A atualidade das teses de Celso Furtado sobre a relação entre distribuição de renda e crescimento econômico

May 24, 2017 | Autor: Emmanuel Nakamura | Categoria: Historia Economica, Distribuição de Renda, História do pensamento econômico
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EMMANUEL ZENRYO CHAVES NAKAMURA

A ATUALIDADE DAS TESES DE CELSO FURTADO SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A DISTRIBUIÇÃO DE RENDA E CRESCIMENTO ECONÔMICO

Relatório Final de Iniciação Científica Orientadora: Doutora Rosa Maria Marques (Departamento de Economia, PUC-SP)

Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária PUC-SP Agosto de 2004

Agradecimentos Agradeço, em primeiro lugar, à minha orientadora, Rosa Maria Marques, por toda a sua atenção e paciência. Sou extremamente grato à professora Maria Aparecida Rago, quem primeiro me incentivou a realizar a pesquisa, ainda em seu saudoso curso de Formação Econômica do Brasil I. O trabalho não poderia ter sido feito sem o maravilhoso curso da professora Rosa Maria Vieira sobre o pensamento de Celso Furtado, a ela sou muito grato por toda a atenção. Os ensinamentos dos professores Vito Letízia e Rubens Sawaya foram essenciais para a realização da pesquisa, a eles também os meus sinceros agradecimentos. Sou especialmente grato aos meus queridos amigos, fonte de estímulo em todo momento. Finalmente, agradeço à minha família, pelo afeto e compreensão.

Índice Introdução................................................................................................................

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Capítulo 1: A Teoria do Subdesenvolvimento: a genialidade aprisionadora........... 1.1 – A afirmação da ideologia desenvolvimentista: o movimento das idéias......... 1.2 – Influências no pensamento do autor................................................................. 1.2.1 – Marx e a história........................................................................................... 1.2.2 – O “tipo ideal” weberiano.............................................................................. 1.2.3 – A leitura particular de Keynes...................................................................... 1.2.4 – Planejamento: o movimento da história determinado pela ação racional do Estado........................................................................................................................ 1.2.5 – A importância de Prebisch e a Cepal na construção teórica de Furtado....... 1.3 – A obra em si: o método estruturalista e a reinterpretação dos “impasses” de nossa economia......................................................................................................... 1.4 – As fragilidades de Desenvolvimento e Subdesenvolvimento............................

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Capítulo 2: A “questão distributiva”: o “milagre” econômico e o debate em torno dos “modelos” de crescimento.................................................................................. 2.1 - Um breve panorama histórico........................................................................... 2.2 – Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina ou “o desenvolvimentismo e seu espelho: o estagnacionismo............................................................. 2.3 – Além da estagnação: as “debilidades” da teoria estagnacionista e o “milagre perverso”................................................................................................................... 2.3.1 – Categorias de análise e consistência interna................................................. 2.3.2 – Poder de explicação da realidade: “agonia e êxtase”.................................... 2.4 – Expansão pós-1964: concentração de renda, realização da acumulação e progressão da contradição......................................................................................... 2.5 – A resposta de Furtado: a análise do “modelo” brasileiro e o mito do desenvolvimento econômico.............................................................................................. 2.6 – Dinamismo excludente e crise: movimento de contradições ou acaso?.......... Capítulo 3: O movimento de contradições após o ciclo expansivo e as novas preocupações de Furtado................................................................................................ 3.1 – Ajuste post festum, inflação e estabilização: a “década perdida” e os impasses do real.................................................................................................................. 3.2 – As preocupações mais recentes de Celso Furtado......................................... 3.2.1 – A alta propensão a consumir e a “crise da dívida”: a negação do poder de “autotransformação”................................................................................................. 3.2.2 – A “questão regional” e o lugar do Nordeste................................................. 3.2.3 – Da modernização dependente ao desenvolvimento: o papel da cultura....... 3.2.4 – Globalização e Estado-nação: a construção interrompida............................ 3.3 – Do dinamismo excludente à exclusão parasitária............................................

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Conclusão.................................................................................................................

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Bibliografia..............................................................................................................

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Introdução Uma das características da economia brasileira, em toda a sua trajetória, é a sua concentração de renda. Esse problema está sempre presente nos trabalhos de Celso Furtado, embora, a preocupação com a relação entre a distribuição de renda e crescimento econômico corresponda a um determinado período de sua extensa obra. Furtado, quando emerge nos anos 1950 a grande inovação que traz para o pensamento social brasileiro é a sua Teoria do Subdesenvolvimento e o seu método, conhecido como histórico-estrutural. Esta sua contribuição foi central para a divulgação do “desenvolvimentismo”, corrente do pensamento econômico que se contrapunha aos chamados “neoliberais” e teve seu auge no governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), defendiam a industrialização planejada pelo Estado como forma de superar o atraso do país. Nesse sentido, a sua obra mais importante, no período, é Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961), que reúne artigos redigidos nos anos 1950 em que apresenta a sua perspectiva teórica. Em geral, o seu trabalho intelectual até a década de 1964 tinha o objetivo de consolidar entre os “desenvolvimentistas nacionalistas brasileiros” um entendimento minimamente homogêneo sobre os impasses que apresentavam os países subdesenvolvidos. Para a análise da “questão distributiva” uma contribuição já presente na obra de 1961 é o enfoque estruturalista que concede à relação entre a reprodução do padrão tecnológico do “centro” na “periferia” do sistema capitalista, resultando numa baixa taxa de ocupação da mão-de-obra e impedindo a superação da “dualidade” que marca esses países, o “atrasado” pré-capitalista que convive com o “moderno” capitalista. Esse “dualismo” foi fortemente criticado por Francisco de Oliveira em sua obra Crítica à razão dualista (1972). Para ele, Furtado criou apenas uma oposição formal entre o “atrasado” e o “moderno”, quando a realidade mostrava uma interação dialética que nutria a expansão capitalista, havia uma “funcionalidade” no “dualismo”. O golpe de 1964 marcou uma mudança importante na vida de Celso Furtado. Anteriormente, o seu trabalho intelectual convivia com as suas atividades de administração e política. Agora, Furtado era acadêmico, o seu trabalho não estava mais voltado para propostas de ação, mas para interpretação. A obra Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina (1966) mostra essa mudança e inaugura o debate sobre distribuição de renda e crescimento econômico. A queda do ritmo de crescimento da economia entre 1962-1967 levou Furtado a achar que a “espontaneidade” de nosso processo de

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industrialização por substituição de importações levava o país a uma “estagnação estrutural”. A concentração de renda provocava o estreitamento dos mercados e criava uma crise de realização das mercadorias. O período posterior de crescimento econômico, conhecido como “milagre” econômico (1968-1973), mostrou que a sua tese não condizia com a realidade do momento, suscitando as críticas de Maria da Conceição Tavares e José Serra, em Além da estagnação (1971), e, posteriormente, de Francisco de Oliveira, na sua obra de 1972. Para eles, a concentração de renda no país, longe de levar à estagnação, era fator de dinamismo, era o mecanismo que possibilitava a produção e realização de “artigos de luxo”, carro-chefe da economia desde a segunda metade da década de 1950. A resposta de Furtado veio com a Análise do “modelo” brasileiro (1972) e O mito do desenvolvimento econômico (1974). A idéia básica era que no lugar de prover maior demanda por bens finais via transmissão de ganhos de produtividade para os salários da massa da população, essa ampliação da demanda se fez através de políticas que concentravam a renda a favor das classes médias/altas, incorporando-as à camada de consumidores de “bens duráveis”. O “modelo” brasileiro consistia em trocar a “difusão” das formas de consumo pela “diversificação”. A “crise da dívida” e a queda no nível de crescimento da economia, a partir dos anos 1980, determinou o fim do debate. O movimento real trazia novas discussões ligadas a dívida, o ajustamento e a estabilização. Furtado interpretou esse momento na obra O Brasil pós-“milagre” (1981). A razão para a crise estava, principalmente, no desperdício de poupança, que financiou o consumo de “bens duráveis” e agora era destinada ao pagamento dos juros da dívida externa. Ao longo da história, as diversas formas de “esterilização” da poupança impediam a formação de um poder de “autotransformação”. A cultura foi outro tema importante nessa década. A obra Cultura e desenvolvimento em época de crise é de 1984, nela a uniformização mundial dos padrões de consumo representava um risco para a identidade nacional. A questão que se impunha era se teríamos um papel ativo, contribuindo para o enriquecimento cultural da humanidade, ou se seríamos simples consumidores de “bens culturais adquiridos no mercado”. Nos trabalhos da década de 1990 e nos mais atuais, a globalização tornou-se o seu tema principal, trata-se de rejeitar o pensamento único que a coloca como algo inevitável e mostrar a quem ela beneficia: as empresas que estão na vanguarda tecnológica e exploram os desníveis de desenvolvimento entre os países. Isto resulta no enfraquecimento do Estado-nação e nos países subdesenvolvidos na interrupção da construção de

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um sistema econômico nacional. Essa preocupação apareceu nas obras: Brasil: a construção interrompida (1992), O capitalismo global (1998), O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil (1999) e Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea (2002). O presente trabalho está dividido em três capítulos. Abrimos cada um deles com uma apresentação histórica, mas sem nenhum intuito de defender novas proposições, apenas com a finalidade de caracterizar o contexto em que se deu o movimento das idéias. No capítulo 1, o objetivo é mostrar as principais influências teóricas de Celso Furtado, a sua Teoria do Subdesenvolvimento e as fragilidades desta, apontadas por Oliveira (2003a) e Vieira (2003). No capítulo 2 apresentamos o debate sobre a “questão distributiva” e um balanço crítico sobre os autores, apoiado nos trabalhos de Oliveira (1989) e Davidoff Cruz (1999). No capítulo 3 descrevemos, brevemente, as novas preocupações de Furtado, após a crise da dívida, e o seu projeto para o desenvolvimento capitalista do Nordeste. Apesar desse tema se referir às década de 1950 e 1960, ele é revisitado em suas obras mais atuais. Utilizamos como suporte os trabalhos de Cano (2001), Bacelar (2001) e Vieira (2003). Terminamos o capítulo apontando as reais contradições sociais, determinadas pela atual dominância financeira.

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Capítulo 1 A Teoria do Subdesenvolvimento: a genialidade aprisionadora 1.1 – A afirmação da ideologia desenvolvimentista: o movimento das idéias O Estado brasileiro teve, a partir da década de 1930, com Getúlio Vargas no poder, grande responsabilidade na determinação dos rumos tomados pela nossa economia, assegurando o predomínio da produção urbano-industrial. O Estado regulamentou as relações capital-trabalho, através da criação da legislação trabalhista, investiu em infraestrutura, atuou diretamente no processo produtivo e facilitou para as indústrias a importação de bens de capital, transferindo os recursos gerados pelas exportações do setor cafeeiro, por meio dos diferenciais de taxa de câmbio. (Oliveira, 2003a; Vieira, 2003) Em sintonia com os novos tempos, a década de 1930 marca o surgimento daqueles que Antonio Candido chamou de “demiurgos do Brasil”, trata-se de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Gilberto Freyre foi “o primeiro a aparecer com uma obra radicalmente inovadora e ousada em método, em construção teórica, e a revelar as „intimidades‟ de uma parte importante da dominação no Brasil colonial”, tendo a “economia patriarcal” como eixo da investigação. Caio Prado Júnior inaugurava os estudos orientados por uma perspectiva marxista, destacando o movimento de formação da sociedade brasileira como resultado da expansão do capital mercantil. Sérgio Buarque de Holanda oferecia uma alternativa à opção culturalista de Gilberto Freyre e ao marxismo de Caio Prado através do uso dos “tipos ideais”, propondo a “descordialização” do Brasil, ou seja, uma proposição de espaço público na linha weberiana. (Oliveira, 2003b; Vieira, 2003) Apesar das inovações desses intelectuais, os seus generosos frutos demoraram “um bom tempo para amadurecerem e se reproduzirem no pensamento social brasileiro”. O cenário intelectual da década de 1930 foi ocupado pelos herdeiros da “geração de 1887”, os teóricos da “modernização conservadora”, entre os quais destacavam-se Oliveira Vianna e Alberto Torres. A preocupação era postular a viabilidade do Brasil como uma nação civilizada, “partidários do Estado forte e adeptos da teoria das elites1”, “de-

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A teoria das elites “tinha como argumento central a idéia de que em qualquer sociedade, de qualquer tempo, existia uma elite que por competência, talento natural e recurso se destacava e controlava o poder, dirigindo a maioria.” Era uma reação às idéias democráticas e socialistas, acreditavam que estas eram um mito que legitimava o poder de uma minoria, sendo eles, os teóricos do elitismo, os pensadores realistas. (Vieira, 2003, p. 99)

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ram sustentação ideológica ao Estado e às reformas político-econômicas do pós-30.” (Vieira, 2003, p. 95) Contudo, as transformações geradas pelo processo de industrialização impuseram mudanças na pauta de discussão do pensamento social brasileiro, o “viés racial” ou sociológico deu lugar à ciência econômica como forma de intelecção da realidade. O movimento real trazia novas preocupações como a forma de objetivação do capitalismo em nosso país, as “particularidades” do subdesenvolvimento, o lugar dos capitais externo e da indústria e o nosso papel na divisão internacional do trabalho. (Vieira, 2003) O debate circunscrito à economia ganhou relevo com duas correntes: os “neoliberais” e os “desenvolvimentistas2”. Unia os neoliberais a crença na livre movimentação das forças de mercado como forma de atingir a eficiência econômica, defendiam, portanto, uma menor participação do Estado, a adoção de políticas econômicas que privilegiassem o equilíbrio monetário e financeiro, e a não proposição de medidas de suporte à industrialização, sendo freqüentemente contrários a estas medidas. Eugênio Gudin3 foi o principal líder teórico dessa corrente do pensamento. Em contraposição, Roberto Simonsen foi, inicialmente, o grande ideólogo do desenvolvimentismo, herdando Celso Furtado, mais tarde, essa posição. Unia os desenvolvimentistas, de maneira geral4, a defesa da industrialização, como forma de superar o nosso atraso, orientada pelo planejamento racional do Estado. (Bielschowsky, 2000, p. 33-89) A ideologia desenvolvimentista se tornou dominante nos anos 1950, mais especificamente com Juscelino Kubitschek no poder (1956-1961), quando incorpora-se à retórica oficial do governo. Já na campanha presidencial, anunciava que seu governo faria 50 anos em 5. O Plano de Metas propunha uma rápida industrialização como forma de superar o subdesenvolvimento e ficou conhecido como o “maior instrumento de planejamento da história desse país”. (Ibid., p. 401) 2

A expressão “desenvolvimentista” é um pouco enganosa pois leva a crer que os seus adversários não eram a favor do desenvolvimento capitalista. Sem dúvida, os chamados “neoliberais” podiam ser considerados conservadores no sentido de acreditarem na Lei das Vantagens Comparativas de David Ricardo e defenderem o setor agro-exportador, o que conflitava com o desenvolvimento industrial, mas isto não significa que eram contrários ao desenvolvimento capitalista em geral. 3 Pode-se dizer que Gudin é também “monetarista” se ignorarmos a concepção tradicional – “que considera que a inflação sempre é causada por expansão monetária, associada ou não a excesso de demanda, isto é, mesmo em conjunturas de amplo desemprego” – e tomarmos uma segunda: “monetarista é o economista que acredita ser sempre possível desenvolver sem inflação e que sempre ignora os efeitos perversos das políticas estabilizadoras sobre o desenvolvimento.” (Bielschowsky, 2000, p. 71) 3 Bielschowsky divide o pensamento desenvolvimentista em três correntes: desenvolvimentistas do setor privado, do setor público “não-nacionalistas”, e os nacionalistas. Cada corrente com as suas especificidades, mas unidas pela definição que apresentamos acima. (Bielschowsky, 2000, p. 34)

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Nesse contexto, ganhavam espaço as proposições de Celso Furtado. O seu trabalho intelectual, até 1964, tinha o propósito básico de “consolidar, entre os desenvolvimentistas nacionais brasileiros, um entendimento minimamente homogêneo da problemática do subdesenvolvimento do país, equipando-os com arma teórica para combater as análises e propostas das correntes adversárias.” (Ibid., p. 133) A obra Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961) reúne textos escritos ao longo da década de 1950 e é considerada a mais importante afirmação da ideologia desenvolvimentista entre os pensadores nacionais, nela Furtado expõe o seu método, o estruturalismo-histórico, e sistematiza a Teoria do Subdesenvolvimento, as características de nossa industrialização enquanto processo histórico autônomo, espontâneo e problemático. A partir dessa constatação, é possível também encontrar na obra as primeiras defesas por reformas, que entre 1961 e 1964 – com a intensificação das contradições sociais, o acentuado declínio nas taxas de crescimento e as dificuldades monetária, financeiras e cambiais – foi tema central entre os desenvolvimentistas. O pensamento de Furtado conforma uma riqueza e variedade de influências. Na construção da teoria do subdesenvolvimento há uma brilhante junção entre teoria e história, o autor toma de Marx alguns aspectos sobre a sua visão da história, chega a aceitar a luta de classes no “centro”, mas procura readaptar as forças que geram o “desenvolvimento” na “periferia”. É patente também a importância de Weber e os “tipos ideais”, Keynes e o seu instrumental macroeconômico, Prebisch e a relação centro-periferia, e Mannheim e o papel da intelligentsia. Até 1964, Furtado foi, acima de tudo, um intelectual preocupado em intervir nos movimentos da história, cumprindo o papel que caberia à intelligentsia, na sua teoria. Entre 1954 e 1955, chefiou o Grupo Misto Cepal-BNDE, onde elaborou um programa de desenvolvimento que serviu de apoio para o Plano de Metas. Após sair da Cepal, local onde trabalhou de 1949 a 1958, assumiu uma das diretorias do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico), dedicada ao Nordeste. Entre 1959 e 1964 ocupou a direção do Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (Codeno), que, em 1960, deu origem à Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). A direção da Superintendência foi deixada somente entre 1962 e 1963, período em que foi Ministro Extraordinário do Planejamento, elaborando o Plano Trienal do governo João Goulart. (Vieira, 2003, p. 95) As obras desse período, em que o Furtado intelectual confunde-se com o administrador público e político, revelam outras influência, além das “convencionais” cepa-

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linas e keynesianas. Com a intensificação dos conflitos sociais, após o fim do governo Kubitschek, transparece as suas concepções ideológicas e as influencias herdadas da tradição do pensamento brasileiro sobre a “questão nacional”. (Vieira, 2003) O capítulo está dividido em três partes: na primeira, anotamos algumas de suas principais influências; na segunda, fizemos uma breve síntese das particularidades obra Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, na tentativa de mostrar que as preocupações sobre a “questão distributiva” dos anos 1970 ainda não estão colocadas; e na terceira, procuramos evidenciar algumas fragilidades da Teoria do Subdesenvolvimento, demonstrando como o método de análise “cepalino/furtadiano” ao mesmo tempo em que traz inovações, denunciando as nossas misérias, oculta as contradições sociais entre classes na periferia. 1.2 – Influências no pensamento do autor 1.2.1 – Marx e a história Celso Furtado, quando emerge nos anos 1950, a grande inovação que nos traz, além de sua teorização sobre o subdesenvolvimento, é o seu método, conhecido como histórico-estrutural, “adequado para explicar a formação dessas economias e sociedades no sistema capitalista” (Oliveira, 2003b, p. 12). Furtado faz brilhantemente a junção entre teoria e história, de modo que “não há uma teoria que se aplique à história, nem o contrário, uma história que seja explicada pela teoria: o andamento se faz tecendo os fios de uma construção auto-estruturante, em que a história é teoria e a teoria é história.” (Ibid., p. 84). Aqui surge a importância de Marx: “A influência de Karl Marx, o fundador do marxismo, é patente em Celso Furtado (...). A junção não-justaposta, não-mecânica, não-simplista entre a teoria e a história é a mais importante contribuição silenciosa5 de Marx na obra de Furtado.” (Ibid., p. 84) Ao afirmar Marx em seu método, Furtado nega a história enquanto “coleção de fatos sem vida” (Marx & Engels, s/d, p. 26), nega, também, o aistoricismo da economia neoclássica. A história, desse modo, ganha vida, movimento:

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Quando Francisco de Oliveira usa a palavra “silenciosa” se refere a ausência de citações sobre Marx na obra Formação econômica do Brasil (1959). Mais adiante, veremos que Furtado assume essa dívida. Alguns autores procuraram estudar algumas influências não citadas por Furtado, José Márcio Rego dedicou-se à investigação sobre o “silêncio” de Furtado com relação a obra de Caio Prado Júnior. (Rego, 2001, p. 185-187; Vieira, 2003, p. 18-19)

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“(...) por mais que tenhamos avançado na construção de modelos, cabe reconhecer que sempre partimos para a sua construção de algumas hipóteses intuitivas sobre o comportamento do processo histórico como um todo. E a mais geral destas hipóteses é a que nos proporciona a dialética, pela qual o histórico é aquilo que necessariamente se encontra em desenvolvimento. A idéia do desenvolvimento surge como uma hipótese ordenadora do processo histórico – como „síntese de várias determinações, unidade da multiplicidade‟, na expressão de Marx – a partir da qual é possível realizar um esforço eficaz de identificação de relações entre fatores e de seleção desses fatores com vistas à reconstrução desse processo através de um modelo analítico.” (Furtado, 1964, p. 22, grifos meus) Mas as semelhanças com Marx, na sua concepção da história, param por aqui. Enquanto para Marx é a luta de classes a força determinante do movimento geral da história da humanidade, para Furtado isto só ocorre com as contradições trazidas pelo capitalismo industrial, “este sim, teria dado origem a uma sociedade marcada por instabilidades internas muito maiores do que as organizações sociais que o antecederam. Para ele, a concentração das massas trabalhadoras transformou as lutas de classes em componente central, dinamizador da sociedade capitalista” (Vieira, 2003, p. 158). Nas sua palavras: “pela primeira vez o principal elemento motor no processo histórico deixa de ser os conflitos entre facções da classe dominante, pertencentes a um mesmo grupo político ou agrupamentos diversos, para ser os conflitos engendrados pela própria organização social.” (Furtado, in Vieira, 2003, p. 158) A sua visão sobre a luta de classes é cheia de “particularidades”. No capitalismo central, “a analise de suas concepções revela uma certa inspiração schumpeteriana pois, nos moldes da teoria do desenvolvimento econômico de Schumpeter, Furtado relaciona o processo histórico de desenvolvimento econômico às inovações tecnologias e às mudanças culturais daí decorrentes, responsabilizando-as pelos conflitos sociais.” (Vieira, 2003, p. 159). A concorrência capitalista trazia inovações tecnológicas, reduções de custos e prejuízos à classe trabalhadora, apresentados sob a forma de compressão salarial ou desemprego: “se bem a concorrência seja entre produtores, os efeitos últimos se traduzem em conflitos entre proprietários de bens de produção e assalariados. Tomando consciência de que os objetivos que buscam se excluem, pois se trata de uma divisão do produto, os dois grupos tendem a uma articulação crescente, transformando-se em classes que se organizam para uma luta que, nas sociedades capitalistas, assume significação decisiva no processo social”. (Furtado, in Vieira, 2003, p. 159)

