A actualidade das disputas medievais

August 17, 2017 | Autor: Maria Leonor Xavier | Categoria: Philosophy, Medieval Philosophy, Medieval Literature, Medieval Studies
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Arquipélago. Revista da Universidade dos Açores, Série Filosofia, nº 8 (Ponta Delgada, 2007), pp.353-360.

A ACTUALIDADE DAS DISPUTAS MEDIEVAIS Maria Leonor L. O. Xavier

Comecemos por observar o significado habitual do epíteto «medieval», na linguagem dos media inclusive, em contraste com o significado corrente de «clássico». «Medieval» aplica-se correntemente àquilo que está mais do que ultrapassado, que é incompatível com os padrões civilizacionais da actualidade, e, portanto, é verdadeiramente um desqualificativo, senão mesmo um insulto, para aquilo que predica. Em contrapartida, «clássico» aplica-se habitualmente àquilo que não passa, que permanece imorredouro, e, desse modo, constitui padrão inalterável de qualidade. Ora, é este sentido de «clássico» que podemos estender às disputas medievais, na medida em que elas nos fornecem um modelo clássico de disputa: a questão disputada. A questão disputada A disputa (disputatio) era a discussão pública e argumentada de um tema. O tema em discussão ou em debate era a questão (quaestio). Os cursos universitários integravam, então, regularmente a discussão pública de questões: eram as questões disputadas (quaestiones disputatae). A questão era antecipadamente escolhida pelo mestre (magister), para ser discutida publicamente ao longo de 2 sessões: a 1ª sessão, durante a qual eram argumentadas pelo bacharel as posições em confronto no âmbito da questão, era a disputa (disputatio) propriamente dita; a 2ª sessão, durante a qual o mestre definia a sua posição também argumentadamente, era a determinação (determinatio), isto é, a resposta decisiva do mestre. A extensa colecção das Questões Disputadas sobre a Verdade (Quaestiones Disputatae de Veritate), de Tomás de Aquino, dá testemunho desse exercício regular da disputa de questões no ambiente universitário do seu tempo. No género das questões disputadas, cabe destacar as questões quodlibéticas (quaestiones quodlibetales): eram questões publicamente debatidas, uma ou duas vezes por ano, fora da leccionação regular dos cursos, num espaço exterior da Universidade, com entrada livre. A questão não era antecipadamente escolhida pelo mestre, mas era tema livre (de quolibet), proposto no momento por qualquer pessoa da assistência (ad voluntatem cuiuslibet). A questão não era primeiro definida por um bacharel (confronto de posições e respectivas razões de sustentação) e depois determinada pelo mestre, mas era disputada pelo mestre, que respondia directamente aos membros da assistência, os quais podiam objectar livremente. Tomás de Aquino também se distinguiu no exercício especialmente exigente e arriscado destas questões de tema livre, deixando-nos uma colecção de doze Questões Quodlibéticas (Quodlibeta I-XII).

