A ameaça intercultural: o extra-terrestre (H. G. Wells e Iuri Lotman)

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Línguas, Literaturas e Culturas

Estudos Interculturais

A AMEAÇA INTERCULTURAL: O EXTRA-TERRESTRE Aplicação da Semiosfera de Iuri Lotman à obra War of the Worlds de H. G. Wells

Docente: Cristina Santos Discente: Tiago Filipe Clariano Évora, Dezembro de 2014

“A imaginação individual produz metros quadrados onde o outro não consegue pousar os pés, metros quadrados subjectivos, propriedade subjectiva, individual: uma riqueza, esta sim, absolutamente privada.” (Tavares, 2013)

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Índice Introdução ......................................................................................................................... 4

1.

Da textualização da cultura .................................................................................... 7

2.

Condensação intercultural: o alien como monstro .......................................... 12 2.1.

A alteridade no espaço exterior .................................................................... 14

3.

Conflito como mediação? .................................................................................... 17

4.

Conclusão ................................................................................................................. 21 4.1.

Sobre semiótica da cultura ............................................................................. 21

4.2.

Reflexos do colonialismo na ficção do extra-terrestres .............................. 24

Bibliografia ....................................................................................................................... 27

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Introdução No século XXI ainda parece existir um constante subtexto de diabolização do Outro na produção e mediação cultural. Este subtexto franqueou fronteiras cósmicas com a criação de entidades que já não são humanas nem animais, que já não podem ser criadas através de uma reconfiguração daquilo que temos no nosso mundo, precisamente por não lhe pertencerem. A ficçãocientífica coloca muitas vezes a hipótese da existência de organismos noutros planetas, galáxias ou mesmo universos, ainda mais distantes ou paralelos, que podem ter desenvolvido uma cultura própria ou mesmo viver na sua animalidade desprovida de razão. Mas tudo isto são hipóteses e cada exploração do tema pode oferecer uma diferente cartografia. Os aliens são monstros construídos enquanto preocupações pelo que é alheio. Etimologicamente podemos até associar o nome alien à etimologia de alergia, conforme Maria Augusta Babo: “allos (outro) + ergon (acção) (…) Os problemas alergológicos serão então reacções extremadas do corpo face ao exterior” (2001: 260). O seu vir-de-fora é algo que nos preocupa tanto como o receio que nos abarcava quando nos Descobrimentos se encontraram povos e raças novos, diferentes. A sua simbólica é uma da binomialização entre a busca e o receio de conhecer o desconhecido ou descobrir o encoberto. A tipologia da literatura de viagens é levada a toda uma nova escala quando deixamos de viajar dentro do nosso mundo, já totalmente descoberto e fechado como redondo, para abrir novas fronteiras a que ainda somos incapazes sequer de dar forma. Iuri Lotman, em A Semiosfera I e A Semiosfera II funda uma estrutura semiótica cultural baseada na ideia de biosfera, o primeiro grande nível de organização semiótica, mecanismo cósmico que ocupa espaço estrutural na unidade planetária, de sinais naturais e mesmo vivos (bio), pertencentes ao nosso mundo que se pode reduzir, em último caso, à soma dos átomos que a 4

compõem. Sobre esta, e por tomada de posse humana, construiu-se a noosfera, de ordem material e espacial, onde os sinais já surgem através da razão humana e em prol de um melhoramento da qualidade de vida. É sobre a noosfera que se constrói a semiosfera, o campo da comunicação e permuta cultural do poder simbólico, de carácter abstracto, é o espaço fora do qual é impossível a semiose (enquanto formação ou transmição de sinais). A semiosfera é delimitada por uma fronteira que traduz, transduz ou filtra a desordem extra-semiótica e que pode tomar acepções históricas, de práticas tradicionais, linguísticas (pela proliferação e diferenciação das linguagens) ou territoriais. A nossa fronteira final para com o alien corresponde à própria atmosfera, fora da qual a configuração do ar que respiramos é diferente e as leis do movimento são igualmente diferentes, fora dela, toda a conduta humana ver-se-ia alterada e é um espaço de pura entropia cósmica (Lotman, 1996:10-15). A inovação de Lotman ao expor o intercâmbio semiótico neste vocabulário de esferas é a aplicabilidade superior a qualquer modelo de sinais, sendo que os exemplos recorrentes são ao nível da cultura e do texto. Onde tradições semióticas anteriores aplicavam noções de forma e substância, como a de Louis Hjemslev, Iuri Lotman encontra e define níveis semióticos da seguinte forma: na biosfera cabem os recursos naturais que levaram à construção do sinal, já a noosfera é a alteração feita por parte do Homem para que esse sinal fosse emitido (e que pode ou não ser da ordem do logos) e, finalmente, a semiosfera é onde os sinais propriamente ditos são postos em trânsito. Mas existem duas outras noções importantes: a de fronteira que é um espaço de limitação, de tradução e transdução de sinais, é aqui que se colocam actividades transsemióticas como a tradução linguística ou a transposição de um texto a um filme, é onde se dão as mudanças de regime; e o espaço extra-semiótico, onde são deixados os sinais que não pertencem ao regime de comunicação em análise.

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Espaço extra-semiótico

Biosfera Noosfera Semiosfera Fronteira

Figura 1 - Esquema da semiosfera de Iuri Lotman.

