80 Carnavais

September 9, 2017 | Autor: Jair Miranda | Categoria: Cultural Heritage, Popular Culture, Samba, Escolas De Samba
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80 CARNAVAIS
Da profecia portelense à memória de Dona Dodô

Neste próximo carnaval carioca de 2015, tanto quanto festejar os 450
anos da cidade do Rio de Janeiro, a Prefeitura e a Escola de Samba Portela
tem outra importante data a comemorar e uma grande personagem a homenagear:
os 80 anos do primeiro desfile oficial das escolas de samba, ocorrido em 3
de março de 1935, quando a Portela foi campeã pela primeira vez, e Dona
Dodô: sua mais antiga componente, que hoje nos deixa aos 95 anos e foi,
como porta-bandeira da escola, a última testemunha daquele histórico
desfile.
Mais do que um marco na história do carnaval na cidade, aquele evento
de negros despossuídos, expulsos do centro da cidade na reforma urbanística
do Prefeito Pereira Passos, carrega um carga simbólica ímpar não só para o
carnaval carioca, mas para o milenar carnaval praticado em todo o mundo:
afinal aquele samba "duramente perseguido nas esquinas, nos botequins e nos
terreiros", totalmente desprestigiado em relação aos ranchos, blocos e
grandes sociedades da época, em apenas oitenta anos transformou aquele
seletivo e importado carnaval na maior festa popular brasileira e no "maior
espetáculo da terra", segundo o "trade turístico internacional".
No entanto, para falar de marco histórico, festa popular e turismo
internacional, devemos voltar a 1935 e relembrar um outro fato histórico
esquecido, mas de igual importância: foi quando o sambista Paulo da Portela
e seus companheiros Antônio Caetano e Rufino dos Santos, num arroubo de
otimismo, incoerente para o tamanho e prestígio das escolas de samba na
época, criaram para o primeiro desfile oficial das escolas de samba, o
enredo "O Samba Dominando o Mundo". Com esse enredo/profecia, que trazia
uma baiana sobre um grande globo terrestre, como principal alegoria, a
Portela foi campeã, a primeira campeã, com esse primeiro tema-enredo,
justamente desse primeiro, de uma série de desfiles que se seguiram e se
transformaram no grandioso carnaval que é hoje.
Mas, entre o heroico passado, o sucesso presente e os sinais de
esgotamento que já se apresentam nesse formato de espetáculo dos desfiles
com o afastamento da classe popular que o criou e a expansão dos blocos de
rua, muitas questões ainda são uma incógnita para uma previsão razoável
sobre o futuro das escolas de samba. Uma delas diz respeito à excessiva
comercialização dessa festa popular e, por conta disso, a crescente
padronização dos desfiles. Outra, refere-se ao gigantismo e a
espetacularização das "Super Escolas de Samba S.A" e, em decorrência, o
embate entre a tradição e a inovação nos desfiles, tão bem ilustrado no
episódio ocorrido com a Velha-Guarda da Portela no carnaval de 2005, quando
foi impedida de desfilar para não sacrificar o tempo máximo permitido para
o espetáculo.
Apesar de todas essas questões, no entanto, a que se coloca como a
mais essencial e, talvez, a mais complexa, é sobre as razões que ainda
fazem do samba essa paixão nacional, essa energia que ainda conquista e
domina o interesse de sambistas mundo afora, tal como profetizou Paulo da
Portela e os seus parceiros naquele enredo do primeiro desfile oficial da
Portela.
A cultura forjada nas escolas de samba cresceu no Rio de Janeiro, se
espalhou por todos estados do Brasil e vem se expandindo enormemente na
Finlândia, Alemanha, Inglaterra, França, Itália, Holanda, nos Estados
Unidos, Canadá, Japão, na Austrália, na Sérvia e até na Coreia do Sul, mas
diante dessa consagração global, devemos nos perguntar: qual é a fórmula
desse fermento? O que ele tem de essencial e universal? Como mantê-lo
sempre vivo? E, porque essa paixão pelo samba, a ponto de atrair tantos
turistas para a cidade?
A julgar pelas respostas a essas perguntas, formuladas a sambistas
estrangeiros para o projeto "Samba Global", diríamos que o fermento é a
alegria, o encantamento, a fantasia, a felicidade, a liberdade, a inclusão
social e o jogo de cintura, ou seja: a vocação que o samba tem para
festejar a vida, para superar as dificuldades e tristezas dos seus
praticantes. E desses praticantes ninguém melhor do que Dona Dodô da
Portela se nutriu desse fermento, se permitiu vivenciar essa emoção na
avenida por tanto tempo, sentindo a pulsação da bateria no mesmo ritmo do
seu coração, testemunhando por 80 carnavais, até os seus 95 anos, a alegria
espontânea do seu povo. Só ela poderia nos dizer melhor sobre as razões
dessa paixão pelo samba e o quanto ele já é quase sinônimo de carnaval.
Agora sem ela, a exemplo dela, em sua memória e de todos os
sambistas, nos resta reinventar o carnaval, respeitando, preservando e
mantendo essa essência cultural do samba a todo custo, seja qual for o
lucro comercial que se apresenta de imediato, seja qual for o tamanho da
fatura política momentânea atribuída à Prefeitura, aos organizadores do
carnaval e às lideranças das escolas de samba com essa grande festa
popular.
Ao comemorar os 450 anos da cidade no seu enredo, festejar os 80 anos
do seu primeiro campeonato e homenagear sua eterna porta-bandeira, a
Portela, que parece ter resgatado essa essência do samba em sua comunidade
na atual gestão, tem tudo para reinventar o carnaval no desfile de 2015.
Quem sabe assim, ela também possa estender aquela profecia dos seus
fundadores e multiplicar a paixão que Tia Dodô tinha pelo samba por, no
mínimo, mais oitenta anos.

Rio de Janeiro, 6 de janeiro de 2015.

Jair Martins de Miranda ([email protected])
Professor da UNIRIO, Coordenador da pesquisa "Samba Global"
e do projeto "Portal do Carnaval"
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