(2015) Memórias da Linha do Sabor: o contributo de cinco ferroviários

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Descrição do Produto

Coordenação Carlos d’Abreu

A Linha do Vale do Sabor Um caminho-de-ferro raiano do Pocinho a Zamora

Ficha técnica: Coordenação: Carlos d’Abreu Maquetagem: Lema d’Origem Editora Fotografia da capa: Jorge Abreu Vale (“A Ponte do Pocinho”) Revisão: Carlos d’Abreu Editora: Lema d’Origem Capa: Fotografia de Jorge Abreu Vale Data de Edição: Julho 2015 ISBN: 978-989-8342-59-1 Depósito Legal: 395604/15 Apoios: Autores; Câmara Municipal de Torre de Moncorvo; Ayuntamiento de Morille (Salamanca); Junta de Freguesia de Carviçais; RIBACVDANA – Associação de Fronteira para o Desenvolvimento Comunitário; CARAVA Ibérica de Cooperação. Publicação no âmbito da Secção de Património do “PAN – Festival Transfronteiriço de Poesia, Património e Arte de Vanguarda” (PAN XIII de Morille, 17-19 de Julho e PAN I de Carviçais, 24-26 de Julho de 2015)

Coordenação: Carlos d’Abreu Textos de investigação: Carlos d’Abreu; Daniel Conde; Emilio Rivas Calvo; Lois Ladra; Paula Azevedo; Ramiro Salgado; Rosa Gomes. Participação literária: Afonso Praça; Alfredo Cameirão; Antero Neto; António Sá Gué; Carlos Sambade; Faustino Antão; Leandro Vale. Participação poética: Agustín García Calvo; Álvaro Diz de Mazores; António Jacinto; Antonio Machado; António Salvado; Augusto Gil; Emilio Rivas Calvo; Faustino Reis de Sousa; Fernando Pessoa; Guerra Junqueiro; Isabel Cristina Pires; João Mendes Rosa; João Rasteiro; Manuel Curros Enríquez; Ramón de Campoamor; Riba Leça. Participação artística: Clara Isabel Arribas Cerezo; Jorge Abreu Vale; Juan Gil Segovia; Rute Campanha; Victorino García Calderón; Vitor Sá Machado; Núcleo Museológico de Fotografia do Douro Superior.

Índice Nota de abertura ............................................................................. 11 Nota de apertura ............................................................................. 15 Nótula de abertura .......................................................................... 19 Prefácio ........................................................................................... 21 CAPÍTULO 1: HISTÓRIA E PATRIMÓNIO .............................. 25 Introdução geral ........................................................................ 27 A Linha do Vale do Sabor no Contexto da Criação da Rede Ferroviária Transmontano-Duriense ........................................... 41 A Defesa da Construção da Ponte do Pocinho e Caminho-de-Ferro até Miranda pelos Regeneradores de Moncorvo ........................ 105 A Ponte Ferro-Rodoviária do Pocinho – Um Monumento do Património Industrial que Urge Preservar ................................. 137 A Arquitectura Ferroviária da Linha do Sabor .......................... 187 CAPÍTULO 2: O “SABOR” DO ABANDONO .................... 195 Memórias da Linha do Sabor o contributo de cinco ferroviários 197 Linha do Sabor ............................................................................ 213 A Linha do Sabor na Obra de W. J. K. Davies ........................... 227 CAPÍTULO 3: PROPOSTA(S) DE FUTURO ........................... 233 Reabertura da Linha do Sabor – Uma Abordagem .................. 235 El Ferrocarril del Sabor: una Perspectiva de Futuro ................. 283

CAPÍTULO 4: DO COMBOIO A(S) MEMÓRIA(S) ................ 299 Era a nossa rua ......................................................................... 301 Na staçon de camboio de Dues Eigreijas .................................. 305 Dois homens esperam um comboio ......................................... 307 La lhinha cun que mos cosírun ................................................ 325 O comboio na escrita de J. Rentes de Carvalho. Segmentos ..... 327 Queijo bichado ....................................................................... 339 Flores amarelas para o comboio ............................................... 343 O comboio .............................................................................. 347 CAPÍTULO 5: POÉTICA FERROVIÁRIA ................................ 357 9 ...............................................................................................359 Vale de Ferreiros ....................................................................... 361 Castigo pró comboio malandro ............................................... 363 Otro viaje ................................................................................ 366 Sonho ...................................................................................... 368 Em vagon ................................................................................ 369 Evocación ................................................................................ 370 No comboio ............................................................................ 372 No comboio descendente ........................................................ 373 A benção da locomotiva ........................................................... 374 Pampilhosa, 2015 ..................................................................... 376 O Rio de Ferro ........................................................................ 378 Deus existe, mas não vive no céu ............................................. 379 Na chegada a Ourense da primeira Locomotora ....................... 381 El tren expreso ......................................................................... 383 Comboio ................................................................................. 386 CAPÍTULO 6: ARTE FERROVIÁRIA ....................................... 387 Posfácio ........................................................................................ 399