Este ensaio visa, assim, comparar a forma como as narrativas de aliens procuram subverter a lógica lotmaniana. O alien é um corpo estranho, talvez irreconhecível até, que não tem origem no nosso mundo, assim, não tem origem na semiosfera que nós reconhecemos. Vindo de fora, ultrapassa a fronteira de forma a invadir o nosso espaço de movimentação. Para estes efeitos, tomo o livro de H. G. Wells, War of the Worlds que descreve uma invasão marciana ao planeta Terra.

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1. Da textualização da cultura O discurso ininterrupto do amante sobre o amor e sobre o objecto do amor exibe-se como algo que não é separável do corpo. Não há um ser que fala, há um ser falante, falar é ser: a linguagem “é uma pele: esfrego a minha linguagem contra o outro. É como se tivesse palavras de dedos ou dedos na extremidade das minhas palavras”, escreve Barthes. (Tavares, 2013:148)

Trabalho e fruto da organização logocêntrica, o ponto de vista da cultura para a semiótica vê-se inexoravelmente apontada para a linguagem e os usos que dela são feitos. Há uma consciência linguística que não é unicamente suporte do discurso da cultura, mas um subterfúgio ou uma veia interior que lhe dá esse cunho. Talvez pela soberba tendência da linguagem que tanto tenta abarcar tudo ou mesmo pela paranoia de procurar significados por detrás de tudo. O que é facto é que, devido a este pensamento, todas as manifestações culturais parecem ter um objectivo último de transportar significação, da mesma forma que a linguagem o faz. Os mais rudimentares esquemas da comunicação pressupõem desde sempre, pelo menos, um emissor e um receptor e entre estes actores circulam mensagens produzidas por eles com o objectivo de suster entre eles uma relação. Disto é exemplo o modelo matemático da comunicação exposto por Claude Shannon e Warren Weaver em The Mathematical Theory of Communication. Socorrendo-e deste modelo, Umberto Eco abre uma problemática para a escrita quando em O Signo escreve, entre parêntesis, “no caso de um escritor, Fonte e Emissor praticamente coincidem” (2004: 25). Devo discordar. Não através de uma estética da produção, nem das influências ou fontes de inspiração do autor do texto, mas da inexorável referência do texto ao mundo na sua produção 7

enquanto signo. Distingue-se fonte de emissor na literatura a partir do momento em que Platão e Aristóteles questionam a representação: para a mimesis o mundo é o referente original do texto, o autor capta-o e transforma-o numa possibilidade. Mas o que o texto, quer literário, quer académico, nunca deixa de exalar são os problemas do mundo da sua produção. A minha visão procura ver no signo textual a possibilidade de suster um efeito mimético não unicamente narrativo mas ideológico. A sociologia vem cunhar aos sistemas de comunicação uma força progressista: através da interacção podemos entender-nos uns aos outros (Interaccionismo Simbólico) – mas já Platão propunha subrepticiamente esta ideia em Fedro quando repugnava a ideia de escrita descrevendo-a como pharmakon numa double-entendre entre remédio e veneno 1 – pois a escrita prometia a preservação do discurso, mas simultaneamente, pede a morte do discurso na sua estatização; estático, o texto não responde a perguntas, tece-as e nunca oferece todas as suas respostas, permanecendo em silêncio. É a própria capacidade textual que distingue dois regimes na história: o da pré-história do da História, aquele em que passamos a ser capazes de fazer um uso documental da linguagem, de narrativizar os acontecimentos decalcandoos da vida ao texto, reconhecendo o seu uso ulterior. É neste sentido que o deus Tamus reconhece a escrita como um remédio. Porém, pela sua estatização, Toth encontra na escrita um veneno contra as capacidades mnésica e dialética. Mnésica, porque passaríamos a refugiar o reconhecimento na escrita, que prevê o seu próprio diferimento, logo não teríamos de exercitar a memória; dialética porque, no ver de Platão, é possível uma aproximação à verdade e à razão pelo discurso. O modelo da semiosfera de Iuri Lotman é também progressista para estes modelos de comunicação, não prevendo apenas os intervenientes e a

A relação entre remédio e veneno é explorada profundamente por Jacques Derrida em “La Pharmacie de Platon”. 1

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mensagem, mas também a própria área de incidência do momento comunicativo, incluindo-o dentro de um espaço delineado para além do qual a comunicação não decorre – o espaço extra-semiótico contempla em si o ruído que tanto preocupou e interferiu no modelo matemático da comunicação de Claude Shannon e Warren Weaver. Contudo, a semiosfera funciona, simultaneamente, de uma forma metaléptica, não só por já ser uma metalinguagem (como toda a semiótica visa ser), mas porque não se aplica unicamente ao empírico, mas também ao discursivo. O que aqui quero dizer é que são criadas novas esferas de significação dentro do próprio discurso que pedem uma reaplicação da semiosfera nem que seja ficcionada, a este respeito, cito Luís Carmelo: As linguagens criam mundos próprios que estão ininterruptamente a desdobrar-se e a efabular-se noutros mundos. Esse caudal, nem sempre delimitável, é inseparável da vida humana, da sua organização e dos seus horizontes. (2013: 70) Estas reduções da vida à linguagem são recorrentes, em jeito enumerativo e rápido recorde-se Ernst Cassirer no capítulo “Le pouvoir de la métaphore” reduz o mundo ao pensamento metafórico visto que a linguagem é sempre um terceiro elemento, não do sujeito, nem do objecto, mas de outra ordem que os une. Jacques Derrida, em De la Grammatologie afirma “il n’y a pas d’hors text” de uma forma totalitária, desconstruindo e reduzindo o mundo ao texto. E Paul Ricoeur também acredita numa narrativização do mundo, acreditando numa infecção da linguagem nas acções que a precedem. A filosofia constrói-se de diferentes vocabulários e o seu uso distinto aponta em direcções diferentes, mas se há algo a tirar destas três reduções do mundo é que todas dizem respeito a diferentes cristalizações da linguagem. Este tipo de redução do mundo à

