\"A Argentina é o nosso eterno outro\": a construção de identidades nacionais e regionais na Copa Libertadores da America segundo os periodicos

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CAMPUS GUARULHOS

DIOGO CORRÊA MEYER

“A ARGENTINA É O NOSSO ETERNO OUTRO”: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NACIONAIS E REGIONAIS NA COPA LIBERTADORES DA AMÉRICA SEGUNDO OS PERIÓDICOS

GUARULHOS 2014

DIOGO CORRÊA MEYER

“A ARGENTINA É O NOSSO ETERNO OUTRO”: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NACIONAIS E REGIONAIS NA COPA LIBERTADORES DA AMÉRICA SEGUNDO OS PERIÓDICOS

Trabalho de conclusão de curso apresnentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do bacharelado em Ciências Sociais. Orientação: Prof. Dr. José Lindomar Coelho Albuquerque

GUARULHOS 2014

MEYER, Diogo Corrêa. “A Argentina é o nosso eterno outro”: a construção de identidades nacionais e regionais na Copa Libertadores da América segundo os periódicos / Diogo Corrêa Meyer. – 2014. 67 páginas. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de São Paulo. Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2014. Orientador: José Lindomar Coelho Albuquerque. 1. Futebol. 2. Identidade. 3. Meios de comunicação. I. José Lindomar Coelho Albuquerque. II. A construção de identidades regionais na Copa Libertadores da América.

DIOGO CORRÊA MEYER “A ARGENTINA É O NOSSO ETERNO OUTRO”: A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES NACIONAIS E REGIONAIS NA COPA LIBERTADORES DA AMÉRICA SEGUNDO OS PERIÓDICOS Trabalho de conclusão de curso apresentado à Universidade Federal de São Paulo como requisito parcial para a obtenção do bacharalado em Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. José Lindomar Coelho Albuquerque Aprovação: ____/____/________

Prof. Dr. Orientador José Lindomar Coelho Albuquerque Universidade Federal de São Paulo

Prof. Dr. Arlei Sander Damo Universidade Federal do Rio Grande do Sul

À minha mãe.

AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer a minha família, que me apoiaram emocionalmente e acreditaram, de uma forma ou de outra, neste tema estudado. Devo uma menção honrosa a meu avô, que foi o responsável por me apaixonar por este esporte desde a mais tenra idade e, portanto, ser um dos principais “culpados” por eu estar escrevendo sobre futebol. Lembro também dos docentes do curso de Ciências Sociais da UNIFESP, cujas aulas eu pude assistir durante a graduação e recolher muito conhecimento. No Rio Grande do Sul, vale recordar a ajuda de dois professores da UFRGS, Arlei Damo e César Guazzelli, que compartilharam comigo dicas valiosas relacionadas a pesquisa durante minha estadia em Porto Alegre. Agradeço também ao CNPq por acreditar e fomentar estes dois anos de pesquisa cujo resultado acarretou na presente monografia. Sou grato ao meu orientador, o professor José Lindomar, pela força de vontade e que, sem ele, não seria possível todo esse investimento. Por fim, sou muito agradecido aos meus amigos, todos eles, dos mais antigos aos mais recentes, dos que praticam, falam, amam, odeiam ou são indiferentes ao futebol. Todos eles são responsáveis por propiciarem momentos agradáveis ao longo desta longa estrada da vida. Muito obrigado!

RESUMO O escopo desta pesquisa é compreender o fenômeno da formação de identidades nacionais e regionais e o surgimento de visões sobre o outro através do futebol. Para isso, o foco serão alguns confrontos entre brasileiros e argentinos e, num contexto interno, gaúchos e paulistanos na Copa Libertadores da América, principal torneio interclubes da América Latina. As equipes que participam desta competição auxiliam na constituição imaginada de identidades e comunidades nacionais e/ou regionais. Os jornais exercem um papel essencial na produção e reprodução das imagens do Eu e do outro, reforçando a identidade através das narrativas dos jogos. O objetivo fundamental é compreender a produção das representações das identidades e alteridades regionais e nacionais no âmbito da cobertura jornalística de um importante torneio internacional de clubes, a Copa Libertadores da América. Palavras-chave: Futebol. Identidade. Meios de comunicação.

ABSTRACT This research are looking for the phenomenon of the set up of regional identities and the emergence of perspectives about the other through the football. Thereby, the focus will be some clashes between Argentinean and Brazilians teams and, in a domestic context, between Rio-grandenses and Paulistas teams in the Copa Libertadores da América the main tournament between soccer clubs in Latin America. The clubs join this competition and help to develop real national/regional identities and communities. The newspapers have an important role when it comes to broadcast the I and the other images, increasing the identities through the games narration. The main goal is to understand identity representation development and regional and national alterity in journalistic standards of an important international soccer tournament, the Copa Libertadores da América. Keywords: Football. Identity. Media.

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO

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2 “NÓS E ELES” – CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS ARGENTINOS SEGUNDO OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO BRASILEIROS 17 3 “NÓS E... NÓS” – PERSPECTIVAS REGIONAIS EM UM TORNEIO INTERNACIONAL

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4 “TOCO Y ME VOY” – ESTILOS DE JOGO SEGUNDO OS ARGENTINOS

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5 CONCLUSÃO

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REFERÊNCIAS

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ANEXO A –

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ANEXO B –

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1. INTRODUÇÃO A singularidade ou a originalidade dos relacionamentos, práticos e simbólicos, de brasileiros ou argentinos com o futebol passou a ocupar o centro do cenário. Em vez de alienação e controle, as palavras-chave passaram a ser singularidade, identidade, emoção, criatividade, estilo, imaginação e outras da mesma matriz. A importância que ganhou a discussão dos estilos nacionais aparece como exemplar metonímico do conjunto das mudanças. O futebol passou a ser exaltado como popular, participativo e expressão autêntica da cultura ou do ser nacional. (LOVISOLO, 2011, p. 15).

“Tudo o que sei com maior certeza sobre a moral e obrigações do homem, devo ao futebol”. A frase do filósofo francês Albert Camus nos demonstra o quão relevante este esporte é na sociedade contemporânea, extrapolando o território das quatro linhas que delimitam o campo de prática deste jogo. O futebol cada vez mais espetacularizado (tratado muitas vezes como uma religião) torna-se, portanto, um fenômeno importante na formação do indivíduo, não somente dos profissionais envolvidos, como também dos próprios torcedores, esses jogadores frustrados, fiéis a uma agremiação, “herança maldita” de pais, avôs ou tios 1. Tal paixão destes aficionados atingem níveis em que o clube está acima da própria seleção nacional 2. Este esporte representa uma linha de continuidade em nossa sociedade. Utilizamos termos oriundos do futebol para descrever ocasiões específicas, além de ser um dos assuntos que são mais levados a sério pelos brasileiros, aquele em que eles mais “estudam” para, numa reunião de amigos, afirmar com toda a propriedade sobre o assunto. Para isso, são necessárias fontes, e não há nada melhor do que os meios de comunicação impressos recheados de “especialistas” no esporte mais popular do Brasil. Sempre com informações relevantes para as agremiações de determinadas regiões, os jornalistas trabalham para formar uma opinião convergente sobre dado assunto e, com isso, elaboram construções imaginárias que fomentam

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“Na ótica do clubismo brasileiro, os pertencimentos parentais e, particularmente, dos laços de sangue, culturalmente definidos como inquebrantáveis, ocupam lugar de destaque. Dados preliminares, relativos ao Rio Grande do Sul, indicam que 80% dos meninos torcem pelo mesmo clube do pai, o que implica que eles vivem juntos o drama de empenhar as emoções num clube de futebol (...). Assim sendo, são arrastados para o campo futebolístico sentimentos de afeto, solidariedade e honra originários das relações familiares.” (DAMO, 2007: p. 51). 2

Como o caso desta pesquisa realizada pelo site “pasiónlibertadores.com” sobre qual é a preferência dos torcedores: a seleção nacional ou o clube. O resultado está presente no link: http://www.pasionlibertadores.com/noticias/Los-hinchas-prefieren-la-Libertadores-al-Mundial-porque-elsentimiento-por-el-club-es-mas-fuerte-20121026-0006.html

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visões e perspectivas sobre tal grupo. Visando uma melhor compreensão da situação indicada, o sociólogo estadunidense Charles Wright Mills afirmará que: Em nossa vida cotidiana, porém, não experimentamos fatos sólidos e imediatos, mas estereótipos de significado. Temos conhecimento de muito mais do que nós mesmos experimentamos, e nossa experiência é ela própria sempre indireta e guiada. A primeira regra para compreender a condição humana é que os homens vivem em mundos de segunda mão (...). Entre a consciência humana e a existência material encontram-se comunicações e planos, padrões e valores que influenciam decisivamente a consciência que possam ter. (MILLS: 2009, p. 44)

O objetivo deste texto é demonstrar um panorama histórico de como os jornais argentinos e brasileiros construíram uma visão de alteridade a partir de depoimentos, crônicas e notícias específicas. Foram utilizados dois jornais periódicos de grande circulação na Argentina, a saber: Clarín e La Nación. No Brasil, selecionamos quatro jornais impressos de duas regiões (Rio Grande do Sul e São Paulo): Correio do Povo e Zero Hora, em Porto Alegre 3; e Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, em São Paulo. A escolha de dois periódicos por região deu-se pela intenção de reunir um maior número de informações e depoimentos que contribuíssem para o andamento da pesquisa. Ademais, no caso brasileiro, adotamos como critério o levantamento feito pela ANJ – Associação Nacional de Jornais – dos meios de comunicação impressos nacionais de maior circulação paga por ano. Esta pesquisa é promovida anualmente pelo Instituto Verificador de Circulação (IVC) desde 2002 4

, e nos indica que tais periódicos são os mais veiculados em suas respectivas regiões. O recorte cronológico escolhido deteve-se a um total de 12 jogos observados a partir

da visão dos seis jornais já citados anteriormente. Todos estes confrontos envolveram confrontos entre clubes brasileiros e argentinos, sendo dez finais e três semifinais. As pelejas são (com os nomes em negrito representam os vencedores do confronto): Santos VS Boca Juniors (final 1963); Estudiantes VS Palmeiras (final 1968); Independiente VS São Paulo (final 1974); Grêmio VS Estudiantes (semifinal 1983); Independiente VS Grêmio (final 1984); São Paulo VS Newell’s Old Boys (final 1992); Vélez Sarsfield VS São Paulo (final 1994); Boca Juniors VS Palmeiras (final 2000); Boca Juniors VS Santos (final 2003);

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Além da utilização do jornal Última Hora em 1963, pelo fato do jornal Zero Hora ter surgido somente em 1964. 4

As tabelas com podem ser visualizadas neste link: http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-nobrasil/maiores-jornais-do-brasil

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Internacional VS São Paulo (final 2006); Grêmio VS Santos (semifinal 2007); Boca Juniors VS Grêmio (final 2007); Corinthians VS Boca Juniors (final 2012). A escolha de tais datas concentra-se ora por ocasiões históricas (como a “Batalha de La Plata” de 1983 5, ou o confronto polêmico da semifinal de 2007 entre agremiações brasileiras 6), ora por serem duelos de finais deste torneio. A análise dos jornais cobriu um período de cerca de quinze dias por edição da Copa Libertadores, a fim de observar os depoimentos tecidos relacionados à alteridade antes, durante e depois da conquista. Encontramos alguns empecilhos durante a pesquisa nos arquivos públicos destas três regiões. Algumas edições dos periódicos originais consultados estavam em péssimo estado de conservação, faltando páginas ou então estavam rasgadas ou queimadas. O mesmo problema foi encontrado nos rolos de microfilmes, quando as edições de determinado mês inexistiam. Mesmo com essa perda de materiais que poderiam ser relevantes ao andamento da pesquisa, foi possível consultar a maioria dos períodos propostos. Durante as citações dos jornais no decorrer do texto, optamos por manter os grifos como estão nas versões que foram consultadas nos acervos. Propusemos também em manter os excertos retirados de periódicos argentinos em espanhol, realizando a tradução livre nas notas de rodapé. Por fim, nos trechos que não foi possível identificar a página, escolhemos por citar o título da reportagem. A opção por trabalhar com os meios de comunicação impressos está embasada nos argumentos apresentados por Benedict Anderson acerca da construção das comunidades imaginadas. Com a ascensão das línguas vernaculares, o capitalismo editorial adquiriu papel fundamental na consolidação das nações e nacionalismos modernos (ANDERSON: 2006).

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A denominação deste jogo é justificada pelos relatos apresentado pelos periódicos dos dois países. Enquanto o jornal gaúcho Zero Hora, em 2008, relembra da disputa como um “clima belicoso” (que adquiriu formas míticas e épicas), o argentino Clarín, em 2003 (vinte anos após o acontecimento), exalta a bravura dos jogadores e torcedores no episódio que lá tem outro nome, “El empate increíble”. Os links brasileiros e argentinos são, respectivamente, http://zerohora.clicrbs.com.br/rs/esportes/noticia/2008/07/libertadores-1983-o-empate-e-a-vidana-batalha-de-la-plata-2032855.html e http://edant.clarin.com/diario/2003/07/10/d-00202.htm Consultados em: 20/06/2014. 6

Durante o jogo de volta das semifinais entre Grêmio e Santos, os jornais riograndenses acusaram amplamente um radialista paulista que um dia antes desta partida na Vila Belmiro ofendeu publicamente os gaúchos, chamando-os de “bandidos” e “bichonas”, além de compará-los aos argentinos (Em ZERO HORA, 07/06/2007. p. 46). Tal tema será tratado mais adiante.

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Através destes periódicos que os interesses da classe dominante e seus intelectuais serão representados e divulgados amplamente pela sociedade e, em especial, a seus pares, abrindo espaço para a “invenção de tradições” 7. Reforçando este discurso, podemos citar Pierre Bourdieu quando este refere-se ao poder do jornalismo em reproduzir imagens com tal fim, principalmente nas “notícias esportivas” e sessões de “variedades”: Busca do sensacional, do espetacular, do extraordinário, é certa visão da informação, até então relegada os jornais ditos sensacionalistas, consagrado aos esportes e às variedades, que tende a impor-se ao conjunto do campo jornalístico. E é (...) certa categoria de jornalistas, recrutados com grandes gastos por sua aptidão para curvarse sem escrúpulos às expectativas do público menos exigente (...) que tende a impor seus ‘valores’, suas preferências (...), seu ‘ideal humano’, ao conjunto de jornalistas (...). As notícias de variedades têm por efeito produzir o vazio político, despolitizar e reduzir a vida do mundo à anedota e ao mexerico (...), fixando e prendendo a atenção em acontecimentos sem consequências políticas (...) para transformá-los em “problemas da sociedade”. (BOURDIEU, 1997: pp. 72-3)

Os periódicos acabam, enfim, por reproduzir classificações através da descrição de eventos esportivos, apontando, assim, para a centralidade da cultura no mundo contemporâneo (HALL: 2011). Os diferentes estilos de jogo aplicados por Argentina e Brasil segundo os discursos jornalísticos, por exemplo, auxiliam na construção do imaginário daquele universo de significados que representa uma possível “argentinidade” ou “brasilianidade”8. Tomando como princípio a construção do outro através da interpretação dos textos apresentados, foi possível observar a criação de uma imagem do próprio “Nós” através da análise comparativa destes jornais. Ademais, tais discursos promovidos pelos argentinos – repletos de termos e associações que classificam o Brasil – possibilitam identificar uma diferença no tratamento relacionado às diferentes regiões brasileiras a serem abordadas, a saber, Rio Grande do Sul e São Paulo. Utilizamos algumas referências bibliográficas que analisam o fenômeno da rivalidade entre Brasil e Argentina no decorrer da pesquisa. Alguns escritores afirmaram que tal ocorrência é recente, oriunda especialmente a partir dos anos 1990 com a criação de

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Expressão cunhada por Eric Hobsbawn (HOBSBAWN; RANGER: 2008).

Lembrando que, como nos aponta Stuart Hall, tais identidades estão sujeitas não somente a diversas alterações ao longo do tempo, como também a múltiplas interpretações, ou seja, não há a possibilidade de afirmar que determinado comportamento seja o “verdadeiro” ou o “único” de alguma região. Para mais detalhes, ver HALL, 2011.

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periódicos especializados, como o argentino Olé e brasileiro Lance! e suas coberturas jornalísticas irreverentes dos confrontos entre as seleções nacionais destes dois países (HELAL: 2011). Além disso, este mesmo autor afirmará, embasado nos discursos destes mesmos jornais citados acima, que “os argentinos odeiam amar os brasileiros” (HELAL, LOVISOLO, 2007, p. 14). Esta referência dos brasileiros sobre os argentinos são encontradas em propagandas, programas televisivos e nos meios de comunicação de maneira geral. Como nos demonstra o jornalista José Geraldo Couto quando escreveu sobre os argentinos em sua coluna entitulada de “O eterno outro”: A Argentina é o nosso eterno outro (...). Brasil e Argentina encaram um ao outro como quem se mira num desses espelhos deformadores de parque de diversões (...). O “outro” causa admiração e repugnância ao mesmo tempo. Os argentinos escarnecem da nossa bagunça fundamental, da nossa ignorância, da nossa falta de sentido coletivo. É o jeito de disfarçarem a inveja do que há em nós de sensual, espontâneo e livre. Da mesma forma, abominamos a arrogância argentina, seu pretenso europeísmo, o formalismo de sua classe média e elite – e escondemos a inveja de sua arraigada cultura (...). Não existe “o” argentino, assim como não existe “o” brasileiro – só em piadas. Mas há traços de temperamento difundidos de cada um dos lados da fronteira. (FOLHA DE SÃO PAULO, 23/06/2007. p. D7).

Nossa proposta aponta para uma outra perspectiva de análise do problema, isto é, visamos analisar como, com o passar dos anos, a relação entre argentinos e brasileiros e entre paulistas e gaúchos se deu através destes confrontos na Taça Libertadores da América. Procuramos encontrar a partir dos discursos enunciados nos meios de comunicação impressos a construção de tradições imaginadas que recebem um grande respaldo “empírico” de jornalistas e comentaristas. Em outras palavras, buscamos explicitar como os argentinos identificam os brasileiros a partir destes estereótipos característicos do futebol – como o jogo bonito, visto como tipicamente brasileiro pelos argentinos –, e não necessariamente buscar em uma análise cronológica a partir de quando se iniciou tal rivalidade. Da mesma forma como visamos encontrar nos periódicos brasileiros diferentes classificações não somente deste sujeito argentino, como também das peculiaridades regionais em confrontos de times gaúchos e paulistas. Vale ressaltar também que escolhemos abordar somente alguns jogos entre os previamente selecionados a fim de elaborar uma análise mais precisa nos principais acontecimentos desta relação entre brasileiros e argentinos. Isso não significa que as outras decisões tenham sido excluídas da nossa discussão; entrementes, por estas não conterem acontecimentos tão marcantes quanto em outras, optamos por apropriá-las numa interpretação histórica dos confrontos.

