2015 - CONDE, P.; MARTINS, A.C. & SENNA-MARTINEZ, J.C.– Arqueologia em contexto colonial. Moçambique e Angola: entre a indiferença e a internacionalização.

May 31, 2017 | Autor: J.c. Senna-Martinez | Categoria: Archaeology, Portuguese Colonialism and Decolonizaton, Mozambique, Angola
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Arqueologia em contexto colonial. Moçambique e Angola: entre a indiferença e a internacionalização. Archaeology in colonial context. Mozambique and Angola: amongst indifference and internationalization.

CONDE, P.; MARTINS, A.C. & SENNA-MARTINEZ, J.C. (2015) – Arqueologia em contexto colonial. Moçambique e Angola: entre a indiferença e a internacionalização. I. Malaquias, A. Andrade, V. Bonifácio e H. ¬Malonek, Eds. Perspetivas sobre Construir Ciência – Construir o Mundo. Universidade de Aveiro, p.301-310.

Patrícia Conde Instituto de Investigação Científica Tropical [email protected] Ana Cristina Martins Instituto de Investigação Científica Tropical [email protected] João Carlos Senna-Martínez

Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa [email protected]

Resumo Embora recente em Portugal, a investigação relativa às práticas arqueológicas conduzidas nas e sobre as ex-colónias portuguesas trouxe à luz o caso da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais/do Ultramar (1936-1951/1952-1973), organismo no âmbito do qual as “Missões Antropológicas” englobaram o conhecimento do passado mais remoto do além-mar então sob jurisdição portuguesa. Tais foram os casos da Missão Antropológica de Moçambique (1936-1956), liderada por Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior (1901-1990), e da Missão Antropobiológica de Angola (1950-1955), chefiada por António de Almeida (1900-1984). Todavia, pouca atenção receberam ainda as iniciativas de indivíduos e entidades que, actuando localmente, aduziram contributos consideráveis para o conhecimento da Pré-História desses territórios. São disso exemplo os trabalhos promovidos pelos Serviços Geológicos de Angola e Moçambique (1919), a Comissão de Monumentos e Relíquias Históricas de Moçambique (1943), e o Museu do Dundo (1936), adstrito à Companhia de Diamantes de Angola (19171975), que em boa medida supriram a ausência de um plano de investigação arqueológica sistemático gizado pela metrópole. No ensaio que se apresenta atenderemos a estes dois casos de estudo, Moçambique e Angola, identificando protagonistas, propósitos e resultados, bem como redes, agentes, lugares e meios envolvidos na produção, circulação e recepção de conhecimento arqueológico. Palavras-chave: Arqueologia; internacionalização científica.

Moçambique;

Angola;

colonialismo

português;

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Abstract Although still recent in Portugal, the research concerning archaeological practices conducted in and about the former Portuguese colonies has brought to light the case of the Board of Geographical Missions and Colonial/Overseas Research (1936-1951/1952-1973), within which “Anthropological Missions” encompassed the knowledge of the remote pastof the overseas then under Portuguese jurisdiction. Those were the cases of the Anthropological Mission to Mozambique (1936-1956), led by Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior (1901-1990), and the Anthropobiological Mission to Angola (1950-1955), headed by António de Almeida (1900-1984). However, little attention has been paid to local initiatives from individuals and entities that adduced considerable contributions to the Prehistoric knowledge of those territories. These are the cases of the works promoted by the Geological Surveys of Angola and Mozambique (1919), the Commission of Historical Monuments of Mozambique (1943), and the Dundo Museum (1936) associated to the Diamond Company of Angola (1917-1975), which often overcame the lack of a systematic archaeological research plan from the metropolis. In the following essay we will attend to both these case studies, Mozambique and Angola, in order to identify actors, purposes and results as well as networks, agents, places and means involved in the production, circulation and reception of archaeological knowledge. Keywords: Archaeology; internationalization.

