A ATUAÇÃO DO BRASIL FRENTE AO GOLPE MILITAR EM HONDURAS EM 2009

May 30, 2017 | Autor: Fernando Xavier | Categoria: Honduras, Golpe Militar, Golpe De Estado En Honduras 28 De Junio 2009, Direito De Asilo
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A ATUAÇÃO DO BRASIL FRENTE AO GOLPE MILITAR EM HONDURAS EM 2009

Fernando César Costa Xavier


Sumário

1. Introdução — 2. O golpe militar em Honduras e a atuação do Brasil — 2.1. O concerto democrático e o repúdio internacional — 2.2. A concessão do asilo diplomático — 3. Considerações finais.


1. Introdução

Ao tomar conhecimento do golpe militar que apeou do poder o presidente de Honduras, nas primeiras horas do dia 28 de junho de 2009, o então presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva rapidamente tornou pública a contrariedade que marcaria a posição da diplomacia brasileira pelos meses seguintes ao incidente: "Nós achamos que não tem contemporização, não tem meio termo, nós temos que condenar este golpe". A posição assumida pela política externa brasileira era de clara solidariedade ao presidente Manuel Zelaya, que havia sido detido e "deportado" para a Costa Rica, em atropelo a garantias constitucionais reconhecidas no sistema constitucional hondurenho.
O Brasil e muitos outros países da América Latina tinham e têm razões adicionais para condenar golpes militares, afinal, a região, na segunda metade do séc. XX, foi marcada por ditaduras militares que, por muitos anos, conduziram com mãos de ferro países como Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai, Peru, Bolívia, República Dominicana e alguns outros, além do Brasil. E como a tomada do poder por meio de golpe costuma suscitar fortes reações, de distintos segmentos sociais e políticos, os governos ditatoriais latino-americanos passaram a adotar, de modo institucionalizado, métodos de perseguição e censura sistemáticas a grupos oposicionistas, envolvendo torturas, desaparecimentos forçados e outros expedientes de negação de direitos humanos de indivíduos e de grupos sociais vulneráveis.
Como resultado da escalada do terror político-institucional levada a cabo pelos regimes militares, tem-se na região lastimáveis legados de violações a direitos humanos (SANTOS et alli, 2009), os quais, no caso brasileiro, tantos anos depois ainda se mantêm como uma chaga na cultura política, que as comissões nacionais e estaduais da verdade instituídas em tempos recentes não lograram curar.
Mais que isso, os golpes militares latino-americanos criaram no imaginário geopolítico a percepção de que a região é a mais imediata representação de um cenário de instabilidade política, ao ponto de o ex-presidente turco Abdullah Gul, após a frustrada tentativa de golpe militar no país no dia 15 de julho de 2016, haver declarado à rede de televisão CNN que "a Turquia não é um país da América Latina".
Alguns contornos e desdobramentos no caso do golpe hondurenho permitem dizer que a América Latina quer se livrar do fantasma das rupturas político-institucionais ilegítimas. A guerra hoje em curso — no dizer de Francisco Erice — é uma "guerra da memória": "Na América Latina, as memórias divididas dos cruentos golpes militares do Cone Sul na segunda metade do século XX têm dado lugar a inflamados conflitos da memória" (ERICE, 2010, p. 147).
O presente artigo descreve e examina dois momentos da atuação brasileira no golpe militar ocorrido em Honduras em 2009: no primeiro momento, aqui definido como "concerto democrático", destaca-se a atuação do Brasil fazendo coro às ostensivas críticas ao golpe, e, no segundo momento, ressalta-se que o governo brasileiro, assumindo posição destacada, ofereceu asilo diplomático ao presidente hondurenho deposto Manuel Zelaya. Nesse sentido, a partir da análise do caso, o artigo pretende (a) realçar os critérios supostamente compartilhados pela comunidade internacional para, por consenso sobreposto, caracterizar um golpe à democracia; e (b) pôr em questão os limites do asilo político em legações diplomáticas.
Antes de descer ao exame jurídico, convém recordar os fatos que tornaram possível a perpetração do golpe militar em Honduras em pleno séc. XXI. Por oportuno, vale registrar, desde logo, que o incidente pelo qual o presidente Zelaya foi deposto, foi largamente considerado pela comunidade internacional (incluindo-se diversos países e organizações internacionais) como um 'golpe militar' que deveria ser denunciado e repelido em todos os fóruns internacionais.