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A inovação técnica trazia aumento na produção gerando um excedente. Caso este “fosse totalmente absorvido pelo consumo, melhorariam [apenas] momentaneamente as condições de vida da população, sem que nenhuma alteração sofresse a capacidade produtiva.” Dessa forma, “a apropriação do excedente por um grupo reduzido vinha facilitar a acumulação.” (Furtado, 1961, p. 117-118). Furtado está afirmando que “os conflitos de classe que resultam do mecanismo de apropriação do excedente, que por sua vez é responsável pelo aumento da capacidade produtiva, longe de promoverem a estagnação, possibilitam, na realidade, o avanço tecnológico e desenvolvimento econômico.” (Vieira, 2003, p. 159-160) Num segundo momento, à medida que avança o processo de acumulação, absorvendo o excedente de mão-de-obra, a classe trabalhadora aumenta o seu poder de barganha, ameaçando as taxas de lucro dos capitalistas, forçando-os a introduzir “inovações tecnológicas que tendam à redução da demanda por força de trabalho.” (Ibid., p. 160). Apesar do avanço técnico trazer consigo as contradições entre classes, o que chama atenção é que por detrás dessas contradições há uma incrível tendência à harmonia no sistema. Num primeiro momento o avanço da técnica trouxe aumento da capacidade produtiva, mas que se concentrou nas mãos de poucos. Por mais que haja alguma contradição social nisto, foi essa concentração que facilitou a acumulação. A intensificação do processo de acumulação incorporava cada vez mais trabalhador, a técnica estava orientada para isto. No momento em que as taxas de lucro estivessem ameaçadas por esse movimento, pois: “Se a pressão no sentido de elevação dos salários reais não encontrasse barreira de qualquer ordem, seria de esperar que a renda social tendesse a redistribuir-se em favor dos assalariados, o que acarretaria redução na taxa de poupança da coletividade, declínio da taxa de investimento e, por fim, estagnação econômica.” (Furtado, 1966, p. 6) Surge então novamente a técnica, entretanto, com uma outra orientação, poupadora de mão-de-obra. Nesse novo sentido do movimento da história, dada por essa orientação tecnológica, as contradições sociais não tenderiam a se intensificar, pois a sociedade industrial moderna, sendo marcada por intensas instabilidades, foi obrigada a admitir maior participação da classe trabalhadora nas decisões políticas, através de partidos políticos e sindicatos que canalizam os conflitos sociais, evitando processos revolucionários. (Vieira, 2003, p. 160)

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Dessa maneira, Furtado nega que as contradições sociais sejam cada vez mais agudas – pelo menos no centro –, pondo em seu lugar uma espécie de contradiçãoharmonizante: “O ponto fundamental para entender o que se passa no mundo de hoje é o que o desenvolvimento da sociedade moderna, ou, se preferirmos, da sociedade capitalista moderna, foi baseado em uma espécie de dialética de conflito, o que Marx chamou de luta de classes como motor da história. A história do capitalismo é uma história de luta de classes. É aí que geram as forças renovadoras. À primeira vista, uma greve parece algo negativo, mas foram as greves que permitiram às sociedades européias se transformarem e se modernizarem.” (Furtado, 1999, p. 87) Com essa visão otimista, Furtado quando afirma que a apropriação do excedente por uma determinada classe social vinha “facilitar a acumulação”, colocando as contradições capitalistas como um processo libertador, democratizante, que põe crescentemente a “participação da população organizada no controle dos centros de poder.” (Furtado, 2001, p. 22), nega o caráter brutal que é a separação do trabalhador do fruto de seu trabalho: “A alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autônomo em oposição a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força hostil e antagônica. (...) Assim em ambos os sentidos, o trabalhador torna-se escravo do objeto; em primeiro lugar, pelo fato de receber um objeto de trabalho, ou seja, de receber trabalho; depois pelo fato de receber meios de subsistência. Deste modo, o objeto habilita-o para existir, inicialmente como trabalhador, em seguida, como sujeito físico. O ponto culminante de tal servidão é que ele só pode manter-se como sujeito físico na condição de trabalhador e só é trabalhador na condição de sujeito físico.” (Marx, 2002, p. 112-116) Em suas obras mais atuais, com as contradições trazidas pela globalização e o poder das transnacionais, Furtado passa a olhar a história com um olhar menos cândido. Contudo, nos convém, agora, descrever a “particularidade” da periferia, onde as “estruturas subdesenvolvidas constituem caso especial dentro da evolução capitalista.” (Furtado, 1964, p. 77) Primeiramente, o que constitui o subdesenvolvimento? A formação das economias subdesenvolvidas é resultado da expansão da economia industrial européia. O contato com as economias capitalistas tinha se dado através da simples abertura de comércio, ou com o início da produção de matérias-primas e alimentos que atendessem a demanda européia. O resultado, nas regiões “arcaicas”, foi a formação de estruturas híbri-

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das, em que as atividades capitalistas convivem com as pré-capitalistas. No caso do Brasil, o “atrasado”, a agricultura de subsistência de baixo nível técnico, convivia com o “moderno”, a atividade agro-exportadora capitalista. Esse tipo de economia “dualista” caracteriza do subdesenvolvimento. (Furtado, 1961, p. 180) Como resultado da expansão das economias centrais européias, o movimento da história estava dado pela absorção dos ciclos econômicos originários nesse centro. Isto explicava, no Brasil, os ciclos da cana-de-açúcar, do ouro e do café, cujo objetivo era atender às demandas européias. As contradições, nesse sentido, são enfatizadas pelo ângulo das relações externas. Estavam patentes as raízes de nossa dependência e o problema da falta de consciência de nossa classe dirigente. Essas contradições eram mais intensas nos períodos de declínio dos ciclos, responsáveis pela ampliação do “atrasado”, a agricultura arcaica, e pela a atuação do Estado em defesa do setor agroexportador, “socializando as perdas6”. (Vieira, 2003, p. 59-60) Com a crise de 1929 originava-se uma mudança em nosso padrão de acumulação. Aqui, é importante se ater ao fato de como são colocadas as contradição que resultam no “deslocamento do centro dinâmico”, que determina a industrialização e o mercado interno como os “motores do crescimento”. De um lado está o setor cafeeiro passando por uma crise de superprodução sem precedentes, do outro a ausência de financiamento externo para a retenção dos estoques, devido a crise internacional. O Estado, ao queimar os excedentes de café, manteve o nível de renda no setor exportador e indiretamente, via efeito multiplicador, no mercado interno. A contradição-conciliadora da atuação do Estado criava instabilidade na capacidade de importar e estabilidade da renda monetária. A queda nas exportações aumentava a rentabilidade das atividades voltadas para o mercado interno. Estavam abertas as portas para o processo de industrialização. O movimento da nossa história era dado, a partir de então, pelo processo de substituição de importações. As contradições continuavam sendo enfatizadas pelo ângulo das relações externas, pois a nossa industrialização tinha um caráter imitativo, ou seja, copiava-se o processo de industrialização realizado nos países centrais. Em nossa realidade particular, o “dualismo estrutural”, eram encontradas as razões para os de6

Através da “socialização das perdas”, Furtado chama atenção para “uma tendência característica da economia brasileira: a concentração de renda.” Nos períodos de auge dos ciclos os benefícios eram retidos pelos proprietários, dada a oferta abundante de terra e mão-de-obra, nas crises a atuação do Estado, através da taxa de câmbio, corrigindo o desequilíbrio externo, transferia os prejuízos para a massa consumidora. (Vieira, 2003, p. 59-60)

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sequilíbrios que marcam a nossa industrialização problemática: a “tendência estrutural aos desequilíbrios externos da balança de pagamentos e às fortes pressões inflacionárias.” (Vieira, 2003, p. 63) Como então Furtado justifica a nossa ausência de luta de classes, nos moldes doas países centrais? A existência de um amplo setor “atrasado”, dada pela estrutura dual, determina, a baixos níveis, o custo de reprodução da força de trabalho. Além disso, a tecnologia na indústria, sendo importada, orientada para o processo de substituição de importações, é poupadora de mão-de-obra, ignora-se a existência de uma oferta elástica de mão-de-obra, remanescente nesse setor “atrasado”. O investimento é orientado “para a criação de desemprego, não obstante existam grandes massas subempregadas dentro e fora da economia monetária.” (Furtado, 1964, p. 78). As massas trabalhadoras estão em condições desprivilegiadas, são “incapazes de exercer pressão suficiente sobre os capitalistas, e, no limite, impulsionar o desenvolvimento social”. A luta de classes é, portanto, inibida. (Vieira, 2003, p. 161) O desenvolvimento na periferia, segundo Furtado, ocorre pela “absorção de fatores de produção da economia arcaica preexistente”. Essa absorção se dá lentamente, dada a orientação da nossa tecnologia. (Ibid., p. 161). “Explica-se assim, que as atuais estruturas subdesenvolvidas sejam economias pouco dinâmicas, com fortes impulsos à estagnação. As condições que tendem a transformar as massas trabalhadoras num fator de dinamismo só lentamente se configuram (...). A luta para aumentar a participação no produto não é conduzida pelo conjunto das massa trabalhadoras e sim por grupos minoritários”. (Furtado, 1964, p. 78, grifos meus) Convém ainda dizer que esse movimento de trabalhadores do “atrasado” em direção ao “moderno”, caracterizando o desenvolvimento na periferia, cria o operário industrial, mas não se forma uma autêntica consciência de classe, à semelhança dos países centrais, pois a nova condição é entendida como uma ascensão social. As classes dominantes também são incapazes de solucionar as contradições internas, pois não há uma real oposição entre os setores industriais emergentes e a velha estrutura agrária. (Vieira, 2003, p. 162) A partir desse diagnóstico, Furtado defende que a solução deve “vir „de fora‟ dos conhecidos arranjos políticos de classe, de um poder capaz de moldar conscientemente um plano de reforma da sociedade.” Trata-se do Estado, guiado por uma intelligentsia capaz de captar os interesses da sociedade. (Ibid., p. 162)

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Esta ação interventora do Estado, sob a orientação racional dos intelectuais, corresponde a uma espécie de “tomada de consciência”, seria a superação das contradições dadas pelas relações externas, estariam fincadas as bases de um capitalismo nacional autônomo e regulado. Relacionando com Marx, enquanto este coloca a superação do modo capitalista de produção com o homem fazendo a sua própria história, podemos dizer que Furtado, longe de propor qualquer superação do capitalismo, coloca a nação no centro da questão. Enquanto o primeiro afirma que: “O proletário só pode (...) existir à escala da história universal, assim como o comunismo, que é o resultado da sua ação, só pode concretizar-se enquanto existência „histórica universal‟. Existência histórico-universal dos indivíduos, isto é, existência dos indivíduos diretamente ligada à história universal. (Marx & Engels, s/d, p. 43). A contradição entre a força social geral que o capital encarna e o poder privado dos diferentes capitalistas sobre essas condições sociais torna-se cada vez mais aguda (...)” (Marx, 1983, p. 303). Para que ela se transforme num poder „insuportável‟, quer dizer, num poder contra o qual se faça uma revolução, é necessário que tenha dado origem a uma massa de homens totalmente „privada de propriedade‟, que se encontre simultaneamente em contradição com um mundo de riqueza e de cultura com a existência real; ambas as coisas pressupõem um grande aumento da força produtiva, isto é, um estado elevado de desenvolvimento. (...) este desenvolvimento das forças produtivas (que implica já que a existência empírica atual dos homens decorra no âmbito da história mundial e não da vida local) é uma condição prévia absolutamente indispensável, pois, sem ele, apenas se generalizará a penúria e, com a pobreza, recomeçará paralelamente a luta pelo indispensável e cair-se-á fatalmente na imundice anterior.” (Marx & Engels, s/d, p. 42) Furtado, evidentemente contra essa revolução, defende: “(...) que a evolução das classes trabalhadoras se faça no sentido de crescente identificação com as sociedades nacionais a que pertencem, ou melhor, com o projeto de desenvolvimento social que pode ser monitorado a partir do Estado de cujos centros de decisão participam. Não significa isso necessariamente que tendam para um nacionalismo, e sim suas preocupações tenderiam a focalizar-se no plano da ação política sobre o qual terão crescente influência.” (Furtado, 1974, p. 58) 1.2.2 – O “tipo ideal” weberiano Para Francisco de Oliveira, Celso Furtado é um dos maiores discípulos de Max Weber entre os pensadores brasileiros, juntamente com Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. (Oliveira, 2003b, p. 125). O uso do “tipo ideal” como artifício de análise é importante para Furtado, pois é a partir da construção de modelos históricos que encontra as “particularidades” dos países subdesenvolvidos. A comparação entre a

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colônia exitosa de exploração no Brasil e a colônia fracassada de povoamento nos Estados Unidos, na obra Formação econômica do Brasil, é um bom exemplo do uso desse instrumento de análise pelo autor: “Essa comparação é recurso metodológico indispensável para, estabelecendo as similitudes e diferenças, chegar a conhecer a conexão de sentidos de ação social, nos dois casos. É, no fundo, a construção de tipos ideais, na perspectiva teórica elaborada por Max Weber (...)” (Ibid., p. 96) Henri Denis define da seguinte forma o “tipo ideal” e sua importância, para Weber, na compreensão da história: “Para Weber, a „compreensão‟ da história assenta na possibilidade de construir o tipo ideal de uma época histórica determinada ou, se quisermos, o modelo que exprime o que ela contém de verdadeiramente original.” (Denis, 1978, p. 633) Contudo, é importante ressaltar que esse instrumental existe apenas no plano das idéias, como instrumento de análise. Usaremos as palavras do próprio elaborador: “Se quisermos tentar uma definição genérica do conteúdo do conceito, apenas resta a forma do tipo ideal. (...) Trata-se de um quadro de pensamento e „não‟ da realidade histórica, e muito menos da realidade „autêntica‟, e não serve de esquema no qual se pudesse incluir a realidade à maneira „exemplar‟. Tem antes o significado de um conceito limite puramente ideal, em relação ao qual se „mede‟ a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns de seus elementos importantes, e com o qual esta é „comparada‟, (...) a construção de tipos ideais abstratos não interessa como fim, mas única e exclusivamente como „meio‟ do conhecimento.” (Weber, 2003, p. 108-109) Uma crítica interessante é feita por Luckács e, posteriormente, por Mészáros. Para eles “o sistema ideológico completamente subjetivista do sociólogo alemão, de explícito caráter anti-socialista,” (Mészáros, 2002, p. 417) é carregado de problemas. Nas palavras de Luckács: “Como resultado de seu formalismo, subjetivismo e agnosticismo, a sociologia, vista como a filosofia contemporânea, não fez mais que construir tipos específicos, levantar tipologias e arranjar os fenômenos históricos nesta tipologia... Com Max Weber esse problema dos tipos se transforma na questão metodológica central. Weber considera a montagem de „tipos ideais‟ puramente construídos a tarefa central da tarefa da sociologia. Segundo ele, a análise sociológica somente seria possível se se procedesse a partir desses tipos. Mas essa análise não produziu uma linha de desenvolvimento, apenas a justaposição de tipos ideais casuisticamente selecionados e arranjados.” (Luckács, in Mészáros, 2002, p. 417)

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1.2.3 – A leitura particular de Keynes Keynes foi fundamental na formação do pensamento de Celso Furtado. Analisando a obra Formação econômica do Brasil, Francisco de Oliveira nos diz: “(...) sem dúvida, a contribuição mais marcante é a de Keynes, economista inglês que revolucionou a teoria econômica do século XX, com sua obra A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. A história econômica realizada por Furtado é, de certa maneira, uma releitura keynesiana da história brasileira. A teoria de Keynes ajudou Furtado a deslindar, por exemplo, a autonomia do Estado brasileiro para realizar as ações intervencionistas a partir da Revolução de 1930, bem como ampliar o alcance das transformações econômicas do ciclo do café que ajudaram na criação do mercado interno, diferenciando-o dos anteriores ciclos da história econômica nacional: é a teoria keynesiana da demanda como núcleo do processo econômico capitalista que possibilita essa operação interpretativa.” (Oliveira, 2003b, p. 85-86) Furtado já conhecia a obra de Keynes antes mesmo da Cepal, no entanto, a releitura nessa instituição, em contato com Prebisch, fez com que essa influência ganhasse um espaço diferente na conformação de seu pensamento. “A mediação cepalina é, por si, o mais forte indicativo de que a leitura do arsenal keynesiano, realizado por Celso Furtado, será necessariamente muito particular, haja vista o viés da superação do subdesenvolvimento.” (Vieira, 2003, p. 140). Nas palavras do próprio autor: “Não posso dizer que descobri Keynes na Cepal, porque já havia estudado antes. Mas até então, eu via o Keynes da „teoria do ciclo econômico‟, que era sua grande contribuição e levava a política de estabilização. Na Cepal comecei a perceber a importância da visão macroeconômica da História. Trata-se, agora, de olhar a História, vendo o macroeconômico, para entender a lógica do atraso e descobrir os fatores que impediam o crescimento de um país como o Brasil.” (Furtado, in Vieira, 2003, p. 140) Furtado faz, portanto, uma leitura particular de Keynes. Ricardo Bielschowsky o coloca como um “keynesiano atípico”: “Dado o seu entendimento das características das economias subdesenvolvidas – insuficiência de poupança, ao invés de excesso, como nas desenvolvidas – não cabia, em geral, aplicar a macroeconomia keynesiana de natureza anticíclica.” (Bielschowsky, 2000, p. 133). Isto explica a importância que Furtado dá à propensão a poupar, diferentemente de Keynes que fala em propensão a consumir, ou seja, Furtado opõe consumo e investimento, e não poupança e investimento: “O pensamento keynesiano deu grande importância ao fato de que as motivações psicológicas do agente que poupa são distintas daquelas do agente que inverte. Mas, se deslocarmos nossa atenção do problema das flutuações cíclicas no nível de emprego para o problema do crescimento da capacidade produtiva, veremos que também tem importância distin-

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guir entre as motivações psicológicas do agente que inverte e as do que consome.” (Furtado, 1961, p. 104) A forma como Furtado analisa o nosso mercado interno, contudo, é de forte inspiração Keynesiana. O multiplicador está presente na afirmação de que o mercado interno é o “verdadeiro motor do crescimento”, “o elemento essencial de dinamização da produção e da renda.” (Bielschowsky, 2000, p. 135) A defesa do planejamento, também, tem um sentido keynesiano, apesar desse sentido ser apenas “simbólico”. Assim como Keynes, os “estruturalistas” desafiavam a idéia de que o mercado tendesse a um equilíbrio por si só, defendendo a intervenção governamental. Contudo, as semelhanças se esgotam nesse momento, pois “o planejamento, na perspectiva keynesiana, destina-se a reconduzir o sistema econômico à situação de pleno emprego e aí preservá-lo. No estruturalismo, destina-se a coordenar os esforços de industrialização, de forma a reunir condições para superar os obstáculos estruturais que dificultam o desenvolvimento.” (Ibid., p. 135-136). Maria Eugênia Guimarães7 afirma que a atuação do Estado em Keynes é conjuntural, enquanto em Furtado é estrutural. (Vieira, 2003, p. 140). A concepção de Furtado sobre o Estado e sua atuação envolve, evidentemente, outras influências que não somente a keynesiana, é o que veremos a seguir, ou seja, a importância de Furtado enquanto pensador brasileiro, herdeiro da “questão nacional” teorizada primeiramente pelos representantes do pensamento autoritário de direita, que dominou o cenário intelectual nacional até a década de 1930. Veremos também a decisiva influência de Mannheim, livrando Furtado da concepção autoritária de Estado preconizada por esses pensadores. 1.2.4 – Planejamento: o movimento da história determinado pela ação racional do Estado “A história não é senão a sucessão das diferentes gerações, cada uma das quais explora os materiais, os capitais, as forças produtivas que lhe são transmitidas pelas gerações precedentes; assim sendo, cada geração, por um lado, continua o modo de atividade que lhe é transmitido, mas em circunstâncias radicalmente transformadoras, e, por outro lado, ela modifica as antigas circunstâncias entregando-se a uma atividade radicalmente diferente.” (Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã). 7

GUIMARÃES, Maria Eugênia. Celso Furtado: A Utopia da Razão. Um Estudo Sobre o Conceito de Subdesenvolvimento (1945-1964). Tese de Doutorado, Ciências Sociais, FFLCH-USP, 1999.