Mozambique;

Angola;

Portuguese

colonialism;

scientific

Preâmbulo De entre os estudos sobre a História da Arqueologia o colonialismo tornou-se um dos temas principais. (En)formada e (a)firmada na esteira dos processos imperialistas das potências de finais de Oitocentos que, a par da construção de identidades nacionais, arquitectaram modelos de dominação ideológica e exploração material dos seus territórios além-metrópole, a Arqueologia não foi alheia às concepções teleológicas forjadas, ainda que paradoxalmente, pelo movimento da Aufklärung(1). Nesta perspectiva, importa, pois, não apenas questionar e debater criticamente as lógicas de produção, circulação e recepção de conhecimento subjacentes às narrativas arqueológicas que procuraram legitimar os interesses a montante e a jusante das empresas coloniais, como também reapreciar os legados então provindos, fomentando-se, assim, a possibilidade da formulação de novas hipóteses de explicação dos (muitos) pretéritos Outros. Embora ainda recente em Portugal, a investigação relativa às práticas arqueológicas conduzidas nas e sobre as ex-colónias portuguesas vem permitindo divisar diferentes contextos políticos, económicos, sociais, culturais e geográficos em que as mesmas foram concebidas e se desenvolveram. A este exercício não se pode furtar o escrutínio dos diversos protagonistas e instituições nelas envolvidos e, bem assim, o da sua participação nas redes regionais e internacionais que moldaram teorias, terminologias e metodologias. Trata-se, pois, de uma abordagem resumidamente externalista que poderá trazer novos dados para este campo de estudos, propiciando uma reflexão sobre a variação 302

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entre os diferentes poderes coloniais na condução e promoção da arqueologia nas respectivas colónias, os tipos de estruturas burocráticas dentro dos quais a arqueologia operou, os tipos de arqueologia que foram empreendidos e os métodos de disseminação dos resultados (Robertshaw: 2006:5). Ab initio: As “Missões Antropológicas” e a Arqueologia – do centro para a periferia. Integrado na I Exposição Colonial Portuguesa (Porto, 1934), porventura o primeiro grande acto de propaganda que procurou consolidar, interna e externamente, a ideia de um Portugal indivisível, centralizando-se o além-mar na agenda nacionalista, o I Congresso Nacional de Antropologia Colonial prescreveu o entrosamento da Antropologia num programa político sustentado por diplomas exarados anos antes, designadamente o Acto Colonial (1930), a Carta Orgânica do Império Colonial Português e a Reforma Administrativa Ultramarina (1933). Procurava-se, sob a presidência do médico e antropólogo António Augusto Esteves Mendes Correia (1888-1960), realçar as possibilidades da aplicação e utilitarismo deste campo de estudos às colónias então administradas por Lisboa, escorando-se a ideia da missão civilizadora no estudo das populações autóctones. Sob o amplo espectro deste ramo do saber cujos paradigmas evoluíram ao longo do colonialismo português, a Arqueologia desempenhou um papel subsidiário prestando-se, amiúde, a inferições de carácter essencialista e estaticista que pesaram não apenas sobre a representação das sociedades africanas em presença, como também sobre a dos seus passados. Não obstante, a investigação arqueológica conduzida nas colónias portuguesas cumpriu um outro propósito. O da aproximação a contextos e agendas coloniais coetâneas nos quais a disciplina se institucionalizava no seio de núcleos de investigação, universidades e museus. Nos alvores de 30, porém, estava tudo por fazer em solos africanos. A iniciativa da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia (1918) da qual Mendes Correia havia sido um dos fundadores acolheu estudos votados à Arqueologia e à Pré-História ultramarinas. Moçambique mereceu, neste âmbito, particular destaque pois se a atenção dos investigadores nacionais havia já começado a incidir sobre a Pré-História de Angola, embora ainda sem uma campanha sistemática de explorações e apenas em face duma série de achados mais ou menos casuais e isolados, a Pré-História de Moçambique podia dizer-se total ou quase totalmente ignorada, desconhecendo-se mesmo algumas investidas estrangeiras nesse território (Correia: 1936: 3). Uma lacuna que instava colmatar face a contextos coevos, mormente a União Sul-Africana, onde se procedia à sistematização de achados paleoantropológicos e objectos líticos, procurando-selhes as relações tipológicas e cronológicas não apenas com os países limítrofes, mas também com a África do Norte e a Europa, aventando-se sobre a possibilidade da existência de algumas destas culturas líticas na colónia portuguesa (Ibidem: 18-19). Razões bastantes para que Mendes Correia elaborasse um plano de estudos detalhado no qual se incluiam a pesquisa de vestígios de antigas culturas líticas e restos humanos pré-históricos, a investigação das estações de arte rupestre, o inventário de antigas explorações mineiras, a exploração das ruínas dos tipos da vizinha Rodésia do Sul (actual Zimbabué), a ampliação do inventário das ruínas posteriores à conquista portuguesa, a colheita das tradições etnoarqueológicas, a indicação das medidas aconselháveis para a salvaguarda de ruínas e estações 303

