2015 - Joaquim Manuel de Macedo sob as lentes da crítica (A Luneta Mágica)

June 28, 2017 | Autor: Jean Pierre Chauvin | Categoria: Literatura brasileira, Crítica literária, Joaquim Manuel De Macedo, A Luneta Mágica
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Joaquim Manuel de Macedo sob as lentes da crítica* Jean Pierre Chauvin1 (*In: Joaquim Manuel de Macedo. A Luneta Mágica, 2a ed. São Paulo: Martin Claret, 2015, pp. 11-17). *

Nascido em Itaboraí, RJ, Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) é reconhecido em nossa literatura como um dos expoentes do Romantismo. Médico, professor e político – amigo do Imperador, ele foi deputado do Partido Liberal, durante turbulento período do Segundo Reinado – , alcançou sua maior popularidade com A Moreninha, romance lançado em 1844. Fosse pelo êxito daquela obra, fosse pelo momento em que divulgou seus outros romances e peças de teatro, o fato é que A luneta mágica tornou-se título menos conhecido e raramente lembrado pela crítica. Há que se mencionar o fato de a obra ter sido publicada vinte e cinco anos depois de seu maior êxito editorial. Era o ano de 1869: momento em que Dom Pedro II atravessava a pior crise desde o início de sua regência, desde a dissolução do gabinete conciliador. Considerando as frequentes alusões do narrador a episódios do período, isso pode sugerir uma leitura alegórica do romance, como se nota nas numerosas considerações do narrador Simplício: “No princípio do ano corrente de 186... o excelente sistema de governo que nos rege, deu-me o sinal da minha regeneração civil e política” (Capítulo VI da “Introdução”). A esse respeito, vale lembrar que o escritor lecionou História do Brasil2 no tradicionalíssimo Colégio Pedro II, o que revelaria pelo menos dois aspectos relevantes sobre o autor: 1) seu interesse e conhecimento sobre os episódios relacionados à colonização e regência do país; 2) a possibilidade de se estudar sua obra sob outras chaves de leitura, para além de aplicar rótulos prévios e redutores, como autor menor de nosso Romantismo. Dessa maneira, apesar de suas diversas atribuições e da numerosa produção artística, em que se dedicou a diversos gêneros literários, o fato é que Macedo foi alvo constante de uma visão algo generalista e rasteira por parte dos críticos, que talvez não considerassem como válidas determinadas peculiaridades de cada uma de suas obras, dentre os dezoito romances e doze peças de teatro que escreveu. 1 Professor de Cultura e Literatura Brasileira na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor de O poder pelo avesso na literatura brasileira: Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto. São Paulo: Annablume, 2013. 2 Em Lições de História do Brasil , o programa das aulas ministradas sob a responsabilidade de Joaquim Manuel de Macedo, compreende o periodo que ia do final do século XV até meados do século XIX, conforme consta da edição publicada pelos irmãos Garnier, em Paris, no ano de 1913.

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Mencionemos algumas vozes, dentre aquelas tidas como as mais importantes. O julgamento de José Veríssimo parecia sintetizar a visão de seus colegas de ofício que atuaram entre o final do século XIX e o início do XX.3 A sua ligeira e mesquinha observação sobre o romancista permite-nos desconfiar se, de fato, lera toda a obra de Macedo: “Os romances de Macedo são todos talhados por um só molde. São ingênuas histórias de amor, ou antes de namoro, com a reprodução igualmente ingênua de uma sociedade qual era a do seu tempo, chã e matuta”. Na apreciação geral que faz de sua prosa, em 1959 Antonio Candido sugeria que “Os seus romances, digressivos e coloquiais; entremeados de piadas ou lágrimas, à vontade; tendendo à caricatura, mesmo ao lado da tragédia; cheios de alusões à política e aos acontecimentos – os seus romances parecem, antes, narrativa oral de alguém muito conversador, cheio de casos e novidades”. Dez anos depois, Antônio Soares Amora, em detido exame sobre o escritor, aborda alguns de seus romances descontando algumas mazelas de sua escrita. De todo modo, sequer faz menção à A luneta mágica, dedicando boa parte de seu estudo à A Moreninha: um livro que, apesar das ressalvas formais, mostrava o “real talento para um gênero de romance, o romance 'realista', de atualidade e humorístico, o qual veio a conquistar completamente o nosso público romântico”. Na década de 1970, Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira, sentenciou que, não se notava “progresso na técnica literária ou na compreensão do que deveria ser um romance (…) Não admira que, achadas com facilidade as receitas já em A Moreninha, o escritor tenha sido tentado a diluí-las em mais dezessete romances”. Já em 1995, Luiz Roncari relativizou a qualidade do romance mais popular de Macedo, estabelecendo uma justa relação com a longa e perniciosa tradição de se enfeitar o tema lírico pela ótica fácil do amor correspondido, infenso ao contexto social e alheio às questões maiores para além da ótica personalista: “Com A Moreninha, o romance começa no Brasil pela sua pior vertente, que depois será a dominante das telenovelas, criando uma falsa imagem do país e de sua formação social: tudo é mostrado assepticamente, limpo, ordenado, sem grandes conflitos e problemas”.4