2. O golpe militar em Honduras e a atuação do Brasil

Por conta do quadro Guernica, pintado por Pablo Picasso em 1937, a Guerra Civil Espanhola é mais conhecida pelos traços do cubismo. Se fosse pintada uma tela para representar o golpe militar de Honduras, talvez o gênero que melhor coubesse seria o surrealismo.
Eleito democraticamente em 2005 como candidato do Partido Liberal de Honduras com quase um milhão de votos, José Manuel Zelaya Rosales estaria daí a poucos anos no centro de um torvelinho. No dia 28 de junho de 2009, às 5 da manhã, ele se encontrava dormindo em sua residência oficial, em Tegucigalpa, quando policiais e membros das Forças Armadas hondurenhas, anunciando a chegada por tiros, invadiram a casa, detiveram-no e o encaminharam ainda em pijamas à base aérea Hernán Acosta Mejía, de onde foi coercitivamente transportado para a Costa Rica. Não teve tempo e meios de sequer buscar abrigo e planejar medidas de contragolpe, como foi dado fazer a outros líderes depostos.
A ação das forças de segurança ocorria em cumprimento de determinação da Corte Suprema de Justicia, que acatou requerimento do Ministério Público e ordenou a captura do presidente. De acordo com o órgão ministerial, haveria suficientes provas de que Zelaya teria cometido diversas infrações à Constituição, que incluíam delitos contra a forma de governo, de traição à pátria, de abuso de autoridade, de usurpação de funções em prejuízo da Administração Pública, e o descumprimento de nada menos que 80 leis nacionais. Isso, porém, foi tornado público pela Corte apenas em Comunicado Especial no dia 30 de junho daquele ano.
Como seria de se esperar ante um quadro tão incomum, houve intensa reação contrária. Após tantas críticas da comunidade internacional no primeiro mês que sucedeu ao golpe, o Presidente da Costa Rica Oscar Arias, nobel da paz em 1987, foi indicado e aceitou servir como mediador na crise política hondurenha. A mediação, como de regra se exige, deveria ocorrer com a presença dos representantes dos litigantes, com a mediação do terceiro. Contudo, o presidente interino que assumiu o comando de Honduras após o golpe, Roberto Micheletti, foi ao país vizinho reunir-se com o mediador costarriquenho, mas se recusou a encontrar-se com Zelaya; com reuniões separadas, a mediação da alfétena estava fadada ao insucesso.
Surreal na forma, a deposição do governo Zelaya e seus desdobramentos conseguem ser melhor avaliados nas suas causas sob um olhar retrospectivo:
Quando o Presidente Manuel Zelaya convocou uma consulta para o dia 28 de junho (e não se tratava de uma proposta do próprio presidente, e sim de uma demanda crescente de setores sociais que vêm lutando por maiores espaços de participação política), para saber se o povo hondurenho queria estabelecer uma Assembleia Constituinte e modificar alguns aspectos da Constituição que resultou da reforma de 1982, esqueceu de alguns lições que não devem ser subestimadas (AGUILAR, 2009, p. 705, tradução livre).