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Buscamos observar com esta pesquisa as diferentes perspectivas de alteridade com o argentino – o brasileiro, o gaúcho, o paulista – a partir da análise dos textos jornalísticos; tipificações que ora o qualificam de maneira positiva, ora negativa, o que resultará numa criação no imaginário dos brasileiros sobre este “estrangeiro”, que se encontra numa relação flexível de distanciamento e aproximação, como apontara Simmel em sua reflexão sobre o estrangeiro (SIMMEL: 2005). A admiração e o repúdio aos “estrangeiros” são dados de maneiras diferentes pelos jornais de cada região do Brasil em que foram estudadas. Por um lado, nos periódicos paulistas, os argentinos são caracterizados, na maioria das vezes, com termos negativos e que promovem um distanciamento maior deles. Por outro lado, os tabloides rio-grandenses veem seus vizinhos de fronteira muito mais próximos do que o “centro” do Brasil; logo, os termos que denotam comportamentos “característicos” dos argentinos são carregados de entoações positivas e que aproximam o estilo de jogo “gaúcho” antes ao estilo “argentino” (um estilo compreendido pela coletividade, disciplina tática, defensivo, segundo os depoimentos jornalísticos) do que ao jogo bonito tipicamente “brasileiro” (representado por estar carregado de jogadas individuais, improvisado, ofensivo, em outras palavras, o antagonismo do estilo “argentino”). Esta última característica estará presente também nos jornais argentinos ao se referirem aos brasileiros como aqueles que praticam o jogo bonito. E será a partir deste ponto em que serão avaliadas as equipes brasileiras, sendo algumas mais “brasileiras” do que outras. Por outro lado, servirá também como parâmetro para acentuar a rivalidade entre os dois países. Somente se rivaliza com aquele que é maior ou igual a você. Visto que são dois países com estilos de jogo “puros” semelhantes – jogo bonito e estilo criollo (la nuestra) –, os jornais acabam por convergir em determinados pontos. Por conseguinte, o elemento central que impulsiona tal texto concentra-se na observação e análise dos termos encontrados nos discursos reproduzidos pelos meios de comunicação impressos. Quando utilizamos o vocábulo “brasileiros”, referimo-nos não somente àqueles que habitam tal território nacional e compartilham determinados costumes, mas também aos diferentes tipos de “Brasis” – termo cunhado pelo antropólogo Darcy Ribeiro (1995) – existentes e suas especificidades, concentrando-se principalmente nos estados do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Ademais, vale recordar que estamos trabalhando com textos jornalísticos, ou seja, as caracterizações presentes nestes periódicos não necessariamente corresponderão à forma de como os argentinos, de maneira geral, veem

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os brasileiros, ou vice-versa. Focamos nossos interesses sobre o discurso oriundo destes jornais, ou seja, não fora realizada uma comprovação do quanto destes termos presentes realmente são incorporados pela sociedade. Logo, nossa proposta está focada em identificar como os discursos presentes nos jornais imaginam as diferentes identidades nacionais e regionais, remontando o conceito de “estrangeiro”.

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2. “NÓS E ELES” – CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS ARGENTINOS SEGUNDO OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO BRASILEIROS O encontro de brasileiros e argentinos é sempre um momento especial no futebol mundial. A rivalidade é muito grande e qualquer vantagem de um sobre o outro é motivo de grande comemoração. É o que acontece na Taça Libertadores da América. (ESTADO DE SÃO PAULO, 22/08/1994, p. E3)

A relação entre argentinos e brasileiros no futebol tomou proporções para além do campo de jogo durante os anos. Nós, brasileiros, já ouvimos ou lemos algum dia que as equipes argentinas são equipes “catimbeiras”9 e seus torcedores são “violentos”, mas que também possuem jogadores “talentosos” e fãs “apaixonados”. Estes e outros termos estão associados a um ambiente muito peculiar proporcionado pelas narrativas esportivas da Copa Libertadores da América presentes nos jornais impressos brasileiros. Ronaldo Helal, sociólogo especializado na rivalidade entre Argentina e Brasil a partir dos meios de comunicação, adota tal frase como a síntese do encontro destas seleções nacionais: “Os argentinos odeiam amar os brasileiros e os brasileiros amam odiar os argentinos.” (HELAL, LOVISOLO, 2007, p. 14). Tanto Argentina quanto Brasil são países conhecidos pelas grandes conquistas neste esporte, seja em torneios de clubes, seja em competições de seleções nacionais. Esta alteridade inventada pelos comunicadores sociais e representantes do jornalismo esportivo brasileiro é intensificada com os encontros constantes de equipes destes dois países em torneios interclubes de futebol, como a mais antiga competição deste tipo na América Latina ainda existente: a Copa Libertadores da América. Equipes brasileiras e argentinas já se enfrentaram em mais de dez finais; ademais, são os países com o maior número de títulos deste campeonato: 17 e 22, respectivamente. Os meios de comunicação impressos insistem exaustivamente em recordar uma “tradição” existente nesta competição, utilizando termos belicosos para classificar seus adversários. Com efeito, são comuns referências como um estádio argentino (nesse caso específico, a “Bombonera”, estádio de Boca Juniors) “que fere os ouvidos e a ‘alma’ dos adversários.” (ESTADO DE SÃO PAULO, 25/06/2003, p. E1); ou então quando nos

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Gíria brasileira para o antijogo praticado por adversários, visando o retardamento da partida, com práticas como a simulação de lesões.

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referimos à própria competição, que segundo o jornalista Rodrigo Bueno, “que tradicionalmente exige experiência e malícia” (FOLHA DE SÃO PAULO, 03/07/2003, p. D1). Ainda encontramos termos como “alçapão”, “caldeirão”, “inferno”, “palco de guerra”, na maioria das vezes referindo-se aos estádios argentinos, sempre cheios com torcedores “fanáticos” e que auxiliam na criação de uma estrutura mística ao redor dos confrontos entre brasileiros e argentinos. Estes, por sua vez, são apontados na maioria das disputas como “catimbeiros”10 mesmo antes dos jogos terem sido realizados. Um exemplo destas caracterizações e de seu enraizamento no interior do futebol nacional é o depoimento do técnico do Palmeiras em 2000, Luiz Felipe Scolari, sobre a final contra o Boca Juniors, em que o jornal atenta (antes mesmo do primeiro jogo ter acontecido) para a “tradicional catimba dos argentinos”: A maior preocupação do treinador palmeirense, porém, não é com o ataque do Boca Juniors, mas sim com a tradicional “catimba” dos argentinos. Ele vai pedir a seus jogadores que sejam inteligentes e não entrem no jogo do adversário. “Eles são experientes, catimbeiros e têm um grande espírito de luta; nossos jogadores precisarão usar a inteligência para que não sejam prejudicados”, afirmou. (ESTADO DE SÃO PAULO, 13/06/2000, p. E1).

Entretanto, não só de características negativas o argentino é imaginado pelos meios de comunicação. Nesta mesma edição da Libertadores, o técnico Felipão pede aos torcedores que exerçam “no Estádio do Morumbi, uma pressão semelhante à dos argentinos no La Bombonera.” (IDEM, 16/06/2000, p. E3). O treinador gaúcho11 insiste também para que o Palmeiras faça um jogo com “características da Libertadores”, ou seja, um estilo de jogo que aproxima-se muito mais do futebol-força do que do futebol arte ou jogo bonito (ou, como Felipão dirá, “sem firulas”): Jogar com o espírito e a garra do futebol argentino (...). “Na hora da partida, eles devem apresentar a tradição do futebol argentino que todo mundo conhece”, prevê

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Termo utilizado no meio futebolístico que designa um jogador ou uma equipe que pratica atos contrários ao fair play, como a simulação de lesões a fim de retardar o reinício da partida. 11

Esta referência ao “gaúcho” não foi uma menção vazia de significados. Como trataremos mais adiante, o fato deste treinador ter iniciado sua carreira profissional (como jogador e técnico) no Rio Grande do Sul indica que ele tenha uma valorização da “escola gaúcha” de futebol, que é tratada como uma antítese do jogo bonito “tipicamente” brasileiro. Temos como exemplo este trecho retirado da Folha de São Paulo, no qual é revelada a influência “argentina e uruguaia” no “futebol brasileiro” graças ao treinador do Palmeiras, Luiz Felipe Scolari: Segundo os argentinos, Scolari conseguiu com que o Palmeiras tivesse a garra argentina e uruguaia, que falta no futebol brasileiro (...). Esse seria o principal motivo para o Palmeiras ser respeitado. (FOLHA DE SÃO PAULO, 14/06/2000, p. D3).

19 Scolari. “Se tivermos a mesma força, aliada à nossa técnica, teremos chances de conquistar o título.” (...). Scolari quer também o Palmeiras com um futebol sem “firulas”. (ESTADO DE SÃO PAULO, 17/06/2000, p. E2).

Em suma, Luiz Felipe Scolari reproduz dois pontos que serão exaltados pelos meios de comunicação brasileiros: a) o fanatismo dos torcedores argentinos que é visto como um grande diferencial e importante intimidador dos adversários; e b) o “espírito” e a “garra” do estilo de jogo peculiar do argentino, características essas que são exaltadas pelos jornais como a grande qualidade “deles” nas muitas vezes em que as equipes brasileiras saem derrotadas do certame. Outro caso ilustrativo ocorreu em 1974, quando o São Paulo alcançava sua primeira final, enquanto o Independiente estava em busca de seu quinto título e estava pela terceira vez consecutiva representando a Argentina num campeonato internacional. A tensão política presente na Argentina fez com que o Independiente recebesse proporções nacionais, mesmo que os argentinos estivessem ocupados, a priori, com a situação político-econômica do país: [Na Argentina] o jogo não atrai atenções. Os espaços dos jornais, bem como as conversas nas ruas, giram em torno da crise social e dos problemas políticos. Mas se pode perceber a tentativa de fazer do jogo um assunto nacional, transformando o Independiente em representante não apenas do futebol, mas de todo um povo e atuais problemas argentinos. Os slogans políticos, repetidos nos comércios, das rádios e espalhados em milhares de cartazes pelas ruas, falam de união e são prontamente ligados ao Independiente. (FOLHA DE SÃO PAULO, 15/10/1974, p.34).

Os jornais brasileiros dedicaram uma cobertura maior ao plantel brasileiro, referindose aos argentinos na maior parte das vezes como provocadores. Um exemplo disso são os discursos agressivos entre o treinador do São Paulo, o argentino José Poy, e os jogadores do Independiente. Os jornais fizeram questão de cobrir estes confrontos verbais, adicionando nas narrativas termos bélicos, como “palco de guerra”, “alçapão”, “violência”, estes sempre relacionados com a equipe argentina. Zé Carlos, atacante do São Paulo, no dia do jogo de ida desta final realizado no Pacaembu, disparou: “Já sabemos que em Buenos Aires irão nos receber com violência.” (IDEM, 12/10/1974, p.26). A resposta dos jogadores do

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Independiente vieram após a derrota em São Paulo, num jogo marcado por jogadas desleais e pela vitória da equipe brasileira 12: Uma monstruosidade que nada tem a ver com o futebol (Galvan, jogador). Um ato de selvageria. Não tem explicação (Raimondo, jogador). Eu acreditava que gestos assim haviam desaparecido dos eventos esportivos. Agora sei que estava enganado (Ferreiro, treinador). Quarta-feira daremos ao São Paulo uma lição de civilidade e bons costumes (Saggirato, jogador). (FOLHA DE SÃO PAULO, 15/10/1974. p. 34).

No período entre o primeiro e o segundo jogo, os jornais muitas vezes trataram da ida do São Paulo à Avellaneda13 como um ato de bravura, uma vez que o estádio do Independiente era classificado como um “alçapão” ou “palco de guerra” e seus torcedores como “violentos”. Ao contrário das expectativas criadas pelos meios de comunicação paulistas, o segundo jogo foi considerado “pacífico” por estes (apesar do goleiro brasileiro, Waldir Peres, ter sido agredido com um objeto lançado contra ele), com a torcida argentina apoiando sua equipe o tempo inteiro, num jogo em que o São Paulo saiu derrotado pelo placar de 2 a 014. Apesar da derrota, o otimismo ainda prevalecia no triunfo da equipe paulistana na derradeira partida em território neutro, em Santiago do Chile

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. Termos como “São Paulo

jogou abaixo do que poderia”, “Santiago apoiará o São Paulo contra os argentinos” ou

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A imprensa argentina fez questão de salientar também a violência e a má recepção dos brasileiros durante o jogo. “Los jugadores argentinos terminaban de saludar em el centro del campo. Desde las tribunas descendían a todo galope los últimos ecos de unos aplausos brasieños sonoros, realmente, sinceros, casi exagerados si tenemos en cuenta el poco fútbol que había repartido Independiente entre los 60000 testigos del Pacaembú. De repente ingresó al campo un hombre de pantalón claro y remera verdosa. La policía corrió y lo cercó en pocos segundos. En menos de lo que cualquiera pudiese imaginarlo se desencadenó un espectáculo increíble, confuso, triste. Una función extra que de todas maneras es necesario explicar detalladamente: el joven de pantalón claro y remera verdos era un uruguayo, ex compañero de Pavoni [jogador do Independiente] en Defensor y que quería llevarse de recuerdo la camiseta del Chivo. La policía, por supuesto, desconocía sus intenciones y obró como debía.” (CLARÍN, 14/10/1974. p. 8 sec. Deportivo). 13

Região localizada ao sul de Buenos Aires, onde o Independiente manda seus jogos.

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Os meios de comunicação gaúchos, em contrapartida, apoiaram-se nesta agressão ao goleiro do São Paulo no jogo na Argentina, dando espaço aos depoimentos da comissão técnica do São Paulo: “Foi uma noite terrível de hostilidades e selvageria. O jogo violento imperou sempre e aos cinco minutos nosso goleiro recebeu uma pedrada na cabeça”, disseram os dirigentes do tricolor paulista.”(SÃO PAULO E INDEPENDIENTE DECIDEM LIBERTADORES, CORREIO DO POVO, 19/10/1974. s/nº). Tal fato remete à questão colocada por Simmel (que será apresentada adiante) sobre a questão da “flexibilidade” da posição do estrangeiro no imaginário montado pelos meios de comunicação, em outras palavras, ora os jornais criticam os argentinos, ora os reverenciam; logo, a identificação do Outro se torna mutável. 15

Vale recordar que até meados da década de 1980, o regulamento da Copa Libertadores da América apontava para que a final se realizasse em duas partidas; caso a disputa permanecesse empatada (independentemente do saldo de gols das duas equipes envolvidas), haveria um terceiro jogo que seria realizado em “território neutro”. Atualmente, a competição é decidida somente em partidas de ida e volta com o fator saldo de gols contando como fator de desempate. Caso permaneça empatado nesta última categoria, é realizada uma disputa de pênaltis no estádio do mandante do segundo jogo a fim de definir o vencedor.

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declarações de jogadores ressaltando a “raça” da equipe brasileira rechearam as sessões esportivas de ambos os jornais que, apesar da grande dedicação dos jornais, de nada adiantou: o Independiente sagrava-se campeão pela quinta vez. Entretanto, ao contrário dos jornais paulistas, os meios de comunicação gaúchos exaltaram as façanhas da equipe argentina, o que indica uma maneira diferente de olhar o Outro. Como podemos ver neste exemplo, o jornal exalta o comportamento dos torcedores: Se há uma coisa que os argentinos podem nos ensinar é a torcer (...). Uma passada de olhos perto dos setores do estádio e a certeza de que estávamos diante da torcida mais espontânea do mundo. o estádio ululava (...). Atrás da goleira onde estava Valdir Peres no primeiro tempo, uns dois mil cantavam para uns duzentos que tiravam a vista: “Sente, sente. Perón está presente” (...). Nós torcedores [brasileiros] precisamos aprender com os argentinos. Os aficionados do Independiente provaram que uma torcida pode ganhar um jogo. Ou no mínimo ajudar a equipe a conseguir a vitória. (A TORCIDA É UM SHOW. CORREIO DO POVO, 18/10/1974. s/nº).

E este “olhar sobre o outro” de diferentes regiões persistiu em 1983, na semifinal entre Grêmio e Estudiantes de La Plata, conhecida como a “Batalha de La Plata”. A tensão política presente na Argentina deu ao Estudiantes ares de representante nacional contra o inimigo. Alguns dias antes da partida em La Plata, um avião britânico fez um pouso programado no Brasil, segundo as autoridades argentinas. Tal ocorrência foi vista como uma afronta aos olhos dos argentinos, que encararam no jogo contra o “brasileiro” Grêmio a chance de se vingar, uma vez que o país saíra derrotado pelos ingleses na Guerra das Malvinas16. A peleja (que terminou empatada em 3 a 3) fora marcada por diversas ocorrências de agressões a jogadores e a torcedores do time gaúcho, além do grupo de árbitros responsáveis pela partida. Escolhemos duas interpretações de jornais, uma paulista, outra gaúcha, sobre o que houve naquele jogo, a fim de esclarecer os acontecimentos e as interpretações destas regiões: Decepcionados com o resultado do jogo – 3 a 3 contra o Estudiantes de La Plata – e abatidos pelas agressões sofridas dentro e fora do campo, chegaram ontem a Porto Alegre, os jogadores do Grêmio (...) Tita (...) lamentou que seu time tivesse permitido o empate, apesar de todas as agressões dos jogadores argentinos e pelos torcedores, que ao final do primeiro tempo chutaram o tornozelo do centroavante Caio, que não teve condições de retornar ao jogo (...). o técnico Valdir Espinosa (...) até que considerou bom o resultado de La Plata: - Se ganhássemos o jogo, não conseguiríamos sair daquele estádio e não estaríamos aqui agora. A imprensa argentina criticou a arbitragem do uruguaio Luiz de La Rosa. (DECEPCIONADO,

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Para maiores detalhes do sobre a Guerra das Malvinas, consultar http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/04/entenda-guerra-das-malvinas.html .

link disponível em:

22 AGORA GRÊMIO TEM SUAS CHANCES REDUZIDAS. ESTADO DE SÃO PAULO, 10/07/1983. s/nº).

Agora conflitaremos duas visões acerca deste acontecimento segundo os jornais gaúchos. Primeiramente o colunista Antônio Goulart destaca a “bravura” da equipe argentina: Os fins não justificam os meios. Mas ninguém pode negar que os jogadores do Estudiantes deixaram um exemplo inesquecível de espírito de luta, aplicável, sobretudo àquelas equipes que costumam desanimar quando têm um ou dois jogadores expulsos. (CONDIÇÃO DE DEPENDENTE. CORREIO DO POVO, 13/07/1983. s/nº).