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linguagem, quando a linguagem é construída sobre o mundo, não pode parecer mais paradoxal. Procuremos agora o efeito inverso: a passagem da linguagem ao mundo, e vamos encontrá-la na forma da ficção, que “é constituída por aquilo a que [Wolfgang Iser] chama aspectos esquemáticos que nos conferem, não propriamente imagens, mas as condições da sua construção” (Babo, 2011: 35). Da redução do mundo à linguagem passamos à transposição da linguagem ao mundo, ou mesmo, segundo a semântica, à criação de mundos possíveis. Estes são autênticos mundos sobre os quais se constroem ficcionalmente novas semiosferas lotmanianas: há todo um modelo cultural intrínseco à ficção que se julga por diferença para com o modelo contextual. Lotman toca igualmente neste assunto ao expor cinco processos tecidos pelo texto na sua ontologia: (1) é uma mensagem entre emissor e receptor; (2) é uma memória entre a recepção e a tradição cultural da sua criação; (3) actualiza aspectos da personalidade do leitor na leitura; (4) é formação intelectual entre o leitor e o texto; (5) finalmente, é metonímia da representação do contexto cultural dentro do texto (Lotman, 1996: 54-55). É sobre este último ponto que me debruço neste trabalho, e, a este respeito cito: As relações entre texto e contexto cultural podem ter um carácter metafórico quando o texto é entendido como substituto do contexto (por equivalência), ou metonímico, quando o texto representa o contexto como uma parte representa o todo (Idem, 55, destaques meus). Ainda que a um nível subtextual e por muito que muitas das teorias da interpretação procurem autotelizar a ficção num sistema hermético, é impossível ignorar o contexto da sua produção (como o podem prever teorias como a estética da recepção de Hans Robert Jauss e “A morte do autor” de Roland 10

Barthes2), não como delimitador das funções de texto mas como fundamento para as críticas e reflexos que lhe são inerentes. Lotman prevê ainda a “obsolescência” do texto na sua condição de diferimento e redime-a ao afirmar: (…) os textos, enquanto formações estáticas e delimitadas, tendem a passar de um contexto a outro, tal como as obras de arte de relativa longevidade: ao transladarem-se para outro contexto cultural, comportam-se como um informador de uma nova situação comunicativa e actualizam aspectos anteriormente ocultos do seu sistema codificante. (Idem, ibidem.) São os textos que vêm fundar possibilidades, alternativas à realidade e que, pela sua diferença se acabam por condensar em críticas dessa mesma possibilidade. A produção cultural tem sempre uma ancoragem na realidade da sua produção e questiona os seus males e glorifica os seus feitos. Por exemplo, os Descobrimentos vêm proporcionar o género da literatura de viagens, e dentro desta, a crítica às descobertas, mas não só. Thomas More escreve Utopia como possibilidade de, na navegação dos sete mares, se encontrar um verdadeiro paraíso sobredesenvolvido e cristalizado na sua perfeição: este é um anseio verbalizado e concretizado no texto. Jonathan Swift vem, de seguida, criticar o modelo utópico de More em As viagens de Gulliver denunciando-o como um anseio exacerbado pela perfeição e colocando uma utopia no seu interior, mas esta é a de uma sociedade de cavalos. Não fazendo a apologia ao logocentrismo, dado que de mão dada vem o iconocentrismo da cultura contemporânea, e também não procurando resposta na psicologia, mas nos próprios objectos que, quando questionados, revelam traços subcutâneos de grandiosas ou mesmo ínfimas preocupações

E são estas teorias que vêm explorar o diferido do texto de forma a torná-lo emissor e meio de si próprio, para se concretizar na passagem da sua mensagem a um leitor. 2

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socio-culturais, quais palimpsestos culturais, é por isso que falo numa textualização da cultura. Os seus elementos tornam-se códigos, exemplo disto é o monstro que, segundo Jeffrey Jerome Cohen codifica os medos, desejos, ansiedades e fantasias da cultura que o representa, seja por que meio for (1996: 4), mas isso será tema do segundo capítulo.

