(2009) “Modernidade, Transgressão Sexual e Percepções da Alteridade Racial Negra na Recepção do Jazz em Portugal nas Décadas de 1920 e 1930” in Arte e Eros – Actas do 3º Ciclo de Conferências de Ciências de Arte. Lisboa: FBAL.

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Roxo, Pedro (2009)  “Modernidade,  Transgressão Sexual e Percepções da Alteridade Racial Negra na Recepção do Jazz em Portugal nas Décadas de 1920  e  1930”  in Arte e Eros. Lisboa: FBAL / Instituto Francisco de Holanda.

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por Pedro

MODERNIDADE, TRANSGRESSÁO SEXUAL E PERCEPÇÓES DA ALTERIDADE RACIAL NEGRA NA RECEPÇÃO DO JAZZ EM PORTUGAL NAS DÉCADAS DE 1920 E 1930 Roxo

esta comunicação são apresentados alguns dados preliminares relati vos a uma investigação em curso sobre a recepção do jazz e das danças ditas "modern as" em Portugal', relacionando esse processo com os (Ii. cursos e as ideologias coloniais e raciais dominantes, num período partiularmente conturbado da história de Portugal: a transição da primeira para :1 egunda república com a consolidação da ditadura militar e posteriormente :I afirm ação do Estado Novo. Especificamente, serão realça das as contradições LI i cursivas e ideológicas espoletadas pelo impacto das emergentes formas de .ntreten imento nas percepções de alteridade racial , na negociação das fronteiras de género e de classe social, e na desestabilização e contestação das práticas orporais e sexuais - uma vez qu e as repres entações somáticas estiveram na Ii nh a da frente das figurações da modernidade' em Portugal. Apesar de estudos no âmbito dos Popular Music Studies, dos Cultural tud ies e da Etnomusicologia realçarem a importância do estudo da cultura xpressiva (como a música e a dan ça) para compreender dinâmicas culturais e ociais qu e escapam às narrativas centradas primordialmente nas análises políticas e económicas, os discursos sobre jazz em Portugal, além de se afigurarem predominantemente descritivos e panegíricos, con tinuam a enquad rar e a classificar o conhecimento' no âmbito de uma lógica legitimadora ("jazz como música de 'arte'") e sequencial de estilos e sub-estilos de jazz (práticas discursivas frequentemente apropriadas do jornalismo musical e de estratégias promocionais da própria indústria fonográfica). O registo panegírico e/ou a reiteração dos discursos dominantes sobre jazz em Portugal tem contribuído para a per-

I Investiga ção preliminar ad iciona l está também incluída em Roxo e Cas telo-Branco (no prelo). 2 Enqua nto co nfigu ração históri ca e ado pta ndo o arg u me nto de Berm an (1982) no in ício do século XX, o co nce ito de modernidade passa a ab ranger vários pro cessos qu e, apesar de tr an sitarem d a revolução indu stri al, adquirem um a figu ração tra nsna ciona l di sseminado s a partir dos EUA, com especia l ênfase na ind ustr ial ização; increm ento de novas formas de produti vid ad e e de di visão do trabalh o (p.ex : Ford ismo), desen volvimento tecn ológico e domín io d a natureza; a conso lidação do Esta do- Nação co m um sistema bu rocrá tico qu e tr an scend e o ind ivíd uo; o desen volvim ento da urb anização e de est ilos de vida a ela assoc iados e co nsequente surg imento de um a sociedad e de consu mo e de um a cu lt u ra popular e de ent reten ime nto dir eccion ad as para o consumo massificado (cf. também G idde ns 1990). Adi cion alm ent e estes fen óm eno s são acom pan hados pelo desenvolviment o de u ma no va co nsc iência crít ica e reflexiva no dom ínio das ciências, d a política, das artes, da eco no m ia, da orga nização socia l e no qu e respeita à relação do H om em co m o tr an scend ent e (as religiões "trad icionais" perd em terre no par a a ciê ncia ou para for mas emerge ntes d a experiê ncia religiosa) (idem , ibidem). Para um a reflexão sobre a persistên cia e a natureza múlt ipla d a mod ern idade enqua nto proj ecto polí t ico e cult ural d isseminad o pelo mundo a parti r d a Euro pa, cf. Eisensrad t (20 07).

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P ' 1uaçáo de mistificaçõ es, frequentem ente de teor prirnordialista (o l" i 1111 1111 ti ivul gador de jazz, o primeiro clube de jazz, o primeiro disco de jazz g l'.l\ .1.111 cm território nacional, o programa de rádio com maior longevidad e, ell .), III as q ua is se têm ed ificado os discursos que sustêm a " h istó ria do jazz cm PIIIIII ga l", ou pelo menos as narrativas tendentes à sua hi storizaçâo. Es ta prOp('11 ..II d is ur siva (ou este modelo de práticas de representação) tem-se fundamenr .uh, na eleição m ais ou menos selectiva dos assuntos e das referências qu ' podl III ser associados a essa "h istória", e no estabelecimento de linhagens (de m ú,... il II de agr upa me ntos musicais, de di vulgadores, etc .) a partir de percep ções \ 11'111 delimi tadas daquilo que pode ou não ser considerado jazz". Num a ardil ., ma is at u rad a, este tipo de retóricas, permite perceber "a história do jazz II 111111 U ma di sputa pela posse (ou ap ropriação) dessa história e a legitimidade II' I{ 'Ia confere'" (D eVeaux citado por H arding 1995: 140), instituindo ou l IIII solid ando assim "regim es da verdade" (Fouca ult 1980) - práticas di scursi .1 qu e passam a funcionar como "a verdade" em determinado campo do sa\II '1 . sob determinadas condicionantes histórico-sociais. Nesta lógica, Hard i II • (ibidem) salienta que a disputa por essa história é frequentemente consolid.u l.i at ravés da definição por exclusão, relembrando como o jazz foi, ao lon go cI .1 sua existê ncia, apropriado por grupos com agendas diferenciadas e origin:í rio d e todos os quadrantes pol íticos ", Na act ualid ade, a produção di scursiva em torno do jazz con hece um C0 I1~ 1 derável incremento na mesma proporção em que se multiplicam escolas, cu rSI 1 e grupos de estudos universitários dedicados ao estudo desse domínio musical . A conversão do jazz não apenas num capital de consumo com elevada impoi tâ ncia social e sim bólica, como também num capital cultural de alto va 11)1 po lít ico e econó m ico", tem cont ribu ído para acentuar e vu lgarizar dis curso I

J So bre esta tem át ica, cf D eVeau x (19 91 e 19 98). 'Í Tra d ução livre.

Nesse sent id o , o entend ime nto d a recepção e prática d o jaz z em Po rt uga l passa necessariam ente po r to do 11111 rab alho hermenêut ico relat ivam ent e ao s d iscur sos produ zidos pelos d iversos age ntes (d ivulgad ores, jo mn llst.i , m úsico s, clérigos, pol ít icos, consum idores erc.), ta n to no passad o co mo na ac tua lida de , com a co nsciê ncia d e qllt na o nst ruç âo di scursiva d o jazz em Portugal (como em qu alquer co ns t rução di scursiva), o qu e se d esvalo riza I I 1111 qu e se o m ite (de forma pr em editad a ou não) torna-se t ão relevante com o os d ados e as persp ectivas q ue .' UII cu 1:11 izad as e mi stifi cad as. I

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( :111110 é po ssível ver ifica r pela pr oli feração d e fest iva is e d e o utras ac tiv ida de s relacion ad as co m o jazz, fi 11;111 da d as pela s políticas cu lt ura is e autárq u icas, por in stituições p rivad as e por empresas faze ndo uso d e pdlil .I" mcccn.it icas.