A Amadeu Ferreira, Leandro Vale e a todos aqueles que sonharam, lutaram e construiram o caminho-de-ferro do Pocinho a Miranda in memoriam A todos aqueles que sonham e lutam pela reabertura, conclusão e ligação do caminho-de-ferro do Pocinho a Zamora

CAPÍTULO 2: O “SABOR” DO ABANDONO

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Memórias da Linha do Sabor: o Contributo de Cinco Ferroviários

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Quando o amigo Carlos d’Abreu me convidou entusiasticamente a colaborar numa obra dedicada ao complexo universo dos caminhos-de-ferro e mais concretamente à Linha do Sabor, devo reconhecer que temi desiludi-lo com a minha primeira e mais intuitiva resposta: infelizmente, eu nada sabia desse particular universo e, honestamente, devia declinar o convite. Porém, o Carlos conhecia perfeitamente a minha longa preocupação com as memórias que se perdem e com as histórias de vida que não se recolhem neste mundo de tão rápidas mudanças. Foi por isso que aproveitou as minhas fraquezas e me lançou o seguinte repto encoberto: não queres conversar com uns ferroviários para que te contem o que viveram? Na formulação da pergunta já figuravam as duas palavras-chave da minha resposta: sempre sim a conversar (saber ouvir, saber perguntar) e sempre sim a tentar perceber como foram outras vidas pretéritas (tão diferentes das nossas). Portanto, decidi render-me e aceitar o convite e o repto. Como antropólogo e como historiador tinha à minha frente essa dupla realidade mágica conformada pela alteridade intersubjetiva (os outros) e temporal (outrora). Apenas faltava marcar uma série de encontros e conhecer esses ferroviários para dialogar atentamente com eles, no intuito de compreender várias histórias de vida, nem sempre fáceis e por vezes até marcadas por éticas e valores realmente épicos para os tempos que correm. O fio condutor eram os caminhos-de-ferro e a Linha do Sabor: cedo me apercebi que os ferroviários que ali trabalharam durante longas décadas conformavam uma espécie de fraternidade profissional, orgulhosa pelos serviços que tinham prestado ao seu país.

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Em total entrevistei cinco ferroviários reformados, residentes em três localidades transmontanas: Lousa, Lagoaça e Carviçais. Todos eles concordaram na dureza do seu trabalho e nas mudanças que entretanto sofreram os tempos. Aquele era um mundo de homens, embora também houvesse mulheres ferroviárias: as “guardas das passagens de nível”. Conversei individualmente com o Sr. Reinaldo na Lousa, com os Srs. Hipólito e Cassiano em Carviçais e com os Srs. Valdemar e Fernando em Lagoaça. Todos eles disponibilizaram desinteressadamente o seu tempo para darem respostas às minhas perguntas e todos eles tiveram imensa paciência quando lhes pedi determinados esclarecimentos sobre uma ou outra questão pontual. As entrevistas foram previamente autorizadas e posteriormente gravados em formato áudio digital. Seguiu-se uma fase de trabalho de gabinete que contemplou novas audições e transcrições dos depoimentos entretanto recolhidos. Devido às limitações de espaço, optei por fazer uma apresentação tripartida para cada um dos meus interlocutores, tentando conjugar a força da imagem, o perfil da biografia e o valor das suas palavras. É por isso que a forma final faz lembrar um bocado a ideia de uma ficha-resumo individualizada. Poderiam ter sido horas e horas de conversa, pois tenho plena consciência de que as histórias ainda por contar são muitas e que todos eles em conjunto somam mais de três séculos de vidas inçadas de memórias ainda bem presentes. Sirva o presente contributo de sentida homenagem a todos os ferroviários.

