como pacificação social constante das principais formulações em Teoria Geral do Processo. 6.

CONCLUSÕES Tal a exposição, procedemos a algumas conclusões:

1.

São elementos primordiais do tradicional conceito unitário de jurisdição: (i) seu

caráter substitutivo; (ii) a justa pacificação social e composição da lide como teleologia; e (iii) o processo como instrumento para sua efetivação. 2.

Se o conceito de jurisdição como pacificação social e promoção da justiça mostra-se

desde já problemático na seara civil, ele – a partir das constatações empíricas do funcionamento do Sistema de Justiça Criminal e dos gravosos custos sociais do encarceramento – torna-se um tanto problemático no âmbito penal. 3.

Em virtude da ilegitimidade intrínseca da punição, da necessidade de vinculação

política das agências punitivas à contenção do poder de punir e da assunção de um sentido negativo para a pena, deve-se expurgar o conceito de lide da linguagem processual penal e adotar, alternativamente, o termo “caso penal”. 4.

A jurisdição penal – seja em razão do sentido teórico que apresenta o modelo

decisório-punitivo, seja em virtude da vedação normativa decorrente das determinações

53



ZAFFARONI; BATISTA; et al. Op. cit., p. 87.

351

Revista dos Estudantes de Direito da UnB convencionais do Pacto de São José da Costa Rica – não pode ser compreendida como substituição dos particulares em conflito pelo Estado. 5.

São linhas gerais do funcionamento da jurisdição penal: (i) a eliminação dos

momentos punitivos latentes não manifestos, (ii) a submissão da atuação punitiva manifesta aos princípios de proteção à pessoa, garantia individual e contenção do poder de punir e (iii) a neutralização de um dano em curso ou de um perigo iminente quando da imposição, a título de excepcional, de medidas cautelares. 6.

As controvérsias de um conceito unitário de jurisdição, muito embora não sejam

suficientes para se inviabilizar por completo a Teoria Geral do Processo, são sintomáticas da incongruência de sua pretensão totalizante, a qual, para tanto, deve ser sanada mediante o respeito conceitual, teórico e até mesmo léxico às categorias do Direito Processual Penal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIM, J. E. Carreira. Teoria Geral do Processo. 13. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2010. ARENDT, Hannah. Da Violência. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1985. AZEVEDO, André Gomma (org.). Manual de Mediação Judicial. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2009. BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. CARNELUTTI, Francesco. Cuestiones sobre el Proceso Penal. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1961. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe sobre los derechos humanos de las personas privadas de libertad en las Américas. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 64. 31 deciembre 2011. Disponível em: www.cidh.org. Acesso em: 28 de abril de 2015. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; GRINOVER, Ada

352

Pellegrini. Teoria Geral do Processo. 29 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.



Revista dos Estudantes de Direito da UnB

JARDIM, Afrânio Silva. Não creem na Teoria Geral do Processo, mas ela existe. Disponível em: http://goo.gl/36a7oF. Acesso em: 7 de agosto de 2014. JÚNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. EBLING, Cláudia Marlise da Silva Alberton. Teoria Geral do Processo: uma crítica à teoria unitária do processo através da questão da sumarização e do tempo no/do processo penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012. TAVARES, Juarez. Los objetos simbólicos de la prohibición: lo que se devela a partir de la presunción de evidencia. In: Racionalidad y derecho penal. Lima: Idemsa, 2014. _______________. Parecer que instruiu ADPF ajuizada pelo PSOL acerca do sistema carcerário nacional. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/juarez-tavares-diz-quenao-se-pode-prender-no-brasil-falta-responsabilidade-do-estado-e-de-seus-magistrados/. Acesso em: 9 de agosto de 2015. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidade por vulnerabilidade. In: Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, n. 14, pp. 31-49, 2004. _________________________; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. MACHADO, Antonio Alberto. Curso de Processo Penal. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2014. OLIVEIRA, Eugenio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

353

Revista dos Estudantes de Direito da UnB

Tiragem 200 exemplares Capa Eduardo Varela Apoio Biblioteca Central da Universidade de Brasília Faculdade de Direito da Universidade de Brasília

Para críticas e sugestões, entre em contato com o Conselho Diretor, através do e-mail [email protected].

354

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.