2016 - Parecer antropológico sobre o uso da língua nativa no depoimento de indígenas à CPI da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul relativa à “Ação/Omissão do Estado nos casos de violência praticados contra os povos indígenas no período de 2000 a 2015”

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PARECER ANTROPOLÓGICO SOBRE O USO DA LÍNGUA NATIVA NO DEPOIMENTO DE INDÍGENAS À COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO DA ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MATO GROSSO DO SUL RELATIVA À “AÇÃO/OMISSÃO DO ESTADO NOS CASOS DE VIOLÊNCIA PRATICADOS CONTRA OS POVOS INDÍGENAS NO PERÍODO DE 2000 A 2015”

Jorge Eremites de Oliveira1

A respeito da importância do uso da língua nativa ou originária, por parte de depoentes indígenas, para prestar esclarecimentos à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso do Sul sobre o tema “Ação/Omissão do Estado nos casos de violência praticados contra os povos indígenas no período de 2000 a 2015”, tenho a apresentar algumas considerações antropológicas em atenção às leis brasileiras e internacionais relativas ao assunto, as quais embasam o presente parecer. Em primeiro lugar, observa-se que a Constituição Federal de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, assegurou o direito do uso das línguas nativas aos povos indígenas, conforme consta no Artigo 231: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.2

Nota-se que a Lei Maior reconhece aos povos indígenas “[...] sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam [...]”. Significa dizer que reconhece os índios como povos originários, isto é, coletivos humanos que estavam aqui antes mesmo do surgimento do 1 Licenciado em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e mestre e doutor em História/Arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio de pós-doutoramento em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor e pesquisador da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e coordenador adjunto da área de Antropologia/Arqueologia da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). 2

Constituição Federal de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Aceso em 22/04/2016.

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Estado nacional, bem como suas línguas nativas (guarani, terena, guató, ofaié, kadiwéu etc.). Portanto, ao assegurar tais direitos, a Carta Constitucional certifica a existência de línguas nativas distintas em relação à língua oficial adotada no Brasil, o idioma português.

Trata-se do

reconhecimento

da pluralidade sociocultural

ou

do

multiculturalismo que marca a composição da população nacional. Além disso, ao reconhecer que os povos indígenas possuem uma organização social própria, admite, por extensão, que os mesmos dispõem de sistemas jurídicos particulares. Tais sistemas são dinâmicos e estão registrados em suas memórias sociais, constituindo-se por normas transmitidas de geração a geração por meio de linguagens culturais específicas. Esta interpretação remete à ideia de pluralismo jurídico, conforme argumento apresentado a seguir: A Constituição de 1988 inaugura, pois, uma era de respeito ao pluralismo jurídico. No tocante aos indígenas, posteriormente, surgem normas reconhecendo os sistemas jurídicos dessas sociedades para além do modelo imposto pelo Direito estatal. O exercício de reconhecer as normas jurídicas indígenas, consequentemente, acarreta na aplicação relativizada das normas estatais a tais sujeitos. Isso porque há a possibilidade de a norma estatal entrar em choque com as normas internas de um povo indígena, ocasião em que deve ser feito primeiramente um juízo sobre a legitimidade e a exigibilidade da norma da sociedade envolvente perante o membro de determinada etnia3.

Em segundo lugar, o direito de se expressar na língua nativa também está assegurado pela Convenção nº. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989. Esta lei emana de uma instituição que faz parte do Sistema das Nações Unidas e foi ratificada no Brasil por meio do Decreto Legislativo nº. 143, de 20 de junho de 2002, assinado pelo então senador Ramez Tebet, e pelo Decreto nº. 5.051, de 19 de abril de 2004, assinado pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva. Assim estabelece a referida Convenção em seus Artigos 1 e 28: Artigo 1º 1. A presente Convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade

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BECKER, Simone; SOUZA, Olívia Carla N. de; EREMITES DE OLIVEIRA, Jorge. 2013. A prevalência da lógica integracionista: negações à perícia antropológica em processos criminais do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Etnográfica, Lisboa, n.17, v. 1, p.97-120, p.101. Disponível em http://etnografica.revues.org/2580. Acesso em 22/04/2016.

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nacional, e que sejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte dela. 2. A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção. 3. A utilização do termo povos na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de acarretar qualquer implicação no que se refere a direitos que possam ser conferidos ao termo no âmbito do Direito Internacional. [...] Artigo 28 1. Sempre que viável, as crianças dos povos interessados deverão aprender a ler e escrever na sua própria língua indígena ou na língua mais comumente falada no seu grupo. Quando isso não for possível, as autoridades competentes consultarão esses povos com vistas a adotar medidas que permitam a consecução desse objetivo. 2. Medidas adequadas deverão ser tomadas para garantir que esses povos tenham a oportunidade de se tornar fluentes na língua nacional ou em um dos idiomas oficiais do país. 3. Medidas deverão ser tomadas para preservar e promover o desenvolvimento e a prática das línguas indígenas dos povos interessados4.