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O Sr. Reinaldo com a velha panela a vapor na qual cozinhava as refeições.

Resumo biográfico O senhor Reinaldo Reto Queijo nasceu na aldeia moncorvense da Lousa no dia 30 de Setembro de 1943, sendo filho de José Joaquim Queijo e de Teresa Maria Gonçalves. Ao todo, eram dois irmãos. Na Lousa foi batizado e criado, até que chegou a hora de ir à tropa. Casou com Maria Cândida de Jesus Reto Queijo, com quem teve um filho. O senhor Reinaldo entrou ao serviço do estado no mês de Setembro de 1966, altura em que chegou como servente à estação duriense do Pocinho, no concelho de Vila Nova de Foz Côa. O seu percurso profissional como ferroviário inclui diversas passagens pelas linhas do Vouga, do Minho, do Tua, do Douro e do Sabor.

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Memórias da Linha do Sabor

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Os avôs paternos e maternos da esposa do senhor Reinaldo trabalharam na construção da Linha do Sabor, no trecho a montante de Mogadouro: eram “carrilanos” e trabalharam activamente na implementação das vias. O senhor Reinaldo trabalhou na Linha do Sabor entre os anos de 1971 e 1977. Chegou a ela como segundo praticante, em Outubro de 1971. Posteriormente, a 1 de Janeiro de 1972, converteu-se em maquinista. Nos dois últimos anos de serviço foi destacado pontualmente à estação de Mirandela, na Linha do Tua. A Linha do Sabor começava na estação fozcoense do Pocinho e tinha o seu términus na localidade de Duas Igrejas, perto de Miranda do Douro. No total eram mais de cem quilómetros de via e a locomotiva a vapor demorava mais de cinco horas a fazer a viagem, com uma velocidade intermédia de 20 a 30 km/h. Posteriormente a elas foram introduzidas as locomotivas diesel. O senhor Reinaldo destaca na Linha do Sabor os diferentes tipos de mercadorias que eram transladadas consoante a direção do percurso: em sentido ascendente predominavam os adubos da Companhia União Fabril para os campos de cereal, assim como o cimento para as barragens do Douro, enquanto no sentido descendente o que mais se movimentava era o cereal do planalto mirandês, com destino às grandes cidades do litoral. O minério do Carvalhal também jogava um papel destacado entre as mercadorias transportadas pela Linha do Sabor. Do Pocinho até às Duas Igrejas gastava-se muito carvão e muita água: levavam a “casa da máquina” sempre cheia, com perto de 2000-3000 kg de combustível. Para além dos serviços regulares de transporte de pessoas e de mercadorias, também havia comboios mistos e comboios especiais. Nestes últimos um só tipo de carga ocupava todos os vagões. Um bom ferroviário não precisava de muitas ferramentas: “a nossa preocupação era levar um martelo, um escopro e um ponteiro; com isso já tínhamos chaves para todas as porcas”. Em comparação com a Linha do Tua, a do Sabor transportava menos pessoas, mas mais mercadorias,

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e a primeira tinha vários túneis e pontes, enquanto a segunda era mais estável e segura, apesar de certas curvas exibirem um perfil mais fechado. O encerramento da Linha do Sabor foi um processo longo e complexo, no que concorreram diversos factores, entre os quais a errática política do governo e os claros interesses das empresas de transporte rodoviário, que foram as grandes beneficiadas com a sua supressão.

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O Sr. Cassiano com a maquete de uma antiga máquina a vapor.

Resumo biográfico O senhor Cassiano Artur Lopes nasceu na aldeia de Carviçais no dia 19 de Fevereiro de 1945, sendo filho de Artur José Lopes e de Maria de Jesus Lopo. Ao tudo, eram quatro irmãos: três rapazes e uma rapariga.