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Em pioneiro e fundamentado estudo a esse respeito, Leandro Thomaz de Almeida cotejou a elogiosa recepção contemporânea a Joaquim Manuel Macedo com os contrastantes e severos ajuizamentos empreendidos por uma parcela de nossa crítica, no século XX, que tendia a enaltecer José de Alencar e diminuir o nome de Macedo. Ao se referir aos manuais que versaram sobre o romancista, o pesquisador concluiu que: “A variedade teórica dos autores, ao menos em relação a Macedo, não significou muita diferença analítica, pois os juízos são muito parecidos” [Cf. Leandro Thomaz de Almeida, Trajetórias da recepção crítica de Joaquim Manuel de Macedo. Dissertação de Mestrado. Campinas (SP): Unicamp, 2008. Orientação: Márcia Azevedo de Abreu, p. 103]. 4 José Veríssimo. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). 4a ed. Brasília: Editora UnB, 1963, p. 173; Antonio Candido. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos), Vol. 2. 6a ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000, p. 122; Antônio Soares Amora. A literatura brasileira. Vol. II: O Romantismo. São Paulo: Cultrix, 1969, p. 216; Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 39a ed. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 130; Luiz Roncari. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. São Paulo: Edusp, 1995, p. 520.

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É possível que a leitura um tanto categórica e depreciativa de seus romances reflita-se parcialmente na falta de estudos mais detidos e apurados a respeito do ficcionista, a despeito de sua notável verve e reconhecida popularidade, como autor de folhetins: fama que perdurou durante boa parte do século XIX e início do século seguinte. Ressalte-se o fato de que estamos diante de uma narrativa que foge em muito à temática lírica e ao suposto padrão romanesco de Macedo. Sob a linguagem aparentemente simples e personagens predominantemente planas5, o enredo de A luneta mágica cede lugar ao fantástico. O romance aborda uma questão de cunho emintemente filosófico. Simplício, narrador em primeira pessoa, convive com seu irmão Américo (um político antiético que controla a herança de Simplício), a prima Anica (aparentemente doce, mas interesseira) e sua tia Domingas (cristã, mas pouco generosa com os pobres). Míope dos olhos, cuja incorreção visual também julga afetar seu espírito, o narrador compartilha conosco uma série de atitudes ambivalentes de seus familiares, diante das quais o leitor fica sem saber, a principio se se trata de um relato sincero, fruto de sua ingenuidade (e miopia moral), ou de ironia combinada à sua percepção das pessoas e coisas ao redor: “Aos dezoito anos de idade comecei a compreender todas as proporções da minha desgraça dupla: chorei, lastimei-me, pedi médicos para os meus olhos, e mestres para minha inteligência” (Capítulo III da “Introdução”). Essa dúvida, habilmente inoculada no leitor desde as primeiras linhas, persiste até o momento em que Simplício, com a ajuda de seu amigo Nunes, chega à ótica de Reis, reconhecido na cidade por seus conhecimentos em oftamologia e que abriga um armênio com poderes mágicos. Em tese recente dedicada a Joaquim Manuel de Macedo, Juliana Maia de Queiroz revela os expedientes empregados pelo narrador do romance: [...] desde o início da narrativa, o narrador opta por semear, aqui e acolá, seus pensamentos e desconfianças, em um movimento de avanço e recuo em relação à realidade que ele parece apreender, mas não tem condições, nem físicas e nem morais, de interpretar totalmente, configurando assim, seu caráter míope, que acentua o tom irônico da narrativa.6

