A antecipação no discurso conversacional: aspectos formais e funcionais

May 25, 2017 | Autor: Fanuel Paes Barreto | Categoria: Pragmatics
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A ANTECIPAÇÃO NO DISCURSO CONVERSACIONAL:
ASPECTOS FORMAIS E FUNCIONAIS

Fanuel Melo Paes Barreto

Resumo

Neste trabalho, procede-se à descrição da antecipação conversacional em seus aspectos formais e funcionais, buscando-se preparar terreno para uma posterior análise do fenômeno no que respeita à sua importância para os estudos do processamento interpretativo do discurso oral. Como resultado, obtém-se uma caracterização das ocorrências da antecipação sob a forma de estruturas tripartites de intervenções, que atendem, assim, ao esquema, segundo alguns, básico das seqüências que constituem a conversação; por outro lado, o caráter eminentemente dialogal da antecipação implica uma série de funções textual-discursivas já identificadas pela literatura especializada em outros fenômenos da organização textual.

1 Introdução

No âmbito da interação conversacional, a antecipação pode ser descrita como a intervenção feita pelo ouvinte na fala do locutor, com o propósito de sugerir o próximo segmento da seqüência verbal em produção. Uma questão interessante que pode ser levantada sobre a antecipação é a seguinte: o que esse fenômeno tem a revelar sobre o processamento interpretativo do discurso conversacional? Tal pergunta se justifica pelo fato de que a intervenção antecipatória parece refletir o modo como o ouvinte compreende a fala do locutor, na medida em que contribui para a formulação da seqüência verbal em produção. Por outras palavras: a antecipação parece fornecer substância empírica à alegação de que "os participantes em uma conversação devem ser capazes não somente de decifrar o que já foi enunciado, mas também de antever quais os possíveis desenvolvimentos, tanto no nível da sentença quanto do discurso" (Tannen, 1989: 10).
Antes, porém, de lidar diretamente com essa questão, convém caracterizar a antecipação em seus aspectos formais e funcionais. Por duas razões: em primeiro lugar, alguns dos traços formais do fenômeno e suas funções na interação conversacional oferecerão suporte para considerações sobre os aspectos interpretativos; em segundo lugar, a antecipação tem merecido atenção apenas esporádica nos estudos sobre a conversação, motivo por que seu lugar na organização interacional é pouco conhecido. Devido a limites de espaço, o presente trabalho enfocará exclusivamente as características formais e as funções textual-discursivas da antecipação; em uma outra oportunidade, pretendo discutir a relevância do fenômeno para a investigação do processamento interpretativo do discurso oral.

2 A antecipação: caracterização geral

Os estudos conversacionais têm como fundamento o postulado de que a conversação "não é um fenômeno anárquico e aleatório, mas altamente organizado e por isso mesmo passível de ser estudado com rigor científico" (Marcuschi, 1986: 6-7). Se assim é, parece razoável supor que as ocorrências da antecipação apresentem regularidades que possam ser descritas com base em princípios organizacionais mais gerais da conversação. Tomemos como primeiro exemplo de uma ocorrência da antecipação a seguinte passagem de um diálogo, em que a intervenção antecipatória do ouvinte se encontra sublinhada:

(1) NURC/SP 360: 1305-1308
L1 ele gostaria de:: jogar no::
L2 no dente de leite
L1 no dente de leite... mas o horário para mim era ruim... mas NO Palmeiras ele me fez inscrevê-lo

Como podemos observar, o exemplo apresenta um momento problemático de comunicação: o locutor, L1, encontra dificuldade em dar continuidade à sua fala. O ouvinte, L2, resolve então intervir, produzindo um segmento verbal que, por meio da repetição, é incorporado por L1 à seqüência que vinha sendo formulada. Note-se que a incorporação do segmento não provoca ruptura sintática na seqüência em curso: "ele gostaria de:: jogar no:: no dente de leite... mas o horário para mim era ruim". Essas observações parecem evidenciar, primeiro, que a ação de L2 teve como propósito sugerir uma continuação apropriada à seqüência verbal em produção e, segundo, que L1 assim compreendeu e ratificou tal ação. Os dois interlocutores colaboram, assim, para a formulação de uma mesma seqüência verbal, sendo que L2 se antecipa a L1 na produção de um segmento da seqüência. Diremos que, neste caso, L1 é o locutor corrente e L2 é o antecipador.
Essas características gerais da antecipação podem ser realçadas, comparando-se o exemplo (1) com o seguinte caso:

(2) NURC/SP 360: 1467-1475
L1 ele gosta REalmente ele é vivo... bastante... mas é leVAdo demais sabe?... ele
fica // duas horas...
L2 bem normal um menino // bem normal né?
L1 bem normal graças a Deus não é nenhum:: geniozinho assim... quieto... ele::... passa horas... lendo... mas ele saiu dali toda a energia que ele acumulou ali naquele periodozinho que el/em que ele leu... que:: geralmente não é pequeno esse período...ele sai ele...