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Íc ririmadores que enfatizam o valor da música enquanto forma de "art e". Neste pr icesso, práticas performativas associadas aos primórdios do jazz ou às práti.as exp ressivas africano-americanas centradas particularmente na exibição e na p '[form ação do corpo, como é o caso das vá rias tipologias de danças de origem africano-am erican a, têm sido negligenciadas (quando não mesmo ignoradas), frequen tem ente remetidas para a categoria do entretenimento ligeiro próprio I uma época em que o jazz passava por todo um processo de afirmação e de autonom ização enquanto gén ero musical. Nesse âmbito, as danças de or igem a fricano-am ericana a si associadas viriam a ser conotadas (nom ead am ente a part ir dos anos 30) com a música dirigida às pistas de dança, característica da cult u ra popular massificada, dirigida ao consumidor tendencialmente acrítico ( dorno cito por Robinson 1994). T rata-se .de um conjunto de estereótipos, multiplicados por toda uma série de discursos por parte de jornalist as, divulgadores, promotores e outros "p rod utores de sentido", desde pelo m enos a segunda metade do século :XX, correndo o risco de se perpetuarem através da legitim ação conferida pela patine académica, se os discursos científicos insistirem em reit erar o m esmo tipo de percep ções estereotipad as. Na verd ade, além de ter em constituído modelos para p erformar uma imagin ação da modernidade e assim contribuírem para uma reconsideração das relações raciais, sociais e de género , as músicas e as danças africano-americanas, foram instrumentais na afirmação de no vas formas de entreten imen to. Parafraseando Crease (2 0 02), n ão apenas estimularam o desen volvimento e expansão de variados espaços de diversão centrados na organização de eventos dançáveis (night-clubs, restaurantes, salões de chá, etc.), como também potenciaram o mercado para os músicos, conduzindo a um considerável aumen to de conjuntos musicais, tanto em quantidade como em dimens ão (os grupos pa ssaram, na generalidade, a integrar mais elementos). Adicionalmente, as danças foram ainda centrais na configuração das estruturas e dos arranjos de inúmeras composições que tinham de ser pensadas para se ad apta rem às idiossincrasias do s bailes e das danças (varie d ade musical e rítmica, adaptação a movimentos específicos, momentos pensados para a troca ou movimentos en tre pares durante a dança etc. - sobre esta temática, cf. também M alone 1998). Por todos estes motivos, como real ça Crease (ibidem) , a dança e a música para dançar, devem constituir parte integrante do s estudos sobre jazz, não ap enas

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orno meros acessórios que servem para contrastar com o "verdad 'iro" i.llI . mas a mo práticas musicais e performativas fundamentais para a con fl gll 1.1\ ,III i11 i ial desse género musical. Adicionalmente, as danças modernas constituem ainda o prólo go de 11111 do s pro cessos mais relevantes para o estudo do corpo no ocidente no Sl't IIIII XX, qu e foi a sua "africano-americanização" (McClarye Walser 199 ), (' qlll passou pela mediação de outras práticas musicais e coreográficas de gencah '1',1 .1 aFricano-americana, como o jazz, o rock, o soul, o funky, o hip-hop, el e. N .I rncd ida em que o corpo social e culturalmente mediado serve de base 1,.11•1 os discursos humanos, a compreensão da forma como ocorre essa med ia\ .111 onstit ui uma tarefa crucial para a compreensão de fenómenos sociais e ' 11 1111 ra i. (idem, ibidem). Essa tarefa afigura-se também particularmente releva 1111 ' pa ra a análise da recepção do jazz nos anos 20 e 30 em Portugal, um 1':11 .nt âo conservador, de matriz colonialista, e com práticas de subalterniza, .111 da população negra, mas que , sobretudo a partir da primeira grande guerr,l . fi a exposto às tendências da globalização e da americanização do mundo l' .1 ulrura popular industrializada que acompanha esses processos.

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'IHe?, sobretudo com recurso a discursos devedores do evolucionismo social, que colocavam as culturas e as sociedades extra-europeias à margem da civiIização devido à ausência de progresso e civilidade, como relíquias históricas I . um estágio evolutivo anterior e obsoleto (logo, inferior à cultura europeia). E tas perspectivas viriam a ser apropriadas, ajustadas e reiteradas em estratégias le representação do "outro", consolidadas em eventos de enaltecimento da supremacia "civilizacional" europeia e de legitimação da ideologia imperialista, mo as exposições coloniais, que punham os metropolitanos em contacto com a alteridade racial e com culturas até então pouco conhecidas ou até mesmo incógn itas para os europeus", A título de exemplo, na Exposição Industrial Port uguesa de 1932 , realizada em Lisboa, foram "im port ados" indígenas da uiné para serem apresentados como quadros vivos aos visitantes da exposição, qual zoo humano. E talvez não seja de estranhar que um dos aspectos mais controversos dessa mostra foi exactamente o interesse que as mulheres africanas com os seus seios desnudados despertaram entre os visitantes masculinos da exposi ção e a atenção qu e o sector feminino prestava a alguns negros, sobretudo a um dos líderes do grupo (um príncipe Fula), o que espoletou algum escândalo na imprensa da época (Matos, ibidem). O mesmo viria a repetir-se na I Exposição Colonial, em 1934 , realizada no Porto, para a qual foram tra111

Ideologia colonial e percepções da alteridade racial negra. Como realça Matos (2006), após a conferência de Berlim (1884-1885), Por rugal iniciou uma prática colonialista que passou a racionalizar meios naturais c humanos. Após as campanhas de pacificação em África, a necessidade dl' onhecer e classificar o território e as suas populações (num processo de censo Iidação do império colonial), conduziu a um comprometimento entre ciên i:1 ~ política que influenciou parte das representações da alteridade racial negra. E a partir deste momento que se desenvolverá o colonialismo científico, com () surgimento de instituições para o estudo e divulgação do conhecimento sobre as colónias, e o desenvolvimento de disciplinas de investigação (como a Antropologia física) que tendiam a estabelecer classificações das espécies humanas om base em critérios racialistas (se bem que em larga medida arbitrários e .t noc ênt ricos). Através da realização de conferências e congressos para a divul gação do conhecimento, a ideologia colonial procurou legitimar-se cientifica-

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7 T ratava-se de aprofun dar o co n heci menro dos espaços ultram arin os e das suas populações autócto nes. inclusiva rnenre através da criação de cu rsos sobre temá ticas relacio nadas com as co lón ias. D iversas institu ições governa menta is e não gove rna me nra is promovia m este esforço de div ulgação que era ain da complementado pela realização de vár ios congressos, sobretudo ao longo dos anos 30 (cf Matos. ibidem). Algumas das institu ições cr iadas pa ra o estu do e di vul gação do conhecimenro sobre as co lónias foram : 1857 - Soc iedade de Geografia de Lisboa; 1902 - Escola de Med icina Tropical (em 1935 convertida em Institu to de Me d icina Tropical); 1912 - M useu Etnográfico de Ango la e Congo; 1913 - Serviço dos Negócios Ind ígen as e de Reconh ecimenro e Exp loração Cient íficos: 1918 - Sociedade Portu guesa de Anrropologia e Etnologia; 1921 - Núcleo Português do In stitu to Internac iona l de Anrropo logia; 192 4 - Agência Ge ral da s Co lónias (1951 - Agência Gera l do Ultra mar); 1937 Sociedade Portuguesa de Estudos Eugénicos (Estatutos aprovados em 1934). 8 Pr incipais Exposições e Feiras Colon iais nas Décad as de 1920 e de 1930 co m part icipação port uguesa ou reali zadas no ter ritó rio portugu ês: 1924 - Feira Inr ern acion al de Bru xelas; 1925 - Expos ição Inter nacional das Artes D ecorati vas e Indu str iais Mo de rnas de Par is; 1925 - Exposição Co lonia l In rer-Al iad a de Paris; 192 9 - Expos ição Ibero -Am erican a de Sev ilha; 1930 - Expos ição Int ern acion al Co lon ial. Marítima e de Arte Flamenga - Anruérpia; 193 1 - Exposição Co lon ial Internacional de Pari s; 1932 - Expos ição Industr ial de Lisboa ; 1934 - I Exposição C olonia l Portugu esa (Por to); 1937 - Exposição de Art e Co lon ial de Náp oles; 1935 - Feira Int ern acion al de T rípolis; 1937 - Expos ição U n iversal de Par is; 1937 - Exposição H istó rica da O cup ação no Século X IX (Lisboa); 1938 - Expos ição-Fe ira de Ango la; 1939 - Exposição Uni versal de Nova-Iorque; 1940 - Expos ição do Mundo Portugu ês (Lisboa).

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zidos au tóctones de An gola , Guiné e Moçambique (cf idem, ibidem: Ml'll clIll 00 ). e facto , se a dissemelhança somática con stituía a principal t"rolll l'il • .nrrc o branco e negro e também uma das principais causas de cu riosid.u I•• de atracçã o, o contacto físico (nomeadamente por via sexual) con stituía li III tllI I rincipais temores do homem branco perante a potencial ameaça de CO Il I; 1I 11 nação "negra". Essa tensão seria causa de inúmeras fantasias e mitos, nomr:«L. mente o do negro hiper-sexualizado. Como explica Tagg (1989) para o onu-: III a nglo -saxónico, protestante, liberal e esclavagista (mas que em vários asp 'ri I) ada ptável ao Portugal colonial do período esclavagista e posterior), os es T :I II al ém de trabalharem, tinham a obrigação de se reproduzirem (frequenrcnn-nr. os pares acasalavam por indicação do seu proprietário), originando assim III.li mão-d e-obra e maior produtividade sem neces sidade de investimentos fIlia II eiros ad icionais. Por vezes alguns dos cativos eram vendidos quando a 1lI :111 -de-obra se tornava excessiva. Nos leilões públicos ficavam expostos à expoxl ão humilhante do corpo devido aos exam es dos potenciais compradores qlll pretend iam aperceber-se do potencial de força (capacidade de trabalho) 'd .1 sua capacidade de procriação. Neste contexto desenvolveu-se a noção do n l~ 1 1I forte, corpulento, bom reprodutor que , juntamente com jovens negras férrcis. se tornaram bens materiais e de troca cobiçados. A juntar a isto , as fantasias l ' as transgressões sexuais do proprietário (que frequentemente tirava partido d:l ~ escravas, desenvolvendo sentimentos de culpa relacionados com a moral religio sa qu e favorecia a monogamia e a pureza da raça) eram projectadas no negro , favorecendo assim os mecanismos de reprodução de estereótipos e de fanta: ia.'! em relação à sua sexualidade", A "sexualidade excessiva" qu e era associada a()~ negros surgia articulada com outros tipos de percepções estereotipadas, conu I desordem física e moral, preguiça, inferioridade intelectual e cultural, infan I i I