Diz-se que um dos pontos mais controvertidos da proposta constituinte e que teria sido determinante para o golpe consistia na aprovação da reeleição presidencial — a chamada "quarta urna" —, que acabou sendo mesmo aprovada anos depois, em 2015, pela Justiça hondurenha. Para além da proposta de referendo para a convocação de uma Assembleia Constitucional, a qual foi repudiada pelo Congresso, pela Procuradoria-Geral, pelo Tribunal Superior Eleitoral e pela Corte Suprema hondurenhos, havia outras razões menos explícitas para explicar em alguma medida o golpe.
Ao ser eleito, Zelaya era candidato de um partido de centro-direita e com propostas condizentes com isso, favorável a políticas liberalizantes e simpático à aproximação com os Estados Unidos. Nos primeiros anos de seu mandato, contudo, de certo modo seduzido pela tendência socialista arregimentada pela Venezuela e Cuba na primeira década do séc. XXI, deu uma guinada programática à esquerda, uma mudança ideológica inauduta em tempos recentes (CUNHA FILHO et alli, 2013), que não seria aprovada pela classe dominante hondurenha, devidamente representada nos poderes constituídos, nem pelos Estados Unidos, que não tinham "qualquer intenção de permitir que Zelaya seguisse o movimento de Chávez no sentido de uma nova forma de socialismo" (PETRAS & VELTMEYER, 2011, p. 172).
Houve ainda rusgas com a imprensa de Honduras em 2007, que podem ser computadas como fatores que contribuíram para o desfecho antidemocrático. Nesse ano, o relatório sobre democracia, direitos humanos e trabalho do Departamento de Estado dos Estados Unidos registrava a "erosão de liberdade de imprensa" naquele país. O presidente hondurenho havia decretado que as emissoras de rádio e TV do país transmitissem, em cadeia nacional, por horas consecutivas, as suas ações de governo, como uma forma de supostamente combater a desinformação disseminada.
Embora tenha procedido de maneira desacertada na sua medição de forças com a imprensa e arriscada no encaminhamento da proposta de convocação da constituinte, nada disso pode ser tomado como justificativas aceitáveis para o golpe de 2009, como deixa clara a solidariedade prestada a Zelaya no episódio. O governo brasileiro com quem ele vinha estreitando laços desde os primeiros momentos de seu mandato, foi um seu especial defensor.
Em setembro de 2009, o presidente Lula chegou fazer um discurso veemente na Assembleia Geral das Nações Unidas denunciando o golpe hondurenho e pedindo a restituição imediata do seu homólogo. Em entrevista ao Jornal Zero Hora, naquele mês, quando indagado sobre o apoio brasileiro, respondeu: "O Brasil é uma grande democracia. [...] A ajuda do presidente Lula é decisiva para conseguirmos reconstruir as instituições democráticas do meu país". A alegação do presidente brasileiro de que a omissão ante o incidente em Honduras poderia fazer proliferar outros golpes na região parece ter surtido efeito.