Neste caso, diferentemente do exemplo (1), o segmento verbal produzido por L2 causa uma descontinuidade na seqüência produzida por L1, uma vez que este, após repetir o segmento, precisa retomar a seqüência no ponto em que a havia deixado (como mostra o destaque em negrito). Isto sugere que, aqui, a intervenção de L2 se deu no intuito, não de antecipar a fala de L1, mas de expressar apenas um comentário, com o qual L1 eventualmente manifestou concordância, por meio da repetição.
Tomar exemplos isolados como base para a caracterização geral de fenômenos pode levar a generalizações indevidas. Por isso, é necessário o cuidado de não se inferir, a partir da análise do exemplo (1), que a antecipação ocorre apenas em situações de disfluência do locutor corrente, consistindo essencialmente em um mecanismo reparador dessa dificuldade de produção da fala. Também não deve o exemplo sugerir qualquer limitação à extensão do segmento verbal proposto pelo antecipador; veremos a seguir que a antecipação exibe considerável variedade de forma e função.

3 Aspectos formais da antecipação

O discurso conversacional se organiza com base em turnos de fala. Marcuschi (1986: 18) define o turno conversacional como "aquilo que um falante faz ou diz enquanto tem a palavra, incluindo aí a possibilidade do silêncio" e acrescenta que é "difícil, contudo, definir com precisão quando se constitui ou não um turno." A dificuldade reside exatamente em saber quando é que um participante "tem a palavra".
Segundo Sacks, Schegloff & Jefferson (1974), o turno é construído por "unidades construcionais" (turn-constructional units) que podem ser de vários tipos: lexicais, sintagmáticas, oracionais ou frasais. Os limites dessas unidades marcam o "lugar relevante para a transição" (transition-relevance place) de um turno ao outro. Chegando ao final de uma unidade, o falante corrente pode então ceder o turno, quer requisitando especificamente a intervenção de um participante (por exemplo, por meio de uma pergunta, um pedido, etc.), quer simplesmente consentindo que qualquer um dos participantes tome a iniciativa de intervir; caso nenhuma dessas possibilidades se efetive, o falante pode seguir em frente e produzir mais uma unidade, dando continuidade ao turno em curso. Dessa forma, o final de um turno é determinado por duas condições básicas: o final da unidade construcional e a efetiva transição da fala de um participante a outro. Algumas propriedades sintáticas e fonológicas (sobretudo entoacionais) da unidade que está sendo produzida permitem ao ouvinte fazer uma previsão do seu final e, portanto, o lugar relevante para a transição de turno.
Dentro desse modelo, torna-se problemático saber se, ao intervir, o antecipador tem ou não a palavra, isto é, se a antecipação constitui ou não um turno. Isto porque, invariavelmente, a intervenção antecipatória se dá antes que a unidade construcional do turno em andamento esteja completa, não podendo, por isso, ser caracterizada como requerida ou consentida pelo falante corrente. O antecipador pode sugerir tanto um segmento interno (exemplo (3)) quanto um segmento finalizador (exemplo (4)) da unidade construcional em produção:

(3) NURC/SP 360: 736-741.
L2 cerceada ela chegou a um ponto... eu não a conheço eu a vi duas ou três vezes eu nunca conversei com ela ( ) mas pelo pelo que chega à gente de terceiros parece que ela (ao menos) tentou lutar tentou lutar e::
L1 não:::
L2 não conseguiu

(4) NURC/SP 360: 1144-1148.
L2 [....] e se ele não arranja... tem muita gente que fica chateada ou pelo menos desapontada... né? ((risos)) e:: não é fácil ((risos))
L1 contentar...
L2 contentar... então isso acontece muito [....]