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Foi criado e batizado em Carviçais. Perdeu a mãe com apenas quatro anos de idade. Terminou a quarta classe e logo começou a trabalhar na agricultura. Casou com Alzira de Jesus Lousa. Fez parte da direcção da banda de música de Carviçais, como tesoureiro, no triénio 2003-2005. Tem três filhos e seis netos. O senhor Cassiano entrou ao serviço do estado no mês de Janeiro de 1972, altura em que chegou como servente à estação de Bragança. O seu percurso profissional como ferroviário inclui diversas passagens pelas linhas do Minho, do Sabor e do Tua, até à sua reforma. Memórias da Linha do Sabor O senhor Cassiano gostava muito do seu trabalho como ferroviário: queria que tudo estivesse certinho, chegava a fazer horas a mais sem pedir nada em troca disso e até recebeu louvores da empresa. Esteve destacado na Linha do Sabor entre os anos 1974 e 1979, que pertenciam a Moncorvo, onde a sua mulher também trabalhou pontualmente como substituta das guardas de passagem de nível. Em 1 de Novembro de 1979, com o encerramento da linha, e como ainda ficaram abertas as estações de Moncorvo, Mogadouro, Sendim e Duas Igrejas, foi para Viana do Castelo como «Auxiliar de Estação» concorrendo posteriormente a «Fiel de Estação». Nessa categoria profissional regressou novamente à estação do Pocinho onde foi promovido a «Controlador de Estação» e foi nessa categoria profissional que se reformou, terminando assim a sua longa carreira de ferroviário. Como natural da aldeia de Carviçais, terra que deu muitos ferroviários à CP, o senhor Cassiano habituou-se desde miúdo a ver passar os comboios. Quando foi destacado na Linha do Sabor entrou ao serviço como descarregador, o que actualmente recebe a designação técnica de “auxiliar de estação”. O seu trabalho inicial consistia basicamente em fazer cargas, descargas e limpezas. Naqueles tempos tinha duas folgas semanais: uma aos domingos e outra às terças-feiras. Os «assentadores de via» que vinham destacados e que ainda não faziam parte dos quadros efectivos dormiam nas barracas

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das estações, enquanto não encontravam uma casa para viver com a família. As barracas eram feitas de travessas da linha e tinham o telhado de chapa de zinco, sem quaisquer condições higiénicas ou sanitárias que pudessem garantir as mínimas condições de habitabilidade. Para o senhor Cassiano os ferroviários constituíam antigamente uma verdadeira família: lembra-se de umas panelas pratos de barro vermelho que havia nas estações de Mogadouro e de Duas Igrejas que serviam para os trabalhadores comerem as refeições: o primeiro que chegava fazia a comida enquanto esperava pelos restantes. O encerramento da Linha do Sabor foi um processo longo, complexo e demorado. Para o nosso interlocutor a data mais válida de fecho seria a do ano 1986, quando o senhor Maximino, o maquinista da última automotora que circulou pela via, colocou à frente da mesma uma fita preta em sinal de luto. O último comboio de mercadorias que circulou na linha foi conduzido pelo maquinista Abílio Carvalho, também carviçaense, em 1988. No que diz respeito às consequências do encerramento da Linha do Sabor, o senhor Cassiano não tem dúvidas: quem mais beneficiou com isso foram as empresas de transporte rodoviário de passageiros e quem mais perdeu foram as populações locais. O nosso interlocutor afirma com tristeza que tem pena de que hoje “muitos não saibam o que era o comboio”. Calcula que na Linha do Sabor chegaram a trabalhar aproximadamente uns cento e cinquenta ferroviários e que os políticos de Lisboa nunca fizeram qualquer nada para defender esta vital infraestrutura transmontana.

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O Sr. Hipólito com o cartão de sócio do Sindicato Nacional dos Maquinistas.

Resumo biográfico O senhor Augusto César Hipólito nasceu na aldeia de Carviçais no dia 2 de Dezembro de 1941, sendo filho de José da Encarnação Hipólito e de Maria da Conceição Mendes. Era o mais novo de seis irmãos, quatro rapazes e duas raparigas. Foi criado e batizado em Carviçais. Antes de ir para a tropa já tinha trabalhado na via. Casou com Maria Amélia Oliveira Lopes, natural de Baião, que lhe deu dois filhos. O senhor Hipólito entrou ao serviço do estado de 1966, altura em que foi trabalhar para a estação de Sacavém. O seu percurso profissional como ferroviário inclui diversas passagens pelas linhas do Vouga, do Douro, do Tua e do Sabor. No ano 1978 sofreu um acidente e perdeu uma perna.