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“o „velho‟ que ecoa no pensamento de Furtado é, na verdade, imposição de uma realidade histórica, cujas determinações, que antes enredavam os reformadores do passado, ainda mantinhamse vivas no Brasil de capitalismo tardio – agroexportação predominante, estrutura fundiária concentrada, regionalismo, exclusão social, domínio político das oligarquias rurais, insuficiência na acumulação de capitais, burguesia nacional desprovida da „ilusões de progresso‟ e impotente frente às tarefas de construção da hegemonia, submissão do país à dinâmica do capitalismo central – e, nos idos de 60, demandavam as „reformas de base‟. O „velho‟, que insinuava presença no ideário de Furtado, alimentava-se do que já foi chamado de a „miséria brasileira‟.” (Rosa Maria Vieira, Celso Furtado: reforma, política e ideologia) Celso Furtado mais do que um simples keynesiano ou cepalino é um pensador brasileiro, “herdeiro de uma temática persistentemente reiterada pelo pensamento social brasileiro: a questão nacional ou, em outras palavras, os dilemas que envolviam a construção do Brasil como nação moderna.” (Vieira, 2003, p. 84) Ao tratar do Estado como o mecanismo de intervenção racional na história, promovendo o desenvolvimento, Furtado herda um tema existente desde a República Velha. Nesse período, o país assistiu a “uma verdadeira explosão do tema do Estado”. Os teóricos da “modernização conservadora” surgiram na tentativa de dar uma resposta a essa questão, entre os quais “Alberto Torres e Oliveira Vianna podem ser considerados os mais representativos expoentes de toda esta confusa emergência.” O diálogo entre Celso Furtado e esses pensadores seria possível de se estabelecer pelo fato deles possuírem uma “interpretação sobre o Brasil” e de suas reflexões sobre o Estado se apresentarem como a questão primordial. (Oliveira, 2003b, p. 64-68): “Suas posições são perfeitamente comparáveis com as de um autor como Celso Furtado e, em alguns casos, até mais explícitas , como a formação da ordem, ou do Estado, tema sobre o qual Furtado é mais evasivo e que seu leitor é obrigado a investigar no interior da trama que ele tece as conflitos sociais, aí então descobrindo a riqueza de sua construção.” (Ibid., p. 64-65) A ausência de referências a esses pensadores se justificaria pelo “estilo Furtado”, ou seja, “a ausência de qualquer polêmica explícita e a busca constante de procurar manter-se, e aparecer, como estritamente científico.” As novas formas de defesa do planejamento que surgiram a partir de Keynes faziam com que a produção dos pensadores autoritários parecesse não-científica e até anticientífica. (Ibid., p. 65-66) Esse diálogo não poderia se dar com os “novos clássicos”, a geração que surgia na década de 1930. Gilberto Freyre, “o primeiro a aparecer com uma obra radicalmente

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inovadora”, era então “um jovem oficial de uma velha cepa açucarocrática (...) local.” Para Caio Prado Júnior, “a ação do Estado brasileiro propriamente dito é sem maior significação.” Sérgio Buarque de Holanda também não “trata, propriamente, da questão do Estado.” (Ibid., p. 61-62). Além disso, “os generosos frutos intelectuais desses „demiurgos‟ precisarão de um bom tempo para amadurecerem e se reproduzirem amplamente no pensamento social brasileiro. No Brasil, a cena intelectual estará ocupada, ainda, por mais de uma década, pelos herdeiros da „geração de 1870‟, pelos teóricos da „modernização conservadora‟, partidários do Estado forte e adeptos da teoria das elites, que deram sustentação ideológica ao Estado e à reformas político-econômicas do pós30.” (Vieira, 2003, p. 95) Os dois grandes temas da geração, de vocação nacionalista-reformadora, que surgiu em fins do século XIX, eram: o antiliberalismo e o tema das elites. A teoria das elites “tinha como argumento central a idéia de que em qualquer sociedade de qualquer tempo, existia uma elite que, por competência, talento natural e recurso se destacava e controlava o poder, dirigindo a maioria.” Era, na realidade, uma reação às idéias socialistas e democráticas, consideradas como um mito que acabava legitimando o poder de uma minoria, os teóricos do elitismo seriam, assim, os pensadores realistas. (Ibid., p. 99) Oliveira Vianna construiu a sua obra fazendo uma crítica às estruturas políticas e sociais da Republica, eram estas as responsáveis pelo atraso e pela desordem nacional. Tendo como pressuposto uma sociedade civil fraca e incapaz, propõe a organização e atuação do Estado, trazendo a civilização. A modernização é “identificada com a construção da unidade nacional e do poder central forte, capaz de garantir a unidade e o desenvolvimento (...), em seu ideário atraso e desordem estão intimamente associados à democracia e ao liberalismo clássico.” Defendia maior espaço ao Executivo e ao Judiciário em detrimento do Legislativo e a formação de Conselhos Técnicos e Econômicos, afinados coma realidade nacional e capazes de implementar políticas públicas e expressar os interesses coletivos. Nesse sentido, as elites ganham substância no pensamento do autor, prevendo a despolitização das ações do governo como condição ideal de racionalidade (Ibid., p. 102-103): “As formações políticas fundamentais deveriam ficar a cargo dos detentores do saber racional: elites tecnicamente preparadas, capazes de responder às exigências do desenvolvimento de uma nação moderna.” (Ibid., p. 104)

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Alberto Torres – que foi “guru” intelectual de Vianna, segundo Francisco de Oliveira – fez uma “análise da formação da sociedade com base numa antropologia física, da qual deriva uma sociologia pessimista.” Contudo, o seu ponto forte era a análise da organização (Oliveira, 2003b, p. 71): “Sua principal obra, A organização nacional, é toda dedicada, a partir da análise da Constituição, a propostas de reformas constitucionais, comentadas passo a passo, mudando pois de registro da análise para a proposição. No final, ele apresenta sua própria proposta de Constituição, na qual a radical inovação reside na instituição de um Poder Coordenador, que é, de algum modo, uma restauração do famoso Poder Moderador do imperador, nunca escrito em letra constitucional, e um anúncio precoce, ousado e muitas vezes brilhante das funções de planejamento do Estado moderno. (Ibid., p. 71) A defesa do planejamento se generalizou pelo mundo a partir da crise de 1929, “quando os fundamentos do liberalismo submergiam à voracidade da crise. O plano econômico, levado a efeito pelo Estado capitalista, passava a ser visto como um mecanismo indispensável à contenção dos abalos cíclicos no sistema e à manutenção do crescimento econômico.” (Vieira, 2003, p. 135). A fundamentação, no sistema capitalista, para este tipo de atuação do Estado estava em Keynes: “Keynes propunha uma maior intervenção do Estado na economia, seja através de medidas monetaristas, de controle dos meios de pagamentos e das taxas de juros, seja através de obras públicas, que podiam ter o mesmo efeito multiplicador da renda e do emprego dos investimentos privados. (...) Nos anos 30, o capitalismo precisou ser salvo de si mesmo e Keynes contribuiu decisivamente para isto, enfrentando o desafio de, no plano teórico, demonstrar a inoperância da „mão invisível‟ (...)” (Ibid., p. 120) Na periferia capitalista, no Brasil especificamente, com o pós-1930 e especialmente durante o Estado Novo, a sociedade sofreu “profundas transformações que possibilitaram a passagem do padrão de acumulação capitalista de base agro-exportadora para o de preeminência urbano-industrial e de realização interna. Nas décadas seguintes, as contradições características de um capitalismo subdesenvolvido e de extração colonial evoluíram de tal modo que, nos anos 50, os limites e os impasses do desenvolvimento industrial periférico ganharam grande visibilidade, colocando na ordem do dia o debate sobre os rumos do capitalismo no país.” (Ibid., p. 106) Impõe-se, dessa maneira, outras influências no pensamento de Furtado, ligadas à economia, Keynes e a Cepal ocupam, sem dúvida, um espaço especial, mas há lugar

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também para outro pensador: François Perroux. Furtado o conheceu na França, através de Maurice Byé, em seu doutoramento em economia. Nas palavras do próprio Furtado: “O pensamento de François Perroux foi seguramente o que mais me influenciou, pela importância de sua teoria do „polo de crescimento 8‟, que permite compreender que o crescimento econômico resulta de uma vontade política. Perroux me orientou para pensar o papel do Estado”. (Furtado, in Vieira, 2003, p. 136) Mas a grande influência, “responsável por salvar Furtado da tentação autoritária que a tradição brasileira poderia sugerir-lhe”, foi a de Karl Mannheim. A sua obra Liberdade, poder e planificação democrática é, segundo Francisco de Oliveira, “um dos esforços mais sérios (...) para conciliar planejamento e liberdade.” (Oliveira, 2003b, p. 78). Dele vem a noção de intelligentsia: “(...) um grupo intelectual relativamente descomprometido que resume os interesses que permeiam a vida social e que, para além dos particularismos, pode ser o responsável pelo processo de racionalização, livre dos constrangimentos de classe, e o portador dos anseios coletivo. Ou, de acordo com a visão de Furtado, o técnico social ou planificador capaz de uma intervenção racionalizadora nas esferas irracionais da vida em sociedade.” (Vieira, 2003, p. 82) O “velho” que existe no pensamento de Celso Furtado não suprime a sua inovação, o grande salto qualitativo que deu à “questão nacional”: a constatação das contradições peculiares às nações subdesenvolvidas e o atraso sendo colocado não sob o âmbito local, mas sob a forma de expansão do capitalismo e da organização da divisão internacional do trabalho, dando, dessa maneira, “uma dimensão internacional ao projeto de „construção da nação‟, ultrapassando a discussão nos marcos puramente locais.” A construção da nação está identificada com a industrialização e o desenvolvimento capitalista autônomo e regulado. Ao mesmo tempo a sua concepção de Estado apresenta-se como altamente democrática, a racionalização do processo histórico está sob a responsabilidade dos intelectuais, capazes de auferir legitimidade às demandas sociais, superando as nossa profundas desigualdades. (Ibid., p. 134-167) 1.2.5 – A importância de Prebisch e a Cepal na construção teórica de Furtado Raúl Prebisch, o criador da Comissão Econômica para América Latina (Cepal), teve grande importância na formação do pensamento de Celso Furtado, de modo que toda a sua teorização não pode ser descolada desse primeiro pensador. Evidentemente, 8

Consultar a respeito VIEIRA, 2003, p. 136-140.

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isto também não nega as inovações do pensador brasileiro, “Prebisch jamais alcançou a dimensão de Furtado como cientista social, tendo-se restringido ao que se convencionou chamar de „ciência econômica‟, e não podendo, pela sua condição de burocrata internacional, empreender sequer a crítica de sua própria produção.” (Oliveira, 2003b, p. 11). Separam esses dois autores, fundamentalmente, a importância dada à história: “Prebisch não capitava o fenômeno histórico. Ele era mais um técnico. Via a economia como economista. Em segundo lugar, ele não via a dimensão social com a mesma urgência que eu. Ele vinha de um país, a Argentina, onde havia muito crescimento social. O povo vivia bem (...) E eu vinha do Brasil, do Nordeste. Tinha uma percepção da pobreza, tinha urgência!” (Furtado, in Vieira, depoimento à autora9, 2003, p. 12) O famoso Manifesto10 (1949) de Prebisch deu a Furtado o grande impulso, no sentido de buscar uma teorização independente para a América Latina, recusando aquilo que predominava entre os economistas brasileiros até então, ou seja, a adoção cega às teorias econômicas dos países desenvolvidos: “Ao ler esse texto, percebi que necessitávamos de um trabalho de teorização autônomo, a partir de nossa realidade latino-americana. Sem autonomia para teorizar no campo das ciências sociais somos reduzidos a um simples mimetismo estéril. (...) Desde que eu lera o primeiro trabalho preparado por Prebisch – que passou a ser referido como o Manifesto – pensara comigo: temos agora a alavanca necessária para demover as grandes resistências que enfrentamos no Brasil.” (Furtado, 2002, p. 8590) Prebisch, a partir de seu “método global”, a relação centro-periferia, buscou mostrar as particularidades da evolução capitalista na América Latina, a “periferia”, diferenciando-a do “centro” europeu. O conceito de centro-periferia é fundamental para caracterizar a teorização cepalina e é “empregado para descrever o processo de difusão do progresso técnico na economia mundial e para explicar a distribuição de seus ganhos.” A técnica tinha se difundido de forma desigual nos dois pólos. No centro essa difusão foi mais rápida e a produtividade cresceu de modo homogêneo em todos os setores. Na periferia, cuja função era alimentar o centro com alimentos e matérias-primas baratas, o progresso técnico avançou somente nos setores exportadores, o resultado era a heterogeneidade nos níveis de produtividade. A divisão internacional do trabalho, longe de promover a distribuição igualitária dos ganhos de produtividade, como sugeria a Lei 9

Entrevista realizada por Rosa Maria Vieira em agosto de 2001 e apresentada em anexo no final de sua dissertação de doutorado. Vieira (2003). 10 PREBISCH, Raúl. “O desenvolvimento econômico da América Latina e seus principais problemas”. In: Revista Brasileira de Economia. Rio de Janeiro, 1950.

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das Vantagens Comparativas de David Ricardo, promoveu crescente disparidade entre as nações centrais e periféricas. As trocas eram desiguais e a “deterioração dos termos de troca” agravava essa tendência, a procura pelos produtos industriais, do centro, crescia de forma mais rápida que a dos produtos primários, da periferia. Estavam colocadas as raízes da tendência estrutural o desequilíbrio no balança de pagamentos. (Bielschowsky, 2000, p. 16) Prebisch foi, também, um dos precursores da tese estruturalista sobre a inflação. Defendia que o crescimento econômico contínuo e planejado era a única forma de alterar as condições estruturais que causam a inflação. As políticas monetárias restritivas apenas agravavam os problemas ao causarem recessão, evidenciando, novamente, os problemas tão logo o crescimento fosse retomado. A tese afirmava também que os déficits externos não podiam ter como única justificativa a inflação, pois era fruto do próprio desenvolvimento latino-americano. A teoria do subdesenvolvimento traz, portanto, a importância da Cepal, “uma espécie de incubadora e Raúl Prebisch e a equipe inicial mui justamente co-autores”. (Oliveira, 2003b, p. 82). Nas palavras do próprio Furtado: “Essa visão global da economia capitalista, que permitia nela identificar uma fratura estrutural gerada pela lenta propagação do progresso técnico e perpetuada pelo sistema de divisão internacional do trabalho então existente, constitui certamente a contribuição teórica maior de Prebisch, e foi o ponto de partida da teoria do subdesenvolvimento que dominaria o pensamento latino-americano e teria amplas projeções em outras regiões do mundo.” (Furtado, 2002, p. 94) 1.3 – A obra em si: o método estruturalista e a reinterpretação dos “impasses” de nossa economia A obra Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961) é dividida em duas seções, conforme o próprio nome sugere. Na primeira, Furtado revisita os principais pensadores econômicos, passa pelos clássicos, por Marx, pelos neoclássicos, por Schumpeter, e termina com Keynes. O autor não faz isso por acaso, na busca pelo entendimento dos problemas particulares de nosso país, nessa revisita, ele pretende mostrar que é necessário um esforço para além destes para conseguir alcançar o seu objetivo. Nesse sentido, essa passagem que aparece logo no início é bem esclarecedora: “Desenvolvimento e subdesenvolvimento reúne uma série de estudos em um período de quase dez anos. A unidade que apresenta decorre de que o trabalho intelectual do autor, durante todo esse tempo, perseguiu um

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mesmo objetivo: encontrar caminhos de acesso à inteligência dos problemas específicos do subdesenvolvimento econômico.” (Furtado, 1961, p. 11) Esses “caminhos de acesso” não estavam nas teorias econômicas tradicionais, o autor vai procurando, ao longo do trabalho, refutar estas afirmando que: “A teoria do desenvolvimento econômico não cabe, nos seus termos gerais, dentro das categorias de Análise Econômica. (...) A Análise Econômica não nos pode explicar a dinâmica das mudanças sociais senão de maneira limitada. (...) Tivessem os governantes de muitos países, e entre estes o Brasil, seguido à risca os conselhos daqueles que se propunham conhecedores da Ciência Econômica, e esses países provavelmente se teriam desenvolvido muito menos.” (Ibid., p. 89-109) Convém deixar registrada duas observações de Furtado sobre Marx e Keynes, tendo em vista as futuras críticas de Maria da Conceição Tavares e José Serra e, posteriormente, de Francisco de Oliveira, a respeito das categorias de análise que o autor utiliza, e que apresentaremos no segundo capítulo. Furtado rejeita a teoria do valor de Marx, afirmando que o “conceito” é “extremamente ambíguo e sua utilização passa a causar sérios tropeços à Análise Econômica do próprio Marx.” (Ibid., p. 40-41). No caso de Keynes, recusa-se a trabalhar com o elemento “expectativa” que define as decisões de investimento dos empresários: “Ao analisar as causas que influenciam o volume das inversões, ele simplificou extremamente o problema com aparente preocupação de dar elegância ao sistema como um todo. (...) A análise dos fatores que induzem o empresário a inverter é, certamente, a parte mais pobre da obra de Keynes.” (Ibid., p. 82) Furtado, orientando as analises desenvolvimentistas, mostra que a compreensão da natureza do desenvolvimento exige uma visão mais ampla que aquela apresentada pelos “limitados” modelos econômicos, ou seja, o poder explicativo está na história: “(...) o desenvolvimento econômico possui uma nítida dimensão histórica. A teoria do desenvolvimento que se limite a reconstruir, em um modelo abstrato – derivado de uma experiência histórica limitada – as articulações de determinada estrutura, não pode pretender elevado grau de generalidade.” (Ibid., p. 164) Encontrada a história, como meio para ir a fundo na compreensão dos fenômenos que geram o desenvolvimento, dando a possibilidade de encontrar as particularidades de cada região, põe-se, dessa maneira, o Subdesenvolvimento, a segunda seção da obra. Armado com a história, descreve O modelo clássico de desenvolvimento industrial e a seguir As estruturas subdesenvolvidas.

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Furtado inicia a sua teorização sobre o subdesenvolvimento mostrando as três formas como o capitalismo se expandiu. A primeira, correspondia à Europa, a origem desse movimento de expansão. Nessa região, o advento do núcleo industrial, no século XVIII, provocou uma ruptura na economia mundial e passou “a condicionar o desenvolvimento econômico subseqüente em quase todas a regiões da terra.” (Ibid., p. 178). A segunda linha de desenvolvimento, cujos exemplos são a Austrália, o Canadá e os Estados Unidos, correspondeu apenas a um deslocamento da indústria européia para além de suas fronteiras, “não se diferenciava, basicamente, do processo de desenvolvimento da própria Europa.” (Ibid., p. 179). A terceira linha, correspondia às estruturas subdesenvolvidas. A estrutura “dual” da economia era a razão de nossa tendência à concentração de renda. O setor pré-capitalista determinaria, a baixos níveis, o custo de reprodução da força de trabalho, permitindo que os salários ficassem aquém da produtividade do trabalho. Como a dinâmica do desenvolvimento era dada pela absorção de trabalhadores do “atrasado” em direção ao “moderno” – movimento que trazia, em si, aumento da produtividade, pois, correspondendo o “moderno” a uma atividade de mais alta produtividade em relação ao “atrasado”, o aumento da participação relativa do primeiro aumentava a produtividade média geral do sistema –, as empresas podiam crescer concentrando os frutos dos aumentos de produtividade consigo, a “estrutura econômica arcaica não se vincula, dinamicamente, a esta última, pelo simples fato de que a massa de lucros por ela gerados não se integra na economia local.” (Ibid., p. 182-183, grifos meus) Com o advento da indústria passam a existir três setores na economia: a agricultura de subsistência, a agricultura agro-exportadora e a indústria. O desenvolvimento continuava a se dar com a passagem de trabalhadores do “atrasado” em direção ao “moderno”, contudo, a indústria passava a absorver esse setor de subsistência. O processo de substituição de importações, guiado pela imitação dos padrões de consumo dos países desenvolvidos, operava introduzindo métodos de produção similares a esse centro, com uso de tecnologia poupadora de mão-de-obra, ignorando a existência de um vasto setor de subsistência oferecendo mão-de-obra abundantemente. Furtado explica da seguinte maneira o fato do industrial nacional adotar métodos estrangeiros de produção: “O núcleo industrial ligado ao mercado interno se desenvolve através de um processo de substituição de manufaturas antes importadas, vale dizer em condições de permanente concorrência com produtores forâneos. Daí que a maior preocupação do industrial local é a de apresentar um artigo

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similar ao importado e adotar métodos de produção que o habilitem a competir como exportador estrangeiro.” (Ibid., p. 192) Como resultado, a indústria absorvia apenas lentamente o setor de subsistência, permanecendo a heterogeneidade nos níveis de produtividade entre os setores. Os lucros podiam crescer e a maior parte da população permanecia alheia aos benefícios do desenvolvimento: “(...) as inovações tecnológicas que se afiguram mais vantajosas são aquelas que permitem aproximar-se da estrutura de custos e preços dos países exportadores de manufaturas, e não as que permitam uma transformação rápida da estrutura econômica, pela absorção do setor de subsistência. O resultado prático disso – mesmo que cresça o setor industrial ligado ao mercado interno e aumente a sua participação no produto, mesmo que cresça, também, a renda per capita do conjunto da população – é que a estrutura ocupacional do país se modifica com lentidão. O contingente da população afetada pelo desenvolvimento mantém-se reduzido, declinando muito devagar a importância relativa do setor cuja principal atividade é a produção para subsistência.” (Ibid., p. 193) Daqui o autor pode tirar a sua principal conclusão: “O subdesenvolvimento é, portanto, um processo histórico autônomo, e não uma etapa pela qual tenham, necessariamente, passado as economias que já alcançaram grau superior de desenvolvimento.” (Ibid., p. 180) Sendo, portanto, o subdesenvolvimento um processo histórico autônomo, se tornava necessário repensar os problemas de nossa industrialização, levando em conta as nossas “peculiaridades”, pois “a falta desse esforço tem levado muitos economistas a explicar, por analogia com a experiência das economias desenvolvidas, problemas que só podem ser bem equacionados a partir de uma adequada compreensão do fenômeno do subdesenvolvimento.” (Ibid., p. 193) A razão para nossa tendência estrutural ao desequilíbrio no balanço de pagamentos estava nas próprias características de nossa industrialização. O processo de substituição de importações, em suas etapas mais avançadas, quando chega aos setores de bens de produção e bens de consumo duráveis, necessita de um maior volume de importações, era “característica geral das economias subdesenvolvidas um grau elevado de dependência, do processo de formação de capital, com respeito ao intercâmbio externo.” (Ibid., p. 206) Da mesma forma, a inflação também tinha suas origens na própria estrutura da economia, era fruto da inadequada substituição de importações, a “manifestação externa de desajustamentos estruturais que acompanham o processo de crescimento em certas fases do subdesenvolvimento” (Ibid., p. 227)

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Furtado encontra a solução para esses problemas numa orientação adequada dos investimentos, estes precisavam se concentrar nos setores onde ainda houvesse importações a substituir. Essa orientação era necessária pois o risco dos investimentos nesses setores novos era maior, o que levava o empresário a investir nos setores já existentes. O resultado era excesso de capacidade em alguns setores e insuficiências em outros, diminuindo a relação produto-capital. Em suas Considerações finais, Furtado diz no que tem se constituído o sentido de nosso desenvolvimento, ou seja, a transferência de mão-de-obra dos setores “atrasados” para o “moderno”, mas que esse desenvolvimento tem beneficiado somente as classes proprietárias. O crescimento econômico, nas últimas décadas, tinha minimizado esses problemas, o que permitia prever o aumento das tensões sociais com o esgotamento do processo de substituição de importações: “Se assim ocorrer, caminhará o Brasil para uma etapa de agudas tensões sociais, em contraste com o clima de relativa harmonia que caracterizou os últimos decênios. As pequenas fricções da fase das grandes ondas inflacionárias nada serão, comparadas com as tensões que advirão de uma redução no ritmo de crescimento. É, portanto, perfeitamente possível que estejamos entrando numa daquelas fases decisivas em que os problemas tipicamente políticos adquirem forte ascendente sobre os demais, inclusive os econômicos.” (Ibid., p. 266) É com esse diagnóstico que o seu projeto de nação ganha força, “Celso Furtado construirá os argumentos de defesa de uma ação racionalizadora do Estado, com vistas ao desenvolvimento nacional. E, neste sentido, nada mais persuasivo para legitimação das propostas de planejamento da economia brasileira do que as referências, nos trabalhos publicados nos anos 60, às conseqüências negativas da industrialização espontânea, num rol que vai das ameaças à integridade da nação, às tensões sociais incontornáveis, passando pelos riscos da estagnação econômica e, no limite, pela desarticulação do frágil jogo democrático do Brasil.” (Vieira, 2003, p. 152) Esgotado o processo de substituição de importações, o desenvolvimento era a única alternativa viável para evitar o aumento das tensões sociais. Contudo, a condição para sua efetivação era agora “uma participação mais ampla em seus frutos das massas urbanas e rurais.” (Furtado, 1961, p. 268).