Galembeck, Silva & Rosa (1990: 69-71) sustentam que qualquer contribuição dos interlocutores deve ser entendida como constituindo um turno, mas ressalvam que o turno pode abranger mais de uma intervenção subseqüente do mesmo falante. Na tipologia que esses autores propõem (1990: 83-95), encontra-se a noção de turno "inserido" em um turno "em andamento", isto é, que se desenrola por mais de uma intervenção subseqüente do mesmo falante. Tomemos como exemplo o seguinte caso, que não é uma ocorrência da antecipação:

(5) NURC/SP 62: 304-308.
L2 eles tem uma... o quanto normalmente você deveria produzir... se trabalhasse...
L1 ah sim
L2 aquele tempo

Aqui a intervenção de L1, que constitui um turno inserido, faz com que L2 suspenda temporariamente a sua fala e a retome na intervenção subseqüente, produzindo assim um turno em andamento. Os turnos inseridos envolvem, portanto, um "assalto ao turno", que consiste na troca de falantes sem que se respeite o lugar de relevância para a transição de turno (Galembeck, Silva e Rosa, 1990: 78-81).
Entre os vários tipos de turnos inseridos, Galembeck, Silva & Rosa (1990: 90) identificam o que chamam de "turno inserido de colaboração (ou de antecipação)", no qual "o interlocutor antecipa o conteúdo do que o falante está desenvolvendo e colabora para o desenrolar do tópico, por meio da sugestão de itens lexicais ou expressões lingüísticas" e "colabora também para a manutenção da interação." Como exemplo, apresentam o seguinte caso:

(6) NURC/SP 62: 817-824.
L1 [....] deveriam existir muitos cursos de especialização... a gente vê alguns vários até aí na nossa área por exemplo mercado de capitais existe alguns...
L2 existe...
L1 e outros mais... a Getúlio Vargas inclusive é uma que::...
L2 lança cursos de...
L1 tem os cursos assim nesse sentido é ela... dentro da área de Economia [....]

A noção de turno inserido permite uma caracterização bastante precisa dos exemplos de intervenção antecipatória até aqui estudados. O mesmo não se pode dizer com relação ao exemplo (7) apresentado a seguir:

(7) NURC 360: 1165-1172
L1 [....] ele também... exercia a:: a profi/ o a advocacia do Estado né?... e ::... depois... é que ele começou a lecionar quando houve... a necessidade do regime de dedicação exclusiva... pela posição de DENtro da carreira... ele precisava optar pela::
L2 //dedicação
L1 dedicação exclusiva
L2 ahn ahn

Neste caso, a intervenção do antecipador ocorre com sobreposição de vozes (cujo início é assinalado pelo sinal //), não provocando suspensão nem posterior retomada da fala do locutor corrente. Sendo assim, tal intervenção não se configura como um turno inserido em um turno em andamento, no rigor da definição. Galembeck, Silva & Rosa (1990: 90-2) não parecem notar essa pequena dificuldade ao estabelecerem a distinção em causa, embora ofereçam exemplos de turno inserido com sobreposição de vozes. Ampliando então a definição oferecida por esses autores, considerarei que a intervenção antecipatória constitui sempre um turno inserido ou mais simplesmente, uma inserção no turno em andamento, mesmo quando ocorre sobreposição de vozes. Isto se justifica pelo fato de que, embora sobreposta, a intervenção do antecipador pode interferir na formulação do turno em andamento, conforme mostra o seguinte exemplo:


(8) NURC/SP 360: 1311-1317.
L1 [....] ele joga futebol de salão... então eu expliquei direitinho que se realmente for bom vocação eu:: não impedirei de seguir... mas só para não dizer que a gente
L2 certo cer//ceou...
L1 tolheu cerceou aquela:: aquela ambição dele ma::s... deixo praticar o esporte tudo mais [....]

Galembeck, Silva e Rosa (1990: 78-81) observam ainda que o assalto ao turno em andamento pode se dar "com ou sem deixa" da parte do locutor corrente. No primeiro caso, ocorrem marcas de hesitação que facilitam a intervenção do interlocutor; no segundo caso, essas marcas não se verificam e a intervenção é brusca, provocando freqüentemente a sobreposição de vozes. Esse ponto pode ser ilustrado com as seguintes ocorrências da antecipação, o exemplo (9) apresentando assalto "com deixa" e o exemplo (10), assalto "sem deixa":

(9) NURC/SP 62: 551-556.
L1 [....] porque realmente houve assim uma::... uma fuga... do engenheiro da da... da área de produção... dos laboratórios de experiências para... para a...
L2 área administrativa
L1 área administrativa... hoje ele se encontra em grande percentagem na Área administrativa...