2. Condensação intercultural: o alien como monstro Quando o Outro por nós escolhido não nos ama, mata-nos, quando nos ama, salva-nos. O amor não é, de facto, uma brincadeira. Exceptuando a morte, a doença e as suas aproximações, só o amor suspende a futilidade sucessiva dos acontecimentos. (Tavares, 2013: 148)

Antes de passar ao estudo propriamente dito do alien como símbolo intercultural, cabe-me tecer alguns comentários à sua morfologia monstruosa. “O monstro simboliza o guardião de um tesouro” é assim que Jean Chevalier e Alain Gheerbrant abrem a sua entrada sobre monstros no seu Dicionário dos Símbolos, esta acepção parece torná-lo numa promessa, mas comparemo-la com uma das Seven Thesis de Jeffrey Jerome Cohen: “Vemos os danos causados, os seus restos materiais (…) mas o monstro, em si, torna-se imaterial e esvanece para reaparecer noutro sítio” (1996:4). A acepção de J. Chevalier e A. Gheerbrant é altamente literária, reminiscente de contos como A Bela Adormecida em que um príncipe tem de derrotar um dragão, qual rito de passagem, para alcançar os seus desejos, sejam estes o ouro ou a donzela. Mas os monstros tomam na actualidade uma função mais ética e pedagógica e é a essa acepção que responde Jeffrey Jerome Cohen, a aparência e modos de actuação dos monstros são constructos culturais que prescrevem vias (Gil, 2006), eles não servem para ser derrotados para encontrar um pote de ouro ou o

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“verdadeiro amor”, mas na sua inexorabilidade servem a constante função de ensinar através do receio (Gil, 2006). Por não ser sujeito, é objecto. Por não ser identidade, é alteridade. O monstro faz parte da recorrente linha de diabolização do Outro na cultura ocidental, que relega a uma condição inferior, de enojamento, tudo o que é desconhecido, estranho ou encoberto… O monstro coloca o Outro como ser acultural, no caos extra-semiótico e prefere não o traduzir: apresenta-o qual animal enjaulado num livro, imagem ou filme e diz-lhe para nos entreter – sim, o monstro é colocado na nossa área de compreensão, mas é inerte, actua num campo próprio para além do nosso. Dentro da nossa semiosfera é criada outra: a da ficção, para nos resguardarmos do monstro deixando-o actuar como simulacro. Falamos de monstros desde o primeiro contacto ancestral com um animal selvagem indomável e incompreensível. Mas o tipo de monstros que mais discursa criticamente sobre a nossa condição e actuação é precisamente aquele que toma a nossa imagem, o de corpo antropomórfico. Da mesma forma que os povos que iam sendo descobertos aquando dos Descobrimentos eram tomados como povos bárbaros, os monstros são colocados nesse patamar de criaturas da diferença. Porém, os povos da época dos Descobrimentos tinham a capacidade física de invadir a nossa semiosfera (mas não a tecnológica), ainda que por motivos linguísticos esta invasão fosse limitada e a transposição física da fronteira semiótica não correspondesse a uma verdadeira tradução. Na sua ficcionalidade, o monstro mantém-se extra-semiótico, é-nos apresentado através do discurso, mas é o perfeito bode expiatório da diabolização pela diferença: de facto, não queremos saber dos seus motivos ou origens, está longe o desejo de que ultrapasse a fronteira da ficção e se constitua como autêntica ameaça. O monstro é sempre delimitado para um fora do nosso campo comunicacional. Encontramo-lo em representações textuais, imagéticas, 13

cinemáticas e mesmo interactivas (quantos videojogos não foram concebidos em torno de monstros?), mas o reconhecimento destas formas como ficção, no momento de retoma da crença na realidade após a suspensão da descrença (“Suspension of disbelief” de Coleridge) colocam-nos de lado ou de fora. E nós vivemos em segurança. Mais do que de lado, o alien, tema principal deste trabalho, tem a sua origem colocada noutro planeta! As premissas para as suas narrativas tiveram durante muito tempo o subtexto invasivo, a introdução no nosso espaço de conforto para o transtornar. Acima de tudo, o alien tece um comentário sobre o nosso contacto com o Outro, que muitas vezes não é de abertura, mas de segregação.

2.1. A alteridade no espaço exterior H. G. Wells escreve uma das primeiras narrativas de conflito entre o planeta Terra e Marte em War of the Worlds, que se divide em dois livros: um primeiro momento de invasão e contacto e um segundo momento verdadeiramente bélico. No primeiro momento somos introduzidos aos marcianos quando é encontrado um estranho cilindro, perto da cidade de Woking em Inglaterra, que parecia ter caído do céu como um meteoro. Ao aproximar-se do cilindro, a especulação que o narrador faz é a seguinte: “I think everyone expected to see a man emerge – possibly something a little unlike us terrestrial men, but in all essentials a man. I know I did” (Wells: 28); uma das mais conhecidas primeiras impressões escritas sobre aliens pressupunha uma aproximação da sua aparência ao corpo antropomorfo! Mas a descrição do marciano que a segue começa por não fugir ao nosso imaginário: grande, do tamanho de um urso, com dois olhos escuros e uma boca triangular… até que o verdadeiramente estranho surge: é acinzentado e eis que “A lank tentacular appendage gripped the edge of the cylinder, another swayed in the air” (Idem.: 29). É a cor 14