O depoimento do colunista Lasier Martins nos indica outra opinião que persistiu sobre o acontecimento, demonstrando que o Grêmio foi “inocente” em um jogo que o time do Estudiantes de La Plata intimidou o tricolor riograndense na base da violência: Por que nenhum jogador do Grêmio se engalfinhou com qualquer adversário, quando o escore era de 3 x 2 e o Estudiantes estava com apenas sete em campo? Por que o técnico não mandou catimbar o jogo? (...) respondo que o Grêmio ficou assustado com a fúria e indisciplina dos adversários. Cada dividida era uma ameaça de perna quebrada, cada cara feia era uma ameaça de bofetada, qualquer provocação gremista seria convite à rixa descontrolada. Era o que o Estudiantes desejava (…). Apavorado com a baderna, o Grêmio (…) evitou as divididas, tocando a bola, jogou lisamente para não apanhar e evitou revidar por medo. O Grêmio não esperava e nem se preparou para aquele tipo de guerra. Esperava só futebol e se enganou. (O GRÊMIO FOI INOCENTE. CORREIO DO POVO, 10/07/1983. s/nº)

Alguns pontos merecem ser destacados a partir destas citações. Primeiramente, a aproximação destas narrativas com a teoria de Georg Simmel sobre o estrangeiro, em que o outro não possui características fixas, mas sim sujeito a alterações conforme as ocasiões (SIMMEL: 2005). Exemplificando, nem sempre o argentino será tratado pelos meios de comunicação brasileiros como “violento” ou “catimbeiro”, por outro lado, não será sempre que será tratado como detentores de um “espírito de luta” e de “torcedores fanáticos”. Mais um ponto que merece destaque é a apropriação por parte dos brasileiros (de certa forma maquiavélica) de alguns recursos ilícitos “típicos” dos argentinos, como a “catimba”. Tal ocorrência está evidente principalmente no artigo escrito por Lasier Martins, com um título muito sugestivo: “O Grêmio foi inocente”. Faltou ao Grêmio o que no vocabulário futebolístico é denominado de “Lei de Gerson”: a vontade de “levar vantagem em

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tudo”

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. Ou seja, a apropriação de um vício do outro, mesmo sendo exaustivamente

repudiado pelos próprios meios de comunicação, pode ser relevado se levar em conta o “nosso” benefício; é como se a mesma se tornasse um mero “jeitinho” brasileiro (ingênuo, ao contrário da “catimba” argentina, esta totalmente maliciosa)18. O último ponto que merece destaque nesta discussão nos remete à recordação da proposta efetuada no início do capítulo, a saber: as duas datas (1974 e 1983) e a sua relação com a consolidação da imprensa brasileira. A partir dos anos 1990, todos os confrontos envolvendo brasileiros e argentinos que foram analisados apresentavam termos depreciativos aos argentinos, como “catimba”, “violência”, “alçapão”, “palco de guerra”, entre outros. Não obstante, vimos também uma cobertura que exalta alguns pontos dos argentinos que geralmente inexistem nos clubes brasileiros e, por isso mesmo, tornam-se temas de crítica às equipes (e aos torcedores) brasileiras, como “raça”, “apoio da torcida”, “garra”, entre outros. Em suma, há um universo limitado de opções nas quais os argentinos são adequados pelos meios de comunicação brasileiros, sempre sujeitos a alterações conforme as relações aproximam-se ou distanciam-se. Vale lembrar também que o outro não poderá se adaptar totalmente aos símbolos compartilhados por determinado grupo, ele sempre será um estranho, um estrangeiro. Por conseguinte, podemos acreditar que Helal, ao aproximar-se de uma afirmação em que o “olhar-sobre-o-outro-argentino” é uma “tradição inventada”, trata-se mais pela consolidação de tais termos no imaginário dos jornais brasileiros. Em outras palavras, quando ele recorda que o estilo de jogo portenho apresenta (segundo os jornais brasileiros) ora características típicas de uma escola “sul-americana” (com muitos dribles, jogadas individuais, em suma, jogo bonito), ora semelhanças com a escola “europeia” de futebol (focado na disciplina tática, mais defensivo, em suma, futebol-força); podemos associar isso também à forma como os jornais se referem ao comportamento das torcidas e das

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Esta pequena frase remete ao mandamento que é frequentemente associado ao “jeitinho brasileiro”. Segundo a Lei de Gérson, “se algo pode dar errado, não tem problema, pois mesmo que der errado, a gente dá um jeitinho de fazer parecer certo. Gérson de Oliveira foi quem ficou com a fama pela frase que batizou o jeitinho brasileiro, mas o fato é que a maioria do povo já se beneficiou com tal lei e ainda se gaba por ser mundialmente famosos por isso.”. Informações retiradas dos sites: http://www.infoescola.com/curiosidades/lei-de-gerson/ e http://www.youtube.com/watch?v=J6brObB-3Ow 18

Para mais detalhes sobre esta expressão, ver DAMATTA, 1986.

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agremiações argentinas, sempre os classificando ora como, respectivamente, “violentas” e “catimbeiras”, ora como “fanáticas” e “talentosas”19. Esta indefinição vai de encontro também com a questão da crise da “modernidade” no futebol argentino, apresentada pelo sociólogo Pablo Alabarces em seu livro. Quando o Estudiantes de La Plata sagra-se tricampeão consecutivo da Taça Libertadores da América (1968, 1969, 1970) com o “moderno” projeto – muito associado também ao momento de transição política da Argentina peronista para uma ditadura – da prática de um futebol menos técnico e individual, para um futebol mais tático, mais disciplinado, mais físico (e entendemos “físico” também como mais “violento”, mais “desleal”), ou simplesmente o anti-fútbol (ALABARCES: 2008). Com efeito, este será o símbolo responsável por idealizar a imagem do argentino, uma vez que os relatos recolhidos das decisões de 1974 e 1983 (São Paulo x Independiente e Grêmio x Estudiantes, respectivamente) são exatamente estes: violência por parte dos jogadores e da torcida, jogo “feio”, com muito mais valorização de algo que se aproxima mais do ensinamento latino mens sana in corpore sano (que será incorporado inicialmente pelo Grêmio – através das origens teutônicas da agremiação – e depois pelo futebol gaúcho, como veremos no próximo capítulo) do que do fútbol criollo em si (que, por sua vez, aproxima-se demais do jogo bonito brasileiro). Em suma, o futebol argentino apropria-se nas décadas seguintes do modelo “moderno”, “nacional” e “vitorioso” da equipe de La Plata, o que dará fomento “científico” aos jornalistas brasileiros que afirmam o comportamento “natural” do argentino de ser “catimbeiro”, “violento”, “pouco técnico”, “retranqueiro”, como vimos nos termos lembrados anteriormente. Apoiados em exemplos históricos, como a famigerada “Batalha de La Plata” de 1983, os meios de comunicação nacionais “inventam a tradição” (HOBSBAWN; RANGER: 2008) de que todo e qualquer jogo contra argentino será feio, tenso, violento, entre outras características. Em contrapartida, não são ocorrências unânimes estas, havendo algumas vezes o reconhecimento e a superioridade do desempenho da equipe argentina; por

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Com relação ao fanatismo dos torcedores, vale destacar uma passagem de um jornal paulista do ano de 1968, no confronto entre Estudiantes e Palmeiras: “A torcida do Estudiantes é de causar inveja à corintiana. A tarde já começaram a desfilar pela cidade com bandeiras do clube (...). Além de gritar, os torcedores (...) cantavam (...).Quando o Palmeiras entrou em campo houve muito mais aplausos do que vaias. Na vez do time da casa, o estádio quase caiu.”. Ou seja, dos termos utilizados para a classificação dos argentinos, o mais antigo é o fanatismo de seus torcedores. Em Estado de São Paulo, 03/05/1968. p. 14.

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outro lado, a maioria dos termos pejorativos aos argentinos é divulgada antes dos dias de jogos, o que caracteriza um “pré-conceito” do comportamento deste Outro. Ademais, neste contexto, os argentinos são também “estrangeiros”, segundo critério do sociólogo alemão Georg Simmel. Com efeito, eles são “estrangeiros” uma vez que não possui vínculos sociais propriamente com os brasileiros, mantendo-se numa relação constante de proximidade e distância; logo, o argentino não possui um “solo” no lugar enunciado pelos jornais brasileiros, uma classificação fixa, mas sempre características flexíveis que, dependendo do momento, o aproximam ou o distanciam do brasileiro.

3. “NÓS E... NÓS”: PERSPECTIVAS REGIONAIS EM UM TORNEIO INTERNACIONAL Time macho esse. Macho à gaúcha. Macho de fazer argentino morrer de inveja. Macho como honra a tradição do Rio Grande. Macho! (CORREIO DO POVO, 17/08/2006. p. 26) Gaúcho já tem aquele afama de gostar de troca-troca. Não é macho. Eles têm que ficar mostrando que são machos batendo nos outros (...). Eles que se separem do Brasil. Vão virar Argentina, virar o que quiserem. Eles dizem que o Sul é o meu país. Pois vão ser outro país. Vão virar o país das bichonas. Não servem para ser brasileiros, são bandidos, não são gente. (ZERO HORA, 07/06/2007. p. 46)

A origem do futebol no Rio Grande do Sul é peculiar se comparada ao restante do país, em especial a São Paulo. Enquanto na região sudeste do país tal prática lúdica era trazida pelos imigrantes ingleses recém-chegados, o estado gaúcho, em contato constante com os países vizinhos fronteiriços, recebeu deste intercâmbio o futebol. Com desenvolvimentos diferentes, enquanto no eixo Rio-São Paulo o esporte se popularizara e adquiria ídolos como Garrincha e Pelé que apresentavam um futebol talentoso, agradável e ofensivo, em especial nas décadas de 1950 e 1960, no Rio Grande do Sul, neste mesmo período, a grande hegemonia territorial pertencia ao Grêmio Football Porto-Alegrense, um clube fundado por imigrantes alemães e que apresentava princípios disciplinares rigorosos, com grande foco defensivo e tático, muitas vezes apresentando um jogo “duro” característico do “futebolforça”. E tais características aproximavam cada vez mais o futebol gaúcho (representado na

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figura do Grêmio) de um modelo mais “europeu”, aproximando-se muito mais dos países vizinhos, Argentina e Uruguai20, do que do próprio país. A preferência pelo afastamento daquele “futebol-arte” apresentado no Brasil naquele período reflete na tentativa da construção de uma identidade distintiva por parte dos riograndenses frente ao resto do país. A construção da cultura de uma região “periférica” (nesse caso, Rio Grande do Sul) apresenta uma produção mais peculiar do que as regiões “centrais” do país (lê-se São Paulo), com o intuito de “blindar” certas tradições, readaptando-as através da fundação de instituições culturais (como os Centros de Tradições Gaúchas – os CTG – e o Movimento Tradicionalista Gaúcho – o MTG), festivais populares que remetem ao folclore regional, o próprio futebol e, em ocasiões extremas, a criação de grupos separatistas

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.

Características tais que dão respaldo à imagem de que o Rio Grande do Sul – e suas equipes de futebol – seja uma típica “comunidade imaginada”, nos termos do Benedict Anderson, devido à sua larga produção cultural efetuada por intelectuais e consumida (e sustentada) principalmente pela classe média desta região, além da utilização de meios de comunicação para tal divulgação. Para reforçar esta afirmação, é importante citarmos o antropólogo riograndense Ruben Oliven, que afirmará sobre o consumo destas “coisas gaúchas”: A proliferação de “coisas gaúchas” coloca algumas questões: a existência de um mercado urbano de bens simbólicos gaúchos, a definição do que é cultura gaúcha, e a apropriação desta última e sua transformação em traço de identidade social. (OLIVEN, 1986, p. 81)

Existem, portanto, elementos que auxiliam na compreensão da “invenção de tradições” (HOBSBAWN: 2008) gaúchas, e entre eles o próprio futebol. As várias perspectivas sobre o outro numa esfera regional também pode ser efetuada, e notamos que há um grande interesse dos rio-grandenses na “blindagem” desta sua cultura “periférica” e a luta

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A referência aqui é principalmente ao clube Estudiantes de La Plata, tricampeão da Copa Libertadores da América de 1968 a 1970, responsável por marcar o estilo de jogo argentino ao apresentar um futebol duro, “raçudo”, violento e mais tático do que técnico. Entretanto, tal equipe não era admirada pelos próprios argentinos justamente por apresentarem estilos de jogo que remetiam mais ao futebol europeu do que ao argentino propriamente dito (caracterizado pelo drible, agressividade e técnica, em outras palavras, semelhante ao “futebol-arte” brasileiro). Para maiores informações sobre tal tema, ver GUAZZELLI, 2000. 21

Outra característica que podemos sublinhar é a recriação da própria imagem do “gaúcho” que, como sintetizará o historiador Carlos Guazzelli, “De um significado inicial, em fins do século XVIII, de fora-da-lei e pária social, “gaúcho” passou a identificar os peões das estâncias e, mais tarde, mercê de um longo processo no qual foram fundamentais os intelectuais, praticamente todos os rio-grandenses passaram a ser identificados como “gaúchos”. E essa identidade de “nós gaúchos” é posta em contradição a “eles”, que não são “gaúchos” [os brasileiros].” (GUAZZELLI, 2000, p. 23).

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para impedir que tais símbolos sejam “contaminados” pela cultura “nacional” produzida nos grandes centros de produção da identidade do “brasileiro” – como São Paulo e Rio de Janeiro; ao mesmo tempo em que este mesmo reconheça esta escolha pela diferenciação. Para tais “tradicionalistas”, é fundamental manter-se distante das mudanças culturais ocorrentes no país. “Por isto”, afirmará Ruben Oliven, um elemento recorrente no discurso tradicionalista é a referência à ameaça que pairaria sobre a integridade da cultura gaúcha. Os tradicionalistas construíram a figura de um gaúcho, frequentemente retirado do tempo e do espaço, a quem passam a “defender” e considerar como sendo o legítimo representante dos valores do Rio Grande do Sul. A construção social da identidade deste gaúcho cristalizado é feita a partir do passado, não sendo passível de grandes modificações. (OLIVEN, 1986, p. 82)

Em poucas palavras, a construção desta alteridade é oriunda de um grupo composto por intelectuais e por uma classe média que, ao mesmo tempo que fabrica este produto, também o consome. Para participar de tal “comunidade imaginada” requer-se um mínimo de “capital cultural” (BOURDIEU: 2011) adquirido através de eventos culturais que buscam adaptar a figura do gaúcho para os tempos hodiernos e onde principalmente os indivíduos da classe média são capazes de usufruir22. Aderir a tais tradições indica, portanto, para uma distinção direcionada a um gosto aparentemente mais “sofisticado” em comparação com um gosto “pasteurizado” produzido pelos grandes centros culturais nacionais. E estas caracterizações gauchescas acabam por influenciar o próprio futebol da região. O maior exemplo de conflito até então tinha sido o amistoso entre seleção brasileira versus seleção gaúcha (um combinado das equipes do Grêmio e do Internacional) 23 em 1972, organizado através não de um plebiscito popular ou artifícios semelhantes; mas sim através da

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Para exemplificar tal frase, citamos novamente Oliven, que afirma: “A novidade é constituída pelos jovens das cidades, em boa parte de classe média, que faz pouco tomam chimarrão, vestem bombachas e curtem música gaúcha, hábitos que perderam o estigma de grossura (...). Como o Censo de 1980 mostra que 68% da população do Rio Grande do Sul vive em situação urbana, este mercado está concentrado em cidades.” (OLIVEN, 1985. p. 81). 23

A seleção brasileira foi escalada da seguinte forma: Leão; Zé Maria, Brito, Vantuir e Marco Atônio; Clodoaldo, Piazza e Rivelino; Jairzinho, Leivinha e Paulo César. O combinado gaúcho (com jogadores somente dos dois grandes de Porto Alegre – Internacional e Grêmio) trouxe na escalação: Schneider; Espinosa (que mais tarde seria técnico do Grêmio campeão da Libertadores de 1983), Figueroa, Ancheta e Everaldo; Carbone, Tovar e Torino; Valdomiro, Claudiomiro e Oberti. Essa seleção gaúcha que não era tão gaúcha assim: o chileno Figueroa, o uruguaio Ancheta, o argentino Oberti, o paulista Carbone e o catarinense Valdomiro. Vale lembrar também que Figueroa e Ancheta são considerados um dos maiores jogadores da história de Internacional e Grêmio, respectivamente, o que nos indica ainda mais o “distanciamento” das equipes gaúchas do Brasil.

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Federação Gaúcha de Futebol e impulsionada pelos meios de comunicação do Rio Grande do Sul inflamados pela não escalação para a seleção brasileira do lateral-direito Everaldo Marques da Silva, gaúcho e jogador do Grêmio (GUAZZELLI, 2000. p. 36). Ou seja, tal “amistoso” fora promovido pelas classes dominantes; caminho semelhante dá-se também com a fundação do MTG24 e, logo depois, dos CTG. Segundo o historiador César Guazzelli, há na produção e reprodução desta cultura rio-grandense uma presença marcante dos discursos de “crise”, “identidade” e “nostalgia” que fomentam esta simbologia gaúcha: A situação de “crise” é fundamental na conformação de um antagonismo entre o Rio Grande e seus interlocutores. As “crises” (...) são normalmente atribuídas a motivos externos ao Rio Grande (...) o que muitas vezes é diretamente associado ao Estado nacional, controlado por “eles”. “Eles” são contrapostos a “nós”, o que exige a criação de uma “identidade” entre “nós” (...). Neste sentido, foi fundamental a associação de todos os rio-grandenses à imagem do “gaúcho”, com as devidas transformações que sofreu em quase dois séculos (...). E essa identidade de “nós gaúchos” é posta em contradição a “eles”, que não são “gaúchos”. A “nostalgia” remete a esse passado no qual o Rio Grande fez valer a sua força contra os inimigos fronteiriços e em favor de uma entidade magna (...) resgatando-se um papel de proa como defensor primeiro da própria nacionalidade. (GUAZZELLI, 2000. pp. 22-23).

O futebol gaúcho, desde sua fundação, sofreu uma forte influência dos países vizinhos Uruguai e Argentina; influência esta maior até do que a brasileira. A interdependência da província fronteiriça com estes dois países é considerada muito intensa, principalmente pelo fato do Rio Grande do Sul ter sido por muito tempo uma área abandonada pelo centro do Brasil 25, apesar de sempre ter sido uma “fronteira quente”, ou seja, “local de disputa militar, de guerras e de arranjos diplomáticos” (LUVIZOTTO: 2009). A fronteira não delimitava uma separação precisa e rigorosa do território português com as colônias espanholas, o que permitia um intenso intercâmbio cultural entre essas regiões. Segundo o geógrafo Gilmar Mascarenhas de Jesus, formou-se no Rio Grande do Sul: um modelo de organização espacial sob as mesmas determinações históricas do restante da região platina, este “espaço-em-construção” em expansão no século XVIII: atividade pastoril rudimentar, escassos núcleos urbanos e imensas estâncias, espaço disputado precariamente por duas metrópoles (Osório, 1995:112-113). Esta vinculação estreita com a região cada vez mais polarizada por Buenos Aires e

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Para maiores informações sobre o Movimento Tradicionalista Gaúcho, ver link disponível em: http://www.mtg.org.br/pag_historiamtg.php Consultado em: 05/04/2014. 25

O historiador Caio Prado Júnior lembrará que: “A extremidade meridional do território que hoje constitui o Brasil, permaneceu durante muito tempo fora de sua órbita. (...) Tratava-se de uma área deserta e que parecia sem grande interesse (...) um grande vácuo, portanto, separava as duas nações .”. Tal citação está presente em MASCARENHAS, 2000.