(10) NURC/SP 62: 304-308.
L1 se eu não fizer direito as minhas visitas ou se eu passar três quatro dias interrompendo meu serviço // porque estou cansado... evidentemente
L2 ganhará menos
L1 vou faturar menos vou ganhar menos

A distinção entre os dois tipos de assalto ao turno, no caso da antecipação, tem uma importância que transcende o interesse pela simples descrição dos mecanismos de troca de falante. Veremos na próxima seção que tal distinção relaciona-se sistematicamente com a diferenciação de funções interacionais da intervenção antecipatória.
Como uma inserção no turno em andamento, a intervenção do antecipador em geral requer a retomada da fala pelo locutor corrente. Isto é compreensível quando se tem em mente que a iniciativa do antecipador visa a contribuir com a formulação da fala do locutor corrente e não propriamente à troca de falantes. Tal retomada se faz normalmente por mecanismos bem precisos. Entre eles, o mais freqüente é a repetição do segmento antecipado. Alguns exemplos (em que as repetições vêm destacadas em negrito):

(11) NURC/SP 62: 382-385.
L1 não inclusive eu estava respondendo para você:: colega... o o o:: fato de eu ter escolhido a profissão do do...
L2 economista...
L1 economista né?... [....]


(12) NURC/SP 360: 1320-1324.
L1 [....] e:: ele segue // os
L2 ahn ahn
L1 salários dos::
L2 // jogadores
L1 ele segue os salários dos jogadores... [....]

Note-se que, no exemplo (12), o locutor corrente L1, ao retomar a fala, não somente repete o segmento antecipado por L2, mas insere esse segmento na repetição que faz de sua própria fala (assinalada em itálico). Esse caso tem uma importância especial porque ilustra com clareza duas outras funções da repetição nas ocorrências da intervenção antecipatória: o papel de mecanismo de ratificação e de incorporação. Por um lado, ao repetir o segmento antecipado, o locutor corrente evidencia o sucesso da iniciativa do antecipador; por outro, incorpora esse segmento à sua própria fala. A repetição serve, desse modo, como um indicador da continuidade sintática existente entre o turno de antecipação e as duas partes do turno em andamento.
Outro mecanismo de retomada da fala pelo locutor corrente é o emprego de marcadores conversacionais, isto é, de expressões estereotipadas que servem para sinalizar atitudes de um participante da conversação em relação a sua própria contribuição ou à do outro. No exemplo abaixo, os marcadores usados são de convergência e vêm assinalados em negrito:

(13) NURC/RE 340: 587-588
L2 [....] realmente assim eu acho que é eles...
L1 percebem as coisas
L2 é é e eu gosto por exemplo daí po por isso que eu gosto de conversar com eles [....]

Em alguns casos, verifica-se a combinação da repetição e do marcador:

(14) NURC/SP 360: 620-627.
L2 [....] estão também aguardando também o resultado disso mas parece que não vai dar nada porque::...
L1 já...
L2 já::... // ( )
L1 expirou o prazo
L1 é já expirou o prazo mas está havendo ainda eles estão... eles têm uma esperança

Nesse exemplo, a combinação do marcador de convergência com a repetição sugere uma especialização de funções: o primeiro mecanismo ratificando; o segundo, incorporando. Nos casos, porém, em que só o marcador ocorre, a incorporação parece ficar implícita, uma vez que o locutor corrente dá continuidade ao turno em andamento subentendendo o segmento antecipado.
Na retomada da fala pelo locutor corrente, aparece, portanto, alguma marca de ratificação do segmento antecipado, ou seja, algum indício do sucesso da iniciativa do antecipador. Isto nos leva à questão de como se dá a sinalização do insucesso dessa iniciativa. Em outras palavras, como se comporta o locutor corrente quando não concorda com a sugestão do antecipador? Os dois casos abaixo devem ser suficientes para responder a pergunta:



(15) NURC/RE 266: 162-167.
L2 é: o que infelizmente está havendo pai deixa de ser pai mãe deixa de ser mãe... passa a ser uma criadora não é? e o pai... fica éh...
L1 um sustentador
L2 entra entra quase como Pilatos no Credo... [...]

(16) NURC/RE 266: 1276-1287
L2 é o: o
L1 o corola o pistilo
L2 não éh::
L1 é o pistilo meu filho