acinzentada e os tentáculos que conferem a verdadeira monstruosidade ao alien, segundo Ieda Tucherman: [Na sua] relação com o real, o monstro é uma espécie de irreal (se for pensado como relação com o corpo humano) verdadeiro (…) o monstro excede a representação: ele mostra um transbordamento de ser, oferece ao olhar mais do que o que já foi visto. (Tucherman, 2012:104). A composição do seu corpo é heteróclita. A proposição à criação de algo autenticamente novo radica sempre numa reorganização de elementos reconhecíveis. O recurso ao gigantismo é recorrente para a construção de monstros: a visão antropocêntrica é igualmente antropométrica ao colocar o nosso corpo humano como medida das coisas. Segundo David D. Gilmore a altura dos monstros invoca a nossa perspectiva infantil de inferioridade, de quando éramos mais pequenos do que todos os outros (2002:11); isto, aliado à comparação com um urso através do seu tamanho confere ao marciano de Wells uma bestialidade que desvia a possibilidade de fazer a paz através do diálogo. Os tentáculos, enquanto órgão que reconhecemos como o de um animal subaquático, servem o seu próprio estranhamento, a sua forma, maleabilidade e flexibilidade, o facto de ser de um animal que respira e vive debaixo de água. Devo ainda debruçar-me sobre o cinzento, pois é uma cor muito simbólica. Sobre ele, escrevem Jean Chevalier e Alain Gheerbrant: O homem é cinzento (…) é o produto dos sexos opostos e se ele se encontra no cinzento central, entre as cores opostas, que formam uma esfera cromática harmónica, todos os pares de contracores se encontram num equilíbrio perfeito. (201) 15

O cinzento é importante por ser a representação da centralização e a metáfora “o homem é cinzento” de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant não pode ser mais pertinente para associar ao pensamento do alien. Parece-me uma questão que binomializa interior e exterior: o homem é interiormente cinzento, na sua indecisão e pensamento antitético, enquanto o alien será cinzento no exterior e verdadeiramente determinado em invadir o nosso planeta e instituir-se como raça superior – mas isto é um juízo de aparências. Aqui, ao pensamento da ficção científica subjaz uma mensagem actualizante sobre o pensamento da raça, a este respeito cito De Witt Douglas Kilgore: [Science fiction] either metaphorizes race as a way of avoiding very real issues (…) or creates endless iterations of color-blind futures (…) What is interesting about [science fiction’s] work on race, alterity, and the other is the commitment of scholars to the form itself. They write both to critique the genre for its implication in the racialist discourses of the white(hetero)normativity but also in defense of its potential to open readers to ordinary and radical forms of alterity. (2010:18). Este primeiro livro de War of the Worlds, “The Coming of Martians” é indicado para estudar aspectos de raça subjacentes à representação e actuação dos aliens. Mostra um primeiro momento de especulação do narrador sobre o que poderia ver, um segundo de contacto visual que destrinça a composição do corpo do alien e, finalmente a forma de manifestação do monstro que parece adoecer face à atmosfera terrestre, tendo de se ausentar para as suas máquinas de guerra, os “tripods”: “And this Thing I saw! How can I describe it? A monstrous tripod, higher than many houses (…) a walking engine of glittering metal” (Wells: 69), que evidencia um desenvolvimento tecnológico

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superior ao dos humanos – este é um dos elementos chave que a novela de H. G. Wells usa para realizar uma experiência inversa do colonialismo. As reacções de estranhamento e medo advêm do temor do desconhecido, da introdução de um elemento que transtorna o sistema pela sua aparência e essência na figura do alien. O seu corpo heteróclito, que foge ao padrão de reconhecimento cultural, e a sua origem interplanetária colocamno sob suspeita e colocam-nos a nós do outro lado do espectro dos Descobrimentos: somos visitados por um elemento externo e, tal como vimos raças e etnias que denominámos estranhas sem pensar a nossa aparência ante elas, vemo-nos agora visitados por uma raça igualmente estranha.

3. Conflito como mediação? Quando Verne, Wells e outros escreveram sobre viagens ao fundo da terra, ao fundo do mar, e em direcção aos céus para os leitores da era do imperialismo, a alteridade das colónias apresentadas provisionou uma nova legibilidade e significância a uma narrativa anterior (Rieder, 2008: 6).

No primeiro livro de War of the Worlds, a presença do marciano é rápida: mostra-se inapto à atmosfera do planeta Terra e retira-se para um “tripod” que está equipado com um raio laser e com uma arma química a que se chamou “Black smoke” e começa a atacar os cidadãos e a cidade de Woking. Existe uma conduta subjacente a cada semiosfera. Ao aplicar o modelo da semiosfera ao planeta Terra, usando a natureza como biosfera 3 há que considerar que a existência de oxigénio é imperativa para o sistema respiratório dos animais e das plantas. Fora da atmosfera (a que corresponde a fronteira da semiosfera), a respiração não ocorre da mesma forma: lá só existe o vácuo. A transposição física da atmosfera, sem recurso a garrafas de oxigénio, limita os

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Constructo natural subjacente às estruturas de comunicação.