29 Montevidéu condicionará toda a vida de relações no território em pauta, afetando inclusive (e decisivamente) o futebol. (MASCARENHAS, 2000: p. 1)

A região que consiste o atual Estado do Rio Grande do Sul em todo o momento fora colocado em uma condição “periférica” em relação aos “centros” primeiramente coloniais (vide Rio de Janeiro e a região açucareira do Nordeste) e, em seguida, políticos e econômicos do Brasil (vide a hegemonia paulista promovida pela expansão cafeeira). No final do século XIX, com o início das políticas de imigração europeia do governo brasileiro, a população riograndense recebera uma grande quantidade de imigrantes italianos e alemães que, juntamente com os comerciantes portugueses, formavam a “tríade” em que repousa a tradição cultural deste “Brasil sulino”, “gringo” (RIBEIRO: 1995). Segundo a socióloga Caroline Luvizotto: A partir de 1875, começaram a chegar os imigrantes italianos, mas, como a região da capital já estava povoada pelos alemães, foram se instalar na região das serras. Aos poucos, formou-se um eixo básico de industrialização no estado ligando a capital e a cidade de Caxias do Sul, constituindo um intercâmbio entre alemães e italianos. A vinda dos imigrantes italianos para o Brasil está ligada ao processo de substituição de mão de obra e à política de imigração e colonização do governo imperial, que pretendia “branquear” a população brasileira. (LUVIZOTTO, 2009, p. 20)

Ou seja, podemos somar ao intercâmbio cultural já existente entre gaúchos, argentinos e uruguaios, a influência de toda uma tradição europeia de forma muito mais intensa do que em outras regiões do país. Vale citarmos mais uma vez a reflexão promovida por Mascarenhas sobre este tema: A existência desta fronteira “viva” pouco valeria em nosso estudo não fossem os vizinhos em pauta as duas nações que sem dúvida mais precocemente desenvolveram este esporte na América do Sul. A capital argentina, por seu porte e riqueza, desenvolveu rapidamente o futebol, ao que os uruguaios, por intensa rivalidade, procuraram reagir prontamente. É através da “fronteira viva” com o Uruguai, que centros urbanos de pequeno porte tiveram acesso a “informações” até então praticamente restritas aos grandes centros e às zonas portuárias mais dinâmicas. Trata-se sem dúvida de uma adoção precoce do futebol no contexto brasileiro. Procuramos aqui não apenas demonstrar tal precocidade como sobretudo entendê-la a partir das fortes conexões do RS com as metrópoles do Prata, numa tentativa de abordagem geográfica do processo de difusão do futebol. (MASCARENHAS, 2000: p. 2)

E tal influência incide diretamente na prática do futebol no Rio Grande do Sul. Ou pelo menos em parte, como veremos mais adiante. Em nossa análise dos meios de comunicação, nos detemos com termos como “raça”, “bravura”, “virilidade” caracterizando sempre o estilo de jogo gaúcho. E é justamente aqui que o gaúcho aproxima-se do estilo de jogo argentino (ou uruguaio). O antropólogo Arlei Damo já havia confirmado isto em sua pesquisa; segundo ele, tais palavras são justificadas:

30 Em termos genéricos, o estilo do futebol gaúcho resulta da apropriação, por parte dos futebolistas — sejam eles torcedores, dirigentes, jogadores ou cronistas esportivos —, de um discurso preestabelecido de culto às tradições. Tais discursos, que colocam o Rio Grande do Sul numa posição diferenciada em relação às demais unidades federativas e, até mesmo, em contraposição ao Brasil, resgatam certos aspectos constitutivos da identidade social dos rio-grandenses do sul, “esquecendose” de outros tantos a partir dos quais a suposta disjunção desapareceria. Nesse rol de desencaixe são evocadas, com maior frequência, a posição geográfica, a partir da qual se estabeleceriam intercâmbios múltiplos com os países do Prata (portanto, diferentemente da população dos demais estados brasileiros, os gaúchos teriam forte influência hispânica); a tradição política de enfrentamento em relação ao poder central; a presença maciça dos imigrantes europeus e, como corolário, as noções de “civilidade” e “progresso” (que contrastam com o estereótipo rude e antiquado do gaúcho); a convivência permanente com os levantes armados; e, finalmente, a própria “essência” do gaúcho, tida como libertina e altiva, tal qual a dos remotos tropeiros forjados na lida com o gado xucro. De todos esses e outros tantos traços formadores da identidade gaúcha, são justamente os dois últimos os mais frequentemente evocados. (DAMO, 2003, p. 14)

Neste trecho podemos constatar que há a exaltação às tradições gauchescas; tradições estas muito mais próximas dos países da Bacia do Prata do que do próprio Brasil. Um outro ponto que merece destaque é o intenso confronto com o próprio país, ou melhor, com o “poder central”

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, numa forma de resistência periférica à opressão do “centro”. Logo, esta

“rivalidade” no campo político do gaúcho com o brasileiro atinge também o futebol, em que as equipes gaúchas representam todo o Estado

27

. Em poucas palavras, este “esquecido” e

“subestimado” Rio Grande do Sul procura sua desforra contra o “centro”, sempre na imagem de qualquer outro clube brasileiro que não seja gaúcho. Vemos também que o “problema” do gaúcho não está em um grupo de Estados centrais, mas sim com a Confederação como um todo. Ou, segundo o historiador Carlos Guazzelli, o “futebol “gaúcho” reproduz, em grande medida, os problemas que atingem outros segmentos “gaúchos”.” (GUAZZELLI, 2000. p. 22). E quais seriam estes problemas? Ainda consoante o historiador, é possível identificar no futebol rio-grandense três pontos fundamentais: o discurso de crise; que está relacionado

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Vale destacar somente alguns nomes fundamentais na história da política brasileira que são gaúchos: Getúlio Vargas, Leonel Brizola, Emílio Médici. Este último, inclusive, fora associado ao estilo de jogo gaúcho por alguns jornais paulistas, devido à sua rispidez e à rigidez dos tempos da ditadura (DAMO: 2003). 27

O exemplo mais corriqueiro que podemos citar são os jogos que ocorrem no Rio Grande do Sul entre clubes “brasileiros” e clubes gaúchos. Na cerimônia solene dos hinos antes do jogo, o Estado do Rio Grande do Sul é um dos poucos em que tem seu hino entoado logo após o nacional. A reação dos torcedores é notável: enquanto no hino nacional poucos cantam e, ao seu término, ouve-se vaias; no hino riograndense o estádio inteiro canta e, ao seu término, ouve-se aplausos. Este vídeo disponível no site serve de exemplo: http://www.youtube.com/watch?v=O60nTwaYFzQ

31

ao discurso de nostalgia; e ao discurso de identidade. Para compreendermos melhor, vale a pena observarmos uma citação deste pesquisador: A situação de “crise” é fundamental na conformação de um antagonismo entre o Rio Grande e seus interlocutores. As “crises” (...) são normalmente atribuídas a motivos externos ao Rio Grande, gerados no âmbito dos que se aproveitam dele e não retribuem os benefícios alcançados, o que muitas vezes é diretamente associado ao Estado nacional, controlado por “eles”. “Eles” são contrapostos a “nós”, o que exige a criação de uma “identidade” entre “nós” (...). A “nostalgia” remete a esse passado no qual o Rio Grande fez valer a sua força contra os inimigos fronteiriços e em favor de uma entidade magna (...) resgatando-se um papel de proa como defensor primeiro da própria nacionalidade (...) esta é usada para mobilizar a “identidade” de todos para o combate da “crise”. (GUAZZELLI, 2000. pp. 22-3)

Logo, os rio-grandenses fundam um discurso em que o presente está relacionado à “crise” nacional; enquanto refere-se de forma nostálgica a um passado glorioso, em que o Rio Grande do Sul fora o defensor das fronteiras brasileiras e, mesmo assim, sempre fora injustiçado pelo “centro” (o que remete novamente à “crise”). Isso incidirá diretamente no futebol: desde 1968, podemos observar nos jornais gaúchos um discurso de crise contra a “central” Confederação Brasileira de Desportos (atual CBF), sempre alegando que as equipes são prejudicadas pelos calendários dos campeonatos nacionais (no caso, o campeonato nacional era o Robertão) criados por esta instituição 28. Notamos também que esta crítica será constante nos meios de comunicação rio-grandenses. E tal conflito contra o “centro” terá seu episódio mais marcante em 1972, dois anos após a conquista do tricampeonato mundial do Brasil, em uma partida “amistosa” entre seleção brasileira versus seleção gaúcha no Estádio Beira-Rio, em Porto Alegre 29. A partida, que terminou empatada por 3 a 3, apresentou aspectos dignos de serem lembrados em nossa discussão. Tudo começou devido a não escalação de um jogador riograndense para um amistoso da seleção brasileira após a Copa do Mundo de 1970. Zagallo,

28 29

Ver ANEXO A.

A seleção brasileira foi escalada da seguinte forma: Leão; Zé Maria, Brito, Vantuir e Marco Atônio; Clodoaldo, Piazza e Rivelino; Jairzinho, Leivinha e Paulo César. O combinado gaúcho (com jogadores somente dos dois grandes de Porto Alegre – Internacional e Grêmio) trouxe na escalação: Schneider; Espinosa (que mais tarde seria técnico do Grêmio campeão da Libertadores de 1983), Figueroa, Ancheta e Everaldo; Carbone, Tovar e Torino; Valdomiro, Claudiomiro e Oberti. Essa seleção gaúcha que não era tão gaúcha assim: o chileno Figueroa, o uruguaio Ancheta, o argentino Oberti, o paulista Carbone e o catarinense Valdomiro. Vale lembrar também que Figueroa e Ancheta são considerados um dos maiores jogadores da história de Internacional e Grêmio, respectivamente, o que nos indica ainda mais o “distanciamento” das equipes gaúchas do Brasil. Vale adicionar nesta “lista de ídolos” o capitão da conquista da Libertadores do Grêmio de 1983, o uruguaio Hugo de León.

32

até então técnico da seleção, não chamou o lateral gremista Everaldo. Tal ocorrência provocou a ira dos rio-grandenses que, na figura da Federação Gaúcha de Futebol, convocou o “amistoso”. Era a exemplificação dos discursos de crise, nostalgia e identidades postos em prática. O jogo fora marcado por gestos “antipatrióticos” e que foram perceptíveis durante o jogo: os torcedores “gaúchos” vaiaram o Hino Nacional e a entrada em campo dos jogadores “brasileiros”. Ademais, bandeiras do Brasil foram queimadas no interior do estádio, além de haver uma grande quantidade de bandeiras do Estado do Rio Grande do Sul. Cada vez que um jogador da seleção brasileira tocava na bola, era vaiado, ao ponto de quando Jairzinho marcou um gol para a seleção brasileira, correu em direção à torcida mostrando a camisa amarela do Brasil, o que provocou uma fúria ainda maior nos torcedores. Torcedores estes que eram em sua maioria colorados e gremistas, que se mostravam unidos por uma causa maior que a rivalidade regional: o próprio orgulho da região. O jogo terminou empatado, e a definição deste conflito estava longe de terminar. Como mostra Guazzelli, a conclusão é a de que: O Rio Grande desafiara o poderoso Brasil para mostrar que seus jogadores eram dignos do escrete nacional; ao cumprir com empenho o repto que tinham feito, os rio-grandenses, mais do que nunca, mostravam-se estranhos aos demais brasileiros (...). Uma maçã atirada sobre o banco onde estavam os homens da CBD – um fato por demais corriqueiro em partidas de futebol – serviu para recrudescer aquela ideia estereotipada sobre o futebol “gaúcho”: agora, além de jogadores duros e violentos, havia uma torcida também violenta e antipatriótica. (GUAZZELLI, 2000. p. 46).

E isto repercutiu fortemente no imaginário dos meios de comunicação do centro, que passaram a classificar o estilo de jogo gaúcho como a antítese do jogo bonito brasileiro: era o representante argentino do anti-fútbol apresentado pelo Estudiantes de La Plata em 1968 (ALABARCES: 2008). Ou seja, além deste jogo de 1972 ter sido caracterizado pelo comportamento hostil e agressivo dos jogadores e, principalmente, dos torcedores gaúchos, o que aproximava muito o Rio Grande do Sul do estereótipo argentino imaginado pelos jornais paulistas (como vimos no capítulo anterior), o futebol gaúcho acabara por ser classificado como o futebol “antipatriótico” e não reconhecido pelo Brasil, o que atiça ainda mais as “crises” gauchescas, apesar de nunca ter havido uma manifestação como tal desde 1972 30:

30

Guazzelli afirma que aquela manifestação fora única devido ao período histórico que envolvia o Brasil naquele período. Lembramos que em 1972 a ditadura militar estava em pleno poder político e o ditador daquele período era ninguém menos do que o gaúcho Emílio Garrastazu Médici, um dos mais rígidos e sanguinários daquele momento (GUAZZELLI: 2000). A imagem de Médici será reutilizada logo depois como analogia ao futebol gaúcho pelos meios de comunicação paulistas, identificando os gaúchos como “violentos” e “brutos” (DAMO: 2003).

33 Paira a ideia de que mesmo as grandes equipes que se formam no Rio Grande são contestadas, não se reconhecendo nelas o estilo brasileiro. Ao Internacional, tricampeão dos anos 70 [e único clube que conquistou o campeonato brasileiro de maneira invicta], atribuía-se um inegável preparo físico, disciplina tática e conjunto, mas eram discutidas as condições técnicas dos seus jogadores. O Grêmio, campeão da Libertadores e mundial, nunca foi festejado como uma equipe excepcional. (GUAZZELLI, 2000. pp. 47-8).

A fim de concluirmos esta digressão e partirmos para a discussão presente na análise comparativa dos jornais paulistas e gaúchos, podemos ressaltar dois pontos centrais. Em primeiro lugar, quando nos referimos ao “estilo de jogo gaúcho” e seu antagonismo com o jogo bonito tipicamente brasileiro. O antropólogo Arlei Damo nos ajudará a compreender a invenção deste comportamento através dos meios de comunicação (DAMO: 2003). O autor trabalhará com a imagem do Grêmio Football Porto Alegrense e a sua assimilação com o mito do gaúcho. A equipe tricolor da capital rio-grandense carrega consigo o que os jornais inventarão como o “tipo ideal” do futebol gaúcho. Clube fundado por alemães, o Grêmio foi fundado no dia 15 de setembro de 1903, ou seja, cinco dias antes da data mais importante no calendário rio-grandense: o dia da Revolução Farroupilha

31

. Ademais, o Estádio Olímpico,

antigo estádio gremista, fora inaugurado dia 19 de setembro, o que indica ainda mais a “gauchabilidade” desta equipe, que também conquistou o campeonato gaúcho de 1935, conhecido como Taça Farroupilha por ter sido disputada no centenário da Revolução Farroupilha. Mas o que mais caracterizou o Grêmio desde sua criação foi o estilo de jogo implantado por seus fundadores alemães. Focados em uma filosofia de mens sana in corpore sano (mente sã, corpo são), a disciplina tática e física eram os elementos centrais fortalecidos no clube. Tal medida fora tão profunda que, até os anos 1950, o Grêmio impedia que jogadores baixos, magros ou negros representassem suas cores. E tal modelo deu certo: o Grêmio era soberano em território regional; enquanto o Internacional buscava aplicar um modelo mais próximo do futebol-arte, o Grêmio não se intimidava em priorizar somente o

31

“Para muitos gaúchos, hoje, o significado da Revolução [Farroupilha] está pautado na luta para manter aceso o tradicionalismo gaúcho e a autonomia do estado. No Rio Grande do Sul, dia 20 de setembro é feriado estadual, é o Dia do Gaúcho, dia em que os tradicionalistas desfilam o orgulho gaúcho.” (LUVIZOTTO: 2009). O dia 20 de setembro é lembrado ainda nas primeiras estrofes hino rio-grandense, que inclusive foi criado por intelectuais em 1933. Há também a lei nº 9.405/1991 que coloca o Dia do Gaúcho no mesmo dia do início da Revolução Farroupilha. Propositalmente ou não, em 1993 eclodiu em nível nacional um Movimento Separatista Sulino liderado por Irton Marx que, apesar de todo o escândalo, não progrediu. Sobre a data da fundação do hino, ver link disponível em: http://www.mtg.org.br/hino.html

34

futebol-força. Logo, com esta soberania, o futebol no Rio Grande do Sul adotara o mesmo estilo de jogo dos tricolores, que consistia em um futebol mais “grosseiro”, “tático”, “defensivo”, “raçudo”, características que se aproximam do futebol argentino inventado, em parte, pelos meios de comunicação brasileiros. E é neste ponto que notamos que a construção do outro sobre o argentino através dos meios de comunicação brasileiros é parcial. Consoante Guazzelli: Também os argentinos reivindicam um passado de futebol técnico, malicioso e pícaro, correspondendo mais ao modelo para o Brasil e negando aquele “futebolforça” (...). Não parece ser, portanto, a “alma castelhana” a explicação para o futebol “gaúcho”. Ao que parece, a influência platina fez-se sentir indiretamente: enfrentamentos frequentes e muitas vezes vantajosos com os clubes argentinos e uruguaios reforçaram a “identidade” do futebol “gaúcho”, ao contrário das demais equipes e selecionados brasileiros que historicamente tinham dificuldades, reproduzindo a mística das gentes da fronteira. (GUAZZELLI, 2000. p. 42).

A relação “indireta” do futebol gaúcho com o argentino está presente somente em alguns aspectos, por exemplo: o comportamento dos torcedores e a “garra”. Entrementes, a “grosseria”, o apreço maior pela “tática”, “defesa” do que pela “técnica”, “ataque”, não há comunhão de sentidos entre os argentinos e os gaúchos. Portanto, vemos que o futebol riograndense simpatiza muito mais com um estilo de jogo europeu do que com o platino. Vale lembrar que os argentinos, desde o início do futebol no país, buscaram criollizar a tática imposta pela elite britânica, sempre com ênfase na “malandragem” nativa, na gambeta (o equivalente ao drible), o que nos coloca que o argentino está mais próximo do brasileiro do que este imagina (ALABARCES: 2008). Em suma, o estilo de jogo gaúcho estará muito mais relacionado a uma busca de se diferenciar do “centro” brasileiro do que de uma adaptação platina, como muitos jornais indicam; é a cultura de resistência (ou melhor, de “tradição”) da “periferia” contra a violação destes costumes regionais. Passaremos agora para as discussões empíricas presentes nos jornais de ambas regiões. Findada nossa análise dos meios de comunicação escolhidos neste relatório, pudemos observar alguns traços que persistiram no decorrer do período cronológico. Dentre aqueles que nos chamaram a atenção, destacaremos somente um: a diferença na cobertura dos eventos esportivos em ambos Estados. A principal característica é a da “falta de interesse” sobre a Libertadores quando não há equipes do Estado na fase final. Podemos observar que até 1974 os jornais rio-grandenses sempre fizeram uma cobertura semelhante às encontradas nos jornais paulistas, ou seja, um número de páginas dedicadas à Libertadores equivalente, com um grande número de reportagens e imagens sobre

35

as decisões. Vale lembrar que a primeira vez que um clube gaúcho alcançou a final foi em 1980, quando o Internacional perdeu contra o Nacional do Uruguai, ou seja, surpreende da cobertura dos jornais gaúchos serem muito próximas às dos jornais paulistas. Mas em nossa primeira data “gaúcha”, ou seja, na semifinal de 1983 na famigerada “Batalha de La Plata”, já notamos uma mudança no comportamento dos jornais. Enquanto os gaúchos mostravam-se escandalizados com a “barbárie” do jogo entre Estudiantes x Grêmio, os paulistas emitiam em pequenos informes nas laterais dos jornais notícias sobre o acontecimento. Em 1984, quando o Grêmio alcançou a final contra o Independiente, mais uma vez ficou clara a indiferença dos paulistas na até então “prestigiada” Taça Libertadores, que somente lembravam da competição quando era possível associar alguma informação que interessasse algum clube paulista, como a negociação envolvendo a contratação do zagueiro gremista Hugo de León pelo Corinthians. Com a volta do predomínio paulista na competição nos anos 1990, o inverso ocorreu: os meios de comunicação gaúchos abdicaram da cobertura das finais de 1991 e 1994 envolvendo clubes paulistas e argentinos32. A exceção é 2000 que, apesar de ainda continuar abaixo da cobertura paulista, ainda havia certo “interesse” dos jornais gaúchos, na maioria das vezes com notícias referentes ao técnico do Palmeiras, o gaúcho Luiz Felipe Scolari

33

, que

era figura constante nas páginas dos periódicos. Ademais, a partir dos anos 1990 surgem as denominadas “edições especiais”, que consistem numa cobertura exclusiva e mais completa dos acontecimentos que envolvem determinada equipe. Presenciamos de 2000 até os dias atuais um retorno de ambas as regiões em uma cobertura que seja equivalente, apesar de notarmos também o forte teor regionalista imposto nos tabloides rio-grandenses. Por exemplo, em todas as finais envolvendo paulistas, tais jornais tendem a focar em algum jogador ou treinador que tenham nascido ou jogado em

32

Será neste período também que virá à tona o Movimento Separatista Sulino que, apesar do grande alarde, não adquire proporções efetivas. Coincidentemente, será neste período em que veremos nos jornais gaúchos um apelo cada vez maior ao Movimento Tradicional Gaúcho (MTG), com entrevistas, “edições especiais”, entre outros. Mas o que chamou a atenção foi também o grande apelo destes jornais aos leitores para que estes torçam para os clubes regionais e deixem de torcer para clubes do “exterior”. Ver ANEXO B. 33

Uma característica quase imperceptível em um primeiro olhar é a mudança na forma de tratamento que os jornais dão ao técnico do Palmeiras. Enquanto jornais paulistas referem-se ao treinador pelo nome completo (numa espécie de formalidade), Luiz Felipe Scolari, os jornais gaúchos chamam o mesmo sempre de “Luiz Felipe” ou “Felipão”, o que entoa certa “intimidade” por ambos compartilharem de uma “comunhão de valores” (BAUER: 2008).