Em (15), observa-se que o locutor corrente, ao retomar a palavra, simplesmente desconsidera a sugestão feita pelo interlocutor, não emitindo qualquer sinal de ratificação. Já no exemplo (16), o insucesso é explicitamente indicado pela presença de um marcador de divergência, assinalado em negrito.
Pelo que foi exposto até aqui, podemos dizer que uma ocorrência da antecipação envolve normalmente uma sucessão de três intervenções: locutor corrente antecipador locutor corrente. Com o sinal indica-se, nesse esquema, que essas intervenções se apresentam vinculadas de modo a formarem uma seqüência delimitável no interior da conversação. No entanto o vínculo estabelecido na transição locutor corrente antecipador é diferente do que existe na transição antecipador locutor corrente. No primeiro caso, a intervenção do antecipador serve para colaborar com a contribuição do locutor corrente; no segundo caso, a intervenção do locutor corrente serve para ratificar (e incorporar) a colaboração do antecipador. A ausência desse último componente da estrutura da antecipação tem, como vimos, um valor discursivo; isto é, assinala o insucesso da tentativa de antecipação por parte do ouvinte. Este fato identifica os mecanismos de ratificação nas ocorrências da antecipação com aquilo que tem sido chamado de follow-up, "que é um importante componente na interação conversacional com a função de endossar o resultado bem-sucedido da interação" (Tsui, 1994: 41). Sendo assim, é possível caracterizar uma ocorrência da antecipação como uma seqüência em três partes, ou seja, como apresentando uma estrutura que segundo alguns estudiosos seria básica na organização conversacional.
Cabe, por fim, considerar os tipos de segmentos que podem ser sugeridos pelo antecipador. Já foi dito anteriormente que, ao intervir, o antecipador o faz mais com o intuito de colaborar com o locutor corrente do que propriamente tomar-lhe o turno. Como conseqüência, as intervenções antecipatórias se constituem mais freqüentemente de segmentos curtos. Tais segmentos podem ser simples itens lexicais (exemplo (17)) ou sintagmas (exemplo (18)):

(17) NURC/SP 360: 814-821.
L2 [....] então eles têm eh existem procuradores...
L2 em todas as seções porque em todas a:: em todas as autarqui::a::s... em todas a::s
L1 secretarias
L2 secretarias porque um TUdo precisa sempre um advogado funcionário então em todas elas existe algum pro/ existem procuradores... em diversas procuradorias [....]

(18) NURC/RE 340: 710-713
L1 [....] num era nem porque é assim: me angustia a questão do dinheiro nada não é porque eu gosto
L2 de muita gente né?
L1 é

Em cada um desses casos, observamos que o segmento sugerido pelo antecipador vem ocupar um lugar sintático preciso na parte anterior do turno em andamento. Embora com menor freqüência que os itens lexicais ou os sintagmas, encontram-se também unidades oracionais constituindo o segmento antecipado:

(19) NURC/SP 343: 1290-1295.
L1 [....] você entendeu? muda o processo muito mais rápido... okay? ou então se o cara era fanático por correr a cavalo para aparecer lá...
L2 // agora ele pegar o carro esporte
L1 perante as garotinhas da ( ) ele pega o carro esporte e se arrebenta... [....]

Neste caso, nota-se que o segmento antecipado fornece claro desenvolvimento temático à porção anterior do turno em andamento, desdobrando uma comparação de comportamentos afins em épocas diferentes (correr a cavalo / pegar um carro esporte). Mesmo a teoria tradicional da sintaxe é capaz de captar uma relação (a saber, de subordinação) entre os segmentos se o cara era fanático por correr a cavalo para aparecer lá perante as garotinhas da... / agora ele pegar o carro esporte.

4 Funções textual-discursivas da antecipação

Definindo a antecipação como uma intervenção do ouvinte, estamos condicionando a ocorrência do fenômeno a situações de diálogo, ou seja, a interações nas quais as partes efetivamente contribuem com iniciativas de fala. O fato, se óbvio, não é, contudo, trivial. Fenômenos como a repetição, a paráfrase e a correção, amplamente estudados pelos analistas da conversação, podem ser observados também no monólogo e no discurso escrito. Já a antecipação, tal como aqui entendida, tem sua ocorrência resultando sempre de uma iniciativa do ouvinte.
Entretanto, o caráter essencialmente dialogal da antecipação implica algo mais do que a simples vinculação desse fenômeno a um tipo de discurso falado. A intervenção do antecipador pressupõe e evidencia a presença de uma condição fundamental para o sucesso da própria interação face-a-face, a saber, o estabelecimento de uma íntima sintonia de perspectiva entre o falante e o ouvinte. Em outras palavras, requer e manifesta aquilo que se pode chamar de envolvimento, definido como "uma conexão interna, até mesmo emocional, sentida pelos indivíduos e que os liga a outras pessoas, como também a lugares, coisas, atividades, idéias, memórias e palavras", não constituindo, porém, algo "dado, mas uma conquista na interação conversacional" (Tannen 1989: 12). No que segue, consideraremos algumas funções que a intervenção do antecipador desempenha no âmbito da conversação e que resultam em grande parte da natureza dialogal desse fenômeno. Ao fazê-lo, não será possível evitar uma certa simplificação na descrição de um quadro que normalmente é bastante complexo: as ocorrências da antecipação apresentam sempre um acúmulo intrincado de funções. Em vez de tentarmos identificar todas as possíveis funções que a intervenção do antecipador desempenha na conversação, abordaremos somente aquelas que se manifestam com maior nitidez. Além disso, tendo em vista que, em muitos casos, não se pode concluir, com segurança, quais dessas funções se acumulam em uma dada intervenção antecipatória, torna-se inviável proceder aqui a um tratamento quantitativo do fenômeno.