1.4 – As fragilidades de Desenvolvimento e Subdesenvolvimento

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“A experiência e um agudo senso de observação ensinaram ao antigo cepalino que „há dores no parto‟: a sociedade brasileira move-se com extraordinária rapidez, e esse processo de rupturas, reformas, implantação de novas estruturas é, numa palavra, um processo agudíssimo na luta de classes em todas as direções.” (Francisco de Oliveira, A navegação venturosa) A obra Desenvolvimento e Subdesenvolvimento é conhecida como a mais importante sistematização da Teoria do Subdesenvolvimento, mas, além disso, pode também ser considerada como “um prelúdio antimarxista da plataforma de reformas.” (Oliveira, 2003b, p. 24). A nossa industrialização por substituição de importações, enquanto processo problemático, “em razão da espontaneidade que presidiu, é o que dá sustentação histórica e intelectual à sua proposta de intervenção do Estado na economia, justificada pelas condições inerentes à industrialização espontânea, submetida aos movimentos aleatórios do mercado.” (Vieira, 2003, p. 257) As contradições de nossa industrialização colocaram a necessidade de reformas na pauta de discussão entre os desenvolvimentistas até meados da década de 1960. Celso Furtado, diante desse quadro, ocupou um lugar de destaque enquanto intelectual e homem público atuante nos órgãos do governo. Contudo, o aumento das tensões sociais evidenciava as fraquezas de sua teoria, “com seus estereótipos de „desenvolvimento auto-sustentado‟, „internacionalização do centro de decisões‟, „integração nacional‟, „planejamento‟, „interesse nacional‟, a teoria do subdesenvolvimento sentou as bases do „desenvolvimentismo‟ que desviou a atenção teórica e a ação política do problema da luta de classes, justamente no período em que, com a transformação da economia de base agrária para industrial-urbana, as condições objetivas daquela se agravavam.” (Oliveira, 2003a, p. 34) Como toda ideologia, o desenvolvimentismo encobria os “antagonismos de classe e de interesses que ou não interessava explicitar, ou ficavam submergidos no interesse maior, mais global, que era o desenvolvimento econômico.” (Ibid., p. 47). O que não percebia Furtado e a própria esquerda da época eram os “conteúdos intrinsecamente autoritários do capitalismo oligopolista e, mais concretamente, as formas que assume em sociedades como a brasileira.” (Oliveira, 2003b, p. 26) A emergência do capital oligopolista internacional no período Juscelino Kubitschek, sob uma base de acumulação interna relativamente pobre, requeria para a sua consolidação um aumento da taxa de exploração da força de trabalho. O capital oligopolista trazia consigo a intensificação das contradições sociais, o “otimismo cepalino-

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furtadiano, ao desconhecer a questão operária, obscureceu também a forma autoritária de que necessariamente se revestiria a modernização capitalista”. O economicismo de suas análises, ao separar a economia da política, e a inexistência de uma “teorização em torno das formas de Estado que a dominação periférica „requer‟ para sua realização”, impedia Furtado de ver a crise que se formava (Ibid., p. 113). Na obra, Furtado não viu as contradições trazidas com a instalação dessas empresas. Falava de um possível deslocamento do “centro de decisão”, desviando a atenção para os “interesses da nação”. Falava em autonomia “recém-conquistada” quando esta já estava longe de se concretizar. O país se transformava e o autor limitava-se a narrar os feitos desenvolvimentistas: “Sem embargo, constitui uma constante na nova ideologia do „desenvolvimento nacional‟ que se deve reduzir ao mínimo a possibilidade de que o desenvolvimento do país seja entorpecido por decisões tomadas de fora por grupos cujos interesses possam conflitar com os da economia nacional.” (Furtado, 1961, p. 246-247) Quando percebe, tardiamente, coloca a ênfase no risco de uma revolução “soviética”. Furtado procurava demonstrar que qualquer revolução significava um retrocesso, tratava-se de refutar Marx, e pedir as reformas “antes que tarde”. Os seus textos próximos a 1964 mostram a sua preocupação diante da radicalização da lutas sociais no Brasil. A pré-revolução brasileira (1962) e a Dialética do desenvolvimento (1964) mostram “um intelectual tentando ganhar uma corrida contra o tempo – uma batalha quase desesperada pela urgência das reformas –, profético, anunciando uma tragédia que, afinal, se consumou.” (Oliveira, 2003b, p. 64). As reformas apareciam nesses textos como a única solução capaz de evitar uma revolução. O golpe de 1964 mostrou que as tensões insuportáveis que preocupavam Furtado deslocaram “para a direita, e não para a esquerda, os regimes políticos que presidem a expansão do capitalismo oligopolista” (Ibid., p. 27). Evidenciava-se a impossibilidade da realização de seu projeto de nação: “Como ideólogo do desenvolvimento capitalista no Brasil dos anos 50 e 60, Celso Furtado deu voz à burguesia industrial traduzindo, no âmbito de suas análises e de seu projeto de desenvolvimento, as limitações e contradições históricas desta classe. A derrota e banimento de Furtado, 1964, no momento em que o capitalismo monopolista internacional elegia o país como mais um de seus espaços de acumulação e reprodução ampliada, exigindo para isto o aprofundamento dos aspectos antidemocráticos do Estado brasileiro, era a evidência de que a burguesia in-

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dustrial, sem nenhuma „ilusão heróica‟, tinha feito sua escolha: ser sócio menor do grande capital externo.” (Vieira, 2003, p. 262) A culpa pelos acontecimentos não foi de Furtado, além disso, o fato dele ter dado “voz à burguesia industrial” não o coloca como um simples ideólogo a serviço dessa burguesia, isto seria empobrecer toda a riqueza de seu pensamento. A razão da crise que culminou no golpe está na própria luta de classes, no poder da grande burguesia associada ao capital internacional e na falta de poder dos trabalhadores, fato que passou desapercebido em toda a sua teorização do momento, que colocava os problemas, da nação, como o resultado de uma industrialização espontânea. Furtado não viu que as transformações ocorridas com a industrialização, a partir de 1930, foram resultados da luta da classes interna e não “um mero reflexo das condições imperantes no capitalismo mundial. (...) Os meios e fins objetivados não apenas eram coerentes entre si, como foram logrados.” (Oliveira, 2003a, p. 74-75) Inexistia os mecanismos automáticos que imaginava. Em lugar disso, o Estado atuou criando as condições necessárias para o novo padrão de acumulação urbano-industrial, seja regulamentando as relações entre o capital e o trabalho, através da legislação trabalhista, afim de criar as fontes internas da acumulação, seja penalizando a agricultura de exportação em benefício da indústria. O novo padrão de acumulação não exigia a desarticulação da agricultura como pólo dinâmico. Esta desempenhou um papel vital para a expansão industrial, seja suprindo as necessidades de recursos para a compra de bens de capital e bens intermediários, seja produzindo bens para consumo interno a preços que impedissem o aumento dos salários e dos preços das matérias-primas. A população que afluía do campo para as cidades contribuía para a formação do exército industrial de reserva, adequado às necessidades do capital. As mudanças eram aquelas que convinham à nova forma de acumulação, por isso a legislação trabalhista não chegou ao campo, mantendo em baixíssimos padrões o custo de reprodução da força de trabalho e portanto o nível de vida da massa trabalhadora rural, as atividades agropecuárias podiam manter o seu padrão primitivo, baseado numa alta taxa de exploração. (Ibid., p. 45-46) A agricultura primitiva, que convivia com a economia agrário-exportadora, continuou existindo com o novo padrão industrial, funcionando como um reservatório de mão-de-obra barata. A “especificidade” de nossa economia consistia, portanto, “em reproduzir e criar uma larga „periferia‟ onde predominam padrões não-capitalísticos de relações de produção, como forma e meio de sustentação e alimentação do crescimento

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dos setores estratégicos nitidamente capitalistas, que são a longo prazo a garantia das estruturas de dominação e reprodução do sistema.” (Ibid., p. 69). Evidenciam-se nesse sentido as fragilidades da Teoria do Subdesenvolvimento: “No plano teórico, o conceito de subdesenvolvimento como uma formação histórico-econômica singular, constituída polarmente em torno da oposição formal de um setor „atrasado‟ e um setor „moderno‟, não se sustentava como singularidade: esse tipo de dualidade é encontrável não apenas em todos os sistemas, como em quase todos os períodos. Por outro lado, a oposição na maioria dos casos é tão-somente formal: de fato, o processo real mostra uma simbiose e uma organicidade, uma unidade de contrários, em que o chamado „moderno‟ cresce e se alimenta da existência do „atrasado‟, se se quer manter a terminologia. (...) tal postulação esquece que o „subdesenvolvimento‟ é precisamente uma „produção‟ da expansão do capitalismo. (...) o „subdesenvolvimento‟ é uma formação capitalista e não simplesmente histórica.” (Ibid., p. 32-33) Em lugar dessa relação não articulada entre o “atrasado” e o “moderno”, põe-se a existência desses dois setores como forma do desenvolvimento desigual e combinado11 do capitalismo em nosso país. O modelo “dualista” de Furtado não via que por detrás dessa aparente dualidade existia uma relação dialética: “(...) a expansão do capitalismo no Brasil se dá introduzindo relações novas no arcaico e reproduzindo relações arcaicas no novo, um modo de compatibilizar a acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução de relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente para fins de expansão do próprio novo.” (Ibid., p. 60) Apresentando essa relação “sem vínculo” entre o “atrasado” e o “moderno”, e negando a importância da luta de classes na periferia, a “massa da população” torna-se apenas uma existência empírica, tendo o único papel de justificar o seu projeto de nação e a generosidade social de sua teoria, mas não influindo na determinação do movimento da história. A industrialização substitutiva de importações parece fundar-se “numa necessidade de consumo e não numa necessidade da produção”, quando na realidade, são “as necessidades da acumulação e não as do consumo que orientaram o processo de industrialização” (Ibid., p. 49-51). Furtado não vê que o capital “precisa instalar-se em todos os lugares, acomodarse em todos os lugares, estabelecer conexões em todos os lugares. (...) No lugar da antiga reclusão e auto-suficiência local e nacional, temos conexões em todas as direções, 11

TROTSKY, Leon. A história da Revolução Russa. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1980.

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uma interdependência universal das nações.12” (Marx & Engels, 2002, p. 14-15). A expansão do capitalismo reflete o “caráter mundial da economia, do desenvolvimento mundial das forças produtivas e do ímpeto mundial da luta de classes.” (Trotsky, 1979, p. 24). A não relação intima entre distribuição de renda e crescimento econômico reflete “o pensamento de um intelectual que acreditava que o processo de industrialização constituísse a grande solução para os problemas sociais básicos e, além disso, de um servidor público que tinha uma carreira aberta à ascensão política no interior do Estado”. (Bielschowsky, 2000, p. 154). O Golpe de 1964 desfaz não só essa possibilidade, mas também as suas ilusões quanto ao Estado, evidenciando o seu conteúdo real, “antiNação13”, a violência com que atua para garantir a reprodução do capital.

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A expansão mundial do capitalismo mostra que “enquanto a burguesia de cada nação conserva ainda interesses nacionais particulares, a grande burguesia surge como uma classe cujos interesses são os mesmos em todas as nações e para a qual a nacionalidade deixa de existir”. (Marx & Engels, s/d, p. 75) 13 A expressão é de Oliveira (1989).

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Capítulo 2 A “questão distributiva”: o “milagre” econômico e o debate em torno dos “modelos” de crescimento 2.1 - Um breve panorama histórico Como já dissemos no capítulo anterior, as contradições sociais que culminaram com o golpe militar de 1964 deslocaram para a direita e não para a esquerda – ao contrário do que pensava Furtado – os regimes políticos que presidiram a expansão do capital oligopolista. (Oliveira, 2003b). O governo Castello Branco subiu ao poder num período de relativa estagnação da economia, com um crescimento médio do PIB de 3,4% entre 1962 a 1964, muito aquém do que vinha crescendo a economia. Contudo, a equipe econômica comandada por Roberto Campos e Octávio Bulhões realimentaria essa relativa estagnação, provocando uma “recessão calculada”, cujo objetivo era o de “preparar as bases institucionais para um processo de concentração de capital que vinha se dando caoticamente.” (Oliveira, 1989, p. 92) O padrão de acumulação com base no Departamento III14, impulsionado no governo Juscelino Kubitschek e que apareceria em sua forma plena no período do “milagre” econômico (1968-1973), exigia para a sua efetivação a resolução de duas questões, a saber: “os problemas do financiamento da acumulação de capital, externa e internamente”, e os “problemas de pagamento internacional, que o padrão de acumulação recria ampliadamente de forma inusitada”. (Ibid., p. 92) O Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG), desenvolvido para o triênio 1964-1966, tinha como objetivo explícito o combate à inflação, que havia perdido a sua “funcionalidade”, chegando num nível que atrapalhava o cálculo econômico. O “diagnóstico” era de “inflação de demanda”, apesar de no discurso não se ter negado a inflação de custos e a inelasticidade da oferta dos produtos agrícolas. Houve uma considerável redução do déficit público, que em proporção do PIB caiu de 5,3% em 1963 para 1,8% em 1965. (Moura da Silva, 1980)

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Utilizamos a mesma terminologia de Oliveira (1989), que se baseia nas análises de departamento de Kalecki, qual seja: o Departamento I corresponde ao setor produtor de bens de capital; o Departamento II produz bens de consumo para os trabalhadores; e o Departamento III bens de consumo para os capitalistas, também conhecido como “bens de consumo duráveis”.

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Para combater a inflação e resolver o problema do financiamento interno buscou-se a contenção dos salários, cuja possibilidade estava na intervenção dos sindicatos, colocados sob controle do governo. (Oliveira, 1989) Efetivou-se, também, uma reforma fiscal “audaciosa” com o objetivo de adequar “as receitas do Estado à nova quantidade e qualidade da estrutura de produção, com a preeminência dos setores e ramos do Departamento III” (Ibid., p. 93). Nos três anos cobertos pelo plano, a despesa orçamentária caiu 8% em termos reais e a receita tributária aumentou 45%. (Martone, 1987) O sistema financeiro, cuja administração até 1964 estava a cargo do Tesouro Nacional, da SUMOC e do Banco do Brasil, era conduzido agora pelo Conselho Monetário Nacional. No mesmo ano foi criado também o Banco Central. Uma política de incentivos e de créditos fiscais fez do Estado o “capital financeiro geral” – característica da fase do capitalismo monopolista no Brasil –, que retornava parte dos excedentes captados sob a forma de capital gratuito para as empresas, que, pagando os novos impostos ampliados, os recebiam de volta sem juros e sem obrigação de retorno. Na “qualidade de capital financeiro geral”, o Estado se converteu, ao mesmo tempo, em “pressuposto e garantidor do capital financeiro privado”. Através das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs), o Estado mantinha a alta liquidez das empresas e criava a correção monetária, que evidenciava a transferência do ônus do combate à inflação para as classes oprimidas. (Oliveira, 1989, 2003a) O Estado desempenhou um papel importante no fornecimento de crédito de longo prazo por meio de instituições especiais como o Banco Nacional de Habitação (BNH), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco do Brasil (BB). No caso do BNH, os recursos vinham do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), criado em 1966 como “alternativa” à estabilidade dos trabalhadores. Esses recursos iriam financiar o conjunto do Sistema Financeiro Habitacional (SFH), composto pelo BNH e pelas Sociedades de Crédito Imobiliário (instituições privada). (Carneiro, 2002; Moura da Silva, 1980) A criação do FGTS, além do impacto no mercado de capitais, provocava fortes mudanças no mercado de trabalho ao substituir o preceito trabalhista da indenização e da estabilidade do trabalhador por tempo de serviço, definidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). O trabalhador com menos de dez anos empregado tinha o direito, quando demitido, a uma indenização cujo valor correspondia a tantos salários quanto tivessem sido os anos trabalhados. Quando empregado por mais de dez anos, o

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trabalhador só poderia ser demitido por falta grave (definida na justiça) ou por fechamento da empresa. Nesse último caso, tinha direito a uma indenização em dobro da devida ao trabalhador com menos de dez anos de serviço na empresa. Com o FGTS, as empresas eram obrigadas a depositar mensalmente 8% do salário pago à credito de cada trabalhador em conta bancária individualizada. O Fundo rendia, por determinação legal, 3% ao ano e mais a correção monetária, podendo o trabalhador sacá-lo em caso de desemprego, aposentadoria e outros casos especiais. (Moura da Silva, 1980) No que se refere aos empréstimos externos, o novo governo tratou de realizar, preponderantemente, empréstimos em moeda e não mais de Investimentos Estrangeiros Diretos (IED). O governo assinou um “Acordo de Garantias para o Investimento Estrangeiro”, assegurando o desempenho das grandes corporações. A entrada do capital estrangeiro foi facilitada também pela derrocada da Lei de Remessas de Lucro de 1962. Em suma, tratava-se de implementar um padrão de endividamento externo cujo significado mais amplo era a criação de meios de pagamentos que garantissem as remessas de lucro, dividendos, royalties e direitos de assistência técnica. Os empréstimos externos resolveriam a contradição de um processo de acumulação com realização essencialmente interna, mas controlado por propriedade externa. (Oliveira, 1989, p. 96-97) O período 1964-1966 é conhecido como a fase de preparação para a posterior expansão da economia, o “milagre” econômico (1968-1973). Faltava ainda garantir, nessa “fase de preparação”, a presença maciça dos capitais externos, que só ocorreu posteriormente. Tendo em vista os crescentes déficits no balanço de pagamentos americano e o desenvolvimento de políticas expansionistas nos Estados Unidos e em outras nações desenvolvidas, a oferta de crédito internacional aumentou rapidamente e o Brasil tornou-se um grande depositário desse “excesso” de liquidez internacional. (Batista Jr., 1988, p. 216). A retórica do governo, na apresentação da relação entre esses recursos e o crescimento econômico, era a necessidade de “poupança externa”. A conjuntura internacional favorável dava a aparência de sucesso na sua “política de administração da dívida”. Entre as medidas implementadas estava a regulamentação dos empréstimos realizados via captação direta, através da Lei n. 4131 e Instrução n. 289, e via intermediação das instituições financeiras domésticas, através da Resolução n. 63. (Davidoff Cruz, 1999) Entre 1968 a 1973, o PIB real do país cresceu em média 11,2%, alcançando um máximo de 14% em 1973. O grande crescimento foi puxado pelo Departamento III da economia, onde a produção de bens de consumo relativos a “transporte” cresceu em

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média 24% e a produção de bens “eletro e eletrônico-domésticos”, 22,6%. A utilização da capacidade instalada passou de 76%, em 1967, para 93%, em 1971, e para 100% em 1972-1973. (Lago, 2002) Após o governo Castello Branco, Delfim Netto foi nomeado Ministro do Planejamento no governo Costa e Silva e posteriormente Médici. O “diagnóstico” passado de “inflação de demanda” foi deixado de lado, admitindo agora a “inflação de custos” e um certo nível de tolerância, de 20% a 30% ao ano15. Houve também um certo “relaxamento” da política fiscal e uma notável expansão do crédito, principalmente à agricultura e ao consumidor, buscando, no primeiro caso, assegurar uma oferta adequada de alimentos e estimular a exportação de produtos primários, que tinham também, para assegurar mercados externos, a ajuda da política de minidesvalorizações (1968) e os incentivos fiscais. (Ibid.) Internamente o governo passou a se financiar, principalmente a partir de 1969, através de títulos públicos. Em 1964, os haveres monetários correspondiam a 92% do total dos haveres (monetários e não-monetários); em fins de 1966, essa participação se reduziu para 75,7%. A tendência se acelerou entre 1967 e 1973 e, principalmente, a partir de 1971, quando os haveres não-monetários superaram os haveres monetários que, em 1973, corresponderam a 43% do total. Os títulos da dívida pública federal passaram a ter crescente participação no total de haveres, aumentando de 0,74% em 1964, quando criada as ORTNs, para 15% em 1970, quando criou-se as Letras do Tesouro Nacional (LTNs), e alcançando 17,7% em 1973, sendo 9,7% referente as ORTNs e 8% as LTNs. (Ibid.) O governo, com as finanças “sanadas”, pôde manter elevado o seu nível de dispêndio, principalmente, na área de infra-estrutura de apoio ao capital privado. As empresas estatais – que recorreram de forma crescente aos empréstimos externos – tiveram grande crescimento em seu número no período. Entre 1968 e 1974, foram criadas, entre empresas federais e estatais, 231, sendo 175 na área de serviços, 42 na indústria de transformação, 12 em mineração e 2 na agricultura. (Ibid.) Mas o “milagre” econômico não teria se objetivado sem a efetivação de um grande aumento na taxa de exploração do trabalhador. Para se ter uma idéia, o salário mínimo, deflacionado pelo Dieese, sofreu uma perda contínua do poder aquisitivo entre 15

Podendo até mesmo ter alcançado variações mais altas, se levarmos em consideração as desconfianças de subestimação da inflação real por parte dos índices oficiais da época.

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1964 e 1974, algo em torno de 42%, sendo 25% somente no período 1964-1967. (Ibid.). Talvez essa perda tenha sido em parte minimizada pelo aumento da produtividade ocorrido no Departamento II16 no mesmo período, pelo aumento do número de ocupados em uma mesma família e pela presença de maior número de pessoas recebendo acima do salário mínimo. Mas esses aspectos não descaracterizam a violência com que se deu o processo de acumulação sobre a classe trabalhadora. É nesse contexto – de acirramento das contradições sociais em nosso país – que surge o debate sobre distribuição de renda e crescimento econômico. O início foi dado por Furtado em Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina (1966), apresentando a estagnação como conseqüência do “estreitamento” do mercado provocado pela concentração de renda. O “milagre” econômico levou Maria da Conceição Tavares e José Serra, em Além da Estagnação (1971), a refutarem a tese de Furtado e mostrarem a “funcionalidade” da concentração de renda. No mesmo período, Francisco de Oliveira daria a sua contribuição para o debate com a sua Crítica à razão dualista (1972). A resposta de Furtado veio com as obras Análise do “modelo” brasileiro (1972) e O mito do desenvolvimento econômico (1974). Esse rico debate será o nosso tema a seguir. 2.2 – Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina ou “o desenvolvimentismo e seu espelho: o estagnacionismo17” A obra data de 1966 e expressa uma grande mudança na vida do autor. “Furtado agora é um acadêmico: seu trabalho não está voltado para propostas de ação, mas para interpretação.” Essa mudança é significativa para entender o rigor teórico de seu “modelo estagnacionista” que, segundo Francisco de Oliveira, “talvez tenha sido o mais rigoroso que ele produziu.” “Aqui Furtado está no seu apogeu de „economista‟, mais rigoroso, mais establishment acadêmico.” (Oliveira, 2003b, p. 27-28) A base do modelo é o “multiplicador keynesiano”, contudo, o raciocínio é o oposto daquele usado para explicar o advento do trabalho assalariado na economia cafeeira e a formação do mercado interno. Agora, o conceito era usado para “explicar a estagnação, pois inversões sofisticadas e intensivas em capital impediriam a criação de novos empregos” provocando “estreitamento” do mercado e a tendência à estagnação. (Ibid., p. 27-28 e 52) 16

Sobre a produtividade no setor produtor de bens salários e a sua relação com a melhora no perfil da distribuição de renda ver Casseb (1996). 17 As palavras são de Oliveira (2003b).