2.1. O concerto democrático e o repúdio internacional

Assim como o Brasil, outros países não tardaram para se manifestar contra o golpe hondurenho. A reprovação internacional por todos os lados, dos Estados Unidos à Cuba, incluindo as mais importantes organizações internacionais em que Honduras é Estado-membro (ONU e OEA), foi de tal modo consensual, que se pode assinalar que nenhum país reconheceu o governo de interino de Roberto Micheletti. É importante destacar, como Theotonio dos Santos (apud HARNECKER, 2015), que era a primeira vez que os Estados Unidos condenavam um golpe na América Latina.
É evidente que os vários lados que repudiaram os golpe tinham, cada qual, interesses específicos por trás para fazê-lo. Aguilar (2009) sustenta que a solicitação do Departamento de Estado norteamericano à Costa Rica para que o Presidente Sánchez servisse como mediador está claramente relacionada com os interesses da cúpula militar-empresarial dos Estados Unidos no chamado CA-4 (Guatemala, Honduras, Nicaragua y El Salvador). Segundo o autor, da perspectiva norteamericana, o "retorno da democracia significa o retorno de um clima seguro para os negócios com eleições periódicas e sem alterações significativas da estrutura desigual e excludente da política local" (AGUILAR, op. cit., p. 704). A reação dos grupos mais conservadores da Igreja Católica representaria o substrato moral dessa preocupação com a expansão dos negócios na região centroamericana. Como reforço das preocupações desse segmento, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial cessaram os empréstimos financeiros para o país naquela ocasião.
A condenação por parte de países como a Venezuela, Cuba, Nicarágua e demais países da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA), por certo, deveu-se à afronta a um então novo simpatizante da causa do socialismo para o séc. XXI, não obstante alguns dos regimes desses países pudessem ter interesses não necessariamente ideológicos no incidente. O sequestro dos embaixadores de Cuba, Venezuela e Nicarágua pelo governo de facto seria um importante motivo adicional para a rejeição que esses países tiveram. E, além disso, Cunha Filho et alli (2013) ainda fazem alusão à active oil diplomacy do Presidente Chávez, que poderia ter mirado o mercado hondurenho, cujo setor de energia se encontrava fragilizado. Alguns países com governos de esquerda e centro-esquerda fizeram coro às denúncias da ALBA, como a Argentina da Presidente Cristina Kirchner e o Chile da Presidente Bachelet.
As organizações internacionais com interesse no caso registraram críticas convergentes. O Mercosul, então comandado pelo Presidente Fernando Lugo, do Paraguai, e a Comunidade e Mercado Comum do Caribe (CARICOM), além de pedirem ao povo que apoiasse o presidente deposto, condenaram a abdução da Ministra de Relações Exteriores de Honduras Patricia Rodas.
Em todo caso, a forma concertada da rejeição multilateral ao golpe pode ser percebida sobretudo pelas manifestações da Organização dos Estados Americanos e da Organização das Nações Unidas.
A Assembleia Geral da OEA se reuniu em caráter emergencial ainda no dia 28 de junho, ocasião em que aprovou por aclamação uma resolução condenando energicamente o golpe e exigindo o imediato, seguro e incondicional retorno de Zelaya a suas funções constitucionais. No dia 1 de julho, foi dado um ultimato ao novo governo, o qual, tendo sido descumprido, levou à suspensão de Honduras daquele organismo. Apenas em junho de 2011, foi aprovada resolução para o retorno do país à entidade, com 32 votos a favor (o voto da Venezuela foi com ressalvas) e um contra, do Equador.
No caso da ONU, a sua Assembleia Geral, reunida no dia 29 de junho, veio expressar forte indignação com o ocorrido, ressaltando que seria crucial que a comunidade internacional se manifestasse de modo concertado e solidário (stand as one) contra o golpe. As diversas delegações — inclusive a brasileira, através de Maria Luiza Ribeiro Viotti — foram duras e incisivas. Honduras se fez representar pelo diplomata Jorge Arturo Reina Idiáquez, ligado ao Presidente de jure Zelaya, que disse à ocasião que o seu país vivia um "momento trágico, mas tinha certeza de que aquilo seria transitório e que o país sairia fortalecido".
Embora a conclamação pelo retorno imediato de Zelaya tenha sido geral, ele ainda teria que enfrentar algumas adversidades, e a atuação do Brasil em um segundo momento teria se revelado ainda mais contundente e ousada.