36

algum clube do Rio Grande do Sul. Portanto, ao longo desta trajetória, é possível notar que há omissões que são visíveis somente ao compararmos as reportagens entre os jornais. Analisaremos os fragmentos de alguns jornais paulistas e riograndenses da final de 2006 entre São Paulo x Internacional e, em seguida, a semifinal entre Santos x Grêmio na edição de 2007, a fim de elucidar as relações de alteridade destas duas regiões e a construção imaginada promovida pelos meios de comunicação através de termos que classificam o outro. Os meios de comunicação paulistas referem-se ao jogo de 2006 apontando um favoritismo ligeiro ao São Paulo durante toda a cobertura. Ademais, tais equipes são apontadas como as melhores do país e com estilo de jogo semelhantes. Notamos também a ausência de manchetes intituladas com termos como “catimba”, “violência”, “guerra”, “alçapão” e “torcida participativa” como forma de identificar a equipe rio-grandense. Entretanto, esta rivalidade que, a priori, parecera sadia aos olhos dos jornais paulistas logo foi desmentida por uma notícia muito veiculada na imprensa gaúcha e que, curiosamente, pouco fora discutida entre os paulistas

34

. Como podemos ver neste excerto, a

torcida do Internacional fora extremamente mal recepcionada: Foram guerreiros os 3,7 mil colorados que enfrentaram os 73 mil são-paulinos no Morumbi. Suportaram até pedradas. A direção do São Paulo destinou aos visitantes o espaço atrás de uma das goleiras, o de pior visibilidade no estádio. Mas não foi só. O problema é que acima deles, em vez de colorados, na arquibancada, ficaram tricolores. O presidente Fernando Carvalho, porém, pediu calma e respeito aos sãopaulinos na próxima quarta-feira. Deseja recepção “gaúcha”, com hospitalidade. (ZERO HORA, 10/08/2006. p. 56).

A omissão da maior parte da imprensa paulista sobre tal acontecimento pode indicar que os clubes deste Estado possuem torcedores violentos, além de uma diretoria indiferente à recepção dos visitantes. Comportamentos que, segundo esta mesma imprensa paulista, são típicos de clubes argentinos e seus torcedores, como observamos em outras coberturas de clubes brasileiros contra argentinos. Em contrapartida, notamos também a diferença no discurso do jornal gaúcho: a menção aos torcedores do Inter como “guerreiros” os colocam no

34

Para não utilizarmos o termo “omissão”, lembramos que somente o colunista do jornal Folha de São Paulo, Juca Kfouri, recordou-se deste episódio: “A pedrada no ônibus colorado é dessas coisas insuportáveis, e a acomodação da torcida gaúcha embaixo da paulista revelou uma falta de atenção (ou terá sido proposital?) dos anfitriões não menos revoltante, alvo que os visitantes foram de toda sorte de detritos.” Em FOLHA DE SÃO PAULO, 13/08/2006. p. D5.

37

mesmo nível de importância dos jogadores que venceram o primeiro jogo no Morumbi. Além disso, o estilo de recepção “gaúcha” demonstra uma espécie de cordialidade com o visitante, um comportamento que indica ser diferente do “paulista”. Do lado gaúcho, os meios de comunicação criam uma atmosfera propícia para a emergência do Internacional no cenário internacional. Concentra-se muito mais nas consequências que o feito desta equipe gaúcha pode trazer ao Rio Grande do Sul do que na cobertura do adversário, o São Paulo. Durante todo o período final da Taça Libertadores, o Internacional possui uma imagem na primeira página dos jornais, seja do símbolo do clube, dos jogadores, dos torcedores; ou seja, a cobertura foi, de certa forma, muito mais intensa do que o São Paulo recebeu nos jornais paulistas. As sessões de esportes dos tabloides são praticamente tomadas por notícias do Internacional. Ademais, os jogadores do Inter fazem um apelo muito maior à força da torcida do que os jogadores do São Paulo; Fernandão, capitão da equipe gaúcha, chega a classificar o apoio dos torcedores colorados como um “doping”

35

,

numa clara menção ao fanatismo dos apoiadores do Inter. A cobertura feita do rival paulista é mínima se comparada com a feita para o Internacional; é menor até do que a cobertura realizada dos jornais paulistas sobre o time gaúcho. A menção às características previamente “argentinas” de estilo de jogo e de comportamento também são trazidas à tona em depoimentos de jornalistas e jogadores, em uma espécie de aproximação e distanciamento contínuo destes “estrangeiros” 36. Dois depoimentos exaltados merecem ser destacados antes de partirmos para a edição seguinte de 2007. O primeiro foi o do técnico carioca Abel Braga, que fora acusado de modificar o estilo de jogo “gaúcho” desta equipe do Internacional. Ele se defende afirmando que “se você tirar o espírito de competição de uma equipe gaúcha estará indo contra as raízes. E nós vamos dar a alma pelo Rio Grande do Sul.”

37

. Abel mostrará que a verdadeira

“essência” do jogo gaúcho: que seria o “dar a alma”, o “espírito de copetição”, a “pegada”,

35

Em ZERO HORA, 03/08/2006. p. 47.

36

Por exemplo, colunista David Coimbra afirma que é “a favor da retranca assumida e franca como a verdade. Sou a favor de um Inter aferrolhado, em São Paulo.” Em ZERO HORA, 06/08/2006. p. 59. O atacante Fernandão explica o que seria um estilo de jogo gaúcho: “O diferencial vai ser a pegada, a alma. Este tem sido o craque do nosso time. E o que significa pegada? Não é dar porrada. É concentração máxima em cada segundo. Tem que ter pegada na hora de encurtar o espaço e na hora de dar balão.”. Em IDEM, 09/08/2006. p. 45. 37

Em IDEM, 09/08/2006. p. 45.

38

termo utilizado pelo atacante do Inter, Fernandão, para descrever como a equipe deve se portar em campo. Nota-se também uma grande presença de termos como “raça”, “garra” e “bravura” nos discursos jornalísticos referentes ao clube gaúcho. O último depoimento trata-se de uma afirmação muito que rodeia nossa discussão proposta até agora: o bairrismo. O colunista Wianey Carlet escreveu uma crônica intitulada “Sem favorito”, na qual ele afirma que: Somos todos bairristas, em igual intensidade (...). Lá [em São Paulo] como aqui, somos muito parecidos. Embora, bairrismo seja marca na paleta de gaúcho. Quem mandou o Rio Grande do Sul amarrar cavalos em obelisco alheio e enfrentar o restante do país, por 10 anos, a rebencaços e golpes de pelego? (ZERO HORA, 16/08/2006. p. 57).

Este texto originou-se como uma resposta à repercussão dos termos que o radialista Pedro Ernesto Denardin (da Rádio Gaúcha, uma das mais populares do Rio Grande do Sul) proferiu na transmissão do primeiro jogo da final, que terminou na vitória do Internacional em pleno estádio do Morumbi, termos estes com forte referência ao bairrismo

38

. Justifica

também – utilizando termos “nativos”39 – que o gaúcho é diferente dos outros brasileiros justamente por este bairrismo mais concentrado. Podemos relacionar esta afirmação de Carlet com a “cultura de resistência” típica do Rio Grande do Sul como uma tentativa de “blindar” esta produção cultural “periférica”. Nasce daí, como veremos em breve, uma “comunidade imaginada” através da fundação de um “vernáculo” típico, da “invenção de tradições” por intelectuais e, finalmente, devido à propagação deste “tradicionalismo” graças aos meios de

38

O discurso do radialista foi: “O Inter liquida o São Paulo. O Inter rasga a camisa do São Paulo e pisa em cima dela! O Inter humilha o campeão do mundo! O campeão do mundo destroçado pelo futebol do Internacional! Um campeão do mundo que começa a morrer definitivamente nas cores vermelha e branca do time colorado, da gauchada de vermelho! O gol de Sóbis, o menino de Erechim: cara de gaúcho, pinta de gaúcho, roupa de gaúcho, parece gaúcho e o Inter é gaúcho!”. Nele, podemos comprovar o que um jogador do Internacional dirá dias após este jogo em uma entrevista, um sentimento de insatisfação e desapontamento: “A mídia paulista não está nem aí com a gente”. Em Zero Hora, 13/08/2006. O discurso representa uma tentativa do futebol do “periférico” Rio Grande do Sul superar o futebol do “centro”, do “campeão do mundo” (destacado diversas vezes pelo radialista a fim de mostrar a grandeza do futebol rio-grandense) São Paulo, símbolo (naquele momento) do “centro” Brasil. A narração está disponível no link: http://www.youtube.com/watch?v=EF425fEvAoI 39

Ocorreu o seguinte evento neste episódio citado por Wianey Carlet: Durante a Revolução de 1930, os cavalarianos do Rio Grande do Sul amarraram seus cavalos no obelisco do Rio de Janeiro, simbolizando o fim do Estado Oligárquico. E tal ocorrência remete a outro episódio histórico: em 1820, os caudilhos artiguistas Francisco Ramirez e Estanislao López fizeram o mesmo no obelisco de Buenos Aires após uma vitória sobre os portenhos.

39

comunicação ou, para utilizarmos uma expressão específica, devido à ascensão do “capitalismo editorial” (ANDERSON: 2008). Bairrismo este que fica ainda mais perceptível no jogo de volta da semifinal entre Grêmio x Santos, em 2007. Deste confronto, destacaremos uma ocorrência extracampo, mais precisamente, um depoimento de um radialista paulista no dia anterior ao jogo (no dia 05 de junho) e a repercussão deste acontecimento no olhar dos meios de comunicação paulista e riograndense. O Santos precisava vencer esta segunda partida. Venceu, porém não passou à final pelo critério de saldo de gols 40. Na véspera da decisão contra o Grêmio, uma coluna de Luis Zanin em um jornal de São Paulo voltou a lembrar da questão do bairrismo, indicando que tal tema não é exclusividade do Rio Grande do Sul: “Pelo menos em matéria de futebol, somos todos bairristas, assumidos ou não”41. Cria-se, portanto, uma relação de alteridade com o Outro que, no caso, é o rio-grandense. O ambiente de decisão que já era tenso ficou ainda mais após a declaração do radialista Jonas Greb na rádio Trianon; uma declaração que adquiriu proporções gigantescas no Rio Grande do Sul e que não foi citada uma vez sequer nos meios de comunicação paulistas, como se tal fato não tivesse ocorrido. Ou seja, uma omissão dos jornais paulistas sobre o caso do radialista que ofendeu os gaúchos afirmando: Eles que se separem do Brasil. Vão virar Argentina, virar o que quiserem. Eles dizem que o Sul é o meu país. Pois vão ser outro país. Vão virar o país das bichonas. Não servem para ser brasileiros, são bandidos, não são gente. (ZERO HORA, 07/06/2007. p. 46).

Intencionalmente ou não, a réplica dos jornais paulistas veio logo a seguir deste acontecimento. O colunista Antero Greco, ao escrever sobre a passagem do Grêmio à fase final do torneio, argumentou: A torcida agora fica para os valentes gaúchos. Você que me lê deve achar que é papo furado essa conversa de “Grêmio é Brasil na Libertadores”. Pra mim é (...). Se bem que, para um grupo de tolos torcedores tricolores que esteve na Vila, o “Brasil ficou sem representante na Libertadores”. Não é que ainda há idiotas com ideias

40

O primeiro jogo, em Porto Alegre, terminou com vitória do Grêmio: 2 x 0. O jogo de volta, em Santos, a equipe da cidade venceu por 3 a 1, porém não passou à próxima fase devido ao critério de saldo de gols: o gol tomado fora de casa tem peso dobrado, segundo o regulamento da competição. 41

Em SOMOS BAIRRISTAS ASSUMIDOS? Estado de São Paulo, 05/06/2007.

40 separatistas?! (‘SE NÃO FOSSE AQUELA FALTA’. ESTADO DE SÃO PAULO, 08/06/2007. s/nº).

Aqui, como podemos observar, o jornalista faz uma referência implícita à tensão entre nação, região e condição de estrangeiridade e nacionalidade do gaúcho construída historicamente na relação entre Rio Grande do Sul e São Paulo. Em outras palavras, Antero Greco “aproxima” o “estrangeiro” da realidade dele ao afirmar que “torcerá” para os “valentes gaúchos” (vale ressaltar o uso do termo “valente”, que pode ser associado àquele rol de significados que se aproximam de um “tipo ideal” de gaúcho). Por outro lado, ele mesmo classifica como “tolos” àqueles torcedores gaúchos que afirmaram que o “Brasil ficou sem representante na Libertadores”. Tal frase remete à “invenção da tradição” (HOBSBAWN; RANGER: 2008) da resistência cultural do Rio Grande do Sul frente ao “centro” e até, em termos mais radicais, de separatismo 42. Ou seja, há também o “afastamento” do “estrangeiro” com este olhar de repúdio produzido pelos meios de comunicação através de termos específicos. Entrementes, ainda haveria uma tréplica por parte dos meios de comunicação riograndenses. Na mesma semana em que o Grêmio alcançava as finais da Copa Libertadores da América, o Internacional havia conquistado a Recopa Sul-americana 43. Ou seja, a capital do Rio Grande do Sul era vista como “A Porto Alegre do futebol”, título desta edição especial sobre o futebol gaúcho: Quem for buscar as origens do estilo e da força que (...) continuam empurrando os grandes times gaúchos para as vitórias e os títulos vai chegar a pelo menos duas vertentes. Uma delas foi citada pelo técnico Mano Menezes, finalista da Libertadores (...): a vizinhança com argentinos e uruguaios. Foi ela que moldou o estilo, juntando a técnica do futebol do continente com a força e a competição platina. A segunda (...) é lembrada a todo momento (...): a irresistível rivalidade. É ela que sempre move a Dupla porque o torcedor não perdoa ficar para trás. (ZERO HORA, 09/06/2007. p. 49).

42

Que remete, principalmente, ao movimento separatista que ganhou força nos anos 1990 denominado Movimento Separatista Sulino, encabeçado pelo político Irton Marx. Apesar da grande repercussão que teve em todo território brasileiro, tal manifestação não teve efeito após a prisão de seu líder por porte de símbolos nazistas. 43

Torneio em que se enfrentam, em dois jogos, o campeão da Copa Sul-americana e o campeão da Copa Libertadores da América da edição anterior. No ano de 2007, a Recopa foi entre Pachuca (campeão da Copa Sulamericana em 2006) contra Internacional (campeão da Copa Libertadores da América em 2006).

41

É evidente a aproximação do gaúcho com os “estrangeiros” Uruguai e Argentina; tal depoimento nos recorda também da fala do geógrafo Gilmar Mascarenhas sobre o “difusionismo” do futebol por vias platinas. Foi desta aliança que o futebol rio-grandense montou seu estilo de jogo, adquirindo “a força e a competição platina”, o que podemos traduzir em termos como “raça” e “garra”. E essa “aproximação gaúcha” é muito mais constante e intensa do que a “aproximação paulista” sobre este “estrangeiro” argentino. Os olhares sobre o Outro são diferentes, o que proporciona relações sociais mais ou menos “próximas”. E a segunda vertente é ainda mais interessante: ou seja, a rivalidade entre duas equipes tradicionais do Rio Grande do Sul e do Brasil (a saber, Grêmio e Internacional) faz o futebol gaúcho crescer e se intensificar cada vez mais, tomando o lugar de protagonista no cenário nacional e que corresponde, acima de tudo, a luta quase messiânica do gaúcho pela compreensibilidade do resto do Brasil. Basta recordarmos os discursos de crise, nostalgia e identidade do rio-grandense (GUAZZELLI: 2000). O gaúcho, por outro lado, faz questão de mostrar seu “distanciamento periférico” com o “centro”, com o país, e não esconde isso em suas formações culturais e até mesmo ludopédicas. Em outra edição especial dedicada às glórias adquiridas pela dupla portoalegrense, encontramos outro depoimento interessante no texto “Futebol é coisa nossa”: O futebol é um dos aspectos pelos quais os gaúchos manifestam uma certa rabugice em se assumir brasileiros (...) o gaúcho faz questão de marcar diferença entre ele e os demais reforçando a ideia do “jeito gaúcho” de jogar. A saber: força, marcação, chutão pra frente se necessário e vitória pragmática nem que seja por meio a zero – uma certa identidade que o gaúcho vai buscar nos seus vizinhos argentinos. (ZERO HORA, 10/06/2007. p. 4).

Pela primeira vez até então, “o sertão virou mar” e o “periférico” Rio Grande do Sul, com seu estilo de jogo rebuscado e rechaçado (o antagonismo do jogo bonito brasileiro), se autoproclama como “centro do futebol”. Mais uma vez notamos que o “jeito gaúcho” encontra inspiração nos vizinhos argentinos, mesmo que os termos utilizados para esta “comunhão de valores” – “força”, “marcação”, entre outros – não estejam relacionados a um “estilo de jogo argentino”, mas sim a uma imagem inventada deste Outro que satisfaz uma projeção do próprio tipo ideal gaúcho.

42

Logo, o problema inicial que o Rio Grande do Sul aparentava apresentar era sintetizado por estar “longe demais das capitais”44. Entrementes, também há um interesse para que permaneça este distanciamento e a diferenciação com o restante do país. Relação esta que pode atingir traços até de antagonismo, como vimos no futebol: enquanto o Rio Grande do Sul orgulha-se de apresentar um estilo de jogo muito mais próximo do “futebol-força” – uma forma de antagonizar contra o modelo “nacional” –, os “brasileiros” admiram um “futebolarte”, com mais ataque, criatividade e individualidade (ou o futebol “firula”, termo pejorativo utilizado pelo treinador gaúcho Felipão enquanto este treinava o Palmeiras em 2000), mas com menos defesa, disciplina tática e coletividade. A relação entre gaúcho e brasileiro trata-se de uma intensa “inclusão e exclusão” de valores, e com isso é produzida e reproduzida a imagem de ambos – tanto do brasileiro, quanto do gaúcho. Consoante Luvizotto: O “brasileiro” é o outro, o estranho, o distante que não faz parte daquele espaço e daquelas relações. Fala-se desse outro sem receios, é permitido fazer críticas, acusar e nominar: “O ‘brasileiro’ é lento, safado, preguiçoso”. Quando a referência se aproxima do universo local, essas características assumem outros sentidos, outras representações: “O povo gaúcho é trabalhador, esforçado, guerreiro. Eu moro aqui, eu sou daqui”, um discurso que exclui e inclui. (LUVIZOTTO, 2009. p. 85)

E é a partir dos dois trechos que abriram este breve capítulo que podemos encerrá-lo. Nos dois exemplos é possível observar uma grande identificação do rio-grandense com o “Outro” argentino. Na primeira frase (cunhada pelo jornalista Heitor Mombach após a conquista do Internacional de Porto Alegre sobre o São Paulo, em 2006) notamos o elemento de comparação positiva sobre o argentino, como se este detivesse comportamentos exemplares (garra, bravura, entre outros elementos tão exaltados pelos jornais brasileiros a respeito do estilo de jogo argentino). O segundo trecho (do período de 2007, no jogo de volta da semifinal entre Santos e Grêmio, que ocorreu na cidade litorânea de São Paulo) retrata a fala do jornalista Jonas Greb, da Rádio Trianon de Santos, em que é possível visualizar a associação feita pelo comentarista paulista entre o Rio Grande do Sul e a Argentina, sendo que a primeira região é tomada como “periférica” ante os modos comportamentais “brasileiros” aceitos pelo “centro”. Em outras palavras, é como se o Rio Grande do Sul, por ter escolhido a construção de uma identidade típica, deixasse de ser um território brasileiro e passasse a ser um anexo da Argentina, não somente pela aproximação geográfica com este

44

Referência ao disco de uma das bandas de rock mais conhecidas do Brasil e originária do Rio Grande do Sul: os Engenheiros do Hawaii.