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arqueológicas e o arquivo científico dos objectos, e a colheita dos elementos necessários para a carta arqueológica da colónia, coordenando-se os resultados obtidos com os referentes às regiões limítrofes (Ibidem: 29-30). Um programa ambicioso que colheu foro oficial no âmbito da reorganização do Ministério das Colónias que criou a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais/do Ultramar (JMGIC/JMGIU) (1936-1951/1952-1973), organismo que vinculou política e ciência em prol do conhecimento e aproveitamento do ultramar superintendido. Autorizou então o Governo agregar à Missão Geográfica de Moçambique (1932-1973) um técnico de competência reconhecida para proceder a estudos antropológicos e arqueológicos (Portugal: 1936: 870), disposição que, por impossibilidade e indicação de Mendes Correia, recaiu sobre o seu discípulo Joaquim Rodrigues dos Santos Júnior (1901-1990). A Missão Antropológica de Moçambique (MAM) desenrolou-se ao longo de seis campanhas (1936, 1937-38, 1945, 1946, 1948, 1955-56), tendo sido as duas primeiras subsidiadas pelo Instituto de Alta Cultura e decorrido sob a designação de Etnográfica e Antropológica. A sua autonomização e consequente distanciamento de outros domínios científicos, designadamente da Geografia, deu-se em vésperas da reestruturação da JMGIC (1945) e não foi alheia ao Plano de Ocupação Científica do Ultramar Português (1941) no qual Mendes Correia inscreveu um programa pormenorizado de pesquisas nos domínios da Antropologia, Etnografia e Arqueologia. Não obstante, as duas primeiras incursões da MAM foram decisivas no curso dos trabalhos arqueológicos realizados em Moçambique, bem como na formação profissional de Santos Júnior. As visitas às universidades, museus, estações arqueológicas e paleontológicas das vizinhas União Sul-Africana e Rodésia do Sul colocaram-no no epicentro dos debates sobre a génese humana e possibilitaram o estabelecimento de proveitosos contactos com figuras dominantes da Arqueologia conduzida em solos africanos, nomeadamente Clarence van Riet Lowe (1894-1956), Director do Archaeological Survey da União Sul-Africana, e Raymond Dart (1893-1988), anatomista australiano e Director do Departamento de Anatomia da Universidade de Witwatersrand do mesmo país, a quem Santos Júnior dedicou os seus pioneiros trabalhos dados à estampa na publicação Moçambique: Documentário Trimestral (Santos Júnior: 1937, 1938). De entre os resultados das actividades das seis campanhas da MAM destacam-se não apenas a recolha de 7728 peças líticas, 173 fragmentos de cerâmica e, bem assim, a identificação de 96 estações ou sítios arqueológicos da Idade da Pedra e da Idade do Ferro (Roque, 2002), como também as participações de Santos Júnior em inúmeros congressos. São disso exemplo o XIII Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências (Lisboa, 1950) (Santos Júnior: 1950) e o II Congresso Pan-Africano de Pré-História (Argel, 1952) (Santos Júnior: 1955). Entrementes, havia o médico António de Almeida (1900-1984), a pedido da Escola Superior Colonial, procedido a uma vasta tarefa de investigação antropológica em Angola durante os anos de 1948 e 1949, mais ou menos em concomitância com as operações censitárias de 1950 (IICT/SSEA: 255, 1; 8, 14-05-49)(2), tendo recebido da JMGIC um subsídio para prosseguir os trabalhos de gabinete sobre os materiais colhidos, nomeadamente os de índole arqueológica (IICT/SSEA: 255, 1; s/n, 0612-49). Sob a supervisão de Mendes Correia, entretanto tornado Presidente da instituição (1946), 304