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Tagg expõe jocosa e exemplarmente este processo: « ,. .Th ere ar your doorstep was rhe ' big buck n igger ' who W. I' cx pcc ted to sow oats in one field after rhe orher while yo u had to be a 'one woman rnan ' and repress po ssih hmemories of pleasure spent eirh er wirh your 'one man wornan ' (also broug hr up wir h fears and gui lts abour Sl' ) Dr wir h one of rhe slave girls (even mor e sin fu l). No wonder o ur forefarhers cred ited black males w irh b ig~l' l ock s as wel l as greater desires an d sexua l potency rha n we rhoughr we were allowe d to have. No wonde r eirhc : why we projec red on to black wo me n the atrributes of in sat iabl e nymphom an iacs. Sexua l gui lt amo ng Wh ill" a nd irs projecti on on to Black s may in fact have been viral links in rhe chai n of opp ression making slavery in til!' New Wo rld into a goi ng co ncer n. My ficriou s ances rors rnust have ' k nown' ali to o well whe re he sroo d morall y in rclation to h is supe rio rs (a miserabl e sin ner) a nd - rh ro ug h h is p roject ion of gu ilt a nd longin g - in rela tio n lo xlavcs (pro m iscuous anima Is who d id and had to do ali rhe 'naughry', 'nasry' an d ' d irt y' th ings in borh wor k a nd scx). oo" (ibidem: 294),

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Iidade, força física (o qu e legitimava o trabalho forçado), superstição, lascívia (s bretudo as suas práticas expressivas) e, em casos limite, antropofagia. E na .rdade, o projecto colonial português reiterava sobretudo percepções negatii tas de caracterização sumária da alteridade de acordo com conveniências e antagens para a perpetuação da soberania nos vários territórios africanos onde a nação exercia a sua influência. Como salienta Henriques (1999), apesar da liversidade geográfica e cultural dos espaços africanos colonizados por porturueses brancos, a estruturação social local obedeceu uniformemente a ideologias de certo modo eugenistas que impunham e perpetuavam a imaginação da uperioridade racial e cultural do homem branco perante os autóctones. Esta ircunstância está desde logo patente na hierarquização tripartida da sociedade olon ial, em que a existência de colonos, assimilados e indígenas denotava a i posição de estereótipos e de rótulos que marcavam sim bolicamente a atribuição ou negação de funçõe s, lugares e estatutos (idem, ibidem). Esta classificação eria imposta pelo "regime do indigenato", que vigoraria até 1961, tendo sido rati ficado por três diplomas específicos em 1926 , 1929 e 1954 10• O diploma de 1926 classificava os indígenas como "os indivíduos de raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração e costumes, se não distingam do comum daquela raça" (Estatuto de 1926 citado em Silva op.cit.: 320). O critério étnico-cult ural (Silva ibidem) usado nesta definição além de perpetuar uma noção hom ogeneizante e essencialista da alteridade racial negra, acusa igualmente a propensão colonial do estado português que seria acentuada até à revogação do estatuto do indígena, em sequência das pressões exercidas pela ONU e com o espoletar da guerra em Angola. Henriques (op.cit.) assinala ainda vários níveis ideológicos que, articulados entre si, denotam a atitude colonial portuguesa na sua percepção e repr esentação da alteridade racial. D este modo, a partir de meados do século XIX , é accionado o pretexto da legitimidade histórica portuguesa qu e, sob a ideologia dos "cinco séculos de colonização" transitará para a estratégia colonial da di10 Foi ut ilizad o Silva (1996) na referência a estes decretos: 1) "Estatut o Políti co , C ivil e C rimi na l dos Indíge nas de A ngo la e M oçambiqu e" - aprova do por decreto n? 12533 de 23 O ut ubro 192 6 (as suas d isposições to rna ra m-se extens íveis à colónia da G u iné e aos ter ritóri os d as co m pa n hias pr ivilegiad as de Moça m biq ue e Niassa - através do D ec. nO 13698 de 30 M arço 192 7); 2) "Estatut o Pol ít ico, Civ il e C rim ina l dos In d ígenas" - aprovado po r decreto n? 16473, de 6 Fevereiro 1929; 3) D L nO39666 de 20 Maio 1954 que integrava o estatuto dos indígenas das prov íncias da G u iné , A ngola e Moçamb ique.

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no seu projecto imperialista. Esta tese seria reforçada pela in Vl'II~ ,III .III .xist ência de uma continuidade geográfica entre os diferentes territórios 11111 .1 marinos, promovendo a imaginação de uma nação portuguesa qu . se l '~ll'll d ia do Minho a Timor' ! (idem, ibidem). Esta vocação ultramarina seria a i 11.11 justificada pela ideologia da missão civilizadora dos portugueses, enCa ITl'!',111 da tarefa educadora dos povos "não civilizados", operação que pressupunh.i I o nsci ên cia da superioridade do homem branco em todos os aspectos. N« II I ro csso, a adopção da religião católica e o estatuto de trabalho pa ssa raIII ,I on stituir características fundamentais para a transição do "estado selvagem " .1 ond ição "semí-civilizad a'', uma vez que a total igualdade de estatuto soc i.i l I ra ial nunca viria a ser possível, mau grado a alteração de práticas alimcnt ;111 . de hábitos de vestuário (p.ex.: a passagem do nu a vestido"), a substit U i~ ,III de religiões africanas pelo catolicismo, e a alteração de hábitos culturais, 1111 mead amente no que diz respeito às práticas expressivas, por exemplo a proil li âo colon ial de práticas coreográficas e musicais locais, como o "batuko" l'llI abc-Verde" , ou a reserva por parte da administração colonial moçambic.uu .m relação a práticas expressivas que faziam uso de instrumentos de perClI.., são (vulgarizados e sintetizados também na expressão "batuques" ou aiml.i "ta mbores") para acompanhar práticas performativas e/ou práticas religiosa autóctones (Sá-Marques 2007). Ainda na sequência do raciocínio de Henrique (op.cit.), a inacessibilidade das populações autóctones à educação superior ( li I mesmo básica) acentuava e perpetuava a sua condição de subalternidade em n : la çâo ao homem branco. Este aspecto concorria para que o aparelho dominadi li olonial pudesse perpetuar a ideologia de uma superioridade natural do colom I perante o colonizado (sendo por vezes inclusivamente aceite e reconhecida P( li .sre), acentuando uma hierarquização somática que justificaria uma série de o mport am entos que reforçavam a dominação e a humilhação do colonizado e a construção de fronteiras sociais (p.ex.: proibição do africano olhar uma mulher branca de frente) e espaciais (p.ex.: as cidades passam a ter zonas res 'r I ad u ra

I I Perspectiva co nde nsa d a no sloga n Esrado-N ovisra "Po rt ugal não é um país peq ueno " (He n riq ues ibidem: 2 1')), I ) Apesar d a to ler ância e int eresse por pa rre da po pu lação bra nca pelo nu do s troncos femin ino s - o qu e viria a M ' I lim a rcrnririca co ns ta nte no artesa na to das popu lações au tóc to nes no perío do colon ia l, so brerudo nas escu lt u ra, .u u ro po m ór ficas frequ entem ente designada s no léxico co lonia l por ma nipan ços. I J Em abc-Verde, esre rerm o design a um géne ro mu sica l e co reográ fico co lect ivo, qu e envolve o ca nt o, a dan ça (' a ex ec u ç ão de instru mentos de pe rcussão por eleme ntos femi ni nos (cf. Rib eiro , no prel o).