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processos de comunicação por dois motivos: à morte instantânea por implosão devido ao vácuo, e ao facto do som não se propagar no vácuo4 (falando de uma comunicação de matriz linguística). A semiose ocorre sobre um espaço onde existe capacidade biológica, noológica e semiológica de comunicação. A camada de ozono serve de fronteira da nossa semiosfera por este motivo, delimita um espaço de possível comunicação, a atmosfera, de outro onde é impossível, o espaço exterior. A fronteira da semiosfera não é só a delimitação do espaço semiótico, mas também o espaço de tradução e transdução. O espaço extra-semiótico pode traduzir-se, o seu exemplo mais óbvio será o da tradução linguística, onde o extra-semiótico, para um português seria, por exemplo, o francês “chat”, e o semiótico, o português “gato”, e esta seria igualmente uma transdução por prever uma mudança na forma. Regressando ao caso de War of the Worlds, encontramos a introdução sem tradução ou transdução de um elemento semiótico num outro sistema, onde passa a ter a função de ruído. O marciano que cai no nosso planeta é, assim, exposto a uma biosfera diferente daquela a que está habituado, talvez a atmosfera do seu planeta seja composta quimicamente de outra forma, mas isso não é defendido textualmente. O segundo livro de War of the Worlds de H. G. Well é marcado por uma atmosfera bélica que surge da incompreensão. Da incompreensão mútua surge um conflito, criam-se suposições sobre os objectivos tanto do lado dos aliens como dos humanos. O ataque recíproco parece facultar uma alternativa: prevenir e não remediar a descoberta das verdadeiras intenções de cada um. O narrador, porém, nota que os “tripods” não estavam a matar pessoas, mas a coleccioná-las e a colocá-las em cestos. Reconhece, então, que os marcianos podiam não ter um propósito unicamente destrutivo, mas de sobrevivência! Que, enfraquecidos pela atmosfera do planeta Terra, precisavam A primazia conferida ao corpo nesta frase não se prende apenas com o facto de ser agente da comunicação, mas porque Iuri Lotman estabelece que é necessária uma base biológica (biosfera) para a concretização da comunicação. Sem vida, não há comunicação. 4

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transfusões de sangue para se manterem vivos e era essa a função dos corpos abduzidos. Outro problema que surge é a invasão por parte de uma erva daninha vermelha que surgiu em simultâneo com a invasão marciana. Esta erva vermelha propaga-se rapidamente em contacto com a água e é reconhecida como um elemento da biosfera marciana que, no nosso planeta, teria a função de restituir a atmosfera marciana. Mesmo a cor vermelha é associada à cor do planeta, como se fosse esta planta a dar-lhe a cor; hoje, contudo, sabemos que o planeta é composto de rochas vermelhas. A recomposição atmosférica, em teoria, podia restituir o funcionamento orgânico dos marcianos. Num estado de constante paranoia, o narrador acaba por atacar manoa-mano uma das máquinas alienígenas, unicamente para descobrir que os marcianos começaram a morrer: (…) slain by the putrefactive and disease bactéria against which their systems were unprepared (…) These germs of disease have taken toll of humanity since the beginning of things – taken toll of our prehuman ancestors since life began here (…) by virtue of this natural selection of our kind we have developed resisting power; to no germs do we succumb without a struggle (…) (Wells: 273). Quase como que exorcizados, os marcianos vêem-se atacados e mortos pelas bactérias contra as quais a humanidade já luta desde os primórdios da medicina. A biosfera de Iuri Lotman mostra-se aqui perfeitamente retratada ao expelir duplamente um elemento semiótico estranho: (1) por não ser um elemento semiótico originado na semiosfera do nosso planeta e, (2) precisamente por ser de outro planeta, não estar habituado à conduta biológica do nosso planeta.

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Quando na introdução apontei a similaridade etimológica entre alien e alergia, tinha em mente este tratamento que lhe é feito na obra de H. G. Wells. O alien surge como uma alergia semiótica e é assim que é tratado pelo corpo do sistema semiótico do nosso planeta. A infecção que simboliza é tratada pelo ataque bélico por parte dos “anti-corpos” humanos, porém, quando este ataque falha, é a própria biosfera que actua, libertando germes, através da atmosfera. O contacto desprotegido com um elemento estranho, que transpôs sem passar por uma tradução ou transdução na fronteira semiótica, levou a uma reacção agressiva. A impossibilidade de comunicação, e mesmo receio de o fazer, tendo em conta a aparência dos marcianos, levou a um conflito reminiscente dos conflitos coloniais quinhentistas. Por preenchimento semântico da incapacidade de comunicação com o elemento invasor, e reconhecendo em nós mesmos um papel anterior de invasores, a humanidade é representada a tentar recuperar e manter o seu espaço, vendo-se do outro lado do espectro, a este respeito, cito, em jeito conclusivo para este capítulo, John Rieder: A moldura das relações coloniais mantém-se intacta de uma forma importante em War of the Worlds. Wells altera a posição do narrador ocidental caucasiano, de um ponto de vista acostumado, dominante e colonizador, para aquele do habitante indígena da terra colonizada. (…) O narrador deixa de ocupar a posição do observador científico para se encontrar a si no papel histórico ocupado por aqueles que eram observados e teorizados, e não como aqueles que observam, analisam e teorizam. (2008: 5)

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4. Conclusão Sabes para onde deves dirigir a tua maldade? Pois bem, o Estado ensina-te; o Estado delicado, atencioso, carinhoso mesmo, segura por baixo do cano da espingarda (ou do canhão) e impede que a mão individual do cidadão, ao tremor, tenha influência na trajectória do tiro; o mal está ali, é para ali que se deve apontar. (Tavares, 2013: 90)

A conjugação da vertente semiótico-cultural de Iuri Lotman, à narrativa da invasão alienígena de H. G. Wells parece-me ter resultado em interessantes impressões sobre o tema da interculturalidade. Se por um lado temos um sistema que parece fechar-se sobre a sua comunicação e cultura, mas que não ignora a existência de códigos estranhos, na semiosfera, por outro, temos a ficcionalização da entrada desses códigos estranhos e do comportamento da esfera de significação relativamente a esses códigos. Assim, o que me parece mais justo fazer para analisar as conclusões do presente ensaio será finalmente separar a vertente semiótica da intercultural em dois sub-capítulos nesta conclusão. Porém, uma separação estritamente dita parece-me impossível; por força os elementos de estudo parecem reunir-se quer como exemplificação ou como teorização.