4.1 Co-formulação textual

Se denominarmos de procedimentos de formulação textual as estratégias por meio das quais o falante constrói o texto de sua contribuição, será correto falar no fenômeno da antecipação como um procedimento de co-formulação, uma vez que, por meio dele, o antecipador colabora no processo de constituição textual. Podem-se identificar duas atividades básicas na formulação textual: a produção de uma seqüência verbal e a configuração de uma intenção comunicativa associada a essa seqüência. Convém notar, porém, que a segunda dessas atividades não se esgota no esforço expressivo do falante: requer também a ação interpretativa do ouvinte. Embora, no discurso oral, a produção verbal e a interpretação ocorram quase simultaneamente, não parece correto supor que tais atividades apresentem uma progressão rigorosamente coincidente. Um fenômeno como a antecipação nos força a aceitar a possibilidade de o ouvinte apreender a intenção comunicativa do falante antes mesmo que a seqüência verbal esteja concluída. De outra maneira, não há como entender que o antecipador seja freqüentemente bem-sucedido em suas iniciativas.
Somente se, de algum modo, consegue fazer uma projeção da intenção do falante, pode o antecipador colaborar com êxito na formulação da fala em curso. A projeção consiste na configuração mental que o ouvinte faz, de antemão, do que ele julga ser a intenção comunicativa do falante. A antecipação, portanto, constitui a manifestação textual e discursiva da capacidade que o ouvinte tem de dar "saltos" interpretativos, ou seja, de configurar a intenção comunicativa do falante antes mesmo que este tenha concluído a formulação de sua mensagem. Na medida em que textualiza o processo de projeção, a antecipação proporciona uma ocasião singular para o estudo desse aspecto prospectivo da atividade interpretativa que se desenrola ao longo da conversação. Como disse antes, pretendo desenvolver este assunto em uma outra oportunidade.

4.2 Reparação

Vimos acima que a intervenção do antecipador pode se dar como um assalto ao turno "com deixa", sendo motivada nesses casos pela presença de fenômenos de hesitação na fala do locutor corrente. Tais fenômenos apresentam uma ambivalência: para o locutor corrente, eles constituem um momento de planejamento do próximo passo da fala; para o antecipador, eles representam quase um "convite" à intervenção.
Os fenômenos de hesitação podem estar associados a problemas de fluência do falante, embora a ocorrência desses fenômenos dentro de certos limites não deva ser encarada como inépcia do falante. Contudo, no curso da interação conversacional, qualquer momento de hesitação pode ser interpretado pelos participantes como uma "fonte de problema" (trouble-source), na designação de Schegloff, Jefferson & Sacks (1977: 363). Esses autores empregam o termo "reparação" (repair) para indicar genericamente os diversos mecanismos que se destinam a resolver quaisquer fontes de problema. Entre estas está o que eles chamam de "procura de palavra" (word search) e que ocorre quando um item lexical "não está acessível ao falante no 'momento devido'" (1977: 363). Exatamente essa parece ser a situação do locutor corrente naqueles casos de antecipação que ocorrem por meio de um assalto "com deixa". Por exemplo:

(20) NURC/RE 340: 1167-1170
L2 não: não eu num: num me ligo muito nisso eu me ligo mais em fazer foto... éh fazer foto: mais assim::
L1 artística
L2 é: de momen::to de coisa assim eu gosto

É possível, porém, ampliar essa situação de modo a abranger aqueles casos em que o locutor corrente planeja segmentos maiores de texto:

(21) NURC/SP 360: 25-31.
L1 quer dizer somos de famílias GRANdes e::... então ach/acho que::... dado esse fator nos acostumamos a:: muita gente
L2 ahn ahn
L1 e::
L2 e daí o entusiasmo para NOve filhos...
L1 exatamente nove ou dez...