No caso da Convenção nº. 169 da OIT, faz-se oportuno registrar que esta lei serve de parâmetro para interpretar a própria Carta Magna, bem como leis anteriores e ainda em vigor, como a Lei nº. 6.001/1973, mais conhecida como Estatuto do Índio. Esta última lei foi aprovada durante o regime militar (1964-1985) e não deve ser interpretada ipsis litteris, ou seja, ao pé da letra no que se refere, por exemplo, à ideia de integração, via “aculturação”, dos povos indígenas à comunhão nacional, conforme explicado no decorrer do estudo indicado anteriormente5. Em terceiro lugar, de um ponto de vista antropológico e histórico, verifica-se que para muitas comunidades indígenas o português é uma língua franca, usada para 4

Convenção nº. 169 da OIT. Disponível em http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf. Acesso em 22/04/2016. 5

Refiro-me ao seguinte trabalho: BECKER, Simone; SOUZA, Olívia Carla N. de; EREMITES DE OLIVEIRA, Jorge. 2013. A prevalência da lógica integracionista: negações à perícia antropológica em processos criminais do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. Etnográfica, Lisboa, n.17, v. 1, p.97120. Disponível em http://etnografica.revues.org/2580. Acesso em 22/04/2016.

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pessoas se comunicarem, obrigatoriamente ou não, com indivíduos e autoridades da sociedade nacional. Muitas vezes os índios parecem dominar a língua portuguesa. Em outras, como verificado entre os Guarani e Kaiowá, dão a entender que falam o mesmo idioma guarani recorrente no Paraguai. Avaliações assim estão antropologicamente prejudicadas porque em geral fazem parte, que se faça bem entendido, de um universo do senso comum regional, eivado de equívocos, preconceitos e estereótipos em relação aos povos originários. Sabe-se que os Guarani e Kaiowá normalmente pensam na língua guarani e tentam traduzir suas ideias instantaneamente para o português. Não raramente isso ocorre com um sotaque singular e em desatenção a regras de concordância nominal e verbal, além do uso de adjetivos e substantivos com outras conotações. Ocorre que as regras de plural e concordâncias que existem para a língua portuguesa não são as mesmas, pois, para o idioma guarani. Neste sentido, tenho observado, ao longo de anos de pesquisas em Mato Grosso do Sul, inclusive no âmbito da produção de laudos antropológicos para a Justiça Federal, que a situação apontada gera várias incompreensões e controvérsias. Por este motivo, embora conheça um pouco da língua guarani, sobretudo o jopara (mistura de guarani com português e castelhano), durante meus trabalhos de campo normalmente conto com o apoio e a colaboração de docentes indígenas, os quais atuam como interpretes bilíngues, para manter interlocução à altura com várias pessoas. Antes de prosseguir com o raciocínio, cumpre registrar uma breve digressão sobre a grafia de palavras em guarani apresentadas neste parecer e em vários estudos de minha autoria ou coautoria: [...] essas palavras estão grafadas em itálico e seguindo a fonética das palavras: “ch” = “ch” e “x” (como em português “chácara” e “xícara”); “h” = “h” aspirado (como em inglês “house” e “help”); “j” = “jd” (como em inglês “jump” e “jeep”); k = c (como em português “casa”); “ñ” = “nh” (como português “ninho” e “cozinha”); y = “i” gutural (como em guarani che sy, que significa “minha mãe”, cujo som inexiste na língua portuguesa); etc. [...] boa parte das palavras em guarani é oxítona e não acompanha acento agudo, diferentemente do que ocorre em português com as palavras terminadas em “a”, “e” e “o”. Apenas as paroxítonas e proparoxítonas foram acentuadas. Registra-se ainda que o idioma guarani dos Kaiowa e Guarani é uma língua tribal, ao passo que o falado no Paraguai é uma língua colonial, emergida no contexto de conquista e colonização da região platina. Exemplo: entre os índios a palavra karai é costumeiramente empregada para se referir ao indivíduo que não é indígena; no Paraguai o mesmo vocábulo possui sentido

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de “senhor”, tratamento respeitoso dispensado a autoridades, pessoas de maior idade etc.6