Os debates públicos e mediáticos 1

Arquipélago. Revista da Universidade dos Açores, Série Filosofia, nº 8 (Ponta Delgada, 2007), pp.353-360. Se repararmos bem, o modelo da questão disputada continua hoje a projectar-se nos debates públicos e mediáticos. Na organização dos debates públicos, a entidade organizadora convida algumas personalidades de prestígio a defenderem argumentadamente as respectivas posições sobre a questão em debate. A questão é previamente preparada pelos convidados, e, sendo público o debate, o público assistente pode ter direito a intervir. Quanto mais exigente for o público, ou, então, quanto mais alargado for, tanto maior é o risco de exposição dos principais disputantes da questão, o que faz aumentar também o rol de regras moderadoras da intervenção do público no debate da questão. Atente-se no que normalmente não se vê, mas se sabe que acontece antes dos debates televisivos, sobretudo, daqueles que envolvem personalidades políticas, que têm votos a ganhar ou a perder em eleições: as regras do debate são meticulosamente negociadas nos bastidores. Portanto, quanto maior é o risco de exposição, tanto maior tende a ser a regulamentação do debate. Nos debates televisivos, acresce, no âmbito do risco de exposição, o de perda pela imagem, que é maior do que o de refutação pela razão. A tecnologia revelou o poder da imagem, que pode ser bem mais mortífero para a figura pública de uma pessoa do que a sua falta de razão. Nessa medida, a imagem pode apagar o papel do adversário, que é incontornável na disputa racional. Mas a tecnologia também oferece alternativas, como sejam os foros de discussão pública na internet, chamados «blogues», que qualquer pessoa pode abrir com a expressão de opinião sobre um tema controverso, expondo-se ao contraditório de qualquer outra pessoa que queira objectar ou contribuir de algum modo para o debate. Assim se retoma o espírito das questões quodlibéticas. Nos blogues, a pluralidade de posições é mais do que nunca favorecida, porquanto eles estão abertos à livre intervenção de um público já muito alargado, como é o dos internautas. Também aí a expressão escrita, como forma de expressão por excelência reflectida, pode rivalizar com a oralidade e a imagem, promovendo a ponderação de razões, e, desse modo, o aprofundamento das posições em debate. Por fazer está, porventura, um labor que a história ainda não deu tempo para ser feito, que é o da preservação, selecção e organização das posições confrontadas nos debates de relevância maior via net. Pode ser que, desse modo, os blogues sobrevivam à actualidade fugaz dos debates, dando origem a um novo género literário da escrita de ideias. As disputas medievais, que eram disputas orais, deram origem a um novo género de organização e de exposição escrita de ideias. A questão disputada passou, de facto, à escrita, transformando-se num género literário, perpetuado nas obras que nos permitem hoje revisitá-la e perceber a sua estruturação interna. A estrutura da questão disputada Da questão disputada, como género literário da escrita filosófica, encontramos uma obra-padrão também no legado de Tomás de Aquino: a Suma de Teologia (Summa Theologiae). Segundo o testemunho desta obra, a questão é ou uma pergunta genérica ou a enunciação de um tema geral. Pode ser uma pergunta genérica, como exemplificam os dois seguintes casos da ordem de questões sobre o conhecimento: o que é que o nosso intelecto conhece no mundo material? (Sum. Teol. I, q.86); como é que o nosso intelecto se conhece a si mesmo? (Sum. Teol. I, q.87). Mas a questão pode ser também a enunciação de um tema geral, como nos seguintes exemplos: a verdade (Sum. Teol. I, q.16); a falsidade (Sum. Teol. I, q.17); a essência da alma (Sum. Teol. I, q.75). Em qualquer dos casos, a questão requer análise em perguntas determinadas: os artigos. Por 2

Arquipélago. Revista da Universidade dos Açores, Série Filosofia, nº 8 (Ponta Delgada, 2007), pp.353-360. exemplo, a questão de saber o que é que o nosso intelecto conhece no mundo (Sum. Teol. I, q.86), deixa-se analisar em quatro artigos, isto é, em quatro perguntas determinadas: (a.1) se o nosso intelecto conhece os singulares; (a.2) se o nosso intelecto pode conhecer o infinito, como a infinitude dos singulares que sucedem temporalmente uns aos outros; (a.3) se o nosso intelecto conhece os futuros. Também a questão da verdade (Sum. Teol. I, q.16) se deixa analisar em múltiplos artigos, entre os quais destacamos os seguintes: (a.1) se a verdade existe apenas no intelecto; (a.3) se o verdadeiro e o ente são convertíveis entre si, de modo que se possa dizer que todo o verdadeiro é um ente e que todo o ente é verdadeiro; (a.6) se existe uma só verdade, pela qual é verdadeiro tudo o que é verdadeiro; (a.8) se a verdade é imutável. Estas perguntas, que analisam a questão, não têm uma só resposta possível, têm pelo menos duas respostas contraditórias entre si, que não podem ser admitidas conjuntamente, de modo que a defesa de uma obriga à recusa da outra. Ora, o artigo começa por enunciar a resposta recusada, introduzindo-a através da expressão «parece que» (videtur quod). Aquilo que parece e que aparece em primeiro lugar, na análise de um artigo de uma questão disputada, nunca é a decisão do proponente da questão, é sempre a posição do adversário. Assim se abre o contraditório na estrutura do artigo. Como, em filosofia, as posições não são sem razões, ao enunciado da posição do adversário, segue-se a série das razões, ou argumentos, que sustentam essa posição. Por exemplo, no âmbito da questão de saber o que é que o nosso intelecto conhece no mundo (Sum. Teol. I, q.86), o artigo 2 (a.2) pergunta se o nosso intelecto pode conhecer o infinito. Parece que sim: tal é a posição do adversário de Tomás de Aquino. Entre as razões de sustentação da posição do adversário, contam-se as duas seguintes: antes de mais, porque é próprio do nosso intelecto, conhecer os géneros e as espécies, e as espécies de alguns géneros, que o intelecto conhece, são infinitas, como a espécie do número ou a da figura; e depois porque, tal como se um corpo não impedisse outro de existir no mesmo lugar, nada impediria que existissem infinitos corpos num mesmo lugar, assim também em virtude de um conceito (species intelligibilis) não impedir outro de existir no mesmo intelecto, nada impede que um mesmo intelecto conheça uma multiplicidade infinita de conceitos. Tomás de Aquino formula a sua resposta em oposição relativa à posição do adversário, defendendo que o nosso intelecto não pode conhecer o infinito em acto, mas somente o infinito em potência, porque o nosso intelecto está naturalmente adaptado para conhecer o mundo material e, no mundo material, não se encontra o infinito em acto, mas sim o infinito em potência, que se constitui por sucessão das partes. É sempre por referência à posição do adversário, enunciada e argumentada em primeiro lugar, que o proponente da questão define a sua própria posição, no corpo central do artigo, que começa com a expressão «respondo que deve dizer-se que» (respondeo dicendum quod). Mas não basta contrariar a posição do adversário, que não é uma posição irracional, visto que é uma posição argumentada. É preciso, por isso, contra-argumentar, ou refutar as suas razões. Por isso, ao corpo central da resposta, segue-se uma última série de razões, ou de argumentos, que são contra-argumentos relativos aos da primeira série, que sustenta a posição do adversário. Concluamos então a análise do artigo (a.2), que tomámos como exemplo. Após a formulação da sua resposta, Tomás de Aquino procede à a refutação das razões do adversário. Para refutar a primeira das duas razões acima referidas, o filósofo contrapõe que o conhecimento das espécies infinitas do número e da figura não garante o conhecimento do infinito em acto pelo intelecto humano, porquanto este não conhece os géneros e as espécies senão por abstracção a partir das imagens, incluindo as espécies 3