Sendo assim, parece correto incluir na classe dos mecanismos de reparação todas as ocorrências da intervenção antecipatória que se dão após a hesitação do locutor corrente e entender esses casos como um esforço do ouvinte em livrar o falante do constrangimento de não encontrar a palavra no momento devido.

4.3 Sinalização de compreensão

Como vimos acima, uma das características estruturais de uma intervenção bem-sucedida do antecipador é a existência de uma marca de ratificação por parte do locutor corrente. Sob este ângulo, qualquer tentativa bem-sucedida de antecipação parece servir como indicador de uma compreensão eficiente da fala em curso. De fato, Wilkes-Gibbs (1995) entende a antecipação (completion) como um dos mecanismos utilizados pelos participantes da conversação no processo coletivo de construção de sentidos. Segundo a autora, a intervenção antecipatória é um meio empregado pelo ouvinte para forncecer evidência de que ele entendeu o que o falante quis dizer e se insere no contexto mais amplo das ações coordenadas que visam ao estabelecimento da compreensão mútua.
No entanto, em algumas ocorrências da intervenção antecipatória, como no exemplo (22) abaixo, a sinalização da compreensão parece enfatizada por certas características estruturais e formais: primeiro, a ausência de fenômenos de hesitação na fala do locutor corrente, o que caracteriza o assalto "sem deixa"; segundo, a presença de marcador de convergência (assinalado aqui em negrito), característico do ouvinte, no próprio turno de antecipação.

(22) NURC/SP 360: 1311-1317.
L1 [....] ele joga futebol de salão... então eu expliquei direitinho que se realmente for bom vocação eu:: não impedirei de seguir... mas só para não dizer que a gente
L2 certo cer//ceou...
L1 tolheu cerceou aquela:: aquela ambição dele ma::s... deixo praticar o esporte tudo mais [....]
Nesse exemplo, dada a inexistência da hesitação, não parece correto dizer que o antecipador procura "socorrer" o locutor corrente. O que vemos aí é um caso em que o interlocutor pretende sobretudo demonstrar que já compreendeu, ao momento de sua intervenção, o que o locutor pretendia dizer. Por isso, é sintomática a presença do marcador de convergência, que assinala a eficiência do interlocutor enquanto ouvinte.

4.4 Monitoração rítmica

A conversação é fundamentalmente uma atividade em que os participantes coordenam contribuições verbais em tempo real. Conseqüência disto é que se estabelece uma pressão de tempo, em geral tácita, sobre a atuação de cada um dos interlocutores, determinando o andamento das ações discursivas. Muitas vezes, porém, tal pressão se explicita sob a forma de intervenções nas quais os participantes procuram monitorar o fluxo discursivo, de tal modo que o ritmo da interação conversacional não venha a ser comprometido por retardamentos ou acelerações indevidos. Entre os meios para evitar o retardamento, pode estar a antecipação. É o que parece mostrar o exemplo abaixo, em que L1, pela antecipação, incita L2 a continuar o seu turno, que se encontra suspenso por causa do riso:

(23) NURC/SP 360: 1144-1148.
L2 [....] e se ele não arranja... tem muita gente que fica chateada ou pelo menos desapontada... né? ((risos)) e:: não é fácil ((risos))
L1 contentar...
L2 contentar... então isso acontece muito [....]

Em casos como o seguinte, é razoável postular que a intervenção do antecipador acumula essa função a outras:

(24) NURC/SP 62: 551-556.
L1 [....] porque realmente houve assim uma::... uma fuga... do engenheiro da da... da área de produção... dos laboratórios de experiências para... para a...
L2 área administrativa
L1 área administrativa... hoje ele se encontra em grande percentagem na Área administrativa...

Nesse exemplo, a intervenção do antecipador se dá imediatamente após a "deixa" do locutor corrente, isto é, depois de repetições e pausas hesitativas, o que nos autoriza a tomar tal intervenção como cumprindo uma função reparadora. Contudo, é possível notar no exemplo que a primeira parte do turno em andamento apresenta uma progressão bastante lenta devido à fala hesitante do locutor corrente. Esse fato sugere a possibilidade de que a iniciativa do antecipador seja motivada não somente pela intenção de auxiliar o falante em sua "procura da palavra", num ponto específico da seqüência verbal; também pode haver aí o desejo de provocar uma aceleração do ritmo de produção dessa seqüência. Teríamos assim um caso de antecipação acumulando as funções de reparação e monitoração rítmica.