Modernidade, Tran gressão Sexual e Percepções da Alteridade Racial Negra na Recepção do Jazz em Portugal nas Décadas de 1920 e 1930

a las a autóctones e outras a brancos, de preferência remetendo o negro para spaços míticos do "m ato" ou da "selva"). A partir das primeiras décadas do século XX, a crescente disseminação a 11 ível global de produtos e de práticas de entretenimento de origem africano-a mericana (cf. Baxendale 1995, Lotz 1997, Shipton 2007, e.o.) vêem acentuar , d iversificar os discursos e as percepções em relação à alteridade racial negra -m Portugal. Mendes (no prelo) realça que na Europa desse período, a recepção ci o jazz , a par da reavaliação das manifestações estéticas africanas (nomeadamente por parte de alguns movimentos artísticos), foi determinante, tanto para a consagração de uma identidade moderna baseada no cosmopolitismo, como para a consolidação de percepções sobre a natureza dos "negros" afectadas por I arad igm as de teor prirnitivista'". Ou seja, além da sofisticação associada às man ifestações expressivas africano-americanas, a modernidade vem acentuar a carga "posit iva" associada às manifestações estéticas africanas e das culturas da Oceânia, centrando o interesse na "negritude" e nas manifestações tribais (cf. Archer-Straw 2000). Trata-se, neste caso de uma idealização romântica com procedências situadas no que Geertz (op. cit.) apelida de primitivismo cultural", caracterizado por conferir ao homem não "ocidental" (tropo para "n ão civilizado") uma personalidade inocente e pueril em contrate com o homem branco, cuja superioridade tecnológica e civilizacional o distanciavam do estado de pureza primordial". Esta perspectiva viria também a ser apropriada nas os

14 Geerrz (2004) ap lica a expressão "a no ny rnous ideology" à noção de primitivis mo, exacta me nte po r este conceiro fu ncionar co mo defin ição po r defeito (ou definição ge ral) par a mu iras linhas de pen sam ento acerca de soc ieda des e povos d itos "pri m itivos". É a plural id ade de pe rspecrivas associadas a esse co nceito qu e possibilita a vulgarização do seu uso ca rregado de co norações contradirórias (carac reriza das co mo posirivas ou negativas), consoante as linhas de pensa mento qu e lhe se rve m de base. Envo lve ass im co rre ntes que percorrem o pensam ent o euro pe u des de as épocas cláss ica, med ieval e mod ern a, culm ina ndo no in ício do séc ulo XX nas ideo logias de dar w ini smo socia l herd ad as do séc u lo X IX (com co no rações negat ivas na caracrerização do "o ut ro" ) e do "primitiv ismo mod ern o" deved or de di sp osições rom ânt icas em relação às soc ieda des e cu lru ras extra euro pe ias. 15 N a seq uê nc ia da siste matizaçã o aprese nta da por G eor ge Boas e Ar thur Love joy, 16 Esra persp ecri va esrá a ind a associa da à crença (poss ivelme nte co m fund am ent a ção religiosa) de q ue u ma civilização ma is pu ra, gen u ína e narural já rer ia exisrido a lgu res no passad o da ex istê nc ia h um a na, pelo qu e nesra lógica os povos prim irivos o u selvagens, sobrerudo de luga res lo ngínq uos e ex óticos , esta ria m assim ma is próx imos do modelo idea l de ex isrênc ia. Esre tipo de repr esentações pod e estar tam b ém associado a lin has onto lógicas de pen sam ento mais ala rgadas qu e co nce be m o pro cesso hi srór ico d a raça hum an a num rempo finico (teor ias de decad entism o) ou num rempo in fin iro (e por vezes cícl ico) (cf. Gee rrz ibidems.

239

ea.,

Pedro Roxo

retóricas visuais e literárias de alguns movimentos artístico, como o Cubismo' ' ou o Dada ísrno", nos quais a cultura material africana e a música popular afri cano-americana forneciam inspiração criativa e argumentos que potenciavam a celebração da nova idade moderna, servindo simultaneamente de oposição aos cânones art ísticos, culturais e mesmo civilizacionais herdados do século XIX (Tomlinson 1992).

Modernidade, Transgressão Sexual e Percepçoes da Alteridade Racial Negra na Recepção do Jazz em Portugal nas Décadas de 1920 e 1930

." UNICOS sem ruido '?~~~~~S d e agulha c u Panc ad ll,

v'o Amar ante, e te ,

REPORTORIO AMERICANO E INGLEZ :

Se em França o gosto pelas "coisas negras" dava lugar à "negrofilia" - a vasta produção literária dedicada à cultura negra nas décadas de 20 e de 30 (Clifford citado por Mendes 2002), o jazz e as formas coreográficas que lhe estavam asso ciadas constituíam uma das facetas mais visíveis da modernidade disseminada globalmente a partir dos EUA, ao ponto de passarem a constituir autênticas metáforas sonoras para os processos de "am erican ização" do mundo então em curso (Ferro 1924; Brown 2005, e.o.). Em Portugal, a análise da documentação e dos discursos produzidos na época (na imprensa, em novelas, etc.) sugere que o termo "jazz" passou a constituir uma definição geral que albergava vários produtos musicais de circulação global e de proveniência africano-americana (ou a ela associados pelos discursos da indústria e do jornalismo), frequentemente percepcionados e caracterizados também como "música sincopada", "m úsica moderna", "música americana", jazz-bana, ou por nomenclaturas estilísticas específicas (p.ex.: foxtrot, charleston, etc.). Por vezes, outros produtos musicais disseminados internacionalmente (p.ex .: tango) ou resultado de experiencias locais de apropriação de algumas características musicais de estilos importados (p.ex.: fadojoxtrot) eram por vezes integrados também no âmbito geral do que se denominava por jazz, ou música de jazz-band (sobretudo quando se verificava o uso do então novo instrumento que simbolizava a modernidade:

17 No caso do cub ismo , a in fluên cia d a escultura africana em Pabl o Picasso é evide nte e assu m ida no seu programa pictór ico . A pintura Les Demoiselles D 'Avignon (1907), co nsti tu i um dos exemplos mais pa radi gm át icos desta di spo sição. 18 Por exemplo a pro pos ta de " Ia nguage-ragtime", do dada ísra berl inen se, Wa lter M eh ri ng. Par a mais exem plos respeitantes ao d ad a ísrno e a o ut ros moviment os artíst icos d a época, co nsu lta r Rasul a (2004) .

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Jazz e a disseminação de novas formas de entretenimento associadas a uma emergente cultura popular de massas.

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Fig. 1- Anúnci o da Columbia Records , Diário de Lisboa , 25 Nov. 1926.

a bateria). Denotando processos semelhantes de associação, os estilos coreográficos de genealogia africano-americana (p.ex.: turkey-trot, black-botto,,!, on~e­ step, charleston, lindy-bop, etc.) eram usualmente agrupados sob a denominação "danças modernas" (categoria que podia ainda integrar estilos de origem não africano-americana, como o tango argentino ou o maxixe brasileiro, e.o.). Por estas raz ões, torna-se clard que os estudos de recepção do jazz sem a necessária art icu lação com a análise sobre o papel das indústrias fonográfica e das tecnologias de reprodução musical (que potenciam a comercialização de fonogram~s e o surgimento de novos estilos musicais), correm o risco de perpetuar estereotipos e perspectivas limitadas sobre o efectivo impacte social das músicas e das danças modernas agrupadas sob o conceito "jazz". O anúncio da editora Columbia Records, permite levantar algumas reflexões no que concerne à disseminação da indústria de fonogramas em articulação com a comercialização de tecnologias de reprodução mecânica da música em Portugal. A referência e a imagem central da Grafonola (aqui destaca~a como um novo modelo capaz de reproduzir a música de um modo fiel, permItindo a ilusão exacta da realidade), faz colocar a ênfase principal na tecnologia. Este novo aparelho é apresentado como uma inovação musical capaz de ler "sem ruído de agulha" os novos discos produzidos pela editora através do processo da "gravu ra eléctrica" - uma inovação tecnológica relativamente ao anterior processo de "gravação acústica" dominante até 1925 (Mumma, Rye e BK 2001). A ilusão completa da realidade (fonograma com maior fidelidade) constitui um 241