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A economia brasileira, periférica, enquanto fruto da expansão das economias centrais possuía três setores, sendo eles: P1, com organização pré-capitalista, voltada para subsistência; P2, com agricultura voltada para exportação; e P3, com produção voltada para o consumo de P2 e P3. A diferença nos níveis de produtividade entre P1, com baixo nível, e P2 e P3, ambos com maiores níveis que o primeiro, deu origem à “estrutura dual” da economia, caracterizando o subdesenvolvimento. A alta relação de P2 com o mercado mundial, dependente da demanda externa para a realização, caracterizava a dependência. A remuneração em P2 e P3 – estamos já falando de uma economia cafeeira com base no trabalho assalariado – era maior que em P1, este último teria fracas relações sociais mediadas pelo dinheiro. Apesar da maior remuneração, nesses dois setores, o excedente gerado pelos trabalhadores também era maior. Nas palavras do próprio autor: “(...) se bem que a remuneração do trabalhador seja menor em P1, dada a baixa produtividade da economia pré-capitalista, é de admitir que a parcela da produção requerida para remunerar o trabalhador seja menor em P2 e P3. Com efeito, no setor exportador, dificilmente a remuneração do trabalhador chega a absorver 50% do seu produto, sendo algumas vezes menos de uma terça parte, ao passo que no setor pré-capitalista a remuneração do trabalhador de uma maneira geral alcança ou supera metade de sua produção.” (Furtado, 1966, p. 66) O maior número de trabalhadores em P2 e P3 significava, dado o nível maior de renda, um nível maior de poupança também. O crescimento da economia significava a expansão de P2 e P3 e a absorção de trabalhadores de P1. Com essa lógica, Furtado pode caracterizar a nossa concentração de renda, pois os salários em P2 e P3 são definidos por “fatores exógenos” ao mercado, ou seja, pelo baixo nível das condições de vida no setor pré-capitalista. Aqui cabe uma observação: “a Argentina e o Uruguai constituem os dois únicos exemplos na América Latina” de economias que “não podem ser consideradas subdesenvolvidas, sempre que o conceito de subdesenvolvimento esteja ligado à idéia de um dualismo estrutural”, pois o “setor pré-capitalista desapareceu como reservatório de mão-de-obra”, sendo o salário determinado pelas condições prevalecentes no “mercado de trabalho”. (Ibid., p. 69-70) A crise de 1929 e a depressão prolongada que se seguiu diminuíram a integração das economias latino-americanas na divisão internacional do trabalho, dada pelo setor P2. Era o início da industrialização cuja “particularidade” nessas economias era o “processo de substituição de importações”: “Reduzem-se ou eliminam-se certos itens das

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importações – os quais são substituídos no mercado por produção interna – e ampliamse aqueles itens de substituição mais difícil.” (Ibid., p. 73) De imediato, a crise provocou uma diminuição na capacidade de importar, “a modificação na taxa cambial, a expansão de crédito para financiamento de estoques e a elevação de tarifas tendem a determinar uma série de modificações na estrutura de custos.” O resultado foi o aumento geral dos preços dos bens manufaturados importados, incentivando a produção interna. Aparecia então um novo setor, P4, responsável pela produção de manufaturados, os “bens de consumo não-duráveis”. (Ibid., p. 73-75) A reprodução do novo setor se deu aumentando a importação de equipamentos e bens intermediários, viabilizada pela transferência de recursos de P2 e P3, cujo exemplo era os diferenciais de taxa de câmbio. O setor P4 passou a ser o responsável pela absorção da mão-de-obra de P1, ainda determinando o baixo nível salarial. O lucro bruto maior nesse novo setor e a conseqüente maior concentração de renda aumentou a demanda por “bens de consumo duráveis” importados. A tendência do movimento gerou, portanto, pressão no balanço de pagamentos, pois criou crescentemente a necessidade de equipamentos, bens intermediários e bens de consumo duráveis. A raiz dessa pressão estava no próprio “processo de substituição de importações”, guiado pelo “efeito demonstração”, ou seja, “cada grupo social orienta as suas expectativas com vistas a alcançar os padrões de consumo dos grupos imediatamente superiores na escala da distribuição de renda”. Ao importar os padrões de consumo do centro capitalista, importava-se também os “fatores de produção” – utilizando linguagem neoclássica. (Ibid., p. 14) O esgotamento do “processo de substituição de importação” em P4 e a tendência de manter o nível de investimentos geraram tensões mais agudas no balanço de pagamentos, elevando o preço dos bens importados. Criava-se então as condições para o desenvolvimento de um novo setor, P5, produtor de equipamentos e “bens de consumo duráveis”. O avanço do setor P5 foi também a entrada do grande capital estrangeiro na América Latina, além da conhecida perda de autonomia dos Estados nacionais. O novo setor trouxe, além disso, uma série de implicações: Aumento da relação capital-trabalho (K/L): a tecnologia era altamente poupadora de “fator trabalho”, ignorando o imenso reservatório de mão-de-obra oriundo da economia pré-capitalista. Dessa maneira, o volume de investimento em P5, necessário para empregar o mesmo que em P4, precisava ser

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muito maior. O novo setor tornava-se o responsável pela absorção da mãode-obra de P1, mas essa absorção se dava lentamente, mantendo os salários num nível mínimo, aumentando a concentração de renda e “estreitando” os mercados; Queda da relação produto-capital (P/K) no setor P5: era dada pelos preços elevados dos equipamentos requeridos para a produção, pela “estreiteza” dos mercados desse setor e pela ausência de meios adequados de financiamento; Redução da relação produto-capital (P/K) para todo o sistema: a “substituição de importações” de máquinas só se tornou viável quando os preços externos alcançam determinado nível. Os preços internos, portanto, também eram altos e acarretavam um aumento da relação capital-produto (K/P). Além disso, o redirecionamento dos recursos para a indústria (P4 e P5) aumentava os custos do setor agricultura. O maior dinamismo de P5 reduzia a transferência de mão-de-obra de P1 para P2 e P3 e, dada a menor absorção de P5, provocava o crescimento mais lento da massa de salários, com efeitos depressivos sobre a demanda global; Em síntese: “a demanda global vai mudando sua composição de tal forma que os recursos produtivos deverão orientar-se no sentido de aumentar a participação daqueles setores em que é menor a produtividade de K (P/K) (bens de consumo duráveis) e de reduzir a daqueles em que essa produtividade é relativamente maior (agricultura capitalista). Surge, assim, um processo cumulativo circular pelo qual as transformações na composição da demanda global determinam modificações na estrutura da oferta que, ao concretizar-se, acarretam: a) elevação na relação capital-trabalho do conjunto do sistema econômico (K/L), b) declínio na transferência de mãode-obra dos setores da baixa para os de mais alta produtividade, e c) aumento na relação capital-produto da economia como um todo (K/P).” (Ibid., p. 80-81) A concentração de renda, portanto, trabalha em duas direções. Por um lado, atuando juntamente com a imposição de formas de consumo “sofisticadas”, obriga a indústria a adotar técnicas que elevam o coeficiente de capital por unidade de emprego, realimentando essa concentração num nível mais elevado. Por outro, “tende a reduzir a taxa de crescimento, na medida em que provoca declínio na relação produto-capital, em conseqüência da concentração dos investimentos nas indústrias de bens duráveis de consumo, com respeito às quais são maiores os obstáculos causados pelas inadequadas dimensões do mercado”. A tendência à estagnação é generalizada “na medida

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em que provoca redução relativa dos investimentos no setor agrícola, onde a formação de capital se efetiva, em grande parte, através de absorção de mão-de-obra proveniente do setor pré-capitalista.” (Ibid., p. 81, grifos meus) Furtado defende assim a existência de um “circulo vicioso do subdesenvolvimento”: a tecnologia “originária” e “autônoma” nos países centrais e “imposta” nas economias subdesenvolvidas dá origem a um efeito multiplicador Keynesiano “funcionando em sentido inverso”, para poupar mão-de-obra. A concentração de renda e o “consumismo” (imposto econômica e culturalmente) debilitam a poupança e realimentam a necessidade de “sofisticar a tecnologia”, cada vez mais exigente quanto ao tamanho da demanda. O mercado vai se estreitando e o resultado é uma “crise de subconsumo e de superacumulação que – pelos efeitos depressivos sobre a taxa de excedente produzido pela ociosidade do capital, por uma relação capital-trabalho alta – desemboca numa crise de subacumulação.” A possibilidade de “negação” desse ciclo só seria possível fora dos “mecanismo de mercado”, ou seja, através das já conhecidas técnicas de planejamento. (Oliveira, 2003b, p. 28-29) 2.3 – Além da estagnação: as “debilidades” da teoria estagnacionista e o “milagre perverso18” A base da argumentação do texto de Maria da Conceição Tavares e José Serra é mostrar que, longe de levar à estagnação, a concentração de renda existente em nosso país tinha uma “funcionalidade”. Esses autores são extremamente duros com relação a Furtado, enfatizando suas “debilidades” e “crença” nessa “idéia” de estagnação. Para eles Furtado tinha “prejudicado significativamente a evolução das interpretações sobre o funcionamento de algumas economias como, por exemplo, a do Brasil” (Tavares, 1974, p. 155-156) A crise que passou as economias latino-americanas não tinha sido uma “estagnação estrutural”, mas apenas o esgotamento do processo de substituição de importações. A crise, momentânea, era, na realidade, a transição para um novo modelo de desenvolvimento capitalista, apesar de reforçar alguns de seus traços antigos, como a exclusão social, a concentração espacial da atividade e a heterogeneidade nos níveis de produtividade. O capitalismo, no Brasil em especial, embora tenha se desenvolvido de maneira “crescentemente desigual”, “incorporando e excluindo setores da população e estratos econômicos, levando a aprofundar uma série de diferenças relacionadas com consumo e 18

A expressão pertence a Maria da Conceição Tavares e a José Serra.

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produtividade, conseguiu estabelecer um esquema que lhe permite autogerar fontes internas de estímulo e expansão que lhe conferem dinamismo.” (Ibid., p. 155-156) Segundo esses autores, no “modelo” de Furtado, o tamanho do mercado parecia depender mais do número de pessoas do que da magnitude do excedente econômico intercambiável. “Marginalidade, desemprego estrutural, infraconsumo etc. não constituem em si mesmo, nem necessariamente, problemas fundamentais para a dinâmica da economia capitalista”. (Ibid., p. 157) Basicamente, três críticas esses autores fizeram à tese estagnacionista de Furtado, sendo elas: as suas categorias de análise, a consistência interna do próprio modelo e a aderência à realidade. Correndo o risco de simplificar e até mesmo empobrecer, dividimos a exposição dos autores em dois itens: 2.3.1 – Categorias de análise e consistência interna Os autores levantaram as seguintes críticas: Relação produto-capital (P/K): a queda da relação é resultado e não causa da estagnação. Além disso, não faz parte do cálculo do empresário que está preocupado com o “lucro esperado”. A crise que acompanhou o esgotamento do processo de substituição de importações estava, portanto, ligada à queda do investimento devido as expectativas negativas do empresário; Igualação das taxas de lucro: era um pressuposto falho – e estranho a sua presença, pois, como vimos, Furtado constatou a presença do grande capital estrangeiro na América Latina19 – em condições reais de “mercado imperfeito” e com forte grau de monopólio tecnológico; Progresso tecnológico: Furtado esquece que os “novos” equipamentos incorporados à economia são mais “eficientes” e por isso poupam não só mão-deobra, mas também capital; Mais-valia: ao negar trabalhar com essa categoria, Furtado não pode perceber que mesmo que caia a relação produto-capital é possível que o aumento da taxa de mais-valia compense, provocando aumento do excedente a ser investido. Em resumo: 19

O autor talvez não tenha associado a presença desse grande capital com o mercado oligopolista e suas conseqüências sobre as flutuações da taxa de lucro, conforme a teoria microeconômica.

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“se as categorias com que trabalha fossem as mais pertinentes, dificilmente se poderia concluir que a estagnação fosse inevitável no tipo de economia por ele estudada. (...) Na realidade, ao trabalhar com „categorias resultado‟, na consideração das taxas de lucro das diferentes indústrias que tenderiam a igualar-se do mesmo modo que os salários, ao separar a intensificação do uso do capital da penetração do progresso técnico e, além disso, não considerar os efeitos deste sobre a produtividade dos investimentos nem os efeitos das diferentes modalidades de economias externas, Furtado parece ter vestido a „camisa de força‟ de um modelo neoclássico de equilíbrio geral – elegante mas ineficaz para explicar a dinâmica de uma economia capitalista.” (Ibid., p. 167) 2.3.2 – Poder de explicação da realidade: “agonia e êxtase20” Para Tavares e Serra a crise do período 1962-1967, a nível estrutural, foi fruto do esgotamento do processo de substituição de importações. A economia tinha esvaziado o “pacote” de investimentos durante o período Juscelino Kubitschek, utilizando as reservas de mercado preexistente. A decorrência foi a inexistência de um volume adequado de investimentos capaz de assegurar a manutenção da taxa de expansão da economia. A renda concentrada limitava a diversificação e a expansão adequada do consumo dos grupos médios. O financiamento dos investimentos no setor privado estava limitado pela relação excedente-salários e no setor público pela relação gastos-carga fiscal. A solução para esses impasses estava, portanto, na redistribuição da renda “para cima” e na compressão absoluta dos salários. A inflação no período anterior, ao mesmo tempo em que solucionava esses problemas, acelerava a crise. A “rentabilidade esperada do capital” era mantida artificialmente via valorização dos ativos reais. A política cambial e os subsídios do governo “socializavam os custos” dos insumos básicos e dos bens de capital, também influindo nessas expectativas. O resultado foi um sobreinvestimento físico que tendia a diminuir a relação produto-capital. A inflação tinha perdido a sua “funcionalidade” e sua aceleração levou a intensificação das pressões dos trabalhadores. O clima de instabilidade provocava “O declínio da rentabilidade esperada dos investimentos, o fim dos lucros ilusórios e a redução do volume de recursos para investimento levaram a uma forte redução das taxas de investimento global, tanto público como privado.” (Ibid., p. 169) A crise do período 1962-1967 estava dividida, basicamente, em duas fases. Na primeira, numa alusão ao Plano Trienal (1963-1965) elaborado por Celso Furtado (Ministro do Planejamento) e Santiago Dantas (Ministro da Fazenda), os autores afirmam 20

As palavras são de Oliveira (1989).

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que houve uma tentativa de redistribuir a renda a favor dos assalariados através de uma política de salários e preços. Contudo, ao tentar frear a inflação, via contenção dos gastos públicos, crédito privado e liquidez do sistema, com uma política monetária rígida, o governo acabou provocando uma recessão. Soma-se a isto, o ataque ao capital estrangeiro com a lei de restrição às remessas de lucro. Na segunda fase (1964-1967), com o regime militar no poder, a crise ganhava outro sentido, aparecendo como a preparação para o posterior período de expansão da economia, puxado por um novo estilo de desenvolvimento capitalista. O aumento da carga fiscal, a diminuição dos gastos públicos e do crédito e a compressão salarial21 foram “funcionais”, “limpando o campo para uma reconcentração da atividade industrial e comercial.”. A reforma tributária e a do mercado de capitais “prepararam o terreno para um novo esquema de funcionamento do setor público e privado.” Houve também uma acelerada desnacionalização das empresas, “visto que não apenas as empresas estrangeiras eram mais capazes, como também obtiveram enormes facilidades para internar recursos financeiros (Instrução n. 289).” (Ibid., p. 171) A solidariedade entre o Estado e o capital estrangeiro era o “fator-chave” da nova expansão, “ambos participam de modo predominante no investimento e produção dos principais setores dinâmicos sem que haja entre eles contradições importantes no plano da tomada de decisões. (...) o Estado brasileiro não tem, ao contrário do que ocorria em épocas anteriores, maiores compromissos com a chamada burguesia „nacional‟ ou com os esquemas do tipo populista.” Essa solidariedade, no fundo uma “nova dependência” (tecnológica e financeira), contrastava coma realização da produção, apoiada no mercado interno. (Ibid., p. 177-178) As atividades mais modernas, comandadas pelas empresas estrangeiras, estavam em condições privilegiadas para “gerar e apropriar-se de uma parcela maior do excedente econômico.” Isto porque, além da produtividade física mais alta, “proveniente do uso de técnicas mais avançadas e eficazes,” remuneravam os trabalhadores muito abaixo do nível de produtividade. (Ibid., p. 179) Na alocação do excedente, um ponto importante dessa nova fase de expansão é a transferência deste para alimentar o setor de serviços e as atividades executadas direta ou indiretamente pelo setor público, “através de uma política de renda, emprego, gastos e preços”. A expansão de serviços pessoais e “diversos” “pode ser vista como uma for21

Furtado talvez tenha subestimado essa compressão, pois no seu modelo os salários eram determinados pelo setor de subsistência.

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ma de transferência de excedente da burguesia e altos grupos médios para setores da população que não chegam a incorporar-se ao sistema como força regular de trabalho, necessária para a sua expansão.” Essa transferência era importante porque incorporava ao consumo uma parte da população urbana, o que ajudava a alimentar a demanda dos setores tradicionais, garantindo a sua expansão. (Ibid., p. 180) As novas formas de acumulação financeira eram outra característica da expansão vigente. As agências nacionais e principalmente as estrangeiras dedicaram-se a organizar um “embrionário mercado de capitais” com o objetivo de permitir a “acumulação de lucros sem relação direta com o processo de geração do excedente real e cuja função básica é facilitar a realização dinâmica de excedente.” (Ibid., p. 181) O novo processo de acumulação, contudo, alimentava traços antigos, oriundos da forma como se objetivou o capitalismo em nosso país. Os setores responsáveis por dar dinamismo ao processo estão, em geral, ligados ao sistema capitalista internacional. A tecnologia moderna concentra-se nessas atividades de ponta, irradiando somente para alguns setores complementares. O movimento que “incorpora” e “difunde” progresso técnico é resultado de uma sucessão de formas de expansão. Os setores mais modernos, num determinado momento, podem ser primitivos em outros, o que perpetua a heterogeneidade nos níveis de produtividade. A homogeneidade, então, só pode existir quando o excedente não se concentra somente nos setores modernos, diminuindo os diferenciais de produtividade. O quadro abaixo sintetiza a sucessão de diferentes setores dinâmicos e complementares ao longo do recente desenvolvimento capitalista.

Quadro1 Incorporação e difusão de progresso técnico Fases do processo de Acumulação

Setores dinâmicos

Setores complementares

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Primário-exportadora 1a fase da industrialização por substituição de importações 2a fase do processo de substituição de importações Etapa atual

Exportador

Infra-estrutura de apoio

Bens de consumo não duráServiços urbanos veis Bens intermediários e bens de capital Diversificação da oferta de Bens intermediários, bens de bens de consumo duráveis capital e mercado financeiro Bens de consumo duráveis

Fonte: elaboração própria Junto com essa “incorporação e difusão do progresso técnico” atua um processo de “concentração e desconcentração da renda” que surge da contradição entre geração e realização do excedente, mas como uma síntese que recria essa contradição num novo patamar do processo de acumulação. Isto permite que a evolução dos padrões de distribuição de renda, que acompanhou o desenvolvimento da economia brasileira, garanta a realização – sobretudo por parte dos grupos sociais médios e altos do meio urbano – das mercadorias dos atuais setores dinâmicos: “(...) o capitalismo brasileiro viu-se diante da situação de afogar-se no excedente e não conseguir realizar seu valor. Buscou-se, como já se viu, uma saída através do aumento da taxa de mais-valia sobre a força de trabalho incorporada e de uma nova reconcentração da atividade econômica e da renda. Tudo isso visando, implícita ou explicitamente, ampliar o mercado das classes médias, intensificar a capitalização e promover uma nova onda de expansão.” (Ibid., p. 193-194) O Estado cumpre papel importante nesse processo: “a) na orientação dos investimentos públicos com a finalidade de proporcionar diversas modalidades de economias externas às atividades do setor moderno ou de beneficiar diretamente o consumo dos grupos incorporados a este setor; b) na política econômica propriamente dita. Seria o caso da política salarial, cambiária e mesmo de financiamento, tendentes a beneficiar direta ou indiretamente as atividades e o consumo moderno. A concentração dos investimentos privados e públicos e do consumo, bem como as facilidades institucionais criadas, tendem a permitir que a acumulação do excedente gerado no pólo moderno se mantenha em condições de certa rentabilidade.” (Ibid., p. 186) Esse movimento conjunto cria “ciclos de modernização” que se iniciam no pólo moderno e invadem os setores complementares, mas de forma restrita, somente naqueles que possuem relações funcionais mais estreitas com o primeiro. Os limites que impedem a distribuição do excedente entre os setores, ao estreitar a relação entre o pólo dinâmico e o resto da economia, seria a “baixa elasticidade-renda da demanda” de ali-

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mentos por parte dos grupos sociais médios e altos, a “poupança” de insumos criada pelo progresso técnico e a possibilidade de extrair “renda diferencial” no sentido ricardiano com os desníveis de produtividade. (Ibid., p. 187-188) A manifestação do processo cria dois efeitos com relação à absorção de mão-deobra: “por um lado, o da exclusão e/ou expulsão e, por outro, o de incorporação nas novas atividades que surgem.” O setor moderno quando se expande “verticalmente”, “sem absorver ou liquidar atividades tradicionais”, exclui esses demais setores de explorar à sua maneira, mais intensa, a mão-de-obra, aumentando a heterogeneidade nos níveis de produtividade. Quando a modernização se estende aos demais setores mais tradicionais, “amplia-se a base de geração de excedente absoluto e relativo (ao elevar-se a produtividade e manter-se constante os salários), mas acelera-se a taxa de expulsão de mão-de-obra antes empregada nas atividades que se modernizaram.” (Ibid., p. 191-192). Em resumo: “(...) ao mesmo tempo em que se amplia a base de geração do excedente ampliado, alimenta-se o processo de marginalização social que implica uma concentração da força de trabalho em áreas econômicas residuais ou atividades „depósito‟. Desse modo, a extensão do setor moderno agrava, paradoxalmente, a heterogeneidade pelo lado da marginalização. Neste sentido, a incorporação e expulsão passam a ser duas tendências simultâneas e contraditórias do processo de expansão e modernização que assume, então, em sua plenitude, um caráter desigual e combinado.” (Ibid., p. 192) O desenvolvimento capitalista, em geral, se dá concentrando renda, mas não de forma linear. O processo de concentração é acompanhado por um de desconcentração e reconcentração, muda-se “significativamente as relações e a composição interna dos diferentes estratos produtivos, de propriedade, de tamanho da empresa e da renda. Em conseqüência reorganiza-se o mercado e o funcionamento do sistema. Tudo isto sem que, necessariamente, aumente a concentração global (absoluta).” (Ibid., p. 195) Esse processo de contínua redistribuição e reconcentração permite a ampliação do consumo de certos estratos sociais e a geração do excedente necessário. A tabela abaixo mostra, aproximadamente, o perfil da distribuição de renda no Brasil nos anos 1960: Tabela 1 Distribuição de renda nos anos 1960 Grupos

População total

Renda anual Participação Nível absoluto por no total (%) pessoa (dólares)

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A 700.000 (1%) B1 2.800.000 (4%) B2 10.500.000 (15%) C 21.000.000 (30%) D 35.000.000 (50%) Fonte: (Ibid., p. 200)

28 16 21 20 15

8.400 1.200 420 200 90

Onde: “Grupo A: classe alta e burguesia (proprietários, gerentes); Grupo B1: classes médias altas (algumas profissões liberais, altos funcionários, empresários médios); Grupo B2: classes médias urbanas (burocracia pública e privada, pequenos comerciantes); Grupo C: classe assalariada de base; Grupo D: trabalhadores rurais, trabalhadores independentes urbanos, marginais.” (Ibid., p. 199-200) A partir de 1961, a aceleração da inflação passou a corroer os salários dos grupos B2 e C, restando apenas a intensificação da diversificação dos padrões de consumo “suntuários” como elemento de dinamismo, que possibilitasse a realização das mercadorias e a valorização do capital. A partir de 1964, começava-se, num primeiro momento, a redistribuir a renda a favor das classes médias urbanas e contra as classes populares o que, juntamente com a criação de novos mecanismos de financiamento de “bens duráveis”, criava as condições para uma ampliação do mercado. Posteriormente, mantendo os salários médios constantes, mas diminuindo drasticamente o salário mínimo real – algo em torno de 30% entre 1961 e 1967, apesar do aumento da renda familiar ter suavizado essa queda –, ampliava-se o mercado a favor dos grupos médios emergentes. O mercado “moderno” cresceu 80% contra 33% da renda per capita. A tabela abaixo mostra o novo perfil da distribuição de renda nos anos 1970: Tabela 2 Distribuição de renda nos anos 1970 Grupos

População total

A B1

900.000 (1%) 3.600.000 (4%)

Renda anual Participação Nível absoluto por no total (%) pessoa (dólares) 30 12.000 20 2.000

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B2 13.500.000 (15%) C 27.000.000 (30%) D 45.000.000 (50%) Fonte: (Ibid., p. 202)

22,5 15 12,5

600 200 100

Onde: “Grupo A: se apropria do excedente que alimenta o processo de acumulação e diversificação do consumo; Grupo B1: núcleo fundamental do mercado moderno; Grupo B2: base do mercado moderno;

Maior posição absoluta, e relativa no período;

Grupo C: base da extração do excedente e principal suporte do mercado tradicional. Seu poder de compra flutua com o salário mínimo real; Grupo D: fora do mercado consumidor moderno. Uma parte de D representa a base da extração do excedente para os setores tradicionais e tem pequena participação relativa no consumo capitalista; a outra parte, cujas dimensões não se conhece, é constituída pela população marginal.” (Ibid., p. 202-203) Fica patente a polarização do mercado de trabalho. Apesar de não enfatizado pelos autores, as evidências empíricas indicam que a compressão salarial deve ter sido ainda mais violenta para os trabalhadores do Grupo D, o que talvez seja um dos motivos que possibilitaram a maior oferta de “bens salários” e o crescimento do salário real ao longo da década de 197022. Dessa forma, o Brasil conseguiu, “graças ao seu intensivo e acelerado processo de modernização, ampliado por suas dimensões espaciais, alcançar uma grau de heterogeneidade sem paralelo na América Latina (com a possível exceção do México), sem que isto entorpecesse sua dinâmica. Neste processo coexistem altas taxa de incorporação, expulsão e marginalização – sem que o conjunto dessas três tendências tenha-se revelado contraditório com a expansão. Até agora isto contribuiu para dificultar a manifestação, no interior do processo se expansão capitalista, das violentas contradições sociais e políticas derivadas do caráter excludente do desenvolvimento capitalista verificado no Brasil. Embora tenha-se ampliado a base econômica do conflito de classes, vem-se desenvolvendo muito lentamente nas massas a corres22

Sobre o aumento da produtividade no setor de bens salários na década de 1970 ver Casseb (1996).