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Reformou-se quando prestava serviço em Sernada do Vouga, onde trabalhou os seus últimos vinte anos como ferroviário. Memórias da Linha do Sabor Antes de ter sido destacado para a Linha do Sabor, o senhor Hipólito já tinha trabalhado na estação de Sacavém. Estando em Moncorvo concorreu para o serviço de fogueiro, acabando por servir nessa actividade durante mais de três anos. Posteriormente concorreu a maquinista, sendo nessa qualiddae destinado a Mirandela, desde onde muitas vezes teve de fazer substituições pontuais na Linha do Sabor. Enquanto fogueiro tinha que encher a caldeira de água, e abastecer o tênder da máquina com carvão, para que o comboio pudesse fazer a viagem entre o Pocinho e Duas Igrejas. Cada trajecto em sentido ascendente chegava a consumir seis ou sete toneladas de carvão, necessárias para que a máquina rebocasse as cento e cinquenta toneladas de carga que transportava. O senhor Hipólito orgulha-se de ter pertencido ao SMAF (Sindicato dos Maquinistas e Ferroviários), pois acredita que a união faz a força e que os trabalhadores têm que se organizar para defenderem os seus direitos e os seus interesses profissionais. Ainda conserva o cartão de associado, que mostra com um amplo sorriso. Quando a Linha do Sabor foi encerrada à circulação de passageiros, o senhor Hipólito ainda não estava reformado da CP, mas sentiu uma imensa tristeza. Não duvida em afirmar que na referida linha se trabalhou muito e que a mesma deu trabalho a muitas pessoas. Lembra-se dos tempos em que chegou a haver quatro comboios diários para levar o minério do Carvalhal até ao Pocinho, onde deixava a via estreita, mudava para a via larga e seguia o seu caminho para o Seixal. O nosso interlocutor assinala que o 25 de Abril melhorou as condições laborais dos trabalhadores ferroviários, ao passarem a ser pagas as horas extraordinárias e os serviços nocturnos. Considera que a Linha do Sabor era mais segura do que a Linha do Tua, embora se recorde de um

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acidente acontecido perto do Carvalhal, em que ocorreu um descarrilamento, mas sem qualquer morte. O senhor Hipólito guarda na memória a solidariedade entre os ferroviários e o forte espírito de camaradagem que imperava entre eles. Acredita firmemente que ainda hoje a reabertura da Linha do Sabor se justifica plenamente, embora confie pouco nos políticos que tantas vezes mentiram e traíram os transmontanos com as suas falsas promessas.

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O Sr. Valdemar com o seu passe de ferroviário.

Resumo biográfico O senhor Valdemar Humberto Lopes nasceu na aldeia de Lagoaça no dia 26 de Novembro de 1934, sendo filho de António José Lopes e de Alzira dos Prazeres Lapa. Era o mais velho de dois irmãos. Em Lagoaça foi criado e batizado. Também ali conheceu a sua esposa, a senhora Celeste Lurdes Rodrigues, que lhe deu dois filhos: um rapaz e uma rapariga.

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O senhor Valdemar entrou ao serviço dos caminhos-de-ferro em 1956, altura em que foi trabalhar para a estação de Mogadouro. O seu percurso profissional como ferroviário inclui diversas passagens pela linha do Sabor, repartidas entre as estações de Mogadouro, Freixo de Espada à Cinta e Lagoaça, onde trabalhou até ao seu encerramento. Posteriormente foi destacado para o Porto, onde acabaria por se reformar. Memórias da Linha do Sabor Apesar de ter trabalhado dois anos em Mogadouro e quatro em Freixo de Espada à Cinta, é a estação de Lagoaça a que está mais intimamente ligada à vida deste ferroviário, pois naquela aldeia nasceu, trabalhou, ali tinha a sua horta e ali tomou conta da sua mãe até ao seu falecimento. Uma das coisas que o senhor Valdemar mais apreciava do trabalho como ferroviário era o “passe” que o identificava como tal e que lhe permitia viajar em primeira classe nos comboios que percorriam todo o país. Para ele, o passe é algo muito especial e que tem um grande valor sentimental. É a única coisa “física” que lhe resta de uma longa vida ao serviço do seu país. Afirma com raiva que, desde que o actual governo conservador lhe tirou as benesses associadas ao seu passe, deixou de se sentir ferroviário. Mesmo assim, guarda o referido documento na sua carteira: “nem que [o governo] mo pedisse [para o devolver], eu não lho dava. Só por tribunal!”. Na Linha do Sabor havia ferroviários de várias classes, sendo uma das principais diferenças a que existia entre o “pessoal do movimento” e o “pessoal da linha”. Também se lembra das “guardas de passagem”, que tinham uma lata com cinco petardos para colocar na via e parar o comboio no caso de haver qualquer perigo ou emergência. O senhor Valdemar indica acertadamente que nos seus tempos apenas os ricos tinham carros e que as bicicletas eram muito poucas, razão pela qual o comboio era o principal meio de transporte para as pessoas que queriam ir para o Porto ou Lisboa. Também se lembra muito vivamente do comboio do correio e dos comboios de mercadorias da Linha