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arra tivo apresentado aos consumidores para a aquisição deste novo eqll il'" mcnto, num período em que o incentivo ao consumo privado de m úsi a dn.l .1 ava o conforto da audição passiva, individual e repetida dos artistas favol illl omo argumento de peso. Nesse sentido, são indicadas novidades fona gr:ílil .1'. d " uma assinalável diversidade musical, de modo a estimular o desejo de aq III si âo'", São assim sugeridos vários artistas do catálogo da editora, publi ':1( 111 ou distribuídos em Portugal. Além de nomear alguns artistas locais ligados ,III fado e ao folclore, o anúncio faz ainda referência a fonogramas de reperuu iII' musicais de circulação internacional (ópera, tango, zarzuela, etc.), várias I ipll lagias de música instrumental (trios, solos, orquestras) e a artistas de origl'lIl anglo-saxónica (sobretudo norte-americana), alguns deles associados a tipoln gias musicais integradas no âmbito geral do que se percepcionava em Port 111'..11 orno jazz20 , jazz-band, ou categorias associadas como as indicadas mais at r.is. O s fonogramas da fig. 2 constituem um exemplo material da apropriaça« local (ou acomodação comercial, consoante as perspectivas), de produtos cult II Este anú ncio co nstitu i um modelo exem plar do processo de tra nsformação d a mús ica em bem d e co ns u mo I do s mo dos de re i ficaç ão q ue estão associados a esse processo. Adicionalmente , a estratégia publicit á ria percel'l í VI I neste anúncio per m ite rea lçar a crescente im portância e inte rfe rê nc ia d a ind ústr ia pu bl ici tári a na co nso lida\ .111 de um a cu lt ura d e m assas e de um a socieda de de co ns u mo eme rge ntes nas pr im eir as d écad as do séc u lo X X (I I Tay lo r 20 07, par a o exe m plo a me rica n o). 20 Não foi possível co nfirma r a filiação d e todos os grupos mu sicais a nu nciados, m as ainda assim é rclcvanu indicar qu e, apesa r do du o inglês T rix Sisre rs p oder inseri r-se na ca tego ria do mu sic-h all o u de u m repc ru u iII de ca nç õ es qu e co nstituíram sucessos de teatro, ag ru pamentos co mo os de Ted Lewis a nd His Havana Balld . T ro uba do urs (Sa m La ni n's Ip an a T ro ubado u rs, tam bé m co n hec ido s ape nas p or lhe Ip an a Troubado u rs) e '1111 J icq uo t C lu b Es k irnos , es tão ass ocia d os à mú sica pop u lar a me rica na dos a nos 20 , nomead am ente ao s eSIilm d ireccion ados par a os sa lões d e d an ça. É d e salie nta r qu e a gra nde m aio ria dest es ag ru pa me ntos era m cons tlru úl.... por m ús icos b ra ncos (exce pção co nfi rma da par a o du o d e m usic-hall, Lay ron a nd j ohn sron e) e, no caso d os dm ' lh e C licq uo t C lu b Eskimos e d os T rou ba dours, int egr ava m in cl usiva me nte a American Federation of Mu sic i an s, apo ntada co mo um dos si ndicatos m ai s seg regacio nistas na American Federar io n of La bo u r po r os g rul' "\ m usicais se us associados não integra rem mú sic os negro s (Ba rlow 1995). Provavelm ente não se tr at ar á d e Ulll •• tend ência seg regac io n ista por parte d a C olu m b ia Reco rd s, u m a vez qu e esta ad q u iriu, em 1926, vá rias ed ito ras d.' Racerecords (ed ito ras inde pe nde ntes a me rica nas, especializa das n a g ravação e co me rcia lização de fo nog ra mas d i' g rupos c ult urais mi noritários, nomeada me nte fonogra mas d e ag ru pa me ntos negros), como a ed ito ra Okeh (Iu n dada po r O t to H ein em an , cuja compa n h ia es tabeleceu co labo rações co m a edito ra alemã Lin dstrõrn a pa rti r d i' I I - Gro now 2008) , d isp onibil izando co me rcia lme nte o se u ca tá logo . Seg u ndo Lo pes (20 02) um ag ru pa me nltl b ran co como o de Ted Lewis era pa radig má t ico d a t ipo log ia d e fo rm ações br an cas qu e su rg ira m na sequ ênc i.1 do sucesso da Origi nal Di xieland Jass Band , miti ficad a na hi st ória co mo a respo nsável pel a g ravaçã o d e um dm prim ei ros reg isto s fon ogr áficos de j azz (Livery Sta ble Blues, Vic tor Ta lk ing M achi ne Com pa ny, No va York , 1917) e o nsriru ída unicam ent e por mú sicos bran cos. O a lega do sucesso co me rcia l desse fonog rama ter á const it u ind o 11m ma rco pa ra a recepção in icial d o jazz ent re au d iênc ias b ran cas (idem, ibidem: 50) . Pa ra referênci as a o u tr os fono gra mas gravados na mesm a alt ura po r ag rupamentos de jazz, ver She ridan (2001) . I')

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Modernidade, Tr n gressão Sexu I Percepço s da Alteridade Racial Negra n Recepção do Jazz em Portugal nas Décadas de 1920 e 1930

Fig. 2 - Fonog ramas editados em Portugal com indicações de tipologias musicais de influê ncia africano ameri cana (datação incerta). Fonte: Base de dados de fonogramas históricos. Instituto de Etnomu sicolog ia - FCSH, Universidade Nova de Lisboa . [Arranjo e composição das imagens : Diogo Barreiras]

rais, ou da indústria de entretenimento, que circulam globalmente: uma canção, Dança dos Patos, categorizada como um black-bottom e interpretada por uma Orquestra Típica Portuguesa (tam bém apresentada como uma orquestra de dança) ; e outra canção, S. João das Fontainhas, categorizada como um onestep popular. Associados à industrialização, à velocidade e à disseminação de inovações tecnológicas (como o carro e o avião), ao desenvolvimento e disseminação de tecnologias de reprodução musical (gramofone, grafonola, rádio, autopianos), os estilos musicais e coreográficos africano-americanos são usados na estratégia comercial das editoras fonográficas que associavam frequentemente referências de um estilo de dança moderna aos estilos musicais aut óctones " (p.ex.: fado com o foxtrot), gravados e comercializados localment e, de modo a 21 A ex istê ncia d e rep ertór io m u sical q ue co mbina tradi çõe s mu sica is portuguesas com estilos de m úsi a popular africa no-a me rica na (ex.: fado-s low; fado -foxtrot; co rrid in ho -01Ie stcp; m ar ch a-s ue step, etc.) e co m o u tro s est ilos de di ssem in ação inte rnacio na l (ex .: fado-ta ngo) co ns ti t u i m ai s um indicad or da c resc e nte in fluê n ia de um a in d ústr ia mu sical eme rge nte na exp lora ção não ape na s d as po te ncia lidades do s mercad os loca is (por exem p lo a c rescente g ravação d e fado por parte d e ed ito ras est ra nge iras a op erar em Port ugal o u co m co nt raro s de co labo ração com ed itoras portuguesa s), m as ta mbém na c riação e na p ro moção de produtos mu sicais h íbridos. I e facro , se a mi scige nação d e m úsicas sem pre foi u m a consta nte na p rod ução d e m úsica pop ular (e não s ó u m po uco por todo mu nd o o nde se d er am trocas c u lt u ra is e civilizacio na is, a ind ústr ia mu sical (so b ret udo at ravés d a d issemi nação rnassificad a d e fo nogra mas) veio evid encia r e acele rar um a sé rie de p ro cessos qu e oco rre ra m desd e se m p re. N u ma o utra linh a de reflexão , p o ré m , a ap lica ção do conceito de hi b rid ism o a m u ito s desses prod utos mu sica is necessita rá d e a lgu ma ponderação, uma vez q ue, pelo menos na lguns casos, a mi scigena ção co m es t ilo mu icai s africa no-ame ricanos pa ssava a pe na s pela categoriza ção apli cada na et iqueta do fonograma , po ssivelmente por razõ es co me rciai s.

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potenciar o desejo de aquisição por parte do consumidor (num período ' 111 qlll a música moderna para dançar se tornara uma rnodar' ". Esta estr atégia pOdCII .1 servir igualmente para indicar o estilo rítmico apropriado, ou sugerido, P:II:1 .1 interpreta ção da melodia gravada, sobretudo por parte dos conjuntos mu sir nl qu e recorriam aos fonogramas para ampliar o repertório. A indústria musical emergente terá estimulado e também sido supo rtud.i por toda uma indústria de entretenimento desenvolvida em torno do teatro dl' revista e de eventos dançantes, nomeadamente os night-clubs - o que por SII .I vez potenciou a ampliação do mercado dos músicos. Estes espaços de divcrsno nocturna proliferaram em Lisboa a partir dos anos 20 (à semelhança de out r:l ~ apitais europeias), mantendo jazz- banas residentes de modo a animar a cliente la nocturna com "música para dan çar'f". O mercado das jazz-banas seria aind.i alargado a outros espaços de lazer (restaurantes, hotéis, casinos, termas) qllc adoptavam as novas formas de entretenimento, sobretudo os bailes de "da nç as mod ernas ". Apesar do repertório executado pela grande maioria destes agrupa rnentos incluir várias categorias musicais associadas às pistas de dança (v ários estilos de música sincopada de tradição africano-americana, valsas, tangos, nU'1 sica latino-americana, etc.), o termo jazz enquanto referência que resume o cs pírito de uma época (nos media, nas referências literárias e artísticas), tornou-sr ta mbém, como sugerido anteriormente, a referência genérica para englobar vârios dos novos estilos de música popular difundidas globalmente num mercado rnassificado, a partir de uma indústria de entretenimento corporativa, transnacional, baseada num novo sistema de produção mus ical associado às tecnologia s de reprodução massificada da música.

2

Out ra fo rma de apropriação d a música e das danças modernas assinalou-se no teatro de revista, uma vez ql1l' vririas peças passaram a integra r rotinas de danças mo dernas nos se us argumentos (p .ex .: Sete e Meio, 1929? - r. fig.3), o u usar am a te mática do jazz co mo mo te pa ra a lego rias e críticas aos cos tu mes d a época (p.ex.: Viva oj azz. 1931). Des te mo do, o teatro de rev ista su pr ia-se com novas fo rmas de entreten imento (apropriando prát icas expressivas em voga no domínio da cultu ra popular), num períod o em este gé nero de espectácu lo, enquanto sistema de prod ução, se co nsolidava e afirmava crescentemente no circuito do entretenime nto pop u lar português. 2:\ Para u m a aná lise dos ni gh t-clu bs lisb oet as nos a nos 20, cf. Bar ros 1990.