4.1. Sobre semiótica da cultura A aporia da semiótica é totalitária. A sua finalidade última é a de reduzir o mundo ao texto ou ao signo, àquilo que está por outralgo. Este seu objecto de estudo é relevante para o campo dos estudos de cultura que é reconheci como campo de trocas simbólicas; Luís Carmelo salienta “a máquina do verbo e das imagens produz muito mais do que apenas traduzir esquematicamente ou veicular referencialmente” (2013: 70) e é sobre esta máquina que a nossa cultura se funda nos dias de hoje, na capacidade de formular imagens que se fazem refugiar de discursos críticos. 21

Graças à expansão do seu campo científico, que começou por ser ciência médica de sintomas (Antiguidade), depois linguística (Saussure), depois zoo-semiótica

(Sebeok),

e

pragmática

(Peirce)

(e,

talvez

ainda,

desconstrucionista com Derrida?), reconhecemos que o mundo e os seus constituintes, quer naturais, quer de origem humana, são entidades em si comunicantes. Porém, para reconhecermos a comunicabilidade do mundo e nos aproveitarmos dela, tivemos de desenvolver o discurso numa constante relação de aplicação ao mundo. Hoje, parece que é o mundo que se aplica e se esconde no discurso. O modelo semiótico de Iuri Lotman é tão totalitário quanto a ciência em que se insere. Todo o espaço de comunicação e cultura é parte da semiosfera, e o que as excede (desde o imperceptível codificado ao ruído puro do desconhecido) é extra-semiótico e tem lugar nesse espaço que é contemplado no modelo da semiosfera, ainda que fora dela. O extra-semiótico está vedado do espaço de comunicação por uma fronteira cuja função é processual: ela traduz o objecto imperceptível para uma forma perceptível. Iuri Lotman não ignora as estruturas naturais sobre as quais fundámos a nossa cultura, incluindo a biosfera no seu modelo. Foi sobre este constructo natural que foi construída a nossa civilização, apresentada por Lotman como noosfera, a esfera da civilização e da cultura. Apesar de ser uma aparente inovação para a semiótica, a pressuposição do contexto no ambiente semiótico já tinha antes sido reconhecida por Thomas Sebeok, na sua zoo-semiótica que reconhecia na natureza sinais precedentes à civilização. Para demonstrar a classificação de Thomas Sebeok uso um esquema apresentado por Umberto Eco em O Signo (2004: 35):

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fonte dos signos

objectos inorgânicos

naturais

substâncias orgânicas

manufacturados

Extraterrestres

Terrestres

Animais

organismo

componentes do organismo

Homo sapiens

organismo

componentes do organismo

Figura 2 - Esquema da zoo-semiótica de Thomas Sebeok in O Signo de Umberto Eco

Do reconhecimento semiótico da natureza envolvente aos sistemas de comunicação, partiu-se para um pensamento daquilo que está dentro e fora do sistema semiótico. É importante aqui recordar e associar a ideia de ruído de Claude Shannon e Warren Weaver ao espaço extra-semiótico de Iuri Lotman. If noise is introduced, then the received message contains certain distortions, certain errors, certain extraneous material, that would certainly lead one to say that the received message exhibits, because of the effects of the noise, an increased uncertainty. But if the uncertainty is increased, the information is increased, and this sounds as though the noise were beneficial! (Shannon & Weaver, 1964: 19)

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Apesar da delimitação prevista por Iuri Lotman entre o que é semiótico e o que é extra-semiótico, é importante reconhecer que o ruído intervém na comunicação e na significação. A fronteira de Lotman, prevista como espaço de tradução e transdução do extra-semiótico em semiótico, é utópica porque nada se traduz magicamente a si mesmo ao transpor o espaço de comunicação. O ruído da buzina de um carro não se transforma numa apreensão lógica e discursiva “ruído-da-buzina-de-um-carro” para que todos os presentes no espaço semiótico tenham esse entendimento; é reconhecido como tal, mas não altera a sua forma e marca uma quebra na comunicação.

4.2. Reflexos do colonialismo na ficção do extra-terrestres Em Colonialism and the Emergence of Science Fiction, John Rieder recorda a forma como o modelo geocêntrico de Copérnico transtornou a ontologia cultural do nosso planeta: de centro do universo passámos a ser apenas mais um no meio de tantos outros, e desses outros, quantas outras culturas existiriam?, e quantas delas estariam numa era tecnológica muito superior à nossa? Quais são as finalidades da invasão extra-terrestre? Predação? Infiltração? Estas são questões fulcrais para o tropos da ficção científica do extra-terrestre. Apesar de ser vista como central e centralizante, a cultura ocidental pode ser apenas uma no meio de muitas outras e é esse o grande receio exposto por estas narrativas. A presença do extra-terrestre leva a uma analítica dos costumes sociais do ser humano. O confronto de alteridades produzido pela introdução de uma raça diferente no nosso planeta leva a um questionamento mútuo. Se o questionamento mútuo não levar a respostas compreensíveis (que é possível, mas mais recorrente a partir dos anos 60 com a New Wave science fiction5), a Em “New Wave Science Fiction”, David Higgins acompanha o desenvolvimento desta nova vaga de ficção científica, fazendo-a acompanhar-se da história social, política e cultural dos anos 60. Uma das teses que defende é que o consumo de LSD da contracultura levou a uma viragem na ficção de extra-terrestre que deixa de ter por base o questionamento das relações 5