2.2. A concessão do asilo diplomático

No dia 21 de setembro de 2009, sob traços ainda surrealistas, Manuel Zelaya regressou a Honduras, escondido, e seguiu para a embaixada brasileira em Tegucigalpa, onde recebeu "abrigo"; e sequer chegou a formalizar pedido de asilo político. Os noticiários à época, consultando especialistas na matéria, anunciavam que se tratava de "caso inédito", sem precedentes".
Note-se que Zelaya já se encontrava no estrangeiro, de onde poderia pedir asilo a qualquer dos países que haviam a ele se solidarizado após o golpe. No entanto, quis retornar ao país e receber a proteção conferida pela imunidade da legação diplomática brasileira, o que era e é incomum, pois, nas situações-padrão, o perseguido político pede asilo provisoriamente na embaixada estrangeira em seu país, para então postular asilo territorial, e poder sair em segurança do Estado que o persegue. No entanto, "a situação atual [de Zelaya] é o contrário", como ressaltou à época José Francisco Rezek.
A situação era insólita e trouxe grande constrangimento e preocupação para o governo de facto de Honduras, que, temendo atentar contra a imunidade da embaixada brasileira de qualquer forma, resignadamente admitiu a presença de Zelaya, o qual, tentava governar como se estivesse no exílio, instigando a população contra o governo interino. Em certo sentido, isso dificultou o regresso do Presidente ao poder, e acabou desviando o foco da constitucionalidade da deposição para o da legalidade do asilo.
Após pouco mais de três meses de impasse, o governo interino chegou a propor a saída segura de Zelaya do país, se ele se comprometesse a pedir formalmente asilo no estrangeiro, mas, como que soubesse que a condição de perseguido político deslegitimaria em alguma medida suas pretensões, disse que sairia do país apenas se fosse como um "convidado ilustre, e não como um asilado".
A despeito das controvérsias levantadas, a posição brasileira se manteve favorável ao abrigo, com a diplomacia brasileira, por meio do chanceler brasileiro Celso Amorim, reputando inaceitáveis as tentativas de intimidação a Zelaya e mostrando-se indiferente às insinuações de violação das regras de direito internacional sobre asilo diplomático.
Sobre a legitimidade da recepção de Zelaya na embaixada brasileira, Leila Bijos destaca que seria de fato situação típica de asilo diplomático, embora não formalizado qualquer pedido antecedente pelo asilado:
Apesar de Zelaya não ter apresentado um pedido formal de asilo político ao Brasil, o fato de ter-se abrigado na embaixada brasileira já caracteriza concessão provisória de asilo. No caso Zelaya afastam-se os elementos configurativos do refúgio. Pois bem, esse caso reúne as condições de asilo diplomático previstas nas convenções latino-americanas, parecendo, neste caso, que o Brasil realmente concedeu um asilo cometido pela prática de crime político, como prevê as disposições internacionais [...]As questões levantadas nessa hipótese são polêmicas, e verifica-se que há lacunas contraditórias na decisão (BIJOS, 2013, p. 25).

O sistema interamericano conta com um tratado sobre a matéria, a saber, a Convenção sobre Asilo Diplomático, de 1954 – ratificada pelo Brasil em 1957 –, que, no seu artigo 1 , define: "O asilo outorgado em legações [...] a pessoas perseguidas por motivos ou delitos políticos, será respeitado pelo Estado territorial [...]. Para os fins desta Convenção, legação é a sede de toda missão diplomática ordinárias [...]".
Pode-se dizer que Zelaya tinha o direito de pedir asilo político na embaixada brasileira, nos termos da Convenção citada, e ao Estado brasileiro caberia o juízo discricionário de concedê-la. Quanto a isso não havia dúvidas. E se poderia mesmo considerar que, a despeito da ausência de pedido formal, teria havido a concessão de fato do asilo diplomático ao presidente deposto no momento em que a embaixada permitiu a sua entrada e permanência.
Porém, aqueles que enxergaram excessos que poderiam constituir ilícitos internacionais contestavam o desvirtuamento do instituto do asilo diplomático à medida que Zelaya passou a dar entrevistas a partir da embaixada, usando-a como palanque para insuflar o povo hondurenho. Na condição de asilado, seria a ele vedado tentar interferir nos negócios políticos do país ou mesmo fazer política na legação diplomática brasileira.
Em todo caso, as medidas de represália por parte do governo de facto de cortar o fornecimento de energia elétrica, telefone e água ao prédio da embaixada também podem ser consideradas como violações ao direito internacional diplomático.
Para Rezek, o caso criava um "contencioso com Honduras que não precisava ter acontecido" colocava sobre os "ombros do Brasil um fardo que teria de ser sustentado pela OEA (Organização dos Estados Americanos) no seu conjunto". O encaminhamento do contencioso à via jurisdicional internacional chegou a ser feito pelo Estado Hondurenho em 2009, através de seu representante na Corte Internacional de Justiça. Porém, em maio de 2010, a queixa foi retirada da lista de casos do Tribunal da Haia, por solicitação de Honduras.
Em outubro de 2009, após a convocação de eleições presidenciais, com vistas à resolução de crise, saiu vitorioso com ampla margem Porfirio Lobo Sosa, do Partido Nacional. As eleições foram consideradas transparentes por muitos observadores internacionais. O governo dos Estados Unidos, assim como a OEA, reconheceu o candidato eleito e consideraram superada a ruptura à democracia hondurenha. O Brasil, de sua parte, seguiu firme na defesa de Zelaya e se recusou a reconhecer a eleição de Lobo Sosa como legítima, fato que alguns consideraram uma manifestação de independência e coerência da política externa brasileira (GARCIA, 2011).
Durante o mandato do novo presidente, este celebrou com Zelaya um Acuerdo para la reconciliación nacional y la consolidación del sistema democrático en la República de Honduras, que contou com a mediação da Colômbia e da Venezuela. Esse acordo foi possível após a câmara de apelação da Corte Suprema de Honduras anular as condenações todas contra Zelaya, o qual teve seus direitos políticos restituídos e pode regressar ao país.