43

país, mas também com alguns vínculos culturais que tais regiões compartilham, dentre eles a grande influência do estilo de jogo presente no futebol platino no futebol gaúcho.

4. “TOCO Y ME VOY”

45

– ESTILOS DE JOGO SEGUNDO A

IMPRENSA ARGENTINA O confronto entre argentinos e brasileiros no futebol – seja em clubes, seja em seleções nacionais – chama a atenção por representarem duas potências deste esporte. Ambos os países receberam influência do grande império inglês constituído no século XIX e acabaram adotando costumes europeus, especialmente nas respectivas classes dominantes latinas. Dentre eles, o próprio futebol, esporte que se popularizou ao longo dos anos e que hoje caracteriza os dois vizinhos como “pátrias de chuteiras”, termo consagrado pelo cronista Nelson Rodrigues ao se referir ao Brasil. Durante pelo menos as duas primeiras décadas do século anterior, o futebol era uma modalidade lúdica jogada exclusivamente pelas classes altas das grandes cidades e considerado uma prática amadora, ou seja, somente estudantes brancos, descendentes de ingleses ou europeus e oriundos de famílias ricas participavam de tal esporte

46

. Algumas

cidades como Buenos Aires e São Paulo recebiam e incorporavam imediatamente estes costumes através dos europeus que vieram em grande número para estas cidades no início do século XX. Entre a década de 1920 (na Argentina) e 1930 (no Brasil), o esporte adquirira contornos de símbolos nacionais para duas pátrias relativamente jovens. A Argentina, por exemplo, buscará em suas origens criollas (no mito do herói gaúcho Martín Fierro, por exemplo) um símbolo que fomentasse uma representação nacional própria que excluísse especialmente qualquer tipo de vínculo com a Inglaterra, colocando estes em uma relação de alteridade e estranhamento que se mantém até hoje. Segundo Alabarces,

45

Expressão consagrada no Brasil pelo narrador Galvão Bueno ao se referir às equipes argentinas, popularizando tal frase cunhada pelos argentinos. 46

Vale observar que os clubes com maior número de títulos neste período estavam relacionados às elites urbanas; caso do clube Alumni, em Buenos Aires, e do Clube Atlético Paulistano, em São Paulo. Com a paulatina profissionalização e a popularização (ou criollismo no caso argentino), estes clubes adquiriram uma imagem negativa por sua postura exclusiva (somente poderiam jogar brancos, ricos e descendentes de ingleses) e aos poucos definharam. E, aos poucos, o futebol tornava-se sinônimo de esporte popular.

44 La invención del estilo criollo de juego, la nuestra, funciona especialmente en espejo, en la comparación con el otro y la atención a la mirada del otro (…). El estilo se construye entonces como mecanismo de inclusión (de los hijos de inmigrantes legítimos: italianos y españoles) y exclusión (de los inmigrantes ilegítimos: británicos), a los efectos de constituir un nuevo híbrido, el fútbol criollo, la nuestra (…). Así, “el imaginario del estilo criollo como opuesto al británico no es solo la creación de la prensa argentina sino también de la inglesa local que, continuamente, opone el estilo británico asociado al sentido táctico, la disciplina, el método, la fuerza y el poder físico, a las virtudes criollas, basadas en la agilidad y en el virtuosismo de los movimientos” (Archetti, 2001: 20).” (ALABARCES, 2008, pp. 46-7).

A relação entre Argentina e Brasil neste esporte é, pois, muito próxima, contendo diversos pontos de convergência desde o nascimento deste jogo até a consolidação deste esporte e suas características de cada região. Por exemplo, o estilo de jogo adotado por equipes brasileiras geralmente é classificado pelos meios de comunicação como jogo bonito, ou seja, com ênfase na individualidade, criatividade e ofensividade. A história da consolidação do estilo de jogo apresentado pelas equipes da Argentina perpassa por este mesmo percurso, segundo alguns autores argentinos, como os sociólogos Eduardo Archetti e Pablo Alabarces. O fútbol criollo – também lembrado pelo termo la nuestra cunhado por Archetti em seus estudos relacionados à identidade portenha neste esporte – caracteriza-se por representar uma antítese ao futebol britânico que fora introduzido na América do Sul, dando traços exclusivos para que tal prática lúdica adquira grande importância na formação de uma identidade nacional. Termos como gambeta, pibe e potrero (drible, moleque e várzea, respectivamente no vocábulo brasileiro) embasarão o estilo de jogo “tipicamente” argentino, assim como farão parte da formação do estilo de jogo no Brasil nesta “matriz bricolada do futebol” (DAMO: 2007). Em suma, enquanto o estilo de jogo “tipicamente” brasileiro – jogo bonito – se aproximará de outras atividades lúdicas como a capoeira ou o samba e, por conseguinte, enfatizará a mestiçagem e suas influências culturais à sociedade em geral, num processo de antropofagia cultural

47

, o estilo de jogo “propriamente” argentino buscará

promover através do futebol uma distinção ante este Outro britânico e, ao mesmo tempo, fundar uma identidade própria. Consoante o sociólogo Pablo Alabarces,

47

Podemos sublinhar aqui o prefácio escrito em 1947 pelo antropólogo Gilberto Freyre ao livro O Negro no Futebol Brasileiro, de Mário Filho, em que afirma que “o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é (...). Sublimando tanto do que é mais primitivo, mais jovem, mais elementar, em nossa cultura, era natural que o futebol, no Brasil, ao engrandecer-se em instituição nacional, engrandecesse também o negro, o descendente de negro, o mulato, o cafuzo, o mestiço. E entre os meios mais recentes – isto é, dos últimos vinte ou trinta anos – de ascensão social do negro ou do mulato ou do cafuzo no Brasil, nenhum excede, em importância, ao futebol.” (FILHO, 2010: p. 25).

45 Esta construcción anti-británica alcanza su clímax narrativo durante el peronismo, cuando, a pesar del desplazamiento que la posguerra opera sobre los imperialismos dominantes, el fútbol persistirá en su definición de un enemigo. A modo de anticipo: en 1953, luego de la primera victoria futbolística ante Inglaterra, algún periodista exaltado exclamará “Primero nacionalizamos los ferrocarriles, ahora nacionalizamos el fútbol”. (ALABARCES, 2008: p. 53).

Logo, as táticas esportivas podem caracterizar também modos de classificação dos futebóis apresentados pelos respectivos países, fomentando não somente a alteridade com o brasileiro (onde são encontrados pontos de convergência e divergência)

48

, mas também (re)

significando uma própria identidade argentina. O caso portenho nos revela, basicamente, dois estilos de jogo divergentes: o fútbol criollo (já mencionado anteriormente) e o seu antagonista, denominado por Pablo Alabarces como anti-fútbol. Este último caracteriza-se por sua aproximação com o estilo inglês de jogo, ou seja, defensivo, disciplinado e coletivo. Ademais, caracteriza-se pela grande ênfase ao empenho físico em detrimento do técnico a fim de atingir a vitória, chegando a ser definido como um estilo violento e agressivo. A equipe argentina que assumirá estes elementos e ficará estigmatizada como a “fundadora” do antifútbol será o vitorioso Estudiantes de La Plata do período de 1968 a 1970. Vencedor de três edições consecutivas da Copa Libertadores da América e ganhador de um Torneio Intercontinental contra os ingleses do Manchester United

49

, os pinchas ficaram conhecidos

como a equipe que encarnava os ideais propostos pelo ditador Juan Carlos Onganía. Segundo Alabarces, La nueva mentalidad designa la modernidad reclamada, compuesta de una serie de términos positivos que designan, por oposición, aquello que se diagnostica y se quiere desterrar. La alianza es clara: novedad – juventud, fortaleza, disciplina, dinamismo, vigor, entereza espiritual y física – más humildad (…). Los valores de

48

Um ponto que pode ser levantado fora a recente contratação do técnico argentino Ricardo Gareca para assumir o comando da Sociedade Esportiva Palmeiras. Quando o treinador fora perguntado sobre o segredo dos técnicos argentinos em competições internacionais (o que já indica determinado posicionamento preconcebido no qual os treinadores argentinos provavelmente possuam qualidades específicas), afirmou: “Não temos segredos. Gostamos do futebol brasileiro. Admiro Felipão, [Vanderlei] Luxemburgo, Muricy Ramalho, Tite. Admiramos os técnicos brasileiros. Não trago nada de novo (...). Eu venho aprender sobre o futebol brasileiro, que está acima.”. Perguntado mais adiante sobre o esquema tático preferido por ele, Gareca respondeu: “De uma forma geral, gosto da linha de quatro defensores (...). Um time precisa ser organizado taticamente em campo. Se não há isso, é muito difícil. O futebol requer isso.”. Para ler a entrevista completa, ver link disponível em: http://globoesporte.globo.com/futebol/times/palmeiras/noticia/2014/05/ricardo-gareca-e-apresentado-naacademia-e-ganha-camisa-9.html Consultado em: 24/05/2014. 49

A Copa Intercontinental era uma competição que reunia os clubes campeões da Copa Libertadores da América e da Copa dos Campeões da UEFA. Até 1979, eram realizados dois jogos: um no país do clube campeão da América, outro no país do clube campeão da Europa. A partir de 1980, a competição foi levada a um jogo único em “território neutro”: o Japão. A competição se extinguiu em 2004 e deu lugar à Copa do Mundo de Clubes da FIFA. Para maiores informações, ver link disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Copa_Intercontinental Consultado em: 26/05/2014.

46 Estudiantes son los mismos que la dictadura en el poder reclama a todos los ciudadanos argentinos: el gobierno militar del dictador Onganía es una alianza entre sectores conservadores y ultracatólicos. (ALABARCES, 2008: p. 97).

E, mais adiante, ele define a prática do anti-fútbol do Estudiantes de La Plata como “la tendencia a hacer de los partidos por las Copas verdaderas batallas campales, con heridos y expulsados como saldo, sumado al estilo áspero y luchador de Estudiantes.” (IDEM: p.98). É possível respaldar essas informações a partir da leitura de alguns trechos selecionados dos confrontos da edição da Copa Libertadores da América do ano de 1968 entre Palmeiras e este mesmo Estudiantes de La Plata. Alguns depoimentos são suficientes para demonstrar como tal equipe era vista pelos periódicos argentinos. Um deles é a breve entrevista ao meio-campista Pachamé após a conquista da Copa: Pachamé era uno de los más enloquecidos. De los que gritaba su alegría para que la escuchara todo el mundo. “Este es el triunfo de la humildad, del sacrificio, de un montón de cosas que a veces la gente no llega a comprender. Nosotros en este “baile” estamos desde enero.” (CLARÍN, 17/05/1968: p. 36).50

Outro ponto a confirmar a tese de Alabarces está presente na própria nota de congratulação do ditador argentino à equipe platense: Al tener conocimiento del triunfo, el presidente de la Nación, teniente general Juan Carlos Onganía, envió al equipo de Estudiantes de La Plata el siguiente telegrama: “Felicitaciones para el campeón de América por tan magnífico lauro. Las virtudes espirituales que lo han hecho posible, son ejemplo para la juventud y orgullo del deporte nacional”. (IDEM, IBIDEM: p. 34).51

Vale sublinhar aqui alguns termos como “humildade”, “sacrifício”, “virtudes espirituais” e “juventude”. Ademais, a cobertura realizada pelos periódicos sobre este Estudiantes ressalta a fortaleza defensiva e disciplina tática da equipe argentina. O capitão daquela equipe, o talentoso meio-campista Verón, era ofuscado pela dedicação tática dos outros jogadores. O estilo de jogo apresentado pelo Estudiantes era, portanto, mais “europeu” do que aquele característico fútbol criollo, com dribles, improviso e individualidades: A pesar de avanzar menos, tuvo mayores opciones de gol que los brasileños y consiguió dos hermosos goles (…). El trabajo de Estudiantes fue inteligente,

50

Tradução livre: Pachamé era um dos mais enlouquecidos. Daqueles que gritava sua alegria para que todo o mundo a escutasse. “Este é o triunfo da humildade, do sacrifício, de um monte de coisas que às vezes a gente não chega a compreender. Nós estamos neste “baile” desde janeiro.”. 51

Tradução livre: Ao ter conhecimento do triunfo, o presidente da Nação, o tenente-general Juan Carlos Onganía, enviou à equipe de Estudiantes de La Plata o seguinte telegrama: “Felicitações para o campeão da América por tão magnífico feito. As virtudes espirituais que o fizeram possível são exemplos para a juventude e orgulho do esporte nacional”.

47 pensado. No puso la agresividad que alguna vez se le criticó y concretó, quizá, su más hermoso triunfo. América es suya. (CLARÍN, 17/05/1968: p. 34).52

Vale aqui salientar a menção feita pelo jornal ao termo “agressividade”. A equipe de La Plata ficara conhecida pela prática do anti-fútbol entre os anos em que conquistou os principais torneios internacionais de clubes, de 1968 a 1970

53

. Tal façanha proporcionou a

este estilo de jogo (praticado somente por poucas agremiações na Argentina 54) o alcance nacional, ou seja, a Argentina passara a ser conhecida como o país do futebol agressivo, disciplinado, coletivo; pontos estes respaldados pelo fato de haver uma ditadura naquele mesmo momento. Até então, o discurso apresentado pelos periódicos argentinos acerca de tal estilo de jogo aproxima-se da interpretação de Marshall Sahlins sobre o beisebol. Consoante o antropólogo, Em termos amplos a sugestão é que as coletividades estão para as tendências assim como os indivíduos estão para os eventos; em outras palavras, que a escolha de sujeitos históricos depende do modo de mudança histórica. (SAHLINS, 2006: p.123).

Adaptando para o contexto futebolístico, a fala de Sahlins converge em direção ao discurso proposto por Pablo Alabarces acerca do caso do Estudiantes de La Plata de 1968, ou seja, que o antí-fútbol – estilo de jogo baseado na coletividade – representa uma tendência daquele período em toda a Argentina: um país sob a vigência de uma ditadura militar que exigia, dentre outras coisas, disciplina e união. Entrementes, ao observar os discursos presentes nos meios de comunicação impressos dos anos seguintes, notamos que há uma permanência em alguns traços deste estilo

52

Tradução livre: Apesar de avançar menos, teve maiores chances opções de gol que os brasileiros e conseguiu dois belos gols (...). O trabalho do Estudiantes foi inteligente, pensado. Não se utilizou da agressividade que alguma vez o criticou e concretou, quiçá, seu mais belo triunfo. América é sua. 53

Não somente a equipe de La Plata ficou conhecida como praticante do anti-fútbol. Esta prática adquiriu proporções nacionais, e todas as equipes argentinas passaram a ser identificadas com tal rótulo, ou seja, com ênfase na coletividade, na disciplina tática e, se for preciso, na violência. Relatos (ALABARCES, 2008; SEBRELI, 2005) afirmam que a partir de 1967, quando o Racing Club da Argentina ganhou o direito de enfrentar o Glasgow Celtic da Escócia pela Copa Intercontinental, a violência tomou dimensões notáveis dentro e fora de campo, através dos torcedores argentinos. O Estudiantes de La Plata fora responsável por “esquematizar” tal prática após conquistar três Copas Libertadores da América de forma consecutiva e uma Copa Intercontinental frente a um clube inglês – ou seja, o adversário principal da Argentina –, o Manchester United, o representante da Coroa e do Imperialismo. 54

O Racing Club fora campeão da Copa Libertadores da América e da Copa Intercontinental do ano de 1967 utilizando condutas semelhantes ao anti-fútbol consagrado anos depois pelo Estudiantes de La Plata (ALABARCES, 2008).

48

de jogo nas equipes argentinas na Copa Libertadores da América independentemente da “tendência” política do período. Traços como “coletividade”, “disciplina tática” e “defensividade” aparecem em diferentes anos. Selecionamos dois exemplos retirados das narrativas jornalísticas de duas datas distintas a fim de salientarmos a continuidade no estilo de jogo que possui semelhanças com o anti-fútbol: Pero eso no significa que Independiente no sea un equipo ideal para este tipo de choques calientes. Lo acaba de demonstrar por una vez más. Y fundamentalmente con las viejas armas: su personalidad y su cabeza fría. Sólo así, y no de otra manera, pudo sacar este uno a cero de hoy. Porque una cosa es que San Pablo se repitió hasta la exageración. Pero otra es que había que aguantar el ollazo sin cometer una sola falla. Y los campeones [Independiente] no la tuvieron. Al menos defensivamente. (CLARÍN, 20/10/1974. p. 23). 55

Observamos, aqui, a presença de termos como “defensivamente”, “cabeça fria” e “personalidade” que podem remeter a um estilo de jogo menos individualista e mais coletivo, com ênfase na disciplina tática. Ao avançarmos mais de trinta anos, veremos que elementos constitutivos daquilo que representaria o antagonismo do estilo de jogo argentino estão presentes com clareza nos periódicos. Na edição da Copa Libertadores da América de 2007, encontramos esta breve entrevista com o goleiro do Grêmio, o argentino Saja, que avalia os diferentes estilos de jogo apresentados pelo futebol brasileiro e o argentino: Tras la práctica de ayer, el arquero expresó su receta para ganar la serie: “El jugador brasileño es más técnico y juega más bonito. El argentino apela a mañas para hacer tiempo y parar el juego. Por eso no debemos ceder tiros libres y hacer fouls tontos.”. (LA NACIÓN. 20/06/2007. p. 4 sec. Deportiva). 56

É notável a distinção promovida pelo goleiro argentino: os brasileiros e os argentinos são colocados em estereótipos criados pelos meios de comunicação impressos brasileiros, mesmo o Grêmio sendo uma equipe que pouco se encaixa aos moldes de “brasileira” 57. Aqui, o argentino salienta a “catimba”58 utilizada pelos seus conterrâneos como estratégia para

55

Tradução livre: “Mas isso não significa que o Independiente não seja uma equipe ideal para estes tipos de choques quentes. O que acaba de demonstrar uma vez mais. E fundamentalmente com suas velhas armas: sua personalidade e sua cabeça fria. Somente assim, e não de outra maneira, pode fazer este um a zero de hoje. Porque uma coisa é o São Paulo repetiu até o exagero. Porém outra é que havia que aguentar o “ollazo” sem cometer uma só falha. E os campeões [Independiente] não a tiveram. Ao menos defensivamente.”. 56

Tradução livre: “Após a prática de ontem, o goleiro expressou sua receita para ganhar a série [contra o Boca Juniors]: “O jogador brasileiro é mais técnico e joga mais bonito. O argentino apela às manhas para gastar o tempo e parar o jogo. Por isso não devemos ceder tiros livres e fazer faltas bestas.”.” 57 58

Para maiores detalhes sobre tal discussão, ver MEYER, 2014.

Termo brasileiro que caracteriza a prática do antijogo, ou seja, o retardamento da partida através da violência, da demora em cobrar uma falta (ou tiro de meta, escanteio).