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solução plausível é conflitual. As reminiscências coloniais prendem-se com esta questão da incomunicabilidade e imposição do poder pela força. Esse ímpeto ocidental pelo domínio de novos locais (que ainda vigorava no século XIX6) é invertido de forma a colocar uma outra cultura superior, externa ao nosso planeta, a invadir-nos e dominar-nos. Desta forma, todo o passado colonial é questionado eticamente através das invasões alienígenas. Em War of the Worlds, a caracterização dos marcianos como monstros, a sua aparência heteróclita e composta de elementos animalescos, deixa a perspectiva de comunicação de lado: o marciano é demonizado pelas personagens humanas de War of the Worlds que o atacam como animal. No entanto, H. G. Wells não demoniza os marcianos: o desenlace prova que estes não procuravam destruir nem colonizar o nosso planeta, mas sobreviver nele. A sua condição orgânica era doentia devido ao contacto com a atmosfera terrestre. Da aplicação do modelo da semiosfera de Iuri Lotman à novela de H. G. Wells, podemos inferir que Wells podia ter previsto que a semiosfera marciana seria diferente da terrestre. Hoje, com os avances científicos, sabemos dos gases que formam a atmosfera de Marte e é impensável uma aterragem nesse planeta sem dispositivos respiratórios que restituam o oxigénio. A cultura e a comunicação só podem surgir sobre estruturas que permitam o funcionamento orgânico dos seus intervenientes. Desta perspectiva, o ser humano era o sujeito semiótico cultural que, por estar inserido na sua semiosfera, não morre, mas o marciano age sobre esta semiosfera como alergia, é ruído semiótica e a própria semiosfera faz por expulsá-lo. Apesar do abandono do tema da colonização por parte da ficção científica, é inegável que as restantes narrativas da contemporaneidade têm externas com o resto do universo para passar a explorar o próprio planeta Terra como o mais desconhecido – sob influência do LSD enquanto experiência interior. 6 De novo, só com a New Wave é que a ficção científica começa a criticar e a deixar de parte o discurso imperialista como género, tendo em conta os acontecimentos do século XX como as duas guerras mundiais e o contexto de descolonização.

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por subtexto uma semiótica do controlo. Politicamente procuram-se novas formas subliminares do controlo da sociedade. Os novos media preocupam-se cada vez mais com uma paradoxal arqueologia do agora, que regista e documenta acontecimentos em dados electrónicos recuperáveis para futura recuperação e uso. Esta semiótica de controlo passa em muito pelas políticas externas, e não me refiro unicamente ao estrictamente político, mas simultaneamente ético, e o que é facto é que a cultura visou durante demasiado tempo demonizar o outro para que o Interaccionismo Simbólico de que a sociologia fala se concretize verdadeiramente enquanto processo.

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Bibliografia AAVV, Revista de Comunicação e Linguagens N.º 28 – Tendências da cultura contemporânea, org. José Augusto Bragança de Miranda e Eduardo Prado Coelho, Lisboa, Relógio d’Água, 2000. Revista de Comunicação e Linguagens N.º29 – O campo da semiótica, org. Maria Augusta Babo e José Augusto Mourão, Lisboa, Relógio d’Água, 2001. Babo, Maria Augusta, “Da imagem na linguagem” in Imagem e Pensamento, org. Moisés de Lemos Martins et. al., Coimbra, Grácio Editor, 2011. Carmelo, Luís, Genealogias da Cultura, Lisboa, Arranha-Céus, 2013. Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain, Dicionário dos símbolos, Lisboa, Editorial Teorema, 1982. Tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra. Cohen, Jeffrey Jerome, “Monster Culture (Seven Theses)” in Monster Theory, Londres, University of Minnesota Press, 1996, pp. 3-25. Eco, Umberto, O Signo, Lisboa, Editorial Presença, 2004. Tradução de Maria de Fátima Marinho. Gil, José, Monstros, Lisboa, Relógio d’Água, 2006. Gilmore, David D., Monsters – Evil beings, Mythical beasts, and All Manner of Imaginary Terrors, Philadelphia, University of Pennsylvania Press, 2002. Kilgore, De Witt Douglas, «Aliens, robots, and other racial matters in the history of Science fiction» 18 Out. 2014, 2010 . Higgins, David, “New Wave Science Fiction”, 28 Dez. 2014, . Lotman, Iuri, La Semiosfera I, Madrid, Frónesis Cátedra, 1996. Tradução de Desiderio Navarro. Miranda, José Bragança de, Teoria da Cultura, Lisboa, Edições Século XXI, 2007. Mourão, J. A. e Babo, M. A., Semiótica – Genealogias e Cartografias, Coimbra, MinervaCoimbra, 2007. Rieder, John, Colonialism and the Emergence of Science Fiction, Middltetown, Wesleyan UP, 2008. Shannon, Claude & Weaver, Warren, The Mathematical Theory of Communication, Illinois, University of Illinois, 1964. Tavares, Gonçalo M., Atlas do corpo e da imaginação, Lisboa, Caminho, 2013. Tucherman, Ieda, Breve história do corpo e de seus monstros, Lisboa, Nova Vega, 2012. Wells, H. G., War of the Worlds, 24 Out. 2014, .

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