Modernidade, Transgressão Sexual e Percepçoes da Alteridade Racial Negra na Recepção do Jazz em Portugal nas Décadas de 1920 e 1930

Fig. 3 - "Quadro do Charleston", do teatro de revista Sete e Meio (Notícias Ilustrado , 24 Fev. 1929). Fig. 4 - Orquestra Remartinez (versão jazz-band) , fotografada aquando de uma digressão na ilha da Madeira , 1927. Músicos: Francisco Remartinez (violino) , Santos "Preto" (piano), Portugal (bateria), Caíres (contrabaixo), Belo Marques (banjo) , Henrique Neves (?) (saxofone). Espólio de Nini Remartinez

A Orquestra Remartinez con stitui provavelmente o exemplo paradigmático das "orquestras de jazz" 24, ou de "música moderna", denominadas frequ ent emente em Portugal por jazz-bana ou jazzes entre os anos 20 e 50 (nalguns casos até mais tarde). A fig. 4, manifesta a crescente importância destas formações no meio musical lisboeta" (e português) já em meados dos anos 20 . Ao longo dessa década, a par da exibição de espectáculos com art istas e

24 Cf. Martins (2006) para uma descrição de outros agrupamentos deste género. 25 A Orq uest ra Remartinez era residente no Palácio Mayer (Av. da Liberdade, Lisboa) , mas actuava igua lmente em cas inos e ho téis espalhados pelo país. O líde r do grupo, Francisco Rernarrinez (violino) desempenhava simu ltaneament e a fu nção de pr ime iro vio li nis ta da Orquestr a Sinfó nica d e Ped ro Bla nc h (u ma d as pri ncip ai s Fo rma ções lisb oetas de música erudita) (Rernar rlnez 2007). Os resta nt es músicos provin ham tanto do circuito da m úsica erudita como do da música popu lar. Belo Marques (banjo) e António Melo (p iano) (membro do grupo mas ausente nesta fotografia), viriam a desempenhar funções de relevo na emissora radiofónica do estado (Emissora Na cional) a pa rt ir d os a nos 30, d esemp enha ndo u m pa pel activo na co nst rução de um id ioma mu sical nacio na l. m a is tarde agrupado na categoria d e música ou canção ligeira (sobre música ligei ra em Portuga l. cf. astelo-Brunco 200S; Castelo-Bra nco, Cidra e Moreira, no prelo). A presença de um pianista ncgro neste agrupamento (enquadrado, talvez sintomaticamente, na versão "jazz" do grupo) não deve ser tida como norma na esfera m usi ca l portug uesa da época. D e facto, tes tem unhos acentuam a ra ridade da presença neg ra em Lisboa (Rernar rincz ibi d e m ; Sá-Ma rq ues, op.cit.), incl usiva me n te nos night-clubs o nde se d an çavam os est ilos d c mú sica afr ic;~ llo -a merica lla (Sá-Ma rques ibidem). O pian ista em questão, originá rio de u m a das ex-colónias portuguesas em África, exerceu actividade nos ci rcuitos musicais lisboetas até vir a falecer, no final dos anos 20 (Rcrnarrincz ibidcm). Acentuando a singu laridade da sua alterida de racial, o seu nome (Santos) inclu ía a alcunha "Preto", pelo qual era conhec ido (Sa ntos " Preto"), sublin hando d irect a m ent e a sua d issernel ha nça racia l c m relação ao padrão b ran co.

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Fig. 5 - Capa de A Idade do Jazz Band, de António Ferro , Lisboa , 1924.

Modernidad e, Tr n gressão Se xua l e Percepçoc s da Alterldad e Raci al N gra nr Rec ep ção do Jazz em Po rtugal nas Décad as de 1920 e 1930

com pa nh ias est rangeiras de passagem por Porrugal" . do gradual aumento do consumo de fono gramas, 'd :l ~ emergentes emissões de rádio, estes agrupam entos IlH ' di avam também a exp eriênci a da s novas tipologias 11111 sicais entre a população portuguesa. Além do rep ert ór«I de origem africano-americana maioritariamente asse) ciado a estilos de danças, este agrupamento interpretava um repertório misto de sucessos musicais disseminados internacionalmente através da indústria fonográfica e de' música impressa, e também sucessos locais. Pelo atrás exposto, torna-se claro que o conceito "jazz" era bastante inclusivo nos anos 20 , não servindo apenas para designar a mú sica disseminada através dos fonogram as do s primeiros agrupame ntos de americanos negros associados ao que começaria a ser caracterizado por alguma crítica francesa influente (p.ex.: Hugues Pa na ssié - n.l912-m.l974) como "verdadeiro" jazz (p.ex.: N ew Orleans Rythrn Kings, King Oliver's Jazz Band , Louis Armstrong's Hot Seven, e.o.). A diversidade de sentidos resultava das diferentes experiências de recep ção da cultura popular de massas de orig em norte-americana, sendo estimulada pela combinação do impacto das inovações tecnológicas (que promoviam novas formas de audição musical, pública e privada) com os pro dutos e os discursos disseminados pelos media, a as con tingências de ordem local (que incluem as interacções, por vezes complexas, entre circunstâncias locais políticas, sociais, culturais e a própria infl uencia do agenciamenta individual de cada consumidor).

26 Algu ns dos a rtis tas a frica no-a me rica no ou associado s às práticas de ent reten ime nt o mod ern as q ue ac tuara m em Po rtugal no fina l dos a nos 20 e in ício dos a no s 3 0 incl uem: o gru po a merica no Rob inson s's Sync opa rors; M aud de Forcsr, Lou is Do ug las e a sua Revu e N eg re co m o espec tác u lo Black Fo llies, 9 Sisrers G rill, Revuerre Jazz o rre-Am eri ca na (q ue incluí a Lu lu Go uld , Lirrle To psy, Bay Bel, Ba lf G rayso n, lhe Blue Rib bon s j azzBand , e.o.), H a rr y Flemm in g, l h e Six Londo n G irls, etc.

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Jazz como modernidade: A Idade do Jazz Band, de António Fe rro Com efeito, a publicação de A Idade do jazz-Band em 1924, viria a mar 'ar uma parte substancial das percepções e dos discursos sobre jazz em Portugal ao longo dos anos 20 e, provavelmente, até meados do século. XX , p~i s é possível decifrar alusões indirectas a esta obra tanto em trabalhos jornal ísti 'os da época como em d iscu rsos dos mais críticos em relação ao jazz (sobretudo ind ividualidades da Igreja Católica) ao longo das décadas seguintes. Ap esar de não constituir um discurso analítico sobre o jazz, o texto de António Ferro (n.l 895-m .l956) evidencia formas de percepcionar a contemporaneidade que fazem uso da música e das danças modernas como metáforas da mudança civilizacional em curso. As analogias com o jazz e com as danças modernas, denotam modos de percepção e adopção de novas poses, atitudes conceptua is e relações com o corpo, que estabelecem uma fractura com os cânones vigentes até então e evidenciam modos de apreensão de novos modelos civilizacionais marcados pela industrialização e pela massificação. O texto articula també l~l as transformações da época, conciliando temáticas como a emancipação ferninina, a moda, a sociedade de consumo e as inovações técnicas, com referências às vanguardas art ísticas e literárias, aos Ballet Russes, ao cinema e, sobretudo, às danças mo dernas e ao jazz. Este conceito musical (já com Ferro percep cionado e referenciado pelo termo jazz-band) é, de resto, empregue no texto como metáfora da vida moderna devido ao paralelismo que o autor encontra entre o improviso, a espontaneidade, a artificialidade, a proeminência do ritmo (acelerado) do jazz e o ritmo das vivências mo dernas, numa espécie de triun fo da emoção sobre a razão : «A revolu ção est á em ma rcha (. .. ) O jazz-bana, fre n étic o , d iab ól ico, destram belh ad o e arde nre , é a gra nde fornalha d a hu m anid ad e (. . .) O jazz-bana é o rriunfo d a d issonân cia, é a lou cura insriruída em juízo universal, essa ca lu n iada loucura qu e é a úni ca reno vação po ssível do velho mundo ... Se r lou co é ser livre, é ser como a inr eligên cia n âo sabe mas co mo a alma qu er (lO .) N o jazz-bana, como nu m écra n, cabe m roda s as imagens da vida moderna. C abe m as ru as barbári cas das gra ndes cida des , ru as do ida s .o m olhos inconsranres nos placards luminosos e fugi d ias, ru as eléc rr icas , ru as possessas ~IL­ auromóve is e de ca rros , ruas onde os cine mas m aquilhados de ca rrazes t êm at it ude s k lin as de mund an as, conv ida ndo- nos a enr rar , ru as fero zes, ruas panr eras, ru as Iist r.ulas nas rab oleras, no s vesr idos e nos griros (...) C ab e rod a a Arre, a Arre de hoje qU l: (( ' I1m :I , qu e grira , qu e ri, qu e sabe beijar, qu e sabe vibra r, qu e sabe morder. .. E cabe a PI'I "llI'i:l