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pondente capacidade de pressionar por suas reivindicações, seja pela força da coerção que sofrem, seja pelo seu baixo nível de organização.” (Ibid., 194) Todo esse movimento de incorporação e difusão do progresso técnico e concentração, redistribuição e reconcentração da renda longe de acabar com as crises de realização, “inerente a qualquer sistema capitalista”, fez com que esta adquirisse “características mais dramáticas e específicas nos sistemas dependentes subdesenvolvidos, como o brasileiro.” Para preservar a taxa de lucro no setor moderno, o excedente precisava ser mantido nesse setor, realimentando os problemas de realização e levando, desde 1968, o país a desenvolver o sistema financeiro. O capitalismo brasileiro vê-se, portanto, constantemente “diante de uma situação de afogar-se no excedente e não conseguir realizar o seu valor” (Ibid., 1974) 2.4 – Expansão pós-1964: concentração de renda, realização da acumulação e progressão da contradição “(...) boa parte da intelectualidade latino-americana, nas últimas décadas, dilacerou-se nas pontas do dilema: enquanto denunciavam as miseráveis condições de vida de grande parte da população latino-americana, seus esquemas teóricos e analíticos prendiam-nos à discussões em torno da relação produto-capital, propensão para poupar ou investir, eficiência marginal do capital, economias de escala, tamanho do mercado, levando-os, sem se darem conta, a construir o estranho mundo da dualidade e a desembocar, a contragosto, na ideologia do círculo vicioso da pobreza.” (Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista) Certamente Crítica à razão dualista (1972) tornou Francisco de Oliveira o crítico mais importante do ao trabalho de Celso Furtado, de sua Teoria do Subdesenvolvimento e do “estranho mundo da dualidade” que acompanha essa teoria. Contudo, ao lado da crítica, Francisco de Oliveira sempre manifestou um grande respeito por sua contribuição , considerando-a, juntamente com a construção teórica cepalina – da qual não se separa –, como “a mais original e mais rica (...) em ciências sociais que se produziu na América Latina e sobretudo no Brasil.” (Oliveira, 2003b, p. 52) Apresentamos no Capítulo 1 a principal crítica de Francisco de Oliveira à Teoria do Subdesenvolvimento, qual seja, a oposição apenas formal entre o “atrasado” e o “moderno”, quando o processo real mostrava a existência de uma relação “dialética” na qual o “moderno” cresce se alimentando e reproduzindo o “atrasado”. A indiferença do “moderno” em relação ao “atrasado” é importante na construção teórica de Celso Furta-

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do, visto que é o ponto de partida para caracterizar as subseqüentes “particularidades” das economias subdesenvolvidas e a tendência à estagnação, dada pelo estreitamento dos mercados. Nas palavras de Francisco de Oliveira: “Segundo o modelo dualista cepalino, nessa forma estaria a raiz da formação de dois pólos, o „atrasado‟ e o „moderno‟, e a imposição de formas de consumo sofisticadas que debilitariam a propensão para poupar de um lado, e de outro, por serem demandas quantitativamente pouco volumosas, obrigariam a indústria a superdimensionar suas unidades, adotar técnicas capital-intensives diminuindo o multiplicador do emprego, trabalhar com capacidade ociosa e deprimir a relação produto/capital: a alongo prazo, isso redundaria numa deterioração da taxa de lucro e da taxa de inversão e, consequentemente, da taxa de crescimento.” (Oliveira, 2003a, p. 49-49) Francisco de Oliveira também não deixa de ressaltar os méritos de Maria da Conceição Tavares e José Serra por renovarem “a discussão sobre economia brasileira”, retornando a “um estilo e um método de interpretação que estiveram ausentes na literatura econômica latino-americana durante muito tempo, sepultados sob a avalanche cepalina”, inscrevendo-se “como um marco e um roteiro para novas indagações”, “ainda quando se permaneça no marco conceitual do modelo cepalino.” O autor está enaltecendo as categorias marxistas de análise esquecidas pelo “estilo cepalino de análise”, que tinha dado “largas à utilização do arsenal marginalista e keynesiano, estes conferindo honorabilidade e reconhecimento científico junto ao establishment técnico e acadêmico.” (Ibid., p. 30 e 49) Estavam ausentes no “modelo” de Furtado categorias como a “mais-valia”, suficiente “para explicar como, ainda no caso de serem corretos os supostos cepalinos, sua conclusão unidirecional é equivocada, pois podem aumentar a mais-valia relativa e ainda a mais-valia absoluta”, compensando a queda na relação produto-capital. Além disso, Furtado subestima o poder das posições monopolísticas das empresas de elevar os preços dos produtos e, com isso, aumentar a rentabilidade ou a taxa de lucro, “ainda quando fisicamente o capital não seja usado integralmente”. (Ibid., p. 49) A “imposição de formas de consumo sofisticadas”, que guia o processo de substituição de importações, deixa transparecer que a industrialização se funda numa necessidade de consumo e não da acumulação. Além disso, a imposição parece ser feita “em abstrato”, sem levar em conta o movimento real, dado pelas contradições entre as classes. No modelo de Furtado “começa-se a produzir bens sofisticados de consumo, e essa produção é que cria as novas classes, é que conforma o padrão de distribuição da renda,

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é que „perverte‟ a orientação do processo produtivo, levando no seu paroxismo à recriação do „atrasado‟ e do „moderno‟.” (Ibid., p. 50) Na realidade, começou-se a produzir internamente os “bens de consumo nãoduráveis” pela necessidade de manter baixo o custo de reprodução da força de trabalho. Se numa segunda fase houve a possibilidade de expansão da produção de “bens de consumo duráveis”, “não se deve a nenhum fetiche ou natureza dos bens, a nenhum „efeitodemonstração‟, mas à redefinição das relações trabalho-capital, à enorme ampliação do „exercito industrial de reserva‟, ao aumento da taxa de exploração, à velocidades diferenciais de crescimento de salários e produtividade que reforçaram a acumulação.” (ibid., p. 50) A produção desse tipo de bem, iniciada no governo Juscelino Kubitschek, encontrava justificativa na estrutura da distribuição de renda e nas relações com o capitalismo internacional, “a expansão do capitalismo no Brasil é impensável autonomamente, isto é, não haveria capitalismo aqui se não existisse um sistema capitalista mundial”. (Ibid., p. 74). Contudo, a expansão do capital estrangeiro, sobretudo nesses setores considerados dinâmicos, está muito longe de se caracterizar como uma “desnacionalização do processo de tomada de decisões”: “no fundo, as decisões são tomadas tendo em vista, em primeiro lugar, o processo interno de reprodução do capital, e as políticas das empresas tentam extrair dessa diretriz básica a compatibilidade com seus respectivos processos de reprodução do capital no nível dos seus conjuntos supranacionais”. (Ibid., p. 77) Esse padrão de acumulação pode realizar as suas mercadorias internamente devido a enorme concentração de renda e, nesse sentido, “Pouco importa, para a rationale da acumulação, que os preços nacionais sejam mais altos que os dos produtos importados”, o que não pode acontecer é que esses altos preços se transmitam para as mercadorias que fazem parte do custo de reprodução da força de trabalho, nem para aquelas que se realizam em mercados externos: “para o processo capitalista no Brasil é importante que o custo de produção do café seja competitivo internacionalmente, mas nenhuma importância tem o fato de que os automóveis nacionais sejam duas a três vezes mais caros que seus similares estrangeiros.” (Ibid., 51-52). Em suma: “A evidente desigualdade que se reveste que, para usar a expressão famosa de Trotsky, é não somente desigual mas combinada, é produto antes de uma base capitalística de acumulação razoavelmente pobre para sustentar a expansão industrial e a conversão da economia pós anos 1930, que da existência de setores „atrasado‟ e „moderno‟.” (Ibid., p. 59-60)

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A industrialização em nosso país se dá num contexto de já razoável desenvolvimento tecnológico em nível mundial. A existência de uma imensa reserva de “trabalho morto” faz com que o processo de acumulação “queime várias etapas”, não é preciso esperar que o preço da força de trabalho chegue a determinado patamar para introduzir tecnologias que poupam trabalho. Esse fator, somado às leis trabalhistas, regulamentada no primeiro governo Vargas, multiplica a produtividade das inversões, portanto, “o problema não é que o crescimento industrial não crie empregos – questão até certo ponto conjuntural –, mas que, ao acelerar-se, ele pôs em movimento uma espiral que distanciou de modo irrecuperável os rendimentos do capital em relação ao trabalho.” (Ibid., p. 66-67) A contradição desse processo é que essa “„queima‟ de etapas de acumulação”, “reduz o circulo de realização interna do capital”, torna “o efeito multiplicador real da inversão mais baixo que o efeito potencial que seria gerado no caso de uma realização interna total do capital”. (Ibid., p. 67) A crise que surge após o governo Juscelino Kubitschek se dá “no nível das relações de produção da base industrial, tendo como causa a assimetria da distribuição dos ganhos de produtividade e da expansão do sistema”. (Ibid., p. 88). As contradições sociais tornaram-se mais agudas com a presença do capital oligopolista. A necessidade de aumento da taxa de exploração do trabalho criou um período de agitação social por parte da classe trabalhadora em geral: operários e outros empregados, funcionários públicos e trabalhadores rurais. Francisco de Oliveira, dessa forma, discorda de Maria da Conceição Tavares e José Serra “de que a crise é motivada pela redução das expectativas de inversão. (...) Pensar que, nessas condições, poder-se-iam manter os horizontes do cálculo econômico, as projeções de investimento e a capacidade do Estado de atuar mediando o conflito e mantendo o clima institucional estável, é voltar ao economicismo: a inversão cai não porque não pudesse realizar-se economicamente, mas sim porque não poderia realizar-se institucionalmente.” (Ibid., 91-92) O primeiro governo militar realiza medidas importantes para o posterior período de expansão da economia. O Plano de Ação Econômica (PAEG) tinha como objetivo principal acabar com inflação, e sua “particularidade” estava na aplicação de uma política “seletiva”, que “procura transferir às classes de rendas baixas o ônus desse combate, buscando que as alterações no custo de reprodução da força de trabalho não se transmitam à produção, ao mesmo tempo que deixa galopar livremente a inflação que é adequada à realização da acumulação, através do instituto da correção monetária”. Soma-se

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a essas medidas, a reforma fiscal, a contenção dos salários e a estruturação do mercado de capitais que permitiu o “descolamento23” do capital financeiro e deu fluidez à circulação do excedente econômico. (Ibid., p. 94-95) A desigualdade na distribuição de renda não foi um obstáculo para a expansão, muito pelo contrário, a “crise de realização do tipo clássico existiria se, mantendo-se altos os preços dos produtos nacionais, a distribuição de renda fosse mais igualitária, e não o contrário” (Ibid., p. 96). Essa concentração de renda e os ganhos de renda real dos estratos mais ricos da sociedade no período de expansão da economia asseguraram a realização dos “bens de consumo duráveis”. O aumento da massa de rendimento nos estratos de renda mais baixa garantiram, em parte, a expansão, embora em nível bem menor, do setor de bens de consumo não-duráveis. A demanda por bens de capital também pôde se sustentar, “já que o ritmo de crescimento e os preços relativos dos bens de consumo duráveis satisfizeram a condição de crescimento do departamento de bens de capital.” (Ibid., p. 98) A tabela abaixo mostra a distribuição de renda em nosso país em 1960 e 1970. Durante o período, é destaque a extrema concentração ocorrida nos segmentos de maior renda. Enquanto, em 1960, 1% da população se apropriava de 11,72% da renda, em 1970, essa participação subiu para 17,77%. Já os 5% mais ricos aumentaram sua participação de 27,35% para 36,25%.

Tabela 3 Distribuição de renda nos anos 1960 e 1970 População % População 40 10 10 10 10 10 10 5% superiores 23

% Acumulada 40 50 60 70 80 90 100

Renda % Apropriada % Acumulada 1960 1970 1960 1970 11,20 9,05 11,20 9,05 6,49 4,69 17,69 13,74 7,49 6,25 25,18 19,99 9,03 7,20 34,21 27,19 11,31 9,63 45,52 36,82 15,61 14,83 61,13 51,65 38,87 48,35 100 100 27,35 36,25

A expressão é de Maria da Conceição Tavares.

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1% superior 11,72 Fonte: (Ibid., p. 95-97, elaboração própria)

17,77

A tabela nos mostra que dificilmente poderia se sustentar a hipótese de “redistribuição intermediária” da renda formulada por Maria da Conceição Tavares e José Serra. Para os autores, como os pequenos acréscimos na renda não possibilitavam a incorporação das classes baixas ao consumo dos “bens duráveis”, buscou-se uma “transferência de excedente, produzida pela compressão salarial, das classes de renda baixa para as classes médias”. A falha reside no “fato de que a compressão salarial, impedindo o crescimento dos salários, transfere os ganhos da elevação da mais-valia absoluta e relativa para o pólo da acumulação e não do consumo. (...) A mecânica do raciocínio é correta, mas falta-lhe consistência pela razão de que não há relações de produção entre classes trabalhadoras e classes médias e, na ausência dessas relações, confere ao aparato de Estado uma racionalidade que ele não tem, para operar a „redistribuição intermediária‟. (...) Além disso, se as rendas das classes médias fazem parte da mais-valia, elevá-las significaria debilitar a inversão e não o contrário.” (Ibid., p. 99-100) O aumento da exploração do trabalho, entendido como a essência do “milagre” econômico, traz, contudo, uma questão: “Onde vai parar, pois, o superexcedente arrancado dos trabalhadores e a que fins ele serve dentro do sistema?” A resposta, resumidamente, seria a seguinte: “o superexcedente, resultado da elevação da mais-valia absoluta e relativa, desempenhará, no sistema, a função de sustentar uma superacumulação, necessária esta última para que a acumulação real possa realizar-se.” (Ibid., p. 100) Para Francisco de Oliveira a expansão anterior, do período 1957-1962, introduziu uma mudança “qualitativa” que encobriu uma “quantitativa”, ou seja, a implantação dos setores ditos “dinâmicos” criou a necessidade de “homogeneidade monopolística” da economia como condição de sua expansão. Essa condição justificava os esforços do governo no sentido de elevar as taxas de lucro através de uma proteção tarifária extremamente alta e a implementação de diversas formas de incentivo à capitalização e de subsídios ao capital, “aparentemente paradoxais, quando a economia mostra taxas de expansão também surpreendentemente altas.” Para diminuir a resistência de empresas não-monopolísticas e ajudar a realizar esse superexcedente foi adotada, como solução, o desenvolvimento do sistema financeiro. Contudo, o governo, ao criar incentivos para manter alta as cotações da bolsa, a fim de evitar a fuga de capitais e manter num nível elevado a liquidez das empresas, acabou impedindo que as taxas de rentabilidade do

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sistema financeiro se aproximassem das taxas de lucro real, criando uma competição entre a órbita financeira e produtiva. (Ibid., 100-102) O resultado é que, “apesar do incentivo desesperado à capitalização, todo o movimento dos últimos anos não se reflete positivamente ao nível das contas nacionais na conta de formação de capital, o que tem sido interpretado por muitos como sinal de poupança insuficiente do sistema.” Quando, na realidade, a contradição era que “Em condições de poupança crescente, ampliação do „exército industrial de reserva‟ e salários reais urbanos deprimidos, o sistema encontra seus limites se não transforma essa poupança real em acumulação real.” (Ibid., p. 102-103) Para tanto, é necessário que o crescimento das relações entre os departamentos 1 e 2 da economia24 seja mais rápido que o crescimento da poupança. Para suprir a insuficiência do departamento 1, o governo recorreu às importações de bens de capital que, destinadas aos investimentos internos, passaram de US$ 405,6 milhões para US$ 1.073,9 milhões, entre 1966 e 1970. O fraco crescimento do setor de bens de consumo não-duráveis, que apresentava problemas de realização devido à compressão salarial, foi amenizado com o redirecionamento para os mercados externos, através de subsídios à exportação. O setor de “bens de consumo duráveis”, que não apresentava tendência à crise de realização, se expandiu através da renovação constante dos modelos, compatibilizando a necessidade de valorização do capital com a realização de mercadorias, “a evolução do prosaico Volkswagen para os Galaxies e Dodges, e a introdução da televisão em cores, por exemplo, cumprem esse papel.” (Ibid., p. 103-104) O grande endividamento do período estava muito acima das reais necessidades de acumulação de capital, pois entre 1969 e 1971 a parte da dívida referente ao financiamento das importações cresceu apenas 37%, contra 65% do empréstimos em moeda. Na realidade, esses empréstimos constituíram “um expediente de reinjetar no sistema o excedente gerado mas não absorvido produtivamente”, dada a “lógica de funcionamento do sistema, que não consegue operar a alocação de recursos entre setores e entidades deficitárias e superativas, sem passar por uma instância que aumente a taxa de lucro.” (Ibid., p. 115-116) A resolução

alimentação das contradições se dá intensificando a exploração do

trabalho. Dessa forma, “a expansão capitalista da economia brasileira aprofundou no 24

Francisco de Oliveira trabalha aqui com a denominação de Marx, quando analisa o processo de circulação do capital. O departamento 1 é responsável pela produção de bens de capital e o departamento 2 pela produção de bens de consumo.

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pós-ano 1964 a exclusão que já era característica que vinha se firmando sobre as outras e, mais que isso, tornou a exclusão um elemento vital de seu dinamismo.” (Ibid., p. 118) 2.5 – A resposta de Furtado: a análise do “modelo” brasileiro e o mito do desenvolvimento econômico “(...) as economias da periferia nunca serão desenvolvidas, no sentido de similares às economias que formam o atual centro do sistema capitalista. Mas como negar que essa idéia tem sido de grande utilidade para mobilizar os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios, para legitimar a destruição de formas de cultura arcaicas, para explicar e fazer compreender a necessidade de destruir o meio físico, para justificar formas de dependência que reforçam o caráter predatório do sistema produtivo? (...) Cabe, portanto, afirmar que a idéia de desenvolvimento econômico é um simples mito.” (Celso Furtado, O mito do desenvolvimento econômico) Em suas obras posteriores a Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina Furtado abandona a tese “estagnacionista”. Não somente devido às críticas suscitadas, mas também pelo rápido crescimento da economia, que tornou insustentável sua defesa. Sua nova tarefa agora era interpretar o “milagre” e a “funcionalidade” da concentração de renda à luz de suas categorias de análise. A unidade que caracteriza as obras Análise do “modelo” brasileiro (1972) e O mito do desenvolvimento econômico (1974) é a percepção do autor quanto à hostilidade do então dinamismo da economia em relação as massas. Apesar de sua teoria da “internacionalização” ou “imitação” dos “padrões de consumo” deixar transparecer que o objetivo do capitalismo é a satisfação das necessidades, mesmo que seja de uma “minoria”, fica patente a sobreposição das relações sociais sobre os homens: “a ação do homem transforma-se para ele num poder estranho que se lhe opõe e o subjuga, em vez de ser ele a dominá-la” (Marx & Engels, s/d, p. 40). A tese de que a industrialização constitui “razão suficiente para a absorção do subdesenvolvimento” estava “certamente desacreditada.” (Furtado, 1973, p. 8). O Brasil tinha se “modernizado”, adotado novos “padrões de consumo”, mas não se “desenvolvido”, ou seja, a população, em seu conjunto, não foi beneficiada pela expansão da economia. (Furtado, 1974). Tendo em vista que a concentração de renda é fator de dinamismo na periferia e que realimenta o subdesenvolvimento, “é mesmo possível que ele seja inerente ao sistema capitalista, isto é, que não possa haver capitalismo sem relações

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assimétricas entre sub-sistemas econômicos e as formas de exploração social que estão na base do subdesenvolvimento” (Ibid., p. 94). A constante diversificação dos “padrões de consumo”, sob o “privilégio” de uma minoria, acelera a depredação dos recursos naturais e “levaria inexoravelmente ao colapso de toda a civilização” ao tentar generalizá-lo para toda a população. (Ibid., p. 75). Correndo o risco exagerar na interpretação dessas proposições, em todas elas transparecem a autonomia das relações sociais, seja ela de produção, consumo ou os dois “concomitantemente”. A “diversificação dos padrões de consumo” adquire a forma do “lucro” que move as relações e ganha autonomia sobre os homens, ignorando todo o rastro de contradições que vão se acumulando. O “pessimismo” que marca o pensamento de Furtado nessas obras é fruto da constatação de que os impasses que caracterizam o subdesenvolvimento, teorizado no passado, longe de trazer “estagnação” era fator de “dinamismo”, ou seja, o “milagre” se autodeterminava de forma alheia e hostil em relação às massas. O Estado, longe de ser um instrumento para dar “racionalidade” à história, era não só fonte de repressão, mas também o “fator-chave” para o funcionamento desse processo. Para entender o subdesenvolvimento Furtado considera imprescindível voltar na história e captar a sua especificidade, qual seja, o papel da Revolução Industrial nos países do centro e da periferia. Nos primeiros consistiu em: a) transformação das técnicas produtivas; e b) modificação nos padrões de consumo. A Revolução Industrial significou elevação da produtividade, “maior eficácia na utilização de recursos”, cuja origem estava na aceleração do progresso tecnológico e na ampliação do mercado. (Furtado, 1973, p. 9) Nos países subdesenvolvidos, a Revolução Industrial somente modificou os padrões de consumo, sem modificar as técnicas de produção. A razão para isto estava na forma como essas economias se inseriram na divisão internacional do trabalho. Na economia colonial, primário-exportadora, o excedente, quando não apropriado pelas economias centrais, serviu para a rápida diversificação do consumo da classe dirigente. Posteriormente, quando a demanda internacional pelos produtos agrícolas passou a crescer com lentidão, restou aos países subdesenvolvidos o caminho da industrialização que iniciava tendo uma “minoria” com padrões de consumo já bastante diversificados. Nesse sentido: “A história do subdesenvolvimento consiste, fundamentalmente, no desdobramento desse modelo de economia em que o progresso tecnológico