49

intimidar o adversário e, portanto, vencer a partida. Esta “apelação” dos clubes argentinos remete àquela que marcara o Estudiantes de La Plata de 1968, conhecido pelo anti-fútbol, oposto do “jogo mais bonito” brasileiro. A diferença é que a intimidação não era meramente simbólica, como também (ou unicamente) física. O outro lado da moeda – o estilo criollo – associa-se mais a determinados “eventos” (SAHLINS: 2006) do que a períodos históricos. Por exemplo, o jogo da Copa do Mundo de 1986 entre Argentina e Inglaterra ficará marcado pelos dois gols de Diego Maradona, el pibe de oro. Nesta partida, em que a equipe portenha teve a sua desforra – dentro e fora de campo – contra os europeus. O primeiro gol consistia em uma demonstração “pura” deste estilo de jogo: Maradona partira do meio-campo, driblara diversos jogadores britânicos – inclusive o goleiro – e tocara a bola ao gol vazio. O segundo – a famigerada “mano de Diós” – representara a viveza criolla

59

adaptada ao futebol: Diego Maradona antecipara o goleiro no

cruzamento esticando o braço para empurrar a bola às redes. O “maradonismo” representara uma reconfiguração da figura do argentino que permanecera irreconhecível desde o declínio do peronismo (ALABARCES: 2008) e a aura construída sobre suas figuras, especialmente em Evita Perón. A figura do peronismo presente no futebol, segundo Alabarces, é representada na figura deste jogador de origem humilde, da periferia de Buenos Aires, do pibe que se tornou um crack e conquistara o mundo com suas gambetas, com seus autos e baixos durante toda a carreira e que, por fim, volta para a casa 60. Em suma, tal personagem acabou reincorporando o “adormecido” estilo criollo “tipicamente” argentino: La figura de Maradona es central en el relato nacionalista futbolístico de los años ochenta (…). Maradona funcionó como “centro luminoso” de la patrioticidad del fútbol argentino, un centro que lleva toda la serie anterior hasta la hipérbole. Maradona también ofreció la posibilidad de apropriarse de un sentido errante: el de una sociedad que vió derrumbarse sus referencias políticas más elementares. Maradona fue la (¿última?) posibilidad de otorgarle a la patria un sentido (futbolístico), históricamente objeto de disputa. (ALABARCES, 2008: p. 133).

59

Termo semelhante ao “jeitinho brasileiro”. O historiador Juan José Sebreli definirá tal termo desta forma: “La sociedad argentina se ha caracterizado por el acostumbramiento a la ilegalidad – la mayor parte de sus gobiernos fueron ilegítimos o fraudulentos –, por la aceptación de la impunidad y la celebración de la picardía llamada “viveza criolla” como una virtud mayor que el trabajo y el talento. En la obra literaria que se considera más representativa, sus dos héroes son un cuchillero – Martín Fierro – y el sórdido viejo Vizcacha, cuyos consejos son la exaltación cínica de la inescrupulosidad. Es frecuente además la idealización de bandidos como Bairoletto o Isidoro Velázquez, transformados en rebeldes sociales, o la fama efímera otorgada a cajeros defraudadores como Roura o Fendrich.” (SEBRELI, 2005: p. 204). 60

Diego Maradona encerrou sua carreira como jogador pelo clube mais popular da Argentina: o Boca Juniors.

50

A imagem do estilo de jogo criollo, personificada e consolidada na imagem de Diego Maradona nas décadas de 1980 e 1990, ganhará destaque em outro “evento” de uma agremiação argentina durante a Copa Libertadores da América de 2003, quando o “desacreditado” Boca Juniors ganhou dos brasileiros do Santos dotados com a chamada segunda geração dos “Meninos da Vila” 61. Nesta ocasião, brilhou a estrela de um possível sucessor de Maradona: um pibe pobre da periferia de Buenos Aires, que aprendeu a jogar futebol em potreros 62e que conseguira ascender à maior equipe do país graças ao seu talento demonstrado por suas gambetas. “Era cierto nomás... Algún día se iban a acabar los elogios para este pibe, Carlitos, el de la habilidad indescifrable y el coraje inagotable (…). Los brasileños del Santos, conscientes de que en el plano estrictamente futbolístico corrían con desventaja para neutralizarlo, lo corrieron por otro lado. Así, buscaron anularlo a través de la guapeza. Leao le encomendó la misión de bailar con la más fea a Alex (…). Y Alex, un guapo de aquellos, se encontró con que Carlos Alberto Tevez era más guapo que él. Porque se había criado en Fuerte Apache y porque desde chico había acostumbrado el lomo a no sentir dolor en la patada, en el roce, en el manotazo. A jugar con dos canilleras por cada pierna, una atrás y otra adelante…” (CLARÍN. 03/07/2003. p. 5 sec. Deportivo). 63

A caracterização de Tevez como um jogador de grande habilidade e coragem e, ao mesmo tempo, a menção à dureza e resistência adquirida em sua infância no bairro Fuerte Apache (um dos mais violentos e pobres da capital federal), demonstra a figura ideal do jogador argentino nos moldes do “maradonismo”, ou seja, aquele que não foge à luta (“había acostumbrado el lomo a no sentir dolor en la patada”), de origem humilde e que ascendeu na vida graças ao futebol praticado em campos de terra e que, principalmente, é “humano” – não

61

Nome dado aos times da equipe do litoral paulista em que se revelaram grandes jogadores em sua base. A segunda geração dos Meninos da Vila conquistou, dentre outros títulos, o Campeonato Brasileiro de 2002 e o vice-campeonato da Copa Libertadores da América de 2003. Havia no elenco jogadores como: Robinho, Diego, Elano, Renato, Alex, Léo, entre outros. Para maiores informações, consultar links disponíveis em: http://canelada.com.br/santos/meninos-da-vila-%E2%80%93-um-fenomeno-santista-geracao-2-%E2%80%932002/ e http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2012/04/meninos-da-vila-fazem-historia-no-santos-hageracoes.html Consultados em: 26/05/2014. 62 63

Termo semelhante à “várzea” brasileira.

Tradução livre: “Era certo não mais... Algum dia iria-se rasgar elogios a este pibe, Carlitos, o da habilidade indecifrável e da coragem inesgotável (...). Os brasileiros do Santos, conscientes de que no plano estritamente futebolístico corriam com desvantagem para neutralizá-lo, o correram por outro lado. Assim, buscaram anulá-lo através da macheza. Leão [técnico do Santos] o encomendou a missão de bailar com a mais feia [Tévez] a Alex (...). E Alex, um macho daqueles, acabou por encontrar em Carlos Alberto Tevez um mais macho que ele. Porque este se havia criado no Fuerte Apache [bairro periférico de Buenos Aires] e porque desde criança havia acostumado o lombo para não sentir dor na patada, no choque, no tapa. A jogar com duas caneleiras em cada perna, uma atrás e outra na frente...”.

51

só a carreira como também sua vida pessoal tem altos e baixos transformam, portanto, em um ídolo nacional

65

64

. Tais características o

– ou, no mínimo, clubístico –, reincorporando

a caracterização do estilo criollo, encontrado em times com talentos individuais, com foco no ataque e na técnica 66. Entrementes, não podemos considerar este estilo de jogo como “puramente” criollo. Vimos na descrição realizada acima de Tévez alguns termos que divergem daqueles propostos pelo estilo criollo, remetendo sempre à “dureza” na qual tal jogador fora forjado. Ademais, ao voltarmos alguns dias antes da conquista de Boca Juniors em 2003, o discurso presente nos periódicos argentinos alegava que tal equipe era caracterizada por elementos que remetiam a um futebol mais tático, defensivo, disciplinado e humilde; termos estes que se aproximam daquele anti-fútbol apresentado pelo Estudiantes de La Plata em meados das décadas de 1960 e 1970 e que “contaminou” o futebol argentino. La fortaleza táctica de Boca, su concentración, su disciplina para interpretar lo que demanda el partido y el vuelo que le dan sus atacantes contra un rival de espíritu ofensivo, no tan experimentado, que crece y se potencia con la pelota en los pies y pasa zozobras la hora de recuperarla (...). Santos representa un estilo siempre atractivo: sus integrantes son mayormente jóvenes, atrevidos, habilidosos.” (LA NACIÓN. 25/06/2003. p. 3 sec. Deportivo). 67

Neste trecho acima, o periódico argentino caracteriza o estilo de jogo de Boca Juniors com traços semelhantes àqueles apresentados nas narrativas da equipe de La Plata em 1968; palavras como “fortaleza tática”, “concentração” e “disciplina” remetem a uma coletividade em detrimento da individualidade. Ao mesmo tempo em que notamos a presença

64

Por exemplo, podemos recordar a passagem de Tévez pelo Corinthians. Quando chegou ao Brasil, fora visto como um passo adiante em sua vida pessoal e sua carreira. No entanto, saiu do clube paulista brigado devido à polêmicas dentro e fora de campo, o que pode ser interpretado como um ponto baixo. 65

Para muitos argentinos, o “popular” Carlos Tevez é mais querido do que o “frio” Lionel Messi, eleito o melhor jogador do mundo quatro vezes consecutivas. Para maiores detalhes sobre tal tema, consultar link disponível em: http://esportes.terra.com.br/futebol/copa-2014/argentinos-lamentam-tevez-fora-e-culpam-brigacom-messi,aa578456ee7f5410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html Consultado em: 26/05/2014. 66

Vale recordar que, não somente em 2003, como durante toda a década passada, o clube Boca Juniors – o qual participara de cinco finais da Copa Libertadores da América, conquistando o título em três – teve outro talento individual: Juan Roman Riquelme. Cria da base boquense, este meio-campista tem uma forte ligação com a torcida xeneize, além de realizar partidas decisivas nas finais em que disputou, sendo destaque na maioria delas. 67

Tradução livre: “A fortaleza tática de Boca, sua concentração, sua disciplina para interpretar o que demanda a partida e o voo que dão seus atacantes contra um rival de espírito ofensivo, não tão experiente, que cresce e se fortalece com a bola nos pés e soçobra na hora de recuperá-la (...). Santos representa um estilo sempre atraente: seus integrantes são na maioria jovens, atrevidos, habilidosos.”.

52

desta avaliação positiva da coletividade, existem traços que aludem ao “maradonismo” – o jogador talentoso, criativo, que prioriza as jogadas individuais – neste mesmo conjunto, incorporado na figura do atacante Carlos Tévez. Uma segunda avaliação referente à última citação nos indica uma das interpretações dos meios de comunicação impressos argentino referente ao estilo de jogo utilizado pelas equipes brasileiras nestes confrontos de Copa. Na análise realizada nestes periódicos, pudemos observar uma constante menção ao futebol brasileiro como aquele em que se pratica o “clássico” (ou “tradicional”) jogo bonito, ou seja, um estilo de jogo que possui diversos traços de convergência com o estilo criollo, já mencionado anteriormente. A representação deste outro – “o” futebol brasileiro – se apresentará de diversas formas nos periódicos. San Pablo no fue un rival duro, ni complicado, pero tampoco un equipo sin argumentos y sin capacidad. Se mantuvo dentro del clásico estilo brasileño, ese que se permite jugar sin mayores ataduras, que propone un juego abierto y ofensivo, que cubre espacios y que busca respaldar los ataques con bastante gente (…). San Pablo insinuó que en el Morumbi crecerá. Suele ocurrir con muchos equipos brasileños que en su cancha, con el colorido de su tribuna, con la batucada, con los fuegos de artificio, se encienden a pleno las individualidades y aparece esos festivales futbolísticos que deslumbran y demuelen. (CLARÍN. 12/06/1992. p. 56).68

Este excerto, dias após o jogo de ida da final da Copa Libertadores da América de 1992 entre Newell’s Old Boys (de Rosário) e São Paulo, nos revela algumas características desta relação de alteridade entre os futebóis dos dois países. Inicialmente, vemos que a definição do “clássico” estilo de jogo brasileiro aproxima-se da ideia proposta por Pablo Alabarces para o estilo de jogo argentino, ou seja, um futebol “aberto” e “ofensivo”. Ademais, nota-se que a relação com este “outro” encontra-se em uma posição de admiração com os “festivais futebolísticos” apresentados pelas equipes brasileiras de um modo geral. Outra categoria que remete às reflexões acerca dos diferentes estilos de jogo consiste na presença de grandes jogadores capazes de, individualmente, levarem uma equipe à conquista de grandes glórias. Um periódico argentino convocou Antonio Rattin, capitão da

68

Tradução livre: “São Paulo não foi um rival duro, nem complicado, mas tampouco uma equipe sem argumentos e sem capacidade. Se manteve dentro do clássico estilo brasileiro, esse que se permite jogar sem maiores amarras, que propõe um jogo aberto e ofensivo, que cobre espaços e busca respaldar os ataques com muita gente (...). São Paulo demonstrou que no Morumbi crescerá. Costuma ocorrer com muitas equipes brasileiras que em seu estádio, com o colorido das tribunas, com a batucada, com os fogos de artifício, se inflamam as individualidades e aparecem esses festivais futebolísticos que deslumbram e demolem.”.

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equipe de Boca Juniors na final da Copa Libertadores de 1963, que perdeu a final contra o Santos, para comentar sobre a decisão deste torneio em 2003. O ex-jogador reforça alguns pontos, como as diferentes “escolas” de jogo no futebol de Argentina e Brasil: Nosotros éramos un buen equipo, como el que ahora tiene Boca, pero en el 63, con Pelé, Santos tenía robo (…). Nosotros teníamos un 30 y Santos un 70 por ciento de probabilidades de llevarse la Copa. Ahora es más parejo; antes era mucho más competitivo (…). Hoy, Boca y Santos será el enfrentamiento de dos escuelas distintas. Los brasileños representan, como se dice, el jogo bonito, con dos o tres chicos que en ataque son importantísimos, pero a la vez son flojitos en defensa. El equipo de Bianchi tiene personalidad, transpira la camiseta y demostró que de visitante rinde más que de local. (LA NACIÓN. 25/06/2003. p. 5 sec. Deportivo). 69

Dois pontos merecem destaque nesta passagem. Em primeiro lugar, a utilização de termos que qualificam as equipes brasileiras como um todo que pratica um único estilo de jogo, o jogo bonito (forte no ataque, fraco na defesa), enquanto que os clubes argentinos possuem a disciplina e a garra como elementos principais – garra esta que está associada ao “suar a camisa”, à dedicação extrema; categorias estas “invejadas” pelos periódicos brasileiros quando se referem aos argentinos (MEYER: 2014)

70

. Outro ponto – que já

salientamos anteriormente – é a referência a um jogador relacionado a determinado “evento” no qual ele consagra toda uma coletividade através de sua individualidade (SAHLINS: 2006). No entanto, não podemos pensar aqui em um possível “peleísmo” nos mesmos moldes do “maradonismo” (termo adotado pelo sociólogo argentino Pablo Alabarces), visto que a representação fomentada de Diego Maradona é distinta daquela de Pelé, apesar de ambos serem considerados grandes ídolos nacionais (ao menos no esporte), virem de lugares carentes, ascenderem através do futebol, entre outros elementos que caracterizem tal

69

Tradução livre: “Nós éramos uma boa equipe, como a que agora tem Boca, porém em 1963, com Pelé, Santos tinha vantagem (...). Nós tínhamos uns 30 e Santos 70 por cento de probabilidades de levar a Copa. Agora está mais equilibrado; antes era muito mais competitivo (...). Hoje, Boca e Santos será o enfrentamento de duas escolas distintas. Os brasileiros representam o jogo bonito, com dois ou três jovens que no ataque são importantíssimos, porém fracos na defesa. A equipe de Bianchi [técnico de Boca Juniors] tem personalidade, sua a camisa e demonstrou que de visitante rende mais que de mandante.”. 70

Um exemplo recente desta categorização do futebol argentino está representado no técnico da equipe do Atlético de Madrid, o argentino Diego Simeone. Durante as últimas temporadas, tal clube teve sua imagem associada na imprensa esportiva a termos como “raça”, “coração”, “vontade”. Simeone que cunhou uma frase que sintetizou a temporada do clube espanhol: “Nem sempre ganham os bons. Ganham os que lutam”. Maiores detalhes sobre tal evento, ver links disponíveis em: http://trivela.uol.com.br/nao-havia-como-o-atletico-negarum-pedido-desses-da-torcida/ e http://esportes.r7.com/futebol/fotos/tecnico-revelacao-diego-simeone-trazespirito-argentino-ao-atletico-de-madrid-10042014#!/foto/1 Consultados em: 31/05/2014.

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classificação. Em uma palavra, Maradona é mais “popular” do que Pelé em suas ações fora das quatro linhas que delimitam o campo de futebol 71. Não obstante, o futebol brasileiro é também interpretado em moldes distintos daquele “típico” jogo bonito, principalmente quando nos debruçamos sobre as edições mais recentes da Copa Libertadores da América, como a final entre Grêmio e Boca Juniors de 2007: Equipo agresivo, saludable, que propone siempre y tanta audacia, muchas veces, ofrece garantías a los adversarios, debió transformarse Boca en un equipo utilitario, aguerrido, compacto, ya que Gremio lo llevó a ese terreno (…). Es Gremio un equipo duro, que para muchos poco tiene de “brasileño”, pero no ofrece garantías en el fondo y en el ataque.” (LA NACIÓN. 14/06/2007. p. 3 sec. Deportiva).72

Mesmo se distanciando do jogo bonito, o Grêmio, equipe do Rio Grande do Sul 73, é comparado pelos periódicos argentinos ao “padrão” brasileiro de futebol e rotulado como uma equipe “pouco brasileira”, visto que é uma “equipe dura” e que tende a concentrar suas forças na coletividade e disciplina tática. Vimos uma repetição deste fenômeno em 2012, na edição entre Corinthians e Boca Juniors, na qual o técnico gaúcho Tite treinava a equipe paulistana, na qual o jornal é mais minucioso nas descrições acerca deste estilo de jogo peculiar: Corinthians se destaca por su entramado defensivo impenetrable y llega a la Bombonera con las credenciales de un catenaccio a la brasileña (…). El camino del Corinthians es el de la imbatibilidad. No perdió ningún partido en el certamen. Además, solamente recibió tres tantos en los doce partidos que disputó. Ganó siete y empató cinco. Su formación no tiene grandes estrellas. Su dupla central, formada por Leandro Castán y Chicao, es uno de los puntos altos (…). En el medio se destacan Paulinho y Danilo. Todos marcan, todos juegan. (CLARÍN. 27/06/2012. p. 53). 74

71

Muitas vezes se é possível ler notícias referentes a Diego Maradona e suas menções à Villa Fiorito, bairro carente da grande Buenos Aires; ou então depoimentos do jogador reverenciando o líder revolucionário Ernesto “Che” Guevara (tendo, inclusive, uma tatuagem deste no braço). Pelé, pelo contrário, fora de campo ficou conhecido como apoiador da ditadura militar no Brasil e, mais recentemente, ao apoiar medidas governamentais antipopulares pela Copa do Mundo de futebol. A entrevista de Diego Maradona homenageando Che Guevara está disponível no link que segue: http://www.youtube.com/watch?v=FU95CIiVfSM Consultado em: 31/05/2014. 72

Tradução livre: “Equipe agressiva, saudável, que propõe sempre e tanta audácia, muitas vezes, oferece garantias aos adversários, transformou-se Boca numa equipe utilitária, aguerrida, compacta, já que o Grêmio o levou a este terreno (...). O Grêmio é uma equipe dura, que para muitos pouco tem de “brasileiro”, porém não oferece garantias na defesa e nem no ataque.”. 73 74

Sobre a discussão acerca da influência platina no futebol gaúcho, ver MEYER, 2014.

