2014 - A Carta de Pero Vaz de Caminha, entre o registro e a persuasão

June 14, 2017 | Autor: Jean Pierre Chauvin | Categoria: Literatura Portuguesa, Literatura Colonial, Carta de Pêro Vaz de Caminha
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[CHAUVIN, Jean Pierre. A carta de Pero Vaz de Caminha, entre o registro e a persuasão. In: CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El-Rei D. Manuel sobre o Achamento do Brasil. 2a ed. São Paulo: Martin Claret, 2014, pp. 7-12]

A carta de Pero Vaz de Caminha, entre o registro e a persuasão Jean Pierre Chauvin1 Esta edição contém um dos registros mais importantes, diretamente relacionados à nossa história. Desde a localização da Carta de achamento de Pero Vaz de Caminha, no início do século XIX2, pesquisadores europeus e brasileiros têm sido unânimes ao afirmar a absoluta relevância de contarmos com o registro inaugural de nosso país, nesta que também é conhecida como a certidão de nascimento do Brasil. Afora seu evidente componente historiográfico, a leitura atenta do documento pode representar uma nova concepção de nossas origens - sabidamente pautadas pelo signo da violência, em nome da fé e da expansão ultramarina. Não por acaso, no relato assinado pelo escrivão português há alguns episódios narrados com menor vagar, especialmente quando parece ter havido alguma coerção por parte dos brancos na atribuição de tarefas aos nativos. Isso se reflete, por exemplo, no momento em que os nativos fogem aos portugueses, sem motivo aparente: (...) aquele recuo dos índios no momento das danças e brincadeiras é interpretado, dentro da lógica do intercâmbio simbólico, como um sinal de ruptura, de recusa, não somente daquele gesto, mas do relacionamento como um todo. (...) os índios, nesse momento, não são vistos como gente, e ressalta-se seu caráter “bestial” exatamente a partir do ato de esquivaremse. (MASSIMI et al, 1997, p. 33)3

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Coordenador do Curso de Letras da Faculdade de Diadema. Professor da Fatec São Caetano do Sul. Autor de O poder pelo avesso na literatura brasileira: Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto (2014), entre outros. Pesquisador de Pós-Doutorado junto ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH (USP). 2

“A primeira publicação da carta data de 1817. Foi feita pelo padre Manuel Aires do Casal, que encontrou uma cópia do texto no Arquivo da Marinha Real do Rio de Janeiro.” [Cf. OLIVIERI, Antonio Carlos & VILLA, Marco Antonio. (Orgs.) Cronistas do descobrimento. São Paulo: Ática, 1999, p. 18] 3

MASSIMI, Marina et al. Navegadores, colonos, missionários na terra de Santa Cruz: um estudo psicológico da correspondência epistolar. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

À medida que avançamos na leitura da carta, percebemos que um dos aspectos mais interessantes refere-se à linguagem sem torneios empregada por Caminha. Afinal, ele logrou conciliar a descrição minuciosa da terra de Vera Cruz com a simplicidade de seus termos. Dado curioso, pois, “ainda que dirigida ao monarca, [a carta] não evidencia erudição.” (AZEVEDO, 2000, p. 12) Em certo sentido, poderíamos afirmar que na forma de registro o escrivão português revela necessária contenção quanto a um eventual e compreensível deslumbramento de sua parte, frente à nova terra. Isso seria compreensível, tendo em vista a natureza de seu cargo e o objetivo informacional da carta, inclusive. A despeito da justa argumentação de que seu relato tenha servido como apelo à conversão dos índios em uma terra tão distante, nota-se simetria na disposição das partes do documento - anotado diariamente - o que se reflete na construção dos períodos frasais, redigidos com perceptível sobriedade. Não se trata, portanto, de um documento exatamente espontâneo; mas de uma redação de caráter oficial, rigorosa, breve e exata, possivelmente orientada pela tradição medieval de se redigir cartas ao final das missões político-militares e religiosas - neste caso em especial, como forma de assinalar a primazia da conquista territorial do reino. Tais características podem explicar por que a carta teria sido composta de modo homeopático, digamos, conferindo ao relato em si a disciplina típica de um escrivão nomeado pelo rei para tal fim: “não descreve em pormenor a viagem já que (...) Caminha não é um homem do mar, mas sim um escrivão que ia a caminho de um cargo de feitor no Oriente.” (AZEVEDO, 2000, p. 24)4 O tom adotado por Pero Vaz de Caminha mostra a relativa proximidade do escrivão com o rei D. Manuel: “A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi, segunda-feira, 9 de março.” O primeiro contato com os índios, na quinta-feira, 23 de abril, revela a concepção de um homem branco, convertido à fé católica, professada por seu reino e pela Europa, em geral: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas.” Apesar do contato aparentemente amistoso com os nativos, desde sempre os portugueses mostraram que eram os índios que deveriam chegar até eles. Nesse sentido, a pose e a indumentária do capitão completam o quadro que anuncia as assimetrias do futuro próximo: “O capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem 4

AZEVEDO, Ana Maria de. O significado da Carta de Pêro Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. In: Carta de Pêro Vaz de Caminha. Mem Martins (Portugal), 2000.