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foi dada continuidade a estes labores, mormente pela criação da Missão Antropobiológica de Angola (MAA) que, ao longo de três campanhas (1950, 1952, 1955), descobriu diversas estações arqueológicas, estudou pinturas rupestres e recintos amuralhados (Instituto Superior de Estudos Ultramarinos: 1956: 2). Os trabalhos aduzidos sobre os então denominados bosquímanos, que tanto interesse vinham suscitando entre o escol científico internacional, foram matéria de várias conferências, designadamente no Musée Royal de l’Afrique Centrale (Tervuren) e no Musée de l’Homme (Paris) (1952) (IICT/SSEA: 255, 1; 68, 28-03-52). A criação do Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar (1954), antecessor do Centro de Estudos de Antropobiologia (1962), dos quais António de Almeida foi Director, permitiu-lhe prosseguir os estudos iniciados em Angola recebendo, no foro da Pré-História, as colaborações de José Camarate França (1923-1963), antigo auxiliar da MAA, do linguista sul-africano Ernst Wetsphal (1919-1990) e de Henri Breuil (1877-1961) (Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar: 1957: 1), figura reputada da Arqueologia e já bem conhecida em solos metropolitanos (Roche: 1967; Zbyszewski: 1967), resultando desta última parceria as comunicações apresentadas no IV Congresso Pan-Africano de Pré-história e Estudo do Quaternário (Léopoldville [actual Kinshasa], 1959) (Breuil, Almeida: 1964 a), 1964 b). Todavia, assim reparava António de Almeida nos alvores de 60: “(...) Portugal não está a fazer nada de digno e de válido no campo da arqueologia africana. A Arqueologia requer técnicas que são complexas e caras (...). Nós não preparamos pessoal, não dispomos de dinheiro e persistimos num erro capital (...) que é fazer arqueologia de África num prédio urbano em Lisboa com espécies que vêm encaixotadas no vapor de carreira.” (IICT/SSEA: 255, 2; 128, 25-04-60) In loco: A Arqueologia feita pelas colónias – uma Arqueologia periférica? A (re)apreciação das práticas arqueológicas conduzidas durante o colonialismo português não pode deixar in albis as iniciativas que se registaram localmente. Com efeito, a par dos trabalhos conduzidos pela metrópole, circunscritos a campanhas esparsas e de curta duração nas quais a Arqueologia era tributária de estudos orientados para a implementação de uma política indígena, diversos agentes contribuíram, in loco, para a produção, circulação e recepção de conhecimento arqueológico. Em Moçambique, a descoberta, em 1936, de uma estação paleolítica na região de Magude, pelo engenheiro-agrónomo Lereno Antunes Barradas (1890-1974) (Barradas: 1942), deu início a um intenso período de investigação arqueológica, especialmente a Sul do Save, e predominantemente no então distrito de Lourenço Marques. Dedicou-se L. Barradas sobretudo aos estudos da Estratigrafia e da Paleo-Climatologia enquanto bases necessárias para a formulação de uma cronologia para as indústrias pré-históricas. Trabalhos que granjearam o apoio da Repartição Técnica de Indústria e Geologia (RTIG), entidade que promoveu vários reconhecimentos e escavações, organizou os espólios de diversas estações líticas nos museus dos seus serviços e desenvolveu uma estreita colaboração com o Archaeological Survey da União Sul-Africana, assinalando-se o estágio que o engenheiro de minas Manuel Bettencourt Dias aí efectuou. Uma cooperação que foi reforçada com a criação da Comissão dos