Na citação destacada, percebe-se que a palavra karai possui diferentes sentidos para os Guarani, Kaiowá e paraguaios. Por outro lado, para os índios Mbyá que vivem no Sul do país e em outras partes da América do Sul, o mesmo vocábulo é comumente utilizado para designar o sacerdote ou xamã, chamado pelos Guarani e Kaiowá de ñanderu, quando homem, e ñandesy, quando mulher. Além disso, pessoas percebidas pelos Mbyá como não-indígenas (“brancos”) são chamadas genericamente de jurua. A explicação apresentada corrobora a tese da existência de variações sociolinguísticas dentro do próprio universo da língua guarani falada na América do Sul. Embora percebida dentro de suas variações étnicas e linguísticas, dada sua importância o guarani foi adotado em 2014 como idioma oficial nos trabalhos do Parlamento do MERCOSUL7. Antes disso, porém, no dia 24/06/2010, foi oficialmente reconhecido como língua oficial no município sul-mato-grossense de Tacuru8. Neste último caso, o legislativo municipal tomou a decisão com base, também, no Decreto nº. 592/1992, assinado pelo então presidente Fernando Collor de Mello, referente ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas no dia 16 de Dezembro de 19669. Para outros povos indígenas existentes em Mato Grosso do Sul, como no caso do povo Terena, sabe-se que em muitas comunidades as pessoas também fazem uso diário da língua nativa, o idioma terena. Neste caso, também se valem do português como língua franca para o estabelecimento de contatos com a exterioridade, quer dizer, com a sociedade nacional envolvente. Contudo, muitos Terena se expressam melhor e mais à vontade na língua materna do que na língua portuguesa oficial do Brasil. 6

EREMITES DE OLIVEIRA, Jorge & PEREIRA, Levi M. 2009. Ñande Ru Marangatu: laudo antropológico e histórico sobre uma terra kaiowa na fronteira do Brasil com o Paraguai, município de Antônio João, Mato Grosso do Sul. Dourados, Editora UFGD, p. 31. Disponível em http://www.ufgd.edu.br/editora/catalogo/nande-ru-marangatu-laudo-antropologico-e-historico-sobre-umaterra-kaiowa-na-fronteira-do-brasil-com-o-paraguai-municipio-de-antonio-joao-mato-grosso-do-sul. Acesso em 22/04/2016. 7

Ver matéria Guarani se torna idioma oficial de trabalho no Parlamento do Mercosul, de 07/03/2014. Disponível em http://www.parlamentodelmercosur.org/innovaportal/v/8222/2/parlasur/lingua-guarani-setorna-idioma-oficial-de-trabalho-do-parlamento-do-mercosul.html. Acesso em 22/04/2016. 8

Ver matéria Cidade de Mato Grosso do Sul adota o guarani como língua oficial, de 31/06/2010. Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/cidade-de-mato-grosso-do-sul-adota-guarani-como-linguaoficial-3000919. Acesso em 22/04/2016. 9

O decreto referente ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos está disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm. Acesso em 22/04/2016.

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Em quarto lugar, há que ser ressaltada uma questão importante, mas quase que despercebida por grande parte da população nacional, referente à existência de maneiras indígenas de falar o português. Apesar de certas comunidades originárias aparentemente fazerem pouco uso das línguas nativas, como ocorre entre os Guató, desenvolveram formas específicas de falar a língua portuguesa, incluindo sotaques, entonações de fonemas, construção de vocábulos próprios, palavras com outros sentidos etc. Este é outro exemplo da complexidade a envolver o assunto e as identidades étnicas dos povos indígenas em Mato Grosso do Sul. Em situações desse tipo, deve-se manter à devida atenção para compreender depoentes indígenas que se valem de uma espécie de “português índio” para se comunicar com autoridades do Estado. De todo modo, independentemente da compreensão que os parlamentares venham a ter sobre o domínio que os depoentes possuem sobre a língua portuguesa, deve-se ter claro que os indígenas têm o direito de falar suas línguas nativas durante oitivas ou em outras situações de depoimento formal. Esta situação não prejudica os trabalhos da CPI que trata da “Ação/Omissão do Estado nos casos de violência praticados contra os povos indígenas no período de 2000 a 2015”, tampouco de outras quaisquer, pelo contrário. Está em consonância com o ordenamento jurídico nacional e internacional. Proceder de maneira contrária gera, pois, vícios aos trabalhos da CPI e denota violência contra depoentes indígenas. Para evitar eventuais situações desse tipo, sugere-se que seja previamente providenciado um tradutor intérprete para facilitar o entendimento dos depoimentos. Em quinto e último lugar, deve-se considerar que o plenário da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso não é um ambiente familiar para a maioria dos indígenas. Trata-se de um espaço percebido por eles como um lócus de poder no Estado nacional, onde na condição de depoentes geralmente não se sentem inteiramente à vontade para falar sobre assuntos dos mais complexos e delicados, como a violência armada que afirmam ter sofrido amiúde. Em locais assim, a gentileza e a solidariedade entre os seres humanos e o respeito mútuo às diferenças são de grande relevância. Servem para a construção de um ambiente menos tensionado, dentro de uma verdadeira casa dos povos, onde os indígenas possam depor à altura do esperado pela CPI. Isto posto, sou de parecer favorável a que depoentes indígenas possam valer-se, por decisão própria, de sua língua originária para depor nesta casa de leis, bem como em quaisquer órgãos do Estado onde estejam como convocados a prestar esclarecimentos.

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Pelotas-RS, 22 de abril de 2016.

Prof. Dr. Jorge Eremites de Oliveira Antropólogo, Arqueólogo e Historiador

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