Tradução livre: “Corinthians se destaca pelo seu estilo defensivo impenetrável e chega à Bombonera com as credenciais de um catenaccio à brasileira (...). O caminho do Corinthians é o da invencibilidade. Não perdeu nenhuma partida no campeonato. Ademais, somente recebeu três gols nas doze partidas que disputou. Ganhou

55

Há alguns elementos que podem ser salientados na citação acima. Além da clara referência a características como a coletividade e a disciplina tática (“todos marcan, todos juegan”), há indicações diretas relacionadas à ênfase desta equipe no esquema defensivo, com termos oriundos de uma “antropofagização”, como o próprio catenaccio

75

, que neste caso

fora “abrasileirado”. Longe de ser uma equipe que concentra suas atenções a um determinado jogador – dos quatro jogadores citados acima, dois são zagueiros, um é volante e outro é um meio-campista –, como o caso do São Paulo em 1992 ou do Santos em 2003 (e em 1963), o Corinthians (e o Grêmio) apresenta classificações semelhantes àquela encontrada no Estudiantes de La Plata de 1968 e o seu anti-fútbol. Termos referindo-se à um jogo duro, coletivo, defensivo, disciplinado e “humilde” 76; palavras estas já encontradas nos periódicos de 1968 ao se referirem à equipe argentina. Em suma, tais termos representam uma visão distinta proposta pelos periódicos argentinos sobre os brasileiros. Ao invés de serem aqueles que praticam o jogo bonito e revelam grandes raridades em escala industrial, os times brasileiros tornaram-se pragmáticos, com poucos talentos individuais e com grande ênfase na coletividade. Essa alteridade praticada pelos discursos nos meios de comunicação impressos é caracterizada principalmente por sua “flexibilidade”, ou seja, nem todas as agremiações brasileiras são representadas por determinado molde. Com efeito, o estilo de jogo brasileiro ainda é caricaturado pelo modelo do jogo bonito; mesmo quando equipes que fogem deste futebol – como foram os casos de Grêmio e Corinthians –, a expressão continua presente de forma implícita ou explicitamente. A autoimagem presente nos periódicos argentinos, por sua vez, nos indica a presença de duas grandes categorias de estilos de jogo. Como no caso brasileiro, podemos compreender

sete e empatou cinco. Sua formação não tem grandes estrelas. Sua dupla de zagueiros centrais, formada por Leandro Castán e Chicão, é um dos seus pontos altos (...). No meio-campo destacam-se Paulinho e Danilo. Todos marcam, todos jogam.”. 75

Catenaccio que, em italiano, significa “cadeado”, é um estilo de jogo que teve suas origens na década de 1930 na Suíça, mas que atingira seu ápice nas décadas de 1960 e 1970 com as equipes italianas em competições europeias. Em poucas palavras, tal estilo de jogo propõe um modelo extremamente defensivo, concentrando suas forças ofensivas em rápidos contra-ataques. Este modelo exige um grande esforço disciplinar, tático e coletivo. E até hoje faz parte da caricatura dos estilos de jogo de equipes (clubes ou seleções nacionais) da Itália e da Suíça. Para maiores informações, ver link disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/prelecao/2009/11/30/catenaccio-paida-retranca-e-do-contra-ataque/?topo=13,1,1,,10,13 Consultado em: 01/06/2014. 76

Aqui podemos destacar um trecho de um periódico argentino sobre uma entrevista com Tite, técnico do Corinthians em 2012, na qual ele afirma que: “El grupo está confiado, pero al mismo tiempo muy alerta. Estamos preparados. Nuestra marca será la humildad. La Bombonera existe y es real. Pero un equipo maduro debe saber jugar en cualquier estadio.”.” (CLARÍN. 26/06/2012. p. 44).

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a dicotomia entre “futebol-arte” e “futebol-força” (HELAL: 2011), representados nas figuras do estilo criollo e do anti-fútbol, respectivamente. Existem “eventos” – que não seguem necessariamente uma cronologia específica – que possibilitam notar uma predominância de determinado futebol sobre outro. Ademais, observamos que, a partir da década de 1990, há uma terceira via que podemos denominar de “mista”. Por conseguinte, encontramos (especialmente na figura da equipe de Boca Juniors nos anos 2000) traços que caracterizam a coletividade, a humildade, a defensividade e a disciplina tática aliada ao talento de um atleta munido de individualidade, criatividade, ofensividade e improviso capaz de conduzir sua equipe ao triunfo. Selecionamos o exemplo de Carlos Tévez, o pibe que nasceu na periferia de Buenos Aires e chegou ao Boca Juniors com suas gambetas praticadas antes nos potreros, mas podemos destacar também o talento de Juan Román Riquelme, meio-campista que participou de todas as conquistas deste selecionado argentino na década passada.

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5. CONCLUSÃO Vimos neste texto algumas considerações referentes à relação de alteridade entre clubes argentinos e brasileiros na Copa Libertadores da América através da análise das narrativas e impressões dos periódicos. Com relação aos futebóis apresentados pelas agremiações de Argentina e Brasil ao longo dos anos, podemos concluir que há uma constante produção mutável e flexível nos meios de comunicação impressos argentinos com respeito ao “outro” brasileiro, classificando-o especialmente como o praticante do jogo bonito. Mesmo nos casos em que times deste país praticam um futebol com características divergentes – como o caso das equipes gaúchas ou treinadas por técnicos gaúchos – do ideal é possível notar a constante expressão como se esta fosse um parâmetro para determinar se dada equipe é mais ou menos “brasileira”. Entrementes, os jornais também, ao produzirem uma imagem do brasileiro, automaticamente produz uma representação do argentino como o “não-brasileiro”, em um movimento típico do “pertencimento clubístico”, onde, por exemplo, um torcedor do Corinthians implica, automaticamente, em ser um antipalmeirense (DAMO: 2007). Ademais, segundo a análise realizada das narrativas destes periódicos, existem três grandes estilos de jogo no futebol argentino. O primeiro é o chamado estilo criollo (também conhecido como la nuestra), um estilo de jogo muito semelhante ao jogo bonito brasileiro – ofensivo, criativo, individual – e autoproclamado como o estilo propriamente “argentino” (ALABARCES: 2008); o segundo pode ser denominado como anti-fútbol, ou seja, a antítese do apresentado anteriormente e representante do futebol “europeu” – a saber, defensivo, disciplinado, coletivo –; por fim, encontramos uma espécie “mista” de futebol, com uma frequência grande a partir dos anos 1990, nas equipes com o modelo “Carlos Bianchi” de futebol. Este treinador conseguiu levar o Vélez Sarsfield, em 1994, e o Boca Juniors, em 2000, 2001 e 2003, ao título da Copa Libertadores da América. Carlos Bianchi consagrou-se por tais conquistas e, sempre que entrevistado, destacava a disciplina tática, a coletividade e a humildade do elenco; termos estes que remetem ao período do anti-fútbol. No entanto, todas as suas equipes (com exceção do Vélez Sarsfield) tinham um grande jogador dotado de habilidade única, criatividade e ousadia que remetiam ao pibe ideal e protagonista estilo criollo. Por exemplo, o cronista Julio Chiappetta sintetizará os cinco motivos que levaram a equipe de Boca Juniors à conquista do título ante o Santos, em 2003. São eles:

58 1. Tevez, para la historia. Boca tuvo siempre un jugador que se puso el traje de héroe. Pero hubo uno que se consagró: esta será recordada como la Copa Libertadores de Carlos Tevez, el pibe de 19 años que a fuerza de goles y de gambetas se consolidó como crack (…). 2. Defensa extrema. Que es muy distinto a ser defensivo. Boca no le ofrece huecos a sus rivales para que lo sorprendan y eso es un sello distintivo en los equipos de Bianchi (…). 3. Orden y progreso. Para manejar los partidos, en la zona de gestación del juego donde comienzan a ganarse los partidos: 1) impone presencia en cualquier cancha. 2) Se acomoda al rival y al sistema táctico que éste utilice. 3) Nunca pierde el orden (…). 4. Licencia para matar. Boca fue contundente porque le sacó el jugo a casi todo lo que se le presentó a la hora de definir (…). 5. Bianchi y la mística. De la mano de su técnico, máximo ganador de Libertadores (4) en la historia, Boca se transformó en un equipo copero de la talla del Independiente de los años 60 y 70. Sabe bien cómo jugar esta clase de partidos donde, además de mostrar la condición técnica, hay que entregar un plus (algunos lo llaman garra y otros corazón). Pero el Boca de Bianchi también capitaliza el peso de la historia, el contagio de sus hinchas y los manejos externos.” (CLARÍN. 04/07/2003. p. 5 sec. Deportivo).77

Portanto, observa-se que a autoidentificação promovida através destes discursos é um processo ambíguo e flexível. A classificação do “outro” como um sujeito ideal é também restrito a determinados “eventos” que consagraram o estilo de jogo tipicamente “brasileiro”. A raiz de ambos os futebóis tem em comum a antropofagização e a adaptação do esporte trazido pelos ingleses. Enquanto a imagem da genealogia do futebol brasileiro concentra-se na mestiçagem e na influência do negro na cultura nacional; o argentino encontra sua base ludopédica nos heróis gaúchos e em sua vivencia criolla (SEBRELI: 2005). E nestes ideais com características tão semelhantes, ainda é possível encontrar alguns traços de divergência sutis, mas que auxiliam na peculiaridade de cada um deles. Segundo Simoni Guedes, Um forte indício de diferenciação anota-se em uma outra dimensão muito enfatizada no constructo platino – a do “toque” de bola – forma através da qual reinventa-se, através de uma específica habilidade, o valor do coletivo. A habilidade para “tocar a bola”, embora também expressa no constructo brasileiro, possivelmente não assume, nesse caso, o mesmo valor da improvisação e do desempenho individual. (GUEDES, 2002: p. 13).

77

Tradução livre: “1. Tevez, para a história. Boca teve sempre um jogador que vestiu o traje de herói. Porém houve um que se consagrou: esta será recordada como a Copa Libertadores de Carlos Tevez, o pibe de 19 anos que a força de gols e de gambetas se consolidou como crack (...). 2. Defesa extrema. O que é muito diferente de ser defensivo. Boca não oferece brechas aos adversários para que o surpreendam e isso é uma marca distintiva das equipes de Bianchi (...). 3. Ordem e progresso. Para manejar as partidas, na zona de gestação do jogo onde começam a ganhar as partidas: 1) impõe presença em qualquer estádio. 2) Adapta-se ao rival e ao sistema tático que este utiliza. 3) Nunca perde a ordem (...). 4. Licença para matar. Boca foi contundente porque soube durante quase todo o jogo qual era a hora de definir (...). 5. Bianchi e a mística. Da mão de seu técnico, maior ganhador de Libertadores (4) da história, Boca se transformou em uma equipe copeira do calibre do Independiente dos anos 60 e 70. Sabe bem como jogar estas partidas onde, mais do que mostrar a condição técnica, deve-se entregar um algo a mais (alguns chamam de garra, e outros coração). Porém o Boca de Bianchi também capitaliza o peso da história, o contágio de seus torcedores e os manejos extremos.”.

59

Em outras palavras, o elemento central que diferencia os futebóis pode se resumir na expressão geralmente dada aos argentinos pela imprensa brasileira como aqueles que sabem “cadenciar o jogo”, com foco na posse de bola, também conhecido folcloricamente como o “toco y me voy”. Aqui podemos relembrar a imagem de Juan Román Riquelme, meiocampista de Boca Juniors e principal símbolo desta equipe durante as conquistas deste clube nos anos 2000. E tal classificação é reverenciada pelos meios de comunicação impressos da Argentina, colocando a posse de bola como ponto de divergência ante este “estrangeiro” e, assim, distanciando-o do que uma vez aproximara. El sueño no era utópico. La misión no era imposible. Lo demonstro Boca, que apelo a su orgullo para sacar adelante un desafio que no lo tenía como favorito en los papeles, pero que lo encontró como digno y gallardo campeón en el campo. En ese Morumbí que se veía como una fortaleza inexpugnable (…). Boca hizo lo que más le duele a todo equipo brasileño: le quitó la pelota y no le demostró temor. Gobernaba en la batalla del medio campo. (LA NACIÓN. 22/06/2000. p. 2 sec. Deportivo). 78

Do lado brasileiro, notamos que há diferentes perspectivas de alteridade com o argentino a partir da análise dos textos jornalísticos; tipificações que ora o qualificam de maneira positiva, ora de forma negativa, o que dará, por fim, uma criação no imaginário do brasileiro sobre este “estrangeiro” que, vale repetir, encontra-se numa relação flexível de distanciamento e aproximação. Mas, dentre estes pontos, vale destacar a maleabilidade que os termos adquirem quando os meios de comunicação se referem aos argentinos. Uma palavra muito comum na classificação deste outro é a “catimba”, ou seja, a utilização de artifícios desleais para retardar o prosseguimento da partida. No entanto, quando esta atitude – “única e exclusiva” dos argentinos – é praticada por brasileiros, ela adquire novos ares, e torna-se uma “inocente” “malandragem”. Tal mudança nos indica também a mutabilidade que os costumes apresentam e, segundo Helal e Lovisolo:

78

Tradução livre: “O sonho não era utópico. A missão não era impossível. O demonstrou Boca, que apelou a seu orgulho para seguir adiante um desafio que não se encontrava como favorito nos papéis, mas que o encontrou como digno e elegante campeão em campo. Nesse Morumbi que se via como uma fortaleza inexpugnável (...). Boca fez o que mais dói a qualquer equipe brasileira: ficou com a bola e não demonstrou temor. Governava a batalha do meio-campo.”.

60 A “catimba” quando feita por brasileiros é narrada no Brasil como “malandragem”, como algo positivo, mas para falar da “catimba” dos argentinos o tom é moralista, como “deslealdade”. (HELAL; LOVISOLO: 2007)

Em suma, da mesma forma que os argentinos são “catimbeiros”, “arrogantes”, “violentos” em uma ocasião, pontos exibidos com orgulho pelos jornais como se isto não houvesse no Brasil; em outro período eles podem ser “talentosos”, “determinados” (entenda como “raçudos”), “apaixonados” pelo futebol, às vezes até mais do que nós, brasileiros, conforme vimos o comportamento de seus torcedores segundo o olhar da imprensa brasileira, e são nestas características que os admiramos e lamentamos não possuir. E estas especificidades são perceptíveis através dos meios de comunicação e a cobertura efetuada por estes numa competição internacional da grandeza da Copa Libertadores da América. E, claro, a admiração e o repúdio a estes “estrangeiros” são dados de maneiras diferentes pelos jornais de cada região. De um lado, nos periódicos de São Paulo, os argentinos são caracterizados, na maioria das vezes, com termos negativos e que promovem um distanciamento maior deles. Por outro lado, os tabloides rio-grandenses veem seus vizinhos de fronteira muito mais próximos do que o “centro” do Brasil; logo, os termos que denotam comportamentos “característicos” dos argentinos são carregados de entoações positivas. Características estas que podem ser justificadas a partir do longo discurso de “crise” fomentado pelas instituições culturais rio-grandenses (GUAZZELLI: 2000). O distanciamento do “centro” Brasil é uma forma de defender as “tradições” gauchescas. Ao mesmo tempo há uma tentativa de aproximação com este “centro” nos discursos de “nostalgia” exprimidos no tradicionalismo rio-grandense, como o Estado que “escolheu” ficar do lado brasileiro. Ademais, nota-se que o futebol incorpora este discurso efetivado pelas instituições responsáveis por consolidar uma imagem do “tipo ideal” gaúcho (como os CTGs). Há, portanto, as características necessárias para afirmarmos que o Rio Grande do Sul é uma “comunidade imaginada” (ANDERSON: 2008) e que o futebol – e, especialmente, os meios de comunicação que cobrem este esporte – auxilia na consolidação destas imagens produzidas e reproduzidas incessantemente por estes grupos sociais, através da teatralização deste espetáculo, transformando-o num palco de conflitos e guerra, onde os acontecimentos históricos ressurgem a fim de oferecer respaldo para a superação do adversário.

61

O estilo de jogo gaúcho, tão repudiado e tão “periférico” no decorrer histórico da competição, ascendeu nos últimos anos, especialmente em 2007, quando atingiu seu zênite no cenário nacional, levando os dois grandes clubes de Porto Alegre a posições relevantes no futebol internacional79. Apresentado inicialmente como o antônimo do jogo bonito tipicamente brasileiro, o futebol-força aplicado pelas agremiações rio-grandenses adquiriu prestígio no futebol nacional a partir do momento em que equipes com estas características – força, “pegada”, disciplina tática, coletividade – venceram campeonatos de grande relevância, como Campeonato Brasileiro, Copa Libertadores da América e até a Copa do Mundo. O Internacional de Porto Alegre alcançara, nos finais da década de 1970, o tricampeonato brasileiro, sendo que um deles de forma invicta; ademais, chegara em 1980 à final da Libertadores, sendo derrotado pelo Nacional do Uruguai. O Grêmio de Porto Alegre traçara caminho semelhante: em 1983, conquistou a Libertadores e o Mundial Interclubes de forma heroica, com um time extremamente aplicado taticamente, e em 1984 chegou novamente à final do torneio continental, perdendo agora para o Independiente. Na década de 1990, esta mesma equipe vencera mais uma vez a Libertadores e tornara-se tetracampeã da Copa do Brasil, ou seja, o Grêmio é o time que mais Copas do Brasil possui 80. Se tal estilo de jogo que parece superar o “típico” jogo bonito brasileiro irá persistir ou não nas agremiações, não sabemos apontar. Uma futura pesquisa pode revelar se haverá mudanças significativas na forma como este estilo de jogo “brasileiro” será descrito pelos meios de comunicação impressos, reconhecendo a existência de outros futebóis praticados no Brasil. Ainda há a possibilidade de ampliar o número de jogos entre times argentinos e brasileiros a serem analisados em outras competições, como os confrontos da Copa SulAmericana ou da extinta Copa Mercosul. Ademais, nos restringimos a duas regiões do Brasil

79

Em 2006, o Internacional havia conquistado a Copa Libertadores da América e o Mundial Interclubes, enquanto que no ano seguinte conquistara a Recopa Sul-Americana. O Grêmio, por sua vez, chegara em 2007 à final da Copa Libertadores da América. 80

Podemos relacionar aqui também o número de técnicos rio-grandenses que nasceram ou iniciaram suas carreiras lá (seja como jogador, seja como treinador) nos últimos 20 anos. A lista de dirigentes técnicos bem sucedidos é grande: Luiz Felipe Scolari (campeão da Copa Libertadores pelo Grêmio em 1995 e pelo Palmeiras em 1999 e campeão com a seleção brasileira na Copa do Mundo de 2002 e na Copa das Confederações de 2013); Tite (campeão da Libertadores e do Mundial Interclubes pelo Corinthians em 2012); Mano Menezes (campeão da Copa do Brasil pelo Corinthians em 2009 e vice-campeão da Copa Libertadores da América pelo Grêmio em 2007); Renato Gaúcho (campeão da Copa do Brasil com o Fluminense em 2007 e vice-campeão da Libertadores em 2008); Celso Roth (campeão da Libertadores pelo Internacional em 2010), entre outros. A própria seleção brasileira passou por uma sequencia de três treinadores gaúchos em seu comando: Dunga, Mano Menezes e, atualmente, Luiz Felipe Scolari.

62

durante esta pesquisa, o que acaba por limitar outras interpretações de diferentes regiões do país. Do lado argentino, nos concentramos somente nos relatos de periódicos bonaerenses, impedindo a análise de outras abordagens sobre tal tema que poderiam ou não trazer novas informações acerca da construção de identidades regionais.

63

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66

ANEXO A – Coluna da edição do dia 13/05/1968 do jornal Zero Hora demonstrando repúdio à forma como o campeonato nacional é organizada pelo órgão “central”, a Confederação Brasileira de Desportos.

67

ANEXO B – Propagandas estampadas na edição do dia 17/06/1992 no jornal Zero Hora sobre o amistoso entre Grêmio e Internacional (o clássico “GreNal”) com forte cunho regionalista, apelando aos gaúchos que torçam para equipes do “seu” Rio Grande do Sul.

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