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Monumentos e Relíquias Históricas de Moçambique (1943), reflexo de organismo congénere no território vizinho, destacando-se, a pedido desta instituição, os trabalhos de campo conduzidos por Riet Lowe e H. Breuil em parceria com L. Barradas e o engenheiro de minas da RTIG Alexandre Borges (1898-?) que resultaram na descoberta de novas estações, bem como no estudo de outras já conhecidas (Riet Lowe: 1943; Riet Lowe, Breuil: 1944). Também a Sociedade de Estudos de Moçambique (1930-1975) manifestou interesse pelas investigações arqueológicas. A agremiação local subsidiada pelo Estado português que contava entre os seus vogais o engenheiro L. Barradas, publicou no seu Boletim inúmeras contribuições. Em cumprimento dos votos emitidos e aprovados no seu I Congresso (Lourenço Marques, 1947) com vista à coordenação de todos os elementos dispersos sobre a Arqueologia da colónia foram dados à estampa vários trabalhos de síntese analítica sobre a Pré-História de Moçambique (Barradas: 1948; Alberto: 1951). Organizava-se, entrementes, sob os auspícios do casal Louis (1903-1972) e Mary Nicol Leakey (1913-1996) e a presidência de H. Breuil, o I Congresso Pan-Africano de Pré-História (Nairobi, 1947), juntando, pela primeira vez, pré-historiadores, paleontólogos e geólogos. A ausência da participação metropolitana na lide foi suprida pela presença regional. Franqueando a correlação entre a Geologia, a Climatologia e a Arqueologia, L. Barradas e Bettencourt Dias compuseram a delegação de Moçambique destacada pela RTIG, apresentando estudos sobre o Quaternário (Barradas: 1952a), 1952b) . A representação oficial de Angola ficou a cargo de Fernando de Oliveira Mouta (1899-?), engenheiro de minas dos Serviços de Geologia e Minas da colónia que, resumidamente, elencou o pouco que se conhecia no território (Mouta: 1952), abonando a favor de Jean Janmart (?-1955), enviado da Companhia de Diamantes de Angola (Diamang) (1917-1975) da qual foi Chefe do Serviço de Prospecção e cujos trabalhos desenvolvidos na região nordeste da Lunda eram já meritórios de comunicação no congresso (Janmart: 1952). Com efeito, em Angola, destacam-se os trabalhos promovidos pela Diamang na Lunda, onde desde meados da década de trinta se intensificou a exploração mineira, propiciando os trabalhos de desmontagem de minas e de abertura de poços de prospecção o achamento de materiais líticos. Concomitantemente, estabeleceu-se, pela mão de José Redinha (1905-1983), e adstrito à Diamang, o Museu do Dundo (1936) com secção votada à Geologia e à Pré-História a cargo de Janmart, devendo-se a este geólogo belga as primeiras incursões internacionais com o objectivo de criação de uma rede de debate subordinada às questões da arqueologia africana, tendo, em 1943, realizado um périplo pelo então Congo Belga [actual República Democrática do Congo], Rodésia do Sul e União Sul-Africana, onde, para além da realização de observações de campo, se encontrou com cientistas residentes com os quais mantivera já correspondência sobre os seus trabalhos (Porto: 2009: 142). A comissão do congresso veio a dizer-se muitíssimo impressionada com estes trabalhos, ainda que conduzidos por um pequeno grupo de entusiastas (IICT/SSEA: 78.A, 1; 2, 10-04-47), porventura denunciando o muito que ainda havia a fazer no âmbito da investigação arqueológica nas colónias portuguesas. Não obstante, a participação nesta reunião aduziu contributos significativos nesse sentido. No caso de Moçambique, o reconhecimento do trabalho de L. Barradas valeu-lhe a recomendação de Riet Lowe para presidir, no ano seguinte, à Secção 306

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de Arqueologia do Congresso da Associação Africana para o Avanço das Ciências realizado em Lourenço Marques. No caso de Angola, sairam reforçadas as relações estabelecidas anos antes por Janmart, assinalando as Publicações Culturais da Diamang as colaborações de L. Leakey (Leakey: 1949) e H. Breuil (Breuil, Janmart: 1950), na sequência de visitas efectuadas a convite da companhia, e de John Desmond Clark (1916-2002) (Clark: 1963, 1966, 1968), arqueólogo britânico que, após a morte de Janmart, passou a visitar regularmente as explorações mineiras e a secção de Arqueologia do Museu do Dundo. Parece-nos, pois, que os Congressos desempenharam um papel de suma importância na produção, circulação e recepção de conhecimento arqueológico, fomentando a construção e a consolidação de redes científicas nacionais, regionais e internacionais, porventura permeáveis a agendamentos políticos. Assim reparava António de Almeida em vésperas do V Congresso Pan-Africano de PréHistória e Estudos do Quaternário (1963, Santa Cruz de Tenerife): “(...) num tempo em que se pretende expulsar-nos do Ultramar e das conferências internacionais (...) precisamos de nos afirmar e impedir que (...) amesquinhem a obra civilizadora de Portugal do passado e do presente. (...) não comparticipar nesta e em outras reuniões científicas internacionais pode fazer supor que os Portugueses receiam a competição científica estrangeira ou ser maltratados, o que não corresponde à verdade; a ausência, sendo uma forma de abdicação ou de demissão, é que levaria, com certeza, ao esquecimento dos nossos investigadores em futuras sessões deste Congresso.” (IICT/SSEA: 78.A, 1; 110, 3007-63) Com as primeiras sublevações libertárias nos então territórios ultramarinos, intensificava-se a pressão internacional favorável à sua autonomia. Os congressos não eram tão-somente lugares de saber, mas também instrumentos de poder. Qual derradeiros redutos de afirmação da nação una e indivisível perante o palco (científico) internacional. Um assunto que abordaremos noutros ensaios. Notas Finais O escrutínio das práticas arqueológicas conduzidas no quadro do colonialismo português do século XX permite-nos considerar que a Arqueologia não constituiu uma prioridade na agenda colonial portuguesa, tendo sido tributária de outros ramos do saber, mormente da Antropologia, e norteada, amiúde, por interesses individualizados e diligências particulares não alheias a demais contextos coloniais equevos. O que não foi impeditivo para que a entreticida relação entre ambas as disciplinas, nomeadamente pelo recurso a paralelismos etnográficos que alimentaram a categorização, a hierarquização, a ausência e a imutabilidade, condicionasse a representação do(s) Outro(s) e dos seu(s) passado(s), lidimando, assim, a finalidade histórica da empresa colonial. A este respeito observou Martins (2010: 104) que o difusionismo se adequou ao discurso oficial sobre a interconexão entre metrópole e ultramar, condicionando a intepretação de observações colhidas no terreno, mesmo que o evolucionismo respondesse melhor aos intentos administrativos, justificando anexações ao reafirmar um cenário de predomínio intelectual de uns sobre outros. Importa também notar os diferentes moldes em que esta investigação arqueológica foi operada. 307