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Vid a, a vida industrial qu e é um j az z -band d e roldan as, de g uindas tes c mo to res, ,I vicl .1 o mercia l qu e é um sud-ex p ress, a vida intelectual onde as pal avr as pen sam por ~1. To da a Vid a, tod a a Arte, todo o U n iverso, cab em no jazz-bana». (Fe rro 1924: ') I ')

o discurso de Ferro é igualmente relevante para a inventariação de di Ic rentes estilos coreográficos em circulação na época. A caracterização qll . de senvolve deixa ainda adivinhar a percepção do autor em relação às então d '1111 minadas "danças modernas" para a imaginação das vivências da modernidade , As comparações com as normas morais e de sociabilidade da época permitem decifrar que o impacto das novas práticas expressivas gerou novas formas d(· int eracção entre géneros, novas atitudes e poses, ligadas a estilos de vida urbn nos, abrindo caminho para o estabelecimento e profusão de relações sensua b e mundanas: «A valsa é a d an ça senti me ntal, rom ântica, a valsa tem o ritmo d e u ma declar ação dI' amor. .. Na valsa há ainda uma certa ti mi dez . O homem leva a mulher no s braços, co rno um cri stal. .. O s corpos a nd am pró ximos, próximos mas preo cupados , os corpos a nd. u u ainda muito alma .. . N o [ox-trot, porem , já não há romantismo, já não há timidez, h.1 despreo cupação, aleg ria, camaradagem . O fOx-tr ot é a da nsa bo émi a, estouvada, a d an :1 baloi ço , a dan ça qu e não se importa, a d an ça qu e não pen sa no di a d e ama n hã... Arno: nascido numa valsa é amor qu e casa, amor par a sem p re. Amor nascido no fox-rror é a mor qu e morre no fox-t ror , amor qu e du ra um beijo ... O one-step é, porém , a mais perigosa d as d an ças po rqu e é o rapto ... H á mulheres qu e fogem num one-step, como num au to mó vel. Um a mulher num one-step é um a mulher em viagem . . . O tango é uma dança qut' é um jogo de paciênci a, uma d an ça inofensiva por ser dem asiado geomé t rica, uma dan ça tira-linhas.. . O maxixe é uma alia nça de corpos. E finalm ente o scbimmy, é a d an ça livre, a d an ça em qu e os braços e as pern as se enc ont ra m como ca ma radas e se em briaga m ju n tarnente no Champan he dos gestos, no ópio do s olhos furiosos , na electr icida de metálica dos corpos. O schimmy é a d an ça bo lchevist a, a d an ça qu e socia liza rod as as partes do cor po, qu e as to rn a igu ais, qu e lhes d á a mesm a im portân cia, a mesm a funçã o de aleg ria e aba nd ono. .. l>. (Ferro, ibidem: 61-6 2).

o autor percebe e acentua ainda a proeminência da América do Norte no mundo do pós-guerra e, sobretudo, a sua influência na Europa ao ponto de destituir os cânones civilizacionais do velho continente a favor de estilos de vida modernos, na sequência dos processos desencadeados pela industrialização. jazz é assim apresentado como a melhor expressão desse novo processo civili248

Modernidade, Transgressão Sexual e Percepçoes da Alteridade Racial Negra na Recepção do Jazz em Portugal nas Décadas de 1920 e '930

zacional, como se constituísse uma espécie de banda sonora da modernidad e e da própria americanização: «O jazz-bana, natural d a América , em igro u par a a Eu ropa, como já tinha em igrado o tango. O qu e a Eu ro pa tem, ac tualme nte, d e mais eu rope u, é, portanto ame rica no. E, ent retant o, é cu rioso: A Amér ica, qu e vib ra toda no rit mo do jazz-bana, qu asi não d á pelo jazz-bando A Eu ro pa en velh eceu , teve um aba ixa ment o de voz com as emoç ões da gue rra. A Eu ropa lembrava um sopra no líri co em decad ênci a. Foi a América qu em lh e valeu, qu em lhe injectou, nas veias mu rch as, a vida artificial do jazz-bandoPor sua vez a Eu ropa, ensinou à Améric a as virtudes desse remé d io, deu-l he relevo, ape rfeiçoou-o. A Améric a, minhas senhoras e meus sen hores, é o momento d a Europa. Simplesm ente o que na A mé rica é, vulga r, natural, quotidi ano, na Eu ropa é arti ficial, esca nda loso, apoteótico... Na A mé rica, o jaze-bana é uma ma rcha . Na Eu ropa é um hi no . A Eu ropa desmo rali zou, ad m iravelme nte , o jazz-bana pôs febr e onde havia saúde . O jazz-bana en louquece u na Eu ropa, como - valha a liberd ad e - o tan go tomou ju ízo... A Eu ropa assustada pela sirene lúgubre, no pavor do s aviões inim igos, viveu, na tr eva, durante a guerra . O jazz-band foi a sirene d a Paz. A América, m in has sen horas e me us sen hores é, neste momento, a luz eléctrica do mundo! (...) O jazz-bana é o dogma d a nos sa hora. Nós vivemos em jazz-bando Sofremos em jazz-bando Am amos em [azz- band» (idem, ibidem : 64 -66 ).

Porém a característica sensual, emocional e excessiva das danças e do jazz-band que caracterizam o novo estado civilizacional é por Ferro reconhecidamente atribuída ao primordialismo dos negros e à sua arte instintiva. Apesar da alegada apropriação de práticas expressivas africano-americanas por músicos brancos e por uma indústria discográfica controlada por brancos, Ferro conhecia a ascendência das expressões artísticas negras em diversas manifestações artísticas europeias suas contemporâneas (nomeadamente no domínio das artes plásticas). Especialmente a escultura africana fornecia motivos de inspiração e de renovação, por via de uma retórica que ligava a capacidade de síntese da "art e" do continente africano a um estado de pureza primordial do negro e das suas "culturas" (cf Rasula op.cit.). A alusão a uma essência negra, que se manifesta pelo instinto e pela síntese é outros dos estereótipos primitivistas usados por Ferro para positivamente associar "art e" moderna e a "art e" africana, realçando e acentuando a oposição entre negro/instintolsíntese/pureza-primordial e brancalrazãoltecnologialcivilidade: «A influencia d a a rte negra sob re a a rte modern a torna-se indiscu tível. A arte modern a

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a s ín rcsc . s negros tivera m sem pre o in stinto d a sí nrese. O s negr os 11 ar.u u 11.1 III r:l ncia - par a ficarem na verda de . A criança é a ab rev iatu ra da Natureza. As ri:lllI,.I·.. os doidos, e os negro s são os rasc u n hos d a Humanid ad e, as teses qu e D eus desenvo lve u e co m plico u. N ão há escu lt ura de Rodin qu e tenha a verd ad e de um m a nip a n ço . l lI l l. l cs u ltu ra de Rodin é a ex pressão máxim a. Um m anipan ço é a exp ressão mi n imu. 1\ verd ade está no esboç o d a obra - não está na obra . Ob ra aca bada é o bra morra. (. .. l ( I [azz- bnnd é o irmão géme o do manipan ço. O jazz-bana par ece-se co m a nossa ~ P ( II .1 co rno um manipan ço se par ece com um negro. O triunfo do jazz- band dep end e. ~ C I brerudo, do s exec uta ntes qu e têm de ser negro s no co rpo ou na alma . . . O jazz -baud (' .1 Africa do ritmo (...) U m fox-trot, no jazz-band, é um a sanza la em del írio. O ja zz-IM I/'! a o rq ues tra do s gritos inesp erado s do s silvos, do s assobios.. . O jazz- bana é a o rqu l'sll .1 q ue melh o r dá o co nt rac to do Homem e d a M u lher.» (ide m , ibidem: 69-70). é