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do Sabor. Afirma com orgulho que houve tempos em que Lagoaça era a primeira estação em expedição de mercadorias, de entre as quais destacavam as laranjas, as batatas e as azeitonas. Houve um ano de muita batata, em que foram despachados desde a estação de Lagoaça um total de 2024 sacas de uma arroba, a dez escudos cada. A Linha do Sabor transportava todo o tipo de passageiros: durante a semana predominavam os lavradores que iam para o Porto a resolver determinados assuntos, enquanto aos fins-de-semana os utentes eram principalmente guardas-fiscais, GNR ou militares transmontanos que regressavam a casa para estarem com a família. A partir da Primavera havia mais movimento, devido aos fluxos de trabalhadores; poucos eram os turistas e muitos menos os estrangeiros. No que diz respeito à durabilidade da linha, o senhor Valdemar afirma que “um comboio, a funcionar, dura cem anos, enquanto um autocarro tem que ser trocado cada quatro ou cinco”.

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O Sr. Fernando com a bita, uma das ferramentas específicas dos ferroviários.

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Resumo biográfico O senhor Fernando Augusto Alves nasceu na aldeia de Lagoaça no dia 2 de Março de 1937, sendo filho de José Augusto Alves e de Raquel de Jesus Teixeira. Ao todo eram nove irmãos. Em Lagoaça foi criado e batizado. Casou com a sua esposa, a senhora Maria Celeste Carteiro, que lhe deu quatro filhos: dois rapazes e duas raparigas. O senhor Alves entrou ao serviço do estado como ferroviário em 1958. O seu percurso profissional inclui, entre outros, dez anos como assentador na estação de Lagoaça, a função de subchefe no Larinho e a chefia do distrito do Pocinho durante onze anos. Ao todo conta com mais de trinta anos de serviço, tendo-se reformado no Pocinho, em 1994, devido a problemas de saúde. Memórias da Linha do Sabor A biografia profissional do senhor Alves constitui uma clara prova da existência de todo um mundo de pessoas focadas nos caminhos-de-ferro. Fala apaixonadamente dos diversos tipos de comboios, dos ferroviários, das ferramentas… É um livro aberto para quem esteja disposto a ouvir e aprender. E conhece perfeitamente o vocabulário técnico destes profissionais. Entre os seus méritos contam-se vários louvores que a própria companhia lhe concedeu. Na altura em que entrou na CP as estações de via estreita contavam com sete funcionários: cinco assentadores, um subchefe e um chefe. O que para os comuns mortais não passa de ser a largura da via e as travessas de madeira, para ele são a “bitola” e as “solipas”. Os “tira-fundos”, as “bitas” e as “dresinas” eram seus companheiros no dia-a-dia. Enumera sem qualquer dificuldade todos os apeadeiros e as estações da Linha do Sabor, em qualquer dos dois sentidos. Foi graças a ele que descobrimos as entranhas do funcionamento administrativo interno da Linha do Sabor, que inicialmente dependeu da secção do Pinhão, até que foi extinta e passou a integrar-se na da Régua.