Simplício deixa o misterioso e lúgubre estabelecimento do mágico com uma luneta capaz de lhe facultar a visão do mal. A partir de então, Simplício passa a estudar a personalidade de inúmeras pessoas, inclusive aquelas com que mantinha laços de afeto e amizade, como era o caso de sua 5 Refiro-me às categorias propostas em 1927 por Edward Morgan Forster – personagens planas (típicas, previsíveis, caricatas) ou esféricas (complexas, surpreendentes) –, que ele desenvolveu e ilustrou em Aspects of the novel – traduzido no Brasil como Aspectos do romance. 4a ed. Tradução: Sergio Alcides. São Paulo: Globo, 2005. 6 Juliana Maia de Queiroz. As múltiplas facetas de Joaquim Manuel de Macedo: um estudo de A carteira de meu tio, Memórias do sobrinho de meu tio e A luneta mágica. Tese de Doutorado. Campinas (SP): Unicamp, 2011. Orientação: Márcia Azevedo de Abreu, p. 126.

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família. Frustrado por não encontrar seres humanos de bom coração, ele confidencia a Nunes o exame que vinha fazendo. O senão é que, na boca de seu amigo, a confissão que Simplício fizera vira fofoca e a notícia se espalha em toda a cidade, resultando em novas e violentas formas de exclusão do próprio protagonista: “-

Fogem, disse rindo-me; fogem, porque lhes doem as

consciências e se reconhecem todos hipócritas e maus” (Capítulo XXIII de “Visão do mal”). Acusado de louco, Simplício passa a dissimular sua máxima compreensão das coisas, até que quebra a luneta involuntariamente. Muito constrangido, ele retorna à ótica de Reis e, em novo golpe de sorte, lá consegue um novo e poderoso instrumento ótico, desta vez para ter acesso à visão do bem. Ora, a faculdade de enxergar as coisas sob diferentes pontos de vista também abarcaria a legislação e o exercício das leis: “O nosso código é necessariamente muito sábio e muito previdente: exige que para ser jurado o cidadão brasileiro tenha apenas senso comum, se exigisse bom senso haveria desordem geral” (Capítulo VI da “Introdução”). Mas a felicidade do protagonista, além de momentânea e aparente, sujeita-se a novas relativizações. Como era de se esperar, a exemplo do que sucedera da primeira feita, a ocasião será propícia a que ele passe a fazer uma leitura das pessoas com base em apenas um critério, o da suposta virtude. A metáfora é poderosa: fundar nossas opiniões com base em lentes que permitem enxergar aspecto único é temerário e não assegura a visão mais coerente ou acertada. Esse breve panorama mostra que A luneta mágica consistia de proposta bastante diferente daquela percebida em alguns dos romances eminentemente românticos. Se compararmos A luneta mágica com A moreninha, por exemplo, notaremos algumas diferenças notáveis. Ambos são narrados em primeira pessoa; mas, enquanto o romance de 1844 envolve o feliz reencontro de dois jovens, apaixonados desde a infância, na obra de 1869 o amor é um tema secundário e que serve de pretexto para as elucubrações do narrador-personagem. A luneta mágica diz muito sobre os pressupostos e métodos para se corrigir a percepção que as pessoas têm das coisas que as cercam. Escrito também como uma poderosa alegoria das contradições protagonizadas durante o Segundo Império brasileiro, o romance de Joaquim Manuel de Macedo poderia ser lido como uma provocação ao leitor de seu tempo, de maneira que ele se posicionasse criticamente diante de incertas medidas adotadas pelo regime. Porém, isso não impede que o leitor de hoje repare no alcance de certas questões, conforme o seu maior ou menor grau de miopia. O elemento histórico e o componente social, representados na ficção de Macedo, não podem evitar nossa apreciação estética e mais justa de uma obra bem urdida, eivada de humor e atenta às contradições que fazem sombra ao juízo dos homens em geral. 4

Sob esse aspecto, A luneta mágica não se limita a uma pintura típica ou montada em critérios engessados; pelo contrário, o romance sugere que enfrentemos a hipocrisia generalizada sob a visada lúcida de um personagem cativante, cujo modo de ver escapa ao individualismo de caráter localista, mesmo porque recobre determinadas incoerências cuja escala é universal.

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