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serviu muito mais para modernizar os hábitos de consumo do que para transformar os processos produtivos.” (Ibid., p. 11) Para satisfazer esses “hábitos de consumo”, similares aos países centrais, o processo produtivo precisou se apoiar em técnicas intensivas em capital incompatíveis com o nível de renda da população. A solução foi uma industrialização em benefício de uma minoria e a principal conseqüência foi que esse “nível tecnológico, correspondente aos padrões de consumo, restringe a difusão do progresso tecnológico, isto é, sua generalização ao conjunto das atividades produtivas.” (Ibid., p. 11). O resultado disso tudo foi que: “Se, nos países desenvolvidos, o fluxo de novos produtos e o complexo de inovação tecnológicas que os acompanham são essenciais ao funcionamento da economia capitalista, no âmbito mundial tais fatores operam no sentido de preservar as relações de dominação e dependência que caracterizam a atual economia internacional.” (Ibid., p. 13) Ao reproduzir, “com intervalo de tempo decrescente, o fluxo de produtos em permanente diversificação que jorra nas economias desenvolvidas”, a dependência torna-se “quase condição necessária de eficiência.” (Ibid., p. 14) O processo de substituição de importações, ao reproduzir em “miniatura” os sistemas industriais do centro, favorecia a entrada de uma série de subsidiárias de empresas desses países, “a crescente ação dessas empresas tende a criar estruturas econômicas com respeito às quais dificilmente se pode pensar a partir do conceito de sistema econômico nacional.” (Furtado, 1974, p. 54). Em condições de crescente controle tecnológico e financeiro por parte das grandes empresas estrangeiras, o subdesenvolvimento apresenta-se de uma maneira um pouco diferente de suas obras anteriores: “(...) o subdesenvolvimento apresenta-se como uma situação de dependência estrutural, que se traduz por um horizonte estreito de opções na formulação de objetivos próprios e numa reduzida capacidade de articulação das decisões econômicas tomadas em função desses objetivos.” (Furtado, 1973, p. 15) O movimento é, portanto, de reproduzir a dependência em escala cada vez mais ampliada, perpetuando o subdesenvolvimento. A crescente “dotação de capital por trabalhador” aumenta a remuneração do “fator capital”, beneficiando uma “ínfima minoria”. A modificação da estrutura produtiva, nesse sentido, é acompanhada por concentração de renda, “a maior produtividade da mão-de-obra não acarreta, dadas as condições estruturais referidas, aumento sensível na remuneração do trabalho.” (Ibid., p. 27)

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O uso intensivo de capital e a oferta abundante de mão de obra impede que se criem “as condições que em outras partes levaram à formação de pressões sociais que respondem pela elevação da taxa de salário”. Além disso, a economia se fragmenta em mercados com reduzida comunicação: “de um lado está a massa da população, cujo poder de compra médio permanece praticamente estagnado; de outro, está a minoria privilegiada com altos padrões de consumo em rápida diversificação.” (Ibid., p. 27-28). Portanto, “a estrutura industrial brasileira teve de adaptar-se, desde o início, a um perfil de demanda caracterizado por um desnível considerável entre os padrões de consumo da massa e os de uma pequena minoria”, apoiando-se na diversificação os bens como forma de garantir o dinamismo. (Ibid., p. 30) A concentração de renda, ao inibir a difusão, tenderia a “repercutir negativamente na taxa de crescimento” (Ibid., p. 30). Nessas condições, “O chamado „modelo‟ brasileiro constitui uma tentativa de correção dessa insuficiência, mediante um esforço de adaptação da demanda à estrutura da oferta – crescimento mais rápido do poder de compra dos consumidores de bens duráveis – e uma ação mais ampla do Estado na geração de empregos.” (Ibid., p. 66). O mercado é moldado conforme as necessidades da grande empresa, a minoria beneficiada é suficientemente numerosa para possibilitar “economias de escala” na produção desses bens. Segundo Furtado, o governo militar, em 1964, se deparava com as seguintes questões para poder superar o contexto de “relativa estagnação” que então vivia a nossa economia: “Como fazer crescer a demanda de bens duráveis de consumo? Visto de outro ângulo: como utilizar a capacidade de produção já instalada, captando economias de escala, elevando a eficiência marginal das inversões, aumentando a taxa de lucro e ampliando os recursos disponíveis para a formação de capital?” (Ibid., p. 40) As medidas de imediato procuraram restabelecer o equilíbrio do setor público e o controle da inflação e foram importantes para aumentar o poder de participação do governo na formação de capital. Era importante, também, restabelecer as condições para a retomada do crédito externo. Em síntese: “O problema fundamental consistia em criar condições para a retomada do processo de industrialização, a partir do complexo industrial que se dotara o país e que vinha sendo amplamente sub-utilizado.” (Ibid., p. 37-38) A estratégia se resumia nas seguintes linhas de ação: a) Reorientar a concentração de renda no sentido de permitir a ampliação da formação de capital fixo e do mercado de bens de consumo duráveis;

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b) Redução da taxa de salário em relação ao nível de produtividade, facilitando o saneamento financeiro das empresas, liberando recursos para investimento e aumentando o número de empregados – principalmente por parte do governo – compensando pelo aumento da massa salarial as perdas individuais. Nesse sentido, a política salarial teria três fases: 1a, diminuição dos salários sem provocar perda na massa total; 2 a, o salário básico se estabilizaria e a massa poderia crescer, contudo, numa proporção menor que o PIB; e 3 a, a taxa de salário poderia voltar a crescer, numa proporção menor que a produtividade, e a massa total poderia crescer de acordo com o PIB. Dessa forma foram coerentes os incentivos para a construção civil; c) Política de subsídios às exportações: tratava-se, fundamentalmente, de ampliar os mercados para os setores tradicionais da economia, afetados pelo lento crescimento da massa salarial, e para os setores produtores de bens de consumo duráveis com tecnologia mais exigente no que respeita as dimensões de mercado. A atuação do governo, através das tradicionais políticas cambial, fiscal, creditícia e salarial, foi imprescindível. A política cambial devia “preservar a coerência entre os preços das importações, os custos das exportações e o poder de compra interno da moeda.” (Ibid., p. 40). Devia evitar que a inflação corroesse a renda do setor exportador, mas não conflitasse com a capacidade de pagamento ao exterior, tendo em vista a crescente dependência financeira. Por fim, era importante evitar bruscas variações no câmbio para não atrapalhar no “elemento confiabilidade” das empresas multinacionais. A inflação voltava a ter uma “orientação”. Através do mecanismo de correção monetária era possível garantir o nível de renda da classe média alta, pois a emissão de títulos reajustáveis neutralizava os efeitos da inflação sobre a poupança, ao mesmo tempo que comprimia a renda da massa da população. Dessa forma, liberava-se recursos e modificava-se o perfil da distribuição de renda. O crédito foi, primeiramente, a forma de ampliar o mercado de bens duráveis. Os empréstimos das sociedades financeiras para a compra desses bens, em 1970, alcançaram 9,8% do total de empréstimos ao setor privado, igualando o volume de empréstimos dos órgãos de fomento ao desenvolvimento. (Ibid., p. 48). Num segundo momento, essa função passou a ser desempenhada também pelo mercado de capitais, de forma que “a poupança da classe média pudesse ser transformada em títulos financeiros capazes de gerar um fluxo de renda real” (Ibid., p. 43). O governo, através dos incentivos fiscais,

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incentivava as empresas a abrir o capital e estimulava as pessoas físicas a adquirir essas ações: “Uma série de facilidades foram criadas para induzir as empresas abrir o capital. Ademais, as pessoas físicas foram autorizadas a deduzir 12 por cento do imposto de renda (mesmo se este pago na fonte) que são postos à disposição de intermediários financeiros para que estes adquiram ações; até maio de 1970, duas terças partes dessas ações deviam provir de novas emissões, a partir dessa data essa exigência só se aplica a uma terça parte.” (Ibid., p. 45) Dessa forma, a abertura de capital passou a ser uma forma das empresas se apropriarem de parte da poupança pública. “O ambiente especulativo e as altas cotações, sem qualquer relação com perspectivas de dividendos a serem efetivamente distribuídos, atraíram uma massa considerável de recursos para a bolsa. (...) Criou-se, assim, um portafólio que abre à alta classe média a perspectiva de participação no fluxo de renda em mais rápida expansão, que são os lucros industriais.” (Ibid., p. 45) Os incentivos fiscais para a compra de títulos do governo também foram grandes. A aplicação de recursos em letras imobiliárias, em obrigações do Tesouro Nacional e em títulos da dívida pública dos Estados e municípios passaram a ser dedutíveis no imposto de renda: “O número de contribuintes ao Imposto de Renda (pessoas físicas) alcançou 1.172 mil em 1969; se adicionam os dependentes, têm-se os 5 por cento da população do país que constitui o mercado efetivo de bens duráveis de consumo. É interessante observar que a participação do Imposto de Renda na receita tributária da União, que foi de 33 por cento em 1965 (nível idêntico ao de 1961), declinou para 25 por cento em 1970. Com respeito ao PIB, a participação do Imposto de Renda declinou de 3,1 por cento para 2,6 entre os dois anos referidos, não obstante o considerável aumento relativo da renda derivada do capital.” (Ibid., 47) Dessa forma, a continuidade da expansão da economia dependia basicamente de três fatores: o setor de bens duráveis precisava continuar crescendo, sendo fundamental a ação do Estado na manutenção desse mercado; a capacidade de pagamento ao exterior precisava crescer a uma taxa superior ao do PIB; e o Estado deveria continuar garantindo um nível mínimo de emprego através, principalmente, de investimentos na área da construção civil. Para Furtado, a participação do Estado consiste na “particularidade” do dinamismo de nossa economia, pois enquanto os países desenvolvidos possuíam “automatismos internos”, pelo fato dos salários acompanharem o nível de produtividade, nos países subdesenvolvidos, em condições de excedente estrutural de mão-de-obra e in-

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crementos de produtividade em benefício de uma minoria, o fluxo de salários eram insuficientes para formar aquilo que o autor chama de “anel de feedback”:

Expansão da produção Expansão da demanda por bens finais

Expansão dos custos de produção

Expansão da renda disponível para o consumo

Expansão da massa salarial (Ibid., p. 60)

Dessa forma, o “modelo” brasileiro consistiu a na tentativa de restabelecer esse anel mediante a ação do Estado. O Brasil, com isso, tinha se afastado “consideravelmente da economia de laissez-faire, criando uma variante de „capitalismo de Estado‟ que requer para seu funcionamento normal uma íntima articulação entre a classe empresarial e os poderes públicos.” (Ibid., p. 63). A política que visa produzir determinado perfil de demanda é também a que maximiza a expansão do PIB. “Nunca uma economia capitalista foi tão dependente do Estado para articular a demanda com a oferta.” (Furtado, 1974, p. 109). Dessa maneira: “A característica mais significativa do modelo brasileiro é a sua tendência estrutural para excluir a massa da população dos benefícios da acumulação e do progresso técnico. Assim, a durabilidade do sistema baseiase grandemente na capacidade dos grupos dirigente em suprimir todas as formas de oposição que seu caráter anti-social tende a estimular.” (Ibid., 109) 2.6 – Dinamismo excludente e crise: movimento de contradições ou acaso? “O dinheiro surge, por conseqüência, como um poder disruptivo em relação ao indivíduo e aos laços sociais, que pretendem ser entidades subsistentes. Muda a fidelidade em infidelidade, o amor em ódio, o ódio em amor, a virtude em vício, o vício em virtude, o servo em senhor, o senhor em servo, a estupidez em inteligência, a inteligência em estupidez.” (Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos) Maria da Conceição Tavares e José Serra, em Além da estagnação (1971), e Francisco de Oliveira, em Crítica à razão dualista (1972), mostraram que não fazia

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sentido falar em “estagnação estrutural”. A crise que passava a economia no período 1962-1967, muito mais do que momentânea, era a fase de preparação para um novo período de expansão, o “milagre econômico” (1968-1973). O movimento real mostrava que a concentração de renda, longe de causar o “fechamento” dos mercados, era fator de dinamismo. Em Análise do “modelo” brasileiro (1972) e em O mito do desenvolvimento econômico (1974), Furtado procurou interpretar esse “milagre perverso” à luz de suas categorias de análise, através de sua teoria da “importação dos padrões de consumo”. Aquilo que Maria da Conceição Tavares e José Serra consideraram como “incorporação e difusão de progresso técnico” e “processo de concentração, desconcentração e reconcentração da renda” – e que em Furtado aparece mais como uma “força externa”, ou seja, o Estado adequando o perfil da demanda à estrutura da oferta, restabelecendo o “anel de feedback” – é o capital em seu movimento de valorização de certa forma criando o seu próprio mercado, o que não significa negar as crises de realização. O desenvolvimento do mercado financeiro foi uma das formas de solucionar a contradição entre produção e realização da mais-valia. Tratava-se de afirmar – mais por parte dos críticos de Furtado – que o capitalismo, constantemente, resolve, ao mesmo tempo que recria, em escala cada vez mais ampliada, essa contradição e que em nosso país assumia características dramáticas, entre outros motivos, devido à indiferença do setor moderno em relação aos demais. As crises de realização são resolvidas “pavimentando o caminho para crises mais extensas e mais destrutivas e diminuindo os meios pelos quais previnem-se crises.” (Marx & Engels, 2002, p. 18). Nesse sentido, para Marx: “(...) de fato a produção capitalista cria seu próprio mercado; nesse sentido, „resolve‟ a dificuldade de realização da mais-valia. Mas não a resolve completamente, não consegue aboli-la. Apenas „cria a forma‟ dentro da qual ela pode mover-se, remetendo a dificuldade da realização „a uma esfera mais ampla‟, ao abrir espaços de manobra mais dilatados.” (Rosdowsky, 2001, p. 382) Basicamente, para os autores aqui estudados, a “diversificação” em lugar da “difusão”, a concentração de renda, o desenvolvimento do mercado financeiro e o redirecionamento para mercados externos de alguns bens “mais tradicionais” eram, em geral, a forma momentânea de contornar o problema da realização. Diante disso, caberia uma pergunta: havia uma certa harmonia no processo de acumulação durante o “milagre” econômico? A resposta pode ser dada por Francisco de Oliveira ao mostrar que essa solução momentânea cria:

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“(...) uma crise recorrente de Balanço de Pagamentos, que se expressa na contradição entre uma industrialização voltada para mercado interno mas financiada ou controlada pelo capital estrangeiro e a insuficiência de geração de meios de pagamento internacionais para fazer voltar à circulação internacional de capitais a parte do excedente que pertence ao capital internacional.” (Oliveira, 1989, p. 87) A “contradição” entre o processo de expansão com realização interna, mas controlado por propriedade externa adquire a forma aparente de complementaridade. Para Roberto Campos, as críticas que se faziam à entrada do capital estrangeiro não levavam em conta que as remessas de lucro eram apenas uma parcela reduzida do balanço de pagamentos, não viam os efeitos positivos sobre as receitas de exportações atribuíveis a atividades estrangeiras, nem a liberalização de divisas pelo valor adicionado dos produtos substitutivos de importações, não levavam em conta o aumento da capacidade produtiva, a difusão tecnológica e a possibilidade de aumentar a poupança e o investimento como conseqüência disso tudo. (Bielschowsky, 2000, p. 124) O discurso do governo era que os recursos externos financiariam o nosso crescimento acelerado e sustentado: “(...) o balanço de pagamentos, em sua totalidade, deverá apresentar relativo e equilíbrio. O excesso de importações de mercadorias e serviços representa a absorção de recursos reais do exterior pela economia. Expressa a poupança externa que financia parte dos investimentos realizados dentro do país. Essa diferença positiva das importações sobre as exportações se chama „hiato de recursos‟”. (Paulo Hortêncio Pereira Lira, in Davidoff Cruz, 1999, p. 38) A aparente complementaridade ocultava as contradições da dependência e criava a ilusão de que os “interesses” do capital internacional e o da “nação” eram idênticos. No governo Juscelino Kubitschek, a expansão das multinacionais através de investimentos estrangeiros diretos e, nos governos militares, o “excesso” de liquidez nas mãos das instituições financeiras internacionais privadas, disponibilizando uma grande massa de capitais de empréstimos, criavam as formas de sustentação dessa ilusão. O dinheiromundial, portanto, unia esses interesses ao cumprir a função do capital-dinheiro. A contradição oculta – ou minimizada no caso de Campos – nos discursos do governo era que o capital-dinheiro, valorizado, precisava retornar ao seu local de origem. Foi assim no primeiro período com as crescentes remessas de lucro e na expansão pós-1964 com as remessas crescentes de lucros e juros, pois tratavam-se de capitais de empréstimos. A configuração do circuito do capital-dinheiro, do ponto de vista das relações internacionais, apresentava-se, basicamente, da seguinte forma:

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D – M ... P ... M‟ – D‟ Retorno à circulação internacional sob a forma de lucros e juros Realização, sobretudo, interna das mercadorias Extração de grande massa de mais-valia F: salários comprimidos Mp: grande relação com o Departamento I estrangeiro Entra sob a forma de investimentos estrangeiros diretos ou capitais de empréstimos

A realização interna da produção colocava a contradição entre valor-de-uso e valor em níveis mais agudos, pois para o trabalhador tratava-se de produzir aquilo que ele não poderia consumir, criava-se crescentemente valor alheio e hostil. A produção de “artigos de luxo25”, inacessíveis ao trabalhador, é necessidade absoluta do modo de produção que cria riqueza para não-produtores. Para o operário, “indiferente ao conteúdo concreto de seu trabalho”, essa produção é apenas um meio para adquirir seus meios de subsistência; para o capitalista, “para quem a natureza do valor-de-uso e a índole do trabalho concreto utilizado é totalmente indiferente em si e para si”, é importante a valorização do capital, a produção de mais-valia. (Marx, 1985, p. 117). Portanto, não fazia o menor sentido falar em “imitação dos padrões de consumo” e colocar nesta a justificativa para esse tipo de produção. Além disso, assim como aponta Francisco de Oliveira na sua crítica a Tavares e Serra, não existiu nenhuma “redistribuição intermediária” a favor da classe média emergente. Esta, sem dúvida, se beneficiou pela própria expansão da economia, mas não se apropriou de parte da mais-valia. Houve, ao longo de quase toda a década de 1970, aumento dos salários reais e nominais, devido a maior produtividade no setor de bens salários26 e pela valorização de algumas profissões consideradas “qualificadas”, mas não aumento dos salários relativos, que expressa a real forma de determinação da remuneração do trabalhador, a sua participação no valor criado por ele mesmo: “Nem o salário nominal, ou seja, a soma de dinheiro em troca da qual o trabalhador se vende ao capitalista, nem o salário real, ou seja, a soma 25

Não podem ser considerados “bens de consumo duráveis”, pois fazem parte da necessidade de constante renovação dos produtos dentro do processo de valorização do capital. 26 A produtividade nesse setor voltaria a cair na década de 198, ver Casseb (1996).

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das mercadorias que ele pode comprar em troca desse dinheiro, esgotam as relações contidas no salário. O salário é determinado, antes de tudo, por sua relação com o lucro do capitalista; é um salário relativo.” (Marx, in Rosdowsky, 2001, p. 245) A essência do “milagre” foi o aumento da taxa de exploração sobre o conjunto da classe trabalhadora, levando ao extremo as características do modo capitalista de produção: “quanto mais o trabalhador produz, menos tem de consumir; quanto mais valores cria, mais sem valor e mais desprezível se torna; quanto mais refinado o seu produto, mais desfigurado o trabalhador; quanto mais civilizado o produto, mais desumano o trabalhador”. (Marx, 2002, p. 113) Os salários relativos em queda e o poder de mark up das grandes empresas internacionais, em condições de “mercado oligopolizado”, davam a estas um grande poder de autofinanciamento, mas o intenso crescimento econômico, a “atrofia” do sistema financeiro doméstico, a liquidez internacional e as facilidades que o governo criava para a captação direta de empréstimos externos (via Lei n. 4131) fez com que a dívida externa nascesse, e ganhasse vulto, sob a forma predominantemente privada. (Davidoff Cruz, 1994 e 1999; Carneiro, 2002) Completando o quadro de financiamento externo, no nível das empresas, durante esse auge do ciclo expansivo, temos que: as empresas de capital privado nacional tinham acesso ao capital-dinheiro internacional essencialmente através da intermediação das instituições financeira domésticas (via Resolução n. 63). As estatais tinham acesso às captações diretas, mas o “realismo tarifário”, durante o período, lhe davam um elevado poder de autofinanciamento. Em termos de “contas nacionais”, contudo, o dinheiro-mundial serviu somente para a formação de reservas internacionais, que passaram de US$ 3,1 bilhões, em 1967, para US$ 6,2 bilhões, em 1973; não havendo qualquer relação com a necessidade de “poupanças externas”. O discurso do governo era que o aumento das exportações – atribuído à forte expansão da demanda externa e aos incentivos fiscais – e das reservas seriam a condição para a diminuição da “vulnerabilidade externa”. O fluxo de recursos externos para o país era, na realidade, a existência de um grande volume de capitais, no sistema financeiro internacional, sedentos por mais-valor, o que vinha de encontro com a expansão econômica interna. O dinheiro-mundial não suprimia as contradições entre a propriedade externa e a realização interna da produção, mas era a forma pela qual essas contradições podiam se mover em nível cada vez mais elevado. O crescente “custo da dívida externa” e o primeiro “choque do petróleo” em

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1974, manifestando uma crise no balanço de pagamentos, eram apenas a aceleração desse movimento, que desfaz a unidade ilusória e coloca também a necessidade de “entrelaçamento” e “concrescência” na relação entre os departamentos da economia, evidenciando que a “indiferença” entre eles, dada pelo ritmo de crescimento do departamento III em relação aos demais, era apenas aparente. O II PND surgia então com o intuito de possibilitar o crescimento equilibrado entre os departamentos, era um “ambicioso programa centrado em grandes projetos de insumos básicos e de infra-estrutura que, criando demanda ampliada para o setor de bens de capital, colocaria a economia brasileira, já ao final da década de 70, no rol das economias capitalistas plenamente desenvolvidas.” (Davidoff Cruz, 1999, p. 49) O esforço substitutivo do Plano, contudo, implicava, pelo menos num primeiro momento, maior volume de importações e o recurso ao capital-dinheiro internacional – agora sobretudo por parte das empresas estatais – refazia a contradição anterior numa escala mais ampliada. A necessidade crescente de recursos externos por parte do governo, que crescia junto com as próprias captações, e a queda da procura pelo setor privado, com o fim do auge expansivo, dava origem ao processo de “estatização da dívida”. O que antes era um mero aumento das reservas internacionais, agora passava a ser uma necessidade imediata, pois era preciso financiar o retorno do capital-dinheiro à circulação internacional. O segundo “choque do petróleo” e o choque dos juros provocado por Paul Volker no final de 1979 não eram o acaso determinando a “crise da dívida” e a interrupção do processo de expansão econômica, eram a ruptura violenta de algo que não poderia ser único, a evidência de que “os interesses da nação” e do capital internacional não eram os mesmos, como afirmava o governo. A crise colocava à tona também uma nova indiferença, não apenas entre os departamentos, mas entre os diferentes capitais no nível da concorrência, pois cada capital, em sua individualidade, busca realizar a sua finalidade, valorizar-se, como se fosse apenas sua. Era a preponderância do capital financeiro sobre o produtivo, resultado do próprio movimento do capital, se apresentando numa forma mais cabal e intensificando as contradições sociais.