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vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado.” Para melhor lidar com os primeiros habitantes do lugar, um dos “mancebos degredados”, Afonso Ribeiro, recebeu a ordem de acompanhar a rotina dos índios, de modo a “saber de seu viver e maneiras”. O contato entre brancos e índios alternava-se entre a conciliação e o afastamento, a julgar pelo relato de Caminha. No domingo, 26 de abril, o Frei Henrique conduziria a primeira missa “em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.” Ao longo de seu relato, o escrivão sugere que os portugueses não abusaram da força. A orientação, decidida pelo grupo é de que “não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.” No entanto, como a história nos mostra, a relação entre brancos e índios nunca foi exatamente pacífica, e menos ainda desinteressada ou justa. O próprio Caminha se antecipa: “Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.” Dentre as reimpressões da Carta de achamento, talvez a mais conhecida e consultada por aqui seja aquela assinada por Jaime Cortesão, dada a público no Brasil, pela primeira vez, em 1943. Seu texto introdutório é excelente, favorecido pelo criterioso estudo do historiador português, para quem a carta documenta o “nascimento” do país-colônia.5 Várias edições foram publicadas nos anos seguintes, especialmente quando se aproximava o ano de 2000 - ocasião em que passou a circular um impressionante volume com novas impressões do documento -, quase sempre acompanhadas de relevantes estudos de historiadores da literatura, críticos ou jornalistas, tendo em vista a comemoração dos quinhentos anos do assim chamado Descobrimento do Brasil. A esse respeito, destaque-se ainda o meticuloso trabalho que resultou na coletânea Os primeiros 14 documentos relativos à armada de Pedro Álvares Cabral, em 5

CORTESÃO, Jaime. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Rio de Janeiro: Edições Livros de Portugal Ltda, 1943. Há outra edição desta obra, a cargo da Imprensa Nacional-Casa da Moeda de Portugal, publicada em 1994.

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volume organizado e anotado por Joaquim Romero Magalhães e Susana Münch Miranda, editada em 1999.6 Com relação aos numerosos estudos sobre a carta, mencione-se também a coerente análise proposta por Luís Adão da Fonseca, professor da Universidade do Porto. A seu ver: “a novidade, no texto de Caminha, começando por corresponder à constatação de uma situação que é apresentada como diferente, aponta imediatamente para um outro sentido: o de uma diferença difícil de se compreender por não se ajustar a nenhum dos modelos anteriormente conhecidos.” (2000, p. 40)7 Em 2002, Paulo Roberto Pereira atribuiu à carta o estatuto de um “texto profético, antecipador de um país e sua ventura.” (p. 13). Hoje, com o advento da internet, é possível consultar com ainda maior facilidade o texto original – provavelmente escrito entre 26 de abril e 1º de maio de 1500, a julgar pela data em que a terra de Vera Cruz foi avistada e o dia em que escrivão lavrou e assinou o documento. Cumpre lembrar que Pero Vaz de Caminha fora um escrivão do reino português, sediado na feitoria de Calecute, e enviado pelo Rei Dom Manuel para documentar os territórios porventura alcançados pela armada de Pedro Álvares Cabral.8 Nesse sentido, o próprio ato da escrita – com fins de documentação, expansão da fé e dos negócios – revela uma forte e rígida relação hierárquica, à qual o escrivão não estava imune, evidentemente. Por outro lado, apesar do caráter compulsório da composição, é provável que a responsabilidade de registrar os feitos dos portugueses fosse razão para grande honraria por parte de Caminha. Dito isto, espera-se que este breve prefácio constitua um convite para que o leitor tome contato com um dos registros mais importantes, quando da chegada dos portugueses ao Brasil. De quebra, poderá compreender um pouco melhor a mentalidade dos europeus, o poder dos idiomas e constatar, em nossos dias, a vigência de muitas das assimetrias sócio-culturais instauradas por aqui desde o século XVI.

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A edição foi veiculada sob a responsabilidade da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses do Instituto dos Arquivos Nacionais, localizado em Lisboa. 7 FONSECA, Luís Adão da. O sentido da novidade na carta de Pêro Vaz de Caminha. In: Revista USP, São Paulo, n. 45, p. 38-47, março/maio 2000. 8

Carta de Pêro Vaz de Caminha. Disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=4185836 – Acesso em 13 de janeiro de 2014.

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