Arquipélago. Revista da Universidade dos Açores, Série Filosofia, nº 8 (Ponta Delgada, 2007), pp.353-360. do número e da figura1, de modo que não pode conhecer estas espécies senão por sucessão de imagens, e, portanto, não pode conhecer a infinitude delas senão em potência. À segunda razão, o mesmo filósofo contrapõe que o facto de um conceito não impedir a existência de outro no mesmo intelecto não garante que o intelecto humano possa conhecer o infinito em acto. Na verdade, tal como vários corpos não ocupam um mesmo lugar senão sucessivamente, assim também os conceitos não ocupam o nosso intelecto senão sucessivamente, porquanto o nosso intelecto não pode entender actual e simultaneamente uma grande multiplicidade de coisas. Que balanço fazer desta disputa exemplificativa, quanto ao papel que nela desempenha o adversário? Na realidade, Tomás de Aquino refuta as razões do adversário com ilações da sua própria teoria do conhecimento. E esta teoria não se comporta como algo que se imponha indiscutivelmente, pois ela vai-se formando, nos elementos que a constituem congruentemente, ao longo das respostas centrais dos artigos que analisam as questões de conhecimento. No artigo que tomámos como exemplo, o autor determina a posição da sua teoria do conhecimento a respeito do conhecimento do infinito, com base na distinção entre conhecimento do infinito em acto e em potência, concedendo o conhecimento intelectivo do infinito em potência e negando o conhecimento intelectivo do infinito em acto. Esta negação é baseada no modo de conhecimento abstractivo do conhecimento. No entanto, o adversário não advertira, na sua posição e nas suas razões, da distinção entre conhecimento do infinito em acto e conhecimento do infinito em potência. Ficamos sem saber como é que ele reagiria a essa distinção, que Tomás de Aquino introduz na disputa e na definição da sua posição. Aquilo que verificamos é que Tomás de Aquino introduz essa distinção para definir a sua posição em oposição à do adversário, mas essa mesma distinção também permite diminuir o grau de oposição ao adversário, porque, de acordo com a mesma, Tomás de Aquino concede ao adversário que o intelecto conhece o infinito pelo menos em potência. Este exemplo ilustra que o adversário não é um obstáculo simplesmente a eliminar, nem fácil de eliminar, mas é, sobretudo, uma figura indispensável à construção do artigo, e, portanto, à análise da questão. A identidade do adversário e os valores do passado Mas quem é o adversário numa questão disputada? É sempre o representante de uma posição disputável, mas não tem que ter uma identidade pessoal. Aquilo que muitas vezes se verifica é que, em favor da posição do adversário, convocam-se razões ou argumentos defendidos por distintas pessoas de prestígio firmado (auctoritates), de modo que a mesma posição disputável pode ter vários filósofos a defendê-la. E entre estes filósofos, tanto se podem encontrar contemporâneos do autor que formula e disputa a questão, quanto filósofos de um passado recente ou remoto. A título de exemplo, ainda no âmbito das questões de conhecimento, formuladas e analisadas por Tomás de Aquino, considere-se o texto central da resposta do artigo 6 (a.6) da q.84 da Suma de Teologia I, onde Tomás de Aquino convoca filósofos tão diferidos entre si no tempo e no espaço, como Agostinho e Aristóteles, Demócrito e Platão, para o debate sobre a origem do conhecimento intelectivo. Na q.84, o autor interroga-se do seguinte modo: como é que a alma unida ao corpo conhece as coisas 1

Cujo conhecimento implica maior grau de abstracção, pois abstrai não só da matéria sensível e da matéria específica, como pode abstrair também da matéria inteligível individual (substância), retendo apenas a matéria inteligível comum (ente, uno, etc.): cf. Sum. Teol. I, q.85, a.1.