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Cada secção tinha um engenheiro-chefe, um subchefe e um corpo técnico. A linha correspondia a um único lanço, sedeado em Duas Igrejas, com o seu chefe, que comandava cinco distritos, cada um deles com sete homens. Os distritos eram Moncorvo, Freixo de Espada à Cinta, Lagoaça, Vilar do Rei – Mogadouro, Variz e Sendim – Duas Igrejas. Na altura em que começou a trabalhar como ferroviário, o cursus honorum ou percurso laboral ascendente de qualquer indivíduo era o seguinte: servente, auxiliar, assentador de segunda, assentador de primeira, subchefe e chefe de distrito. Posteriormente, as duas primeiras categorias foram extintas. Quando o senhor Alves ficou a saber que iam encerrar a Linha do Sabor tomou parte activa em diversas mobilizações, especialmente nos finais da década de setenta do século passado. Não tem dúvidas em apontar o antigo governador civil de Bragança como um dos principais responsáveis políticos pelo encerramento da linha. Despede-se de nós mostrando-nos o que é uma bita, a típica ferramenta dos ferroviários, ao mesmo tempo que nos diz com grande seriedade e orgulho: “eu, durante o tempo que fui ferroviário, cumpri sempre o meu dever. Sempre! Sempre!”. O senhor Alves manifesta as suas dúvidas sobre a eventual reabertura da Linha do Sabor, pois desconfia dos políticos e das falsas promessas eleitorais, que servem de isco aos ignorantes e que no final acabam por não se cumprir. Considerações finais Das entrevistas que mantivemos com estes cinco ferroviários da Linha do Sabor depreendem-se várias considerações que consideramos de especial relevância. Em primeiro lugar, constatámos a existência de um forte espírito de grupo no que diz respeito aos trabalhadores deste ramo profissional. Esse espírito era reconhecido desde o exterior e fomentado desde o interior. Como colectivo profissional singular, mostrava-se imbuído de numerosos parâmetros de solidariedade interna, tanto no que diz respeito à sua

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caracterização laboral específica, como à existência de fortes laços comuns à maior parte destes trabalhadores: antecedentes familiares, mecanismos igualitários de acesso, percursos hierarquizados análogos, residências temporárias comuns, comensalidade fraterna periódica… Por outro lado, embora muitos dos ferroviários fossem filhos de agricultores, quase todos eles tinham algum familiar com o que também partilhavam laços profissionais. E quando não eram familiares eram os próprios vizinhos das aldeias nas que nasceram. Assim, por exemplo, pode-se afirmar que muitos dos ferroviários da Linha do Sabor surgiram das povoações de Carviçais, Fornos ou Lagoaça. No entanto, não se pode afirmar, em absoluto, que fossem um grupo fechado ou endogâmico, especialmente se consideramos a extrema facilidade no acesso às escalas básicas da profissão, pois bastava fazer um pedido e superar as correspondentes provas médicas. O tempo iria ditando o percurso laboral de cada um, mas a ascensão e as promoções a longo prazo eram quase garantidas. Todos os nossos interlocutores lembram com extremo pormenor as datas em que iniciaram e acabaram o seu percurso profissional. A existência de elementos pessoais de identificação externa e interna eram almejados pelos ferroviários, ao mesmo tempo que incentivavam o orgulho pela actividade profissional desenvolvida. Assim, por exemplo, o cartão do sindicato e o passe individual são dois documentos frequentemente presentes nas carteiras dos ferroviários reformados. Em paralelo a esta realidade, convém ainda referir a existência de todo um amplo vocabulário profissional relativo às categorias laborais, ferramentas e alfaias, divisões administrativas… As causas do encerramento da Linha do Sabor são apontadas pelos nossos interlocutores como sendo várias e complexas. Entre elas podemos referir desde as erráticas políticas dos governos centrais até aos interesses ocultos de diversos empresários dedicados ao transporte rodoviário de passageiros, sem esquecer a autocrítica dos próprios ferroviários, as mudanças dos interesses económicos e estratégicos da CP, a massiva emigração do interior do país… No entanto, todos eles coincidiram em identificar claramente o grande beneficiado e o grande prejudicado com o encerramento da linha: o primeiro teria sido a classe empresarial

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directamente envolvida no transporte rodoviário de mercadorias e passageiros, enquanto o segundo seria o próprio povo transmontano. No que diz respeito a uma eventual reabertura da Linha do Sabor, o certo é que as opiniões são diversas: enquanto para alguns isto seria plenamente desejável, outros duvidam da sua viabilidade. Independentemente da longa lista de promessas incumpridas pelos políticos, o certo é que a Linha do Sabor marcou uma época e teve o seu destacadíssimo papel no quotidiano pretérito transmontano. Para não esquecer isto, para lembrar o passado com orgulho e para olhar para o futuro com esperança, estão estas cinco histórias de vida: um património imaterial que soma mais de cem anos de experiências e memórias. Lois Ladra89

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Antropólogo cultural e mestre em Arqueologia.

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