3. Considerações finais

Do surreal caso do golpe militar de Honduras e alguns de seus desdobramentos, conforme visto, podem ser extraídas algumas conclusões sobre a interpretação jurídica partilhada pela comunidade internacional sobre os conceitos de golpe e de asilo diplomático.
Sobre a noção de golpe (incluindo o golpe militar, como no caso hondurenho), tratar-se-ia uma ruptura na ordem política democrática que se configuraria, sobretudo:
a) pela alteração da ordem constitucional a afetar gravemente o regime democrático do Estado (nos termos, v.g., do art. 20 da Carta Democrática da OEA);
b) pela ausência de respostas institucionais adequadas pelo governo de facto, revelando infrutíferas as tentativas de gestão diplomática da situação de ruptura democrática (nos termos, v.g., do art. 20 da Carta Democrática da OEA);
c) pela ausência de esforços sinceros de adotar meios pacíficos de soluções de controvérsias, em especial aqueles referidos no art. 33 da Carta da ONU, para definir as demandas legítimas dos governos de fato e de jure; e
d) o aumento descontrolado de violações de direitos humanos, em especial os de natureza civil e política, no período imediatamente subsequente à ruptura democrática, tolerados ou promovidos pelo governo de facto.
Não há dúvidas de que houve um golpe em Honduras, e, à vista dos elementos configuradores listados, talvez seja possível caracterizar como golpe outros eventos recentes na América Latina.
Em relação ao asilo territorial, tomado o inusitado caso Zelaya, pode-se afirmar que significaria, ao Estado:
a) o uso discricionário do direito de conferir proteção a um perseguido político em repartição de sua legação diplomática devidamente acreditada, sendo dispensável o pedido formal de asilo por parte do sujeito perseguido (hipótese de concessão de fato do asilo), nos termos, v.g., da Convenção Interamericana sobre Asilo Diplomático;
b) o dever de fazer respeitar em sua legação diplomática as regras constantes da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, inclusive a vedação de interferencia nos assuntos politicos do Estado acreditado; e
c) o direito de exigir do Estado acreditado a não adoção de ações e medidas obstaculizadoras à concessão do asilo diplomático, buscando sempre formas de solução pacífica para a solução de controvérsias decorrentes do exercício do direito de concessão de asilo.




Bibliografia

AGUILAR, Carlos G. ¿Cómo y por qué del Golpe de Estado en Honduras? La sinopsis de un proceso de pacificación y democratización fallido en la región. Revista Realidad 121, 2009, pp. 699-708.

BIJOS, Leila. O direito internacional e o refúgio político. Revista CEJ, Brasília, Ano XVII, n. 61, p. 17-26, set./dez. 2013, pp. 17-26.

CARDOSO, Sílvia Alvarez. Golpe de Estado no século XXI: o caso de Honduras (2009) e a recomposição hegemônica neoliberal. 2016. 128 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) — Universidade de Brasília, Brasília, 2016.

CUNHA FILHO, Clayton Mendonça; COELHO, André Luis; PÉREZ FLORES, Fidel Irving. A right-to-left policy switch? An analysis of the Honduran case under Manuel Zelaya. International Political Science Review. Sage Publications. Publicado online 4 fev. 2013.

ERICE, Francisco. Guerras de la memoria y fantasmas del pasado. Usos y abusos de la memoria colectiva. Oviedo, Eikasia, 2010.

GARCIA, Raphael Tsavkko. A política externa independente brasileira: de Lula/Celso Amorim a Dilma Rousseff/Antônio Patriota e um breve resumo histórico. Proceedings of the 3rd ENABRI 2011 3° Encontro Nacional ABRI 2011, São Paulo (SP, Brazil), 2011.