Adicionalmente, não deixa de ser importante realçar que, ao longo de roch I () texto, apesar do autor patentear uma percepção do jazz enquanto forma s,' .xpressão africano-americana não deixa apesar disso de empregar metáforas as so iadas às culturas especificamente africanas para caracterizar este estilo 11111 si ai (p.ex.: manipanço, sanzala, África do ritmo, batuque, etc.). É possível qUl' .sre tipo de dedução poderá estar associado a uma percepção do negro e das suas práticas expressivas, mediada, em larga medida, através da exp eriência dos portugueses nas colónias africanas, além das óbvias alusões a África e à afrianida de características dos discursos primitivistas em circulação na Europa das primeiras décadas do século XX. É, no entanto, importante assinalar qUl' () argumento que associa a prática expressiva à condição racial ("o trunfo do " jazz-band " depende, sobretudo, dos executantes, que têm de ser negros ..."), passou a integrar a cartilha do mito moderno da música dos africano-amerianos e constituiria um dos argumentos empregues por alguma crítica para qualificar e diferenciar o "jazz hot" (jazz com maior ênfase na improvisação c 11 0 desempenho solista, maioritariamente executado por negros) da maior parte la apropriações brancas desse estilo musical (jazz conotado com interpretações direccionadas para pistas de dança ou para sucessos da rádio, com menor espaço para a improvisação e menor originalidade dos arranjos orquestrais - por vezes

Modernidade, Transgressão Sexual e Percepçocs da Alteridadc Racial N gr I n I Recepção do Jazz em Portugal nas Décadas de 1920 e 1930

. )n. ategorizad o como sweet mUSlC Jazz, Transgressão e Contestações sobre o Corpo. A perspectiva de Ferro combinava-se com outras percepções que eram correntes na época, como o já indicado estereótipo da hipersexualização do negro e a curiosidade que ela despertava no branco - assunto particularmente explorado em três das várias novelas dos anos 20 e 30 que aludem ao jazz, às danças modernas e aos círculos mundanos dos clubes: Preto e Branco, de Reynaldo Ferreira (1923); O Preto do Charleston, de Mário Domingues (1930); e A Baila rina N egra, de Guedes de Amorim (1931). Independentemente da qualidade literária destas fontes (argumento por vezes mobilizado para a sua desautorização), trata-se de um conjunto de discursos ficcionados produzido s por autores masculinos da sociedade branca e metropolitana, mas que permitem entender ou intuir algumas das representações dominantes relativamente à alteridade racial, nomeadamente perante a crescente disseminação de formas de entretenimento de procedência africano-americana. Por outro lado, estas e outras novelas da época (a par dos discursos da imprensa, nomeadamente das revistas ilustradas) possibilitam ainda um conhecimento das percepções relativamente aos processos emergentes de emancipação feminina e de como frequentemente ambos os assuntos eram cruzados ou mesmo associados. Duas grandes temáticas são persistentes e comuns sobretudo ao conteúdo narrativo das três novelas indica-

Fig. 6 - Capas das nove las dos anos 20 e 30. De cima para baixo e da esquerda para a direita: O Preto do Charleston, de Mário Dom ingues, 1930: A Bailarina Negra , de Guedes de Amorim , 1931; Preto e Branco, de Reynaldo Ferreira; 1923; Uma Rapariga Moderna , de Augusto Navarro, 1927(?); As Criminosas do Chiado , de João Ameai e Luiz de d'Oliveira, 1925 ; A Virgem do Bristol-Club, de Reynaldo Ferreira [Repórter X], 1930 . [Arranjo e composição das imagens: Diogo Barreiras]

27 Este tip o de percep ções co meça a ser dom in ante na Euro pa a pa rti r dos a nos 20 (e acent uada nos anos 30, so bretu do por acçã o d a c rít ica fran cesa. co mo o já cita do Hugu es Pan assi é), aco m pa nha ndo a própri a evo lução e di ssemin ação d a ind ústria mu sical a me ricana, nom ead am ent e qu a nd o esta co meça a ser ac usada da apro priação de tr ad ições ex pressivas negras, ada pta ndo-as a u m mercad o de cu ltura popul ar massificada entã o em eme rgê ncia (p.ex .: Pau l Wh item an ).

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das (mas não só): 1) Uma de carácter somático, ou seja, a representação do negro c do ~( ' I I 'orpo enq uanto objecto de curiosidade sexual por parte do branco/a. ' 0 1110 . manifesto em A Bailarina Negra, nalguns círculos urbanos e mundanos del(" urn fa) amante negro(a) constituía motivo de ostentação que era exibido ~( I ialrnente como troféu exótico e raridade sexual, porém Indubitavelmente dn .a rt ável. Por vezes, o "uso", seguido de rejeição do íà) amante negro(a) rCIlH'I. in lusivarnenre para uma série de pressões sociais no sentido de condenação .1,1 rn isrura racial, frequentemente recorrendo a argumentos de carácter eug en isr.i . orno em O Preto do Charleston: «T ive o capricho de te expe rime nta r, como outras têm o de comprar c âesinhos de: III. II qu e depoi s detest am. C ad a vez qu e me lembro d a vergonha de ter sido tua ama nte! EII, apa ixona d a por um preto! Eu, qu e tenho despr ezado hom en s bran cos, ricos e bon itos] Pa rece incrível (...) H á só um ho mem que eu adoro . Mas esse é bran co, muito brau . « e louro. É o aviado r alemão qu e esteve em Lisboa o ano passad o. Esse sim !... » (Dom i II gues, ibidem: 65, 68).

Por outro lado, na novela Preto e Branco (1923), a personagem ]olué, con sti [ui um modelo exemplar de como as contradições raciais eram frequentemente .xploradas com recurso a relacionamentos que envolviam tensões sexuais. Consequência da violação de uma indígena por um missionário em África, jolu é, re ebe uma educação nos modos da "civilização do norte" e, fixando-se na Europa, frequenta a alta sociedade (onde mostra ser inclusivamente versado em dan ças modernas). Percebendo que, apesar do esforço de inserção, será sempn: alvo de descriminação e de racismo por parte da sua companheira branca e do írcu lo social em que se move (que troça das suas pretensões a "homem civiIizado "), decide sujeitar-se a uma operação (na Alemanha - tropo mobilizado para representar o "centro" da "civilidade"), de modo transformar-se também ,I . num homem branco. Vinga-se das antigas traições, através da posse de mu Ih .res europeias. Ao tentar voltar o seu tom de pele original, é informado qu e isso já não será viável - o que se torna uma metáfora para o facto do contacto .o rn a civilização branca tornar impossível o retorno ao estado "primitivo" e à pu reza original. 2) E outra das temáticas persistentes, consiste na adopção de práticas ex-

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pressivas africano-americanas (sobretudo as danças) por parte das personagen s negras destas ficções, como forma de aquisição de visibilidade social numa sociedade dominada por brancos, mesmo apesar das frequentes alusões à figura doía) dançarino negro(a) enquanto símbolo de potencial transgressão somática, racial, sexual ou civilizacional: «E Tomé, o preto do cha rlesto n, não descan sava um momento, bamboleando, na cadên cia selvage m do black-bottom ou do shimmy, o seu corpo elás t ico, maleável como u m junco, negro no smoking elegante, lem bran do u m espa nta lho de pardais agitado pe la ventan ia. Seu par, a loura Ivone, de pele muito bran ca e rosada, de pern as e braços torci d os pelo aleijão da d ança, segu ia-o leve, aérea, graciosa, como um a gaivota peque nina persegu indo um neg ro navio fantas ma». (D omi ng ues, op.cit.: 26) « ..• Oderre, numa lou cura nervosa, torc endo os braços e as pern as, numa ca ricat u ra qu ase ob scen a, seguia o preto bail arino, qu e todo se con to rcia nos esga res lúb ricos e destr ambelh ad os de um charleston d iab ólico». (idem, ibidem : 29).

Todos os negros dos romances indicados são representados como competentes intérpretes das danças am ericanas modernas, o que reforça a codificação racial destas práticas expressivas enquanto "negras" ou de origem negra (sem que, contudo, isso implique necessariamente uma perspectiva negativista relativamente à alteridade racial) . Mas a aptidão nas danças modernas é utilizada pelos personagens negros não apenas para adquirir o já indicado prestígio social (devido ao carácter excêntrico, exótico e até mesmo selvático que imprimem às suas performances), como também para, através do suc esso público e social, consumarem vinganças relativamente a humilhações "raciais" por parte de brancos (sobretudo humilhações de carácter sentimental e/sexual - cf A Bailarina Negra), ou seja, combater relações assimétricas de poder. D e facto, como pode ser perceptível no percurso parisiense de ]osephine Baker (n .1906m.19 75), perante o ascendente do jazz e das danças modernas nas novas formas de entretenimento, os artistas negros passam a fazer uso estratég ico dessas pr áticas expressivas da cultura popular, utilizando-as de modo a conqu istar mais valias raciais e sociais. E isso sucede indo ao encontro das fantasias coloniais dos europeus/norte-americanos num processo que pode ser con ceptualizado como denotando uma atitude de "essencialismo estratégico " (Spivak 1987) isto é, devolverem às audiências brancas os estereótipos que eram atribuídos aos

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' ros, assu mindo e performando essas representações estereotipad as . 1ira 11.1"

ti i vidcndo s sociais, artísticos e profissionais desse processo. A célebre " b.m.u 1.1 dan -e"lx integrada no espectáculo La Folie duJour (c.1926), levada à . '11:1 IIII .a ha re t parisiense Folies-Bergêre e que celebrizou Josephine Baker na
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