5 Conclusão

Do quadro apresentado nas seções anteriores, decorre a visão de um fenômeno que, longe de ser aleatório ou meramente idiossincrático, insere-se no contexto dos processos constitutivos da organização conversacional. Embora de ocorrência não muito freqüente, a antecipação desempenha funções que a tornam até certo ponto previsível. Assim é que, dado o seu papel reparador da disfluência ou monitorador do ritmo discursivo, a intervenção do antecipador se torna provável ante a hesitação do locutor corrente. Por outro lado, a estrutura geralmente tripartite das ocorrências da antecipação reproduz o esquema, segundo alguns, básico das seqüências de turnos que compõem o discurso conversacional. A intervenção antecipatória constitui, portanto, uma seqüência discursiva cujos traços e funções são suficientemente delineados para que a situemos no mesmo nível que outros fenômenos prestigiados pelos analistas da conversação.

Referências bibliográficas

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PAES BARRETO, F. M. 1998. Antecipação e interpretação no discurso conversacional. Dissertação de Mestrado, Departamento de Letras, Universidade Federal de Pernambuco. Recife: mimeo.
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Wilkes-Gibbs, D. 1995. "Coherence in collaboration: some examples from conversation". In: Gernsbacher, M. A. & Givón, T. (eds.). Coherence in spontaneous text. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company: 239-67.

Anexo: O sistema de transcrição do corpus

Na medida do possível, foram mantidas as convenções para a transcrição dos inquéritos utilizadas nas fontes originais do Projeto NURC. Contudo, devido à necessidade de adequar essas convenções aos recursos gráficos do equipamento empregado na edição deste trabalho, introduziram-se algumas modificações.

( ) incompreensão de palavras ou segmentos
(hipótese) transcrição hipotética
(( )) ação não-verbal do locutor ou comentário do transcritor
[....] omissão intencional de parte do turno
/ truncamento de palavras
// ponto em que um enunciado é sobreposto pelo enunciado transcrito na linha imediatamente abaixo
:: alongamento de vogal ou consoante
... qualquer pausa
-- -- desvio temático
? entoação ascendente
MAIÚSCULA sílaba ou palavra pronunciada com ênfase
____ localização da ocorrência do fenômeno em discussão

RE Recife (na identificação dos inquéritos)
SP São Paulo (na identificação dos inquéritos)


(Publicado em Travessia, Olinda, Ano III, N.º 03, 2001, p. 45-61.)

[Revisão concluída em 27/7/2003]

12



Alguns autores têm se detido no fenômeno ao abordarem questões mais amplas. Assim, Gallembeck, Silva & Rosa (1990) analisaram o "turno de colaboração (ou de antecipação)" em seu estudo tipológico sobre os turnos conversacionais; Wilkes-Gibbs (1995) estudou a antecipação (que a autora chama de "completion") na conversação em inglês, dentro de uma teoria geral da colaboração discursiva.
Neste entretempo, remeto os interessados nos aspectos interpretativos da antecipação a Paes Barreto (1998: 61-77). O presente artigo constitui uma versão condensada de parte do referido trabalho.
O corpus de material conversacional utilizado provém dos inquéritos audiogravados e transcritos pelo Projeto da Norma Lingüística Urbana Culta (NURC), conforme constam em Castilho & Preti (1987) e em cópias mimeografadas conseguidas junto à coordenação do Projeto NURC-RE, no Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco. A identificação dos inquéritos é oferecida na entrada de cada exemplo, acompanhada das linhas em que se localiza a passagem em pauta. Ao final deste artigo, encontra-se uma relação das convenções notacionais utilizadas nas transcrições dos inquéritos.
Devido à limitação de espaço, só é possível apresentar exemplos em caráter ilustrativo. Para uma corroboração empírica mais ampla dos aspectos discutidos ao longo deste trabalho, cf. Paes Barreto (1998: passim).
A hesitação se manifesta de diversas maneiras: pausas, alongamentos, repetições, etc. O exemplo (9) apresenta a repetição e a pausa (assinalada esta pelo sinal ...) acumuladas em um mesmo processo hesitativo. Marcuschi (1999: 159-94) analisa em detalhe as diversas facetas do fenômeno da hesitação.
Evito aqui o uso de uma terminologia mais sofisticada para designar particularides tipológicas da repetição. Os estudos mais abrangentes desse fenômeno, na conversação em português, são os de Marcuschi (1992, 1996)
Para uma visão geral e classificação dos marcadores conversacionais no português, cf. Marcuschi (1986: 61-74).

Para uma discussão sobre que tipo de seqüência tomar como básico na conversação, cf. Tsui (1994: 22-43).
Em Paes Barreto (1998: 59-60), identifica-se ainda uma outra função, a de humor, que aqui não foi discutida por parecer secundária em comparação às demais.

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