HARNECKER, Marta. A world to build: new paths toward twenty-first century socialism. Translated by Fred Fuentes. New York : Monthly Review Press, 2015.

LYNCH, David A. Trade and globalization: An introduction to Regional Trade Agreements. Estover Road, Plymouth, Rowman & Littlefield Publishers, 2010.

PETRAS, James F.; VELTMEYER, Henry. Beyond Neoliberalism: A World to win. Farnham, England: Ashgate Publishing Limited, 2011.

SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Édson; TELES, Janaína de Almeida (orgs.). Desarquivando a ditadura: memória e justiça no Brasil, vol. 1 e 2. São Paulo: Editora Hucitec, 2009.


Professor Adjunto do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima. Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ovelário Tames (NEPOT).
Carlos G. Aguilar (2009, p. 704) fala em "expulsão ilegal" e esta talvez seja a melhor denominação. Em verdade, há dificuldades para se caracterizar o insólito caso em quaisquer daquelas hipóteses de retirada compulsória. Em todo caso, a Corte Suprema de Justicia de Honduras e a Organização dos Estados Americanos, à ocasião, referiram-se à deportação.
A sua eleição, no entanto, foi bastante concorrida. A população de Honduras é estimada em cerca de 7.810.848 habitantes. No pleito eleitoral de 2005, embora compulsória a votação dos cidadãos, Zelaya obteve 999.006 votos, e o segundo colocado, Porfirio Lobo Sosa, do Partido Nacional, 925.243 votos. Os dados podem ser obtidos no sítio do Tribunal Supremo Electoral: .
Cf. testemunho de uma das filhas de Zelaya dado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e parcialmente transcrito em: .
Corte Suprema de Justicia. 2009. Comunicado Especial. Junho. Disponível em: .
Motivo usado para depor Zelaya em 2009, reeleição é aprovada pela Justiça em Honduras. Opera Mundi. América Latina. 24/04/2015. Disponível em: .

Disponível em: .
Por evidente, há outras circunstâncias que poderiam ser consideradas, como a proposta feita por Zelaya aos Estados Unidos para que legalizassem as drogas e com isso aliviassem a atuação do crime organizado na América Central, ou o próprio modo conciliador com que tentou aplacar a tensão social provocada pelo fortalecimento de gangues como a Mara Salvatrucha e a 18th Street, que ocasionaram o aumento vertiginoso da violência em Honduras e países vizinhos.
Cf. em: .
Conforme David A. Lynch: "Honduras juntou-se à ALBA em 2008, sob a Presidência de Manuel Zelaya, mas ele foi derrubado em junho de 2009 após uma tentativa de estender seu governo para um segundo mandato, e também por infringir a Constituição hondurenha. Os defensores do golpe colocaram Robert Micheletti como presidente interino, e Honduras foi retirada da ALBA enquanto esteve empossado" (2010, p. 101) (tradução livre).
Essa Resolução pode ser acessada em:
O resumo da Ata da Assembleia Geral pode ser acessado em: .
Neste caso, a expressão "surreal" chegou a ser usada pelo jornal The Guardian. Cf. Manuel Zelaya refuses to leave Honduras as asylum seeker. theguardian. Disponível em: . Acesso em: 20 jul 2016.
Adiante se discutirá se foi caso de asilo provisório ou mero "abrigo" indiferente às regras de direito internacional.
Para juristas, situação de Zelaya é caso inédito. Estadão. Geral. Disponível em: . Acesso em: 20 jul 2016.
Abrigo a Zelaya é situação sem precedentes, diz jurista. BBC Brasil. Notícias. Disponível em: . Acesso em: 20 jul 2016.
Nos termos do artigo 41, 1, da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1965): "Sem prejuízo de seus privilégios e imunidade tôdas as pessoas que gozem dêsses privilégios e imunidades deverão respeitar as leis e os regulamentos do Estado acreditado. Têm também o dever de não se imiscuir nos assuntos internos do referido Estado".
Ver referência na nota 16.



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