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Arquipélago. Revista da Universidade dos Açores, Série Filosofia, nº 8 (Ponta Delgada, 2007), pp.353-360. corporais? E, em particular, no artigo 6 (a.6), ele pergunta se o conhecimento intelectivo é recebido das coisas sensíveis. Parece que não, por três razões imputáveis a Agostinho, que desempenha por isso aqui o papel de adversário de Tomás de Aquino: porque os sentidos não apreendem a verdade, que é objecto do conhecimento intelectivo; porque o corpo não pode agir sobre o espírito; e porque o conhecimento intelectivo não conhece apenas os sensíveis. Mas contra isto, está aquilo que Aristóteles, o Filósofo, admite, em Metafísica I (981 a 2) e Segundos Analíticos II (100 a 3), a saber, que o nosso conhecimento começa nos sentidos. Tomás de Aquino define a sua posição em conformidade com a de Aristóteles, que ele próprio situa como uma posição intermédia (media via) entre dois extremos: o extremo da posição de Demócrito e de outros antigos filósofos da natureza, que, não diferenciando entre o intelecto e o sentido, admite que todo o nosso conhecimento procede directamente dos sensíveis, que fazem entrar na alma as suas imagens; e o extremo da posição de Platão e de Agostinho, que, separando totalmente o intelecto do sentido, defende que o intelecto não conhece mediante o uso dos sentidos, mas por participação das formas inteligíveis separadas. Entre os dois extremos, Tomás de Aquino situa a posição de Aristóteles, segundo a qual o conhecimento intelectivo não se produz simplesmente nem pela impressão dos sensíveis nem pela participação dos inteligíveis, mas antes pela acção do intelecto agente que torna inteligíveis as imagens (phantasmata) por modo de abstracção (per modum abstractionis). Esta é a posição escolhida por Tomás de Aquino. Este exemplo é significativo a dois propósitos: acerca do valor dos filósofos do passado, bem como acerca da definição de uma orientação filosófica. Antes de mais, acerca do valor dos filósofos do passado: são eles filósofos mortos, neste modelo de disputa, que é a questão disputada? A questão escolástica comporta uma atitude a respeito da história da filosofia, que vale a pena considerar. A filosofia medieval escolástica, isto é, universitária, não tematiza a questão da relação entre a filosofia e a sua história, nem faz parte, integrante ou adjacente, da produção filosófica da época, a elaboração de histórias da filosofia. No entanto, há uma relação muito estreita e não reflectida entre filosofia e história da filosofia; uma relação tão estreita que a filosofia se confunde com a sua própria história, ou se reduz à sua própria história, segundo as palavras de Martial Gueroult: «A este respeito, poder-se-ia dizer que a Idade Média é a idade de ouro da História da filosofia, uma vez que toda a filosofia parece reduzir-se a ela.»2. Ora tal redução constitui, segundo o mesmo filósofo, a máxima valorização da história da filosofia. Esta «redução da filosofia à sua história» é especialmente verificável na questão disputada, que convocava os filósofos contemporâneos a par dos filósofos do passado mais ou menos remoto, abstracção feita do diferimento histórico entre eles. Na questão disputada, não há fronteiras temporais que impeçam os filósofos do passado de trocar argumentos com os filósofos do presente. Também acerca da definição de uma orientação filosófica, a questão disputada oferece um modelo relevante: aí uma orientação filosófica define-se situando-se em relação de maior ou menor oposição a outras orientações filosóficas supostas nas posições previamente formuladas do oponente, a que temos vindo a chamar «adversário». Uma orientação filosófica define-se em situação relativa a outras orientações alternativas, as do adversário. Uma orientação filosófica precisa de adversários, isto é, de alternativas, para se definir e fazer valer. E onde podemos encontrar os adversários, as alternativas, que sejam como que os pontos cardeais da 2

Histoire de l’Histoire de la Philosophie I, Paris, 1983, C.IV, p.112.

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Arquipélago. Revista da Universidade dos Açores, Série Filosofia, nº 8 (Ponta Delgada, 2007), pp.353-360. nossa orientação filosófica? Em todos os tempos que integram a experiência de pensar da história da filosofia. Deste modo, a questão disputada constitui um modelo não apriorístico da génese de uma orientação filosófica, porquanto tal génese não é uma postulação a priori nem uma criação a partir do nada, mas uma via situada na experiência da história da filosofia.

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