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Capítulo 3 O movimento de contradições após o ciclo expansivo e as novas preocupações de Furtado 3.1 – Ajuste post festum, inflação e estabilização: a “década perdida” e os impasses do real O processo de acumulação durante o chamado “milagre” econômico levava à crescente internacionalização da economia. O dinamismo presente no setor produtor de “artigos de luxo”, comandado pelas empresas multinacionais, repousava sobre a capacidade política, encontrada na ditadura, de crescer acentuadamente a taxa de mais-valia e as desigualdades sociais. A produção desses artigos requeria crescente importação de equipamentos e o capital-dinheiro, que entrava, preponderantemente, sob a forma de empréstimos, saia valorizado sob a forma de juros e lucros. A expansão econômica e a grande massa de liquidez no sistema financeiro internacional, à procura de valorização, determinavam o endividamento dos países periféricos. Uma das contradições desse processo de endividamento, que só veio à tona com o grande aumento dos juros internacionais, estava no fato das relações econômicas, mediadas pelo dólar – funcionando dinheiro-mundial sem conversibilidade em ouro –, pe-

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direm por juros flutuantes, ao contrário da libra em momentos anteriores. (Letízia, 2003) O aumento dos juros fazia, então, com que os empréstimos passassem, cada vez mais, a financiar dívidas antigas e a brusca elevação americana, em 1979, se deu sobre um montante de dívida muito maior do que em 1974, em parte devido o II PND. Os Estados Unidos passaram a absorver os fluxos de capitais. Os países desenvolvidos e os bancos internacionais, particularmente os americanos, começaram a retirar o dinheiro que estava nos países subdesenvolvidos, determinando, juntamente com o novo choque do petróleo, o enxugamento da liquidez internacional. Essa passagem, de uma economia mundial com liquidez para outra sem liquidez, foi a causa principal da crescente autonomia da dívida em relação ao sistema produtivo nos países periféricos. (Salama, 1985) Com a elevação dos juros americanos, todos, com exceção desse país, foram obrigados a obter superávits comerciais, com o intuito de financiar a conta capital, e a realizar políticas monetárias restritivas para reduzir a absorção doméstica. No caso dos países periféricos, a situação se agravou com a moratória do México em 1982. (Carneiro, 2002) Após uma queima de reservas internacionais entre 1979 e 1982, devido a insuficiência de novos empréstimos para pagar dívidas passadas e dada a recessão mundial, que impedia o aumento das exportações, o Brasil passou, depois de 1983 – favorecido pelo “ajuste recessivo” interno e pela retomada do crescimento dos EUA, gerando demanda abundante para todo o mundo –, por um período de crescente transferência de recursos para o exterior, ou seja, os superávits comerciais tornaram-se suficientemente grandes para cobrir os déficits na conta de serviços. Essa transferência de recursos reais, durante a década de 1980, foi inferior a de recursos financeiros somente entre 1985 e 1986, em grande medida, devido a recuperação da absorção doméstica com o aumento da renda provocado pelo congelamento de preços do Plano Cruzado (1986). Gráfico 1 Exportação e importação – em US$ bilhões 80,0 70,0

Início do governo Lula

60,0 50,0 40,0

Expansão dos Plano EUA 2o Choque do Cruzado petróleo

30,0

Plano Real

Mudança no regime cambial

20,0 10,0

Início do "ajuste recessivo"

Início da abertura comercial do governo Collor

2003

2002

2001

2000

1999

1998

1997

1996

1995

1994

1993

1992

1991

1990

1989

1988

1987

1986

1985

1984

1983

1982

1981

1980

1979

0,0

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Fonte: Funcex, in Ipeadata. (elaboração própria) Os mercados externos não conseguiram substituir o dinamismo do mercado interno, ao contrário do que pensava Delfim Netto, que acreditava no efeito multiplicador gerado pelas exportações. O que se viu, contudo, foi uma brusca queda do investimento e do nível de atividade. As políticas econômicas, em geral, passaram a ser orientadas pelos programas do Fundo Monetário Internacional (FMI). Convocado com o intuito de socorrer os países periféricos com seus distúrbios no balanço de pagamentos, a missão do Fundo era, na realidade, a de impedir o colapso dos sistemas bancários, reduzindo “ao mínimo os riscos de uma crise financeira à escala global, evitando assim, a contaminação das praças que formam o centro nervoso do sistema internacional de pagamentos e de administração de grandes volumes de capital-dinheiro.” (Belluzzo, in Carneiro, 2002, p. 16) No que se refere ao setor público, os anos 1980 marcaram um aprofundamento do seu desequilíbrio. Soma-se ao crescente processo de “estatização da dívida” as maxidesvalorizações de 1979 e 1983, aumentando o volume da dívida externa em moeda nacional. Como principal devedor em moeda estrangeira, o setor público passou, também, a se endividar internamente. Isto porque as divisas, produzidas pelas relações comerciais do setor privado, eram adquiridas através de títulos públicos. O movimento dava aos detentores de direitos contra o Estado um enorme poder de dissuasão sobre a política monetária e de juros. A carga tributária sofreu crescente erosão em razão da realização das mercadorias em mercados externos, da forte recessão interna e da aceleração da inflação. A explosão da inflação era sobretudo “uma crise do Estado, ameaçado em suas prerrogativas fundamentais, a de gerir a moeda.” Gerir a moeda significa impedir que quaisquer outros ativos – moeda estrangeira, títulos financeiros públicos ou privados, mercadorias particulares –, ameacem a unidade de suas três funções: padrão de preços, meio de circulação e reserva de valor. (Belluzzo & Almeida, 2002, p. 17-18) A crescente preferência dos agentes por “moeda indexada” era a ruptura dessa unidade. A moeda nacional perdeu pelo menos duas dessas três funções: reserva de va-

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lor e padrão de preços – esta última foi, em geral, desempenhada pelo dólar, que explicitava a sua soberania na hierarquia entre as moedas na economia mundial. Durante a década, se difundia a teoria de que “forças inerciais” realimentavam a inflação, sendo elas: “a indexação salarial e financeira, a taxa de câmbio regulada por minidesvalorizações, a formação de expectativas e a dispersão dos preços relativos.” (Kon, 1999, p. 106) Uma sucessão de planos de estabilização tentou, sem sucesso, controlar a inflação, fato que só ocorreu em meados dos anos 1990, com o Plano Real (1994). A inflação foi, até essa data, fonte de ganhos extraordinários por parte de importantes setores da economia e “tendeu a perpetuar-se como norma em torno da qual se deu a reprodução de valores e a organização de interesses empresariais” e também, de forma desigual, nas demais frações da sociedade. “Nessa economia, a negação do valor da moeda foi necessária para afirmar o valor da riqueza, do lucro e até de rendas do trabalho assalariado.” (Belluzzo & Almeida, 2002, p. 175) O início dos anos 1990 marcou o retorno à circulação internacional de um grande volume de liquidez, determinado pelas políticas monetárias dos países centrais, em especial os Estados Unidos e o Japão que, passando por recessão ou deflação, suscitaram quedas nas taxas de juros. Nessas condições, a recuperação da confiança na moeda nacional, o real, se deu por meio da garantia de seu valor externo. A “ancora” era “a estabilização da taxa de câmbio nominal, garantida por financiamento em moeda estrangeira e/ou por um montante de reservas capaz de desestimular a especulação contra a paridade escolhida.” (Ibid., p. 363) Essa forma de garantir o retorno da confiança na moeda era “uma renúncia clara à prerrogativa de utilizar as políticas monetária, cambial e fiscal como instrumentos de desenvolvimento”, era, de certa maneira, o retorno às regras do padrão ouro, a defesa do valor externo da moeda se tornava o objetivo central da política ao qual todos os demais deveriam se subordinar. (Ibid., p. 20-21) Diante da fragilidade da moeda recém-estabilizada, os ativos financeiros públicos e privados precisaram garantir elevados ganhos de capital, de acordo com o “risco” que se estava incorrendo. O câmbio valorizado determinava uma maior integração entre o mercado financeiro nacional e internacional, “melhorando, aos olhos dos investidores estrangeiros, a qualidade de nossos ativos reprodutivos e dos títulos da dívida emitidos para possuí-los.” (Ibid., p. 367-369)

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A estratégia, apoiada no Consenso de Washington (1989), estava baseada nos seguintes supostos: a) Estabilidade de preços: restabeleceria o cálculo econômico de longo prazo, estimulando os investimentos privados; b) Abertura comercial e valorização cambial: trariam aumentos de competitividade e produtividade; c) Privatizações e investimentos estrangeiros: melhorariam a infra-estrutura, reduzindo os custos e trazendo eficiência; e d) Liberalização cambial, associada à previsibilidade quanto a evolução da taxa real de câmbio: atrairia “poupança externa”, complementando o esforço de investimento e financiando o déficit em conta corrente. (Ibid., p. 18-19) À semelhança do que ocorreu com o Plano Cruzado, em seu início, o Real trouxe de imediato um aumento da renda do trabalhador e do consumo, principalmente de “bens de consumo duráveis”, o que levou alguns autores a especular sobre a possibilidade de que não haja “tensão entre os interesses da classe trabalhadora por uma melhor distribuição de renda e os interesses das grandes corporações atuantes no país quanto ao dinamismo do mercado para seus bens – muito pelo contrário, os interesses seriam complementares.” (Bielschowsky, 2001, p. 122) O fim da inflação e da indexação provocaram um forte aumento na procura por ativos reais. O câmbio valorizado trouxe uma inflexão no saldo da balança comercial, que passou a acumular crescentes déficits. Na conta de serviços, a maior participação do capital estrangeiro aumentava as remessas ao exterior de lucros e dividendos. Ao contrário do que pensava o governo, grande parte desses déficits comerciais financiaram, preponderantemente, “importações predatórias27” e não a modernização do parque produtivo. A política econômica do Plano “redistribuiu a renda e a riqueza de forma desfavorável aos agentes que comandavam os investimento e o gasto (...) e inibiu a acumulação produtiva e a produção para a exportação.” (Belluzzo & Almeida, 2002, p. 380) O real não foi capaz de alterar as tendências que prevaleciam durante os anos 1980 e início dos 1990: a taxa de crescimento econômico em declínio e a especulação financeira. A presença do dinheiro-mundial mantinha a aparência de estabilidade do valor da moeda. As sucessões de crises – México em 1995, Ásia em 1997 e Rússia em 27

A expressão de Belluzzo & Almeida (2002) faz referência ao grande aumento das importações de bens de consumo e gastos com viagens internacionais.

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1998 – determinaram um forte ataque especulativo contra a moeda nacional. A enorme perda de reservas internacionais, um total de US$ 45 bilhões, impedia qualquer explicação para a manutenção do câmbio valorizado através da lógica da política econômica, a justificativa só pôde estar na reeleição de Fernando Henrique Cardoso. A desvalorização, após o processo político, representava o fim da imaginária estabilidade do valor externo do real, era a evidência de que existe uma hierarquia entre as moedas e que a função desempenhada pelo dólar não permite que essas duas moedas se relacionem como iguais.

Gráfico 2 Evolução do PIB nas últimas três décadas – Em %

Fonte: (Ibid., p. 387) A desvalorização significou uma transferência de renda dos importadores para os exportadores e o retorno dos saldos comerciais na balança comercial, a partir de 2001. Significou, também, maiores prejuízos para o Estado, devido o encarecimento da divida indexada em dólar, em parte compensado pela elevação da carga tributária.

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Descreveremos a seguir as principais preocupações de Furtado no período e, posteriormente, as contradições sociais que movem essas relações econômicas descritas. 3.2 – As preocupações mais recentes de Celso Furtado “Está em Hegel o pensamento de que a palavra amor quando dita por um jovem não tem o mesmo valor expressivo do que quando formulada por um homem entrado na derradeira fase da vida. Chama-se O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil o livro de Celso Furtado editado em 1999. Aos 80 anos, ele volta a nos falar de esperança. Pergunto, então: que direito temos de recusar este apelo, partido de um homem desprovido de todos os poderes deste mundo e cuja secreta força moral de sua inteligência obstinada parece ser a confiança em nossa dignidade como brasileiros?” (Juarez Guimarães, A trajetória intelectual de Celso Furtado) A “crise da dívida” e o declínio das taxa de crescimento econômico determinaram o fim do debate sobre a “questão distributiva”. O movimento real trazia novas preocupações ligadas a divida externa, o ajuste, a estabilização e a atual globalização. Chama atenção a certa indiferença de Celso Furtado em relação ao debate sobre a “inflação inercial”, que teve grande importância na década de 1980. O autor estava preocupado, nesse período, fundamentalmente, com dois temas: a cultura e a sua autobiografia. Além de sua obra Cultura e desenvolvimento em época de crise, de 1984, Furtado foi Ministro da Cultura no governo Sarney. No terreno da autobiografia, surgia a sua trilogia formada por: A fantasia organizada (1985), A fantasia desfeita (1989) e Os ares do mundo (1991). (Bielschowsky, 2001, p. 124). Nessa seção, apontaremos, apenas a título ilustrativo, quatro temas que aparecem sem suas últimas obras, sem que necessariamente todos sejam recentes, como é o caso da “questão nordestina”, os outros três seriam: a orientação da poupança e o nosso fraco poder de “autotransformação”; a importância da cultura e a diferença entre modernização e o “verdadeiro” desenvolvimento; e a contradição entre a globalização e a construção do Estado-nação. 3.2.1 – A alta propensão a consumir e a “crise da dívida”: a negação do poder de “autotransformação” “A dívida externa atual não vai ser paga com o aumento a curto prazo das exportações, e sim com o desenvolvimento da economia no correr dos anos. A curto prazo o que se deve ter em vista é

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frear o processo de endividamento e renegociar as condições do serviço da dívida (...)” (Celso Furtado, O Brasil pós-“milagre”) Na obra O Brasil pós-“milagre” (1981), Furtado encontra na orientação da nossa poupança a razão para a queda no ritmo de crescimento. O autor descreve, historicamente, as formas de utilização da poupança. Nos anos 1950, a integração da economia com base no transporte rodoviário, exigindo grandes investimentos em infra-estrutura, o aproveitamento do potencial hidroelétrico, situado a distâncias crescentes dos grandes centros industriais e o deslocamento de frentes agrícolas para o interior absorviam grande parte dos recursos. O período marcava, também, a elevação do nível de renda dos grupos médios da população, dando origem a uma rápida ampliação do consumo de “bens duráveis” e facilitando a entrada das empresas estrangeiras, que introduziram tecnologias sem perceber os custos sociais gerados. Essas empresas passaram a orientar os padrões de consumo e a debilitar a propensão a poupar, freando os investimentos mais adiante. O impasse para a criação do poder de “autotransformação”, nesse caso, estava no poder dessas empresas, que tinham, cada vez mais, a capacidade de determinar os nossos rumos. Durante o “milagre” econômico, o estímulo à captação de poupança externa possibilitou o aumento do investimento e do consumo. A concentração de renda, ao mesmo tempo que dinamizava a produção industrial, esterilizava parte do potencial de financiamento de origem interna. O consumo da classe média crescia acima de sua renda e contrastava com o esforço de poupança feito pela classe trabalhadora, com a criação do FGTS e do Pis/Pasep. A possibilidade de ampliação da capacidade de “autotransformação”, no período, opunha-se ao “modelo” de crescimento baseado em “bens de consumo duráveis”. Durante o II PND, os formuladores de política econômica não perceberam que o desenvolvimento de setores como bens de capital e bens intermediários exigia um esforço muito maior de poupança. A necessidade de recursos e a inexistência desse esforço poderia levar a uma pressão inflacionária, evitada com uma nova onda de endividamento externo. As altas taxa de juros internas, com o intuito de incentivar as captações externas, e o ambiente especulativo do nosso mercado financeiro fazia com que um grande número de firmas começassem a optar por esse tipo de aplicação em detrimento dos investimentos produtivos. Com a “crise da dívida”, o pagamento de juros passava a competir com os investimentos na absorção de poupança. Desse impasse viriam as suas proposições: aumentar

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a sua taxa de poupança, principalmente para alimentar o crescimento do setor de bens de capital; acabar com a esterilização de poupança no setor de “bens de consumo duráveis”; modificar a forma de inserção na economia internacional; e renegociar a dívida externa. Estava implícita, em todas essas sugestões, uma melhor distribuição de renda, ligada a uma mudança na estrutura de poder. Estas seriam as pré-condições para que o país aumentasse o seu poder de “autotransformação”. 3.2.2 – A “questão regional” e o lugar do Nordeste “Na medida em que o Nordeste se constitua uma vontade política e que amadureça a consciência de que seus problemas somente terão solução a partir da própria região, deixarão os nordestinos de ser vistos com complacência, como dependentes incômodos ou como reserva de caça para aventureiros políticos. Então, recuperarão o papel que já lhes coube na condução dos destinos nacionais. E não será por falta de fé no futuro deste País que deixarão de cumprir a missão que lhes corresponde na obra histórica de reconstrução que temos pela frente.” (Celso Furtado, Cultura e desenvolvimento em época de crise) Em praticamente todas as suas últimas obras, o autor procurou revisitar alguns pontos de sua antiga teorização sobre o Nordeste. Celso Furtado deixou a Cepal em 1958 e assumiu uma das diretorias do BNDE, passando a intervir no Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN). Os trabalhos mais importantes sobre esse assunto – escritos no calor do acontecimentos e que deixariam transparecer algumas de suas concepções ideológicas28 – seriam: A operação Nordeste29, e o documento do GTDN. (Cano, 2001) Em 1958, Juscelino Kubtschek lançava a “Operação Nordeste” no conjunto de seu Plano de Metas, criando, já sob a batuta de Furtado, o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (Codeno), que mais tarde se tornou a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). O contexto era de extrema agitação social na região: a seca de 1958, os partidos de esquerda ganhando espaço e a expansão do movimento de sindicalização rural, as Ligas Camponesas, que atraia até mesmo a preocupação americana, com medo de uma “cubanização eminente30”. 28

Para um estudo mais detalhado sobre as concepções ideológicas de Celso Furtado ver Vieira (2003) O livro reúne as conferências feitas no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). 30 A expressão é de Vieira (2003) e retrata a preocupação do Departamento de Estado norte-americano com a movimentação camponesa no Nordeste. Isto explica a presença numerosa de “conselheiros” e “técnicos” norte-americanos na região e o destaque dado pela imprensa desse país: “Em 31 de outubro de 1960, o New York Times admoestou, em sua primeira página, que „os preparativos de uma situação revolucionária se tornavam cada vez mais evidentes, através do vasto Nordeste brasileiro, flagelado pela 29

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Furtado interpretou a relação do Nordeste com a região Centro-sul nos mesmos moldes da teorização centro-periferia, ou seja, existia uma relação de dependência. O “atraso” da região só podia ser entendido através de sua interação com o Centro-sul. O Nordeste era prejudicado pelo fato de apresentar superávits na sua balança comercial com o centro, através da exportação de produtos primários, mas déficits com o Centrosul, pois deste adquiria os produtos manufaturados. A política que beneficiava o processo de substituição de importações prejudicava a agricultura de exportação através dos diferenciais de taxas de câmbio. Estava implícita, apesar do autor não se referir ao termo, a “deterioração dos termos de troca”. Nesse sentido, a Teoria do Subdesenvolvimento era colocada em termos regionais. O “atrasado”, que pedia por reformas, era o Nordeste, em razão das crescentes disparidades nos níveis de produtividade entre as regiões. Essa heterogeneidade comprometeria unidade da nação, pois tendia, ao agravar-se, à formação de sub-sistemas econômicos isolados. O impacto negativo para o Centro-sul era o êxodo de pessoas, criando, nessa região, uma grande oferta de mão-de-obra e impedindo o aumento dos salários. As diferenças se aceleravam no período não só pela “deterioração dos termos de troca”, pois havia, além do êxodo de pessoas, um afluxo de capitais em direção ao Centro-sul, dado o seu maior dinamismo. (Vieira, 2003) A partir dessas constatações, tornava-se evidente que o problema da região não era a seca. A solução não passaria mais pelas políticas do Estado em conjunto com as velhas oligarquias; não poderia mais estar restritas à abertura de frentes temporárias de trabalho, de açudes ou auxílios às populações flageladas. Reformas estruturais eram necessárias e a solução passava, agora, por um processo de industrialização autosustentado para a região, guiado pela ação planificadora e centralizadora de uma agência estatal: a Sudene. (Ibid.) Além da industrialização, Furtado defendia reformas no campo, de forma que fosse possível aumentar o seu nível de produtividade, ajudar no desenvolvimento da indústria nos centros urbanos e melhorar as condições gerais de vida da população. O Nordeste era dividido em três regiões, sendo elas:

seca e dominado pela miséria‟. Logo a seguir, um filme da National Broadcasting Company, „A Terra Conturbada‟, rodado no Nordeste proporcionou a milhares de telespectadores americanos um testemunho visual da crise nordestina e da séria ameaça do comunismo castrista”. (Stefan H. Robock, in Vieira, 2003, p. 184)

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Zona-da-Mata: faixa úmida do litoral, destinada ao grande latifúndio açucareiro; Sertão: interior semi-árido que abrigava o cultivo do chamado algodãomocó, a pecuária e a agricultura de subsistência; Agreste: sub-região intermediária que absorvia os excedentes populacionais da economia açucareira da Zona-da-Mata, acolhia também as atividades de subsistência. (Ibid., p. 225-226) Historicamente, a agricultura agro-exportadora trouxe o grande latifúndio e a monocultura do açúcar para a Zona-da-Mata. O desenvolvimento, impulsionado por indução externa, não provocava modificações nas técnicas produtivas, mas apenas a absorção de fatores abundantes: terra e trabalho. Nas crises, liberava-se um “excedente populacional” que acabava ocupando a região do Agreste, alimentando a agricultura de subsistência. A partir dessas constatações, Furtado defendia as seguintes reformas no campo: Racionalizar a produção na Zona-da-Mata, no sentido de eliminar a monocultura do açúcar e possibilitar a produção de alimentos, aumentando a oferta para os centros urbanos, com vistas ao processo de industrialização; Transformação das técnicas produtivas no semi-árido, aumentando a produtividade e tornando essa região mais resistente aos impactos da seca; Deslocamento do “excedente populacional” para regiões de terras mais úmidas no Maranhão. Não há nos trabalhos de Celso Furtado uma defesa por “reforma agrária” nos moldes como ela é discutida, pois para ele ninguém poderia sobreviver na região do semi-árido com um pequeno pedaço de terra. Em lugar disto, defendia a aglutinação de pequenas propriedades alcançando o tamanho