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Por um lado, um organismo centralizador que albergava o escol científico e docente metropolitano como foi o caso da JMGIC/JMGIU, em que os estudos arqueológicos foram franqueados pela Antropologia. Por outro, indivíduos com formações técnicas várias e organismos de índole diversa que, localmente, carrearam as pesquisas arqueológicas sobretudo no domínio da Geologia. Não só. O carácter esparso e temporário das missões científicas enviadas por Lisboa pedia uma maior operacionalidade no terreno. Previu-se, entrementes, que o óbice fosse ultrapassado com a criação dos Institutos de Investigação Científica de Angola e de Moçambique (1955), já num contexto de colonialismo tardio. Mas também este assunto merecerá oportunos ensaios. Lisboa, Novembro de2014 Notas (1) Para uma revisão debatida e crítica das muitas dicotomias herdadas do Século das Luzes, vejase Sanches, M. R., Serrão, A. V., 2002, Pp. 11-41.

Arquivo do Instituto de Investigação Científica Tropical/Secção de Secretariado, Expediente e Arquivo. As referências a este Arquivo são feitas nos seguintes termos: IICT/SSEA: número de Processo (com indicação, nas Referências, do título do mesmo), número de volume do Processo; número de documento (na sua ausência é assinalado por s/n), e data do documento. (2)

Agradecimentos Ensaio produzido no âmbito do projecto PTDC/IVC-HFC/5017/2012 intitulado “PROMEMICI – Protagonistas e memórias das ‘missões científicas’. Arqueologia e agenda colonial portuguesa”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Referências Alberto, M. S., 1951. A Pré-História de Moçambique. Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, 68. Sociedade de Estudos de Moçambique, Lourenço Marques. Pp. 113-152. Barradas, L., 1942. Uma estação paleolítica em Magude. Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, 45. Sociedade de Estudos de Moçambique, Lourenço Marques. Pp. 83-101. Barradas, L., 1948. Panorama da Pré-História de Moçambique. Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, 57-58. Sociedade de Estudos de Moçambique, Lourenço Marques. Pp. 77-96. Barradas, L., 1952a). Quaternary Formations in Southern Moçambique. 1st PanAfrican Congress Proceedings. Acedido em 2 de Novembro de 2014 no web site da PanAfrican Archaeological Association: http://www.panafprehistory.org. Barradas, L., 1952b). A Chronology of the Quaternary in Southern Moçambique. 1st PanAfrican Congress Proceedings. Acedido em 2 de Novembro de 2014 no web site da PanAfrican Archaeological Association: http://www.panafprehistory.org. Breuil, H., Janmart, J, 1950. Les limons et graviers de l’Angola du Nord-Est et leur contenu archéologique. Publicações Culturais da Companhia de Diamantes de Angola, 5. Companhia de Diamantes de Angola,

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TECNOLOGIA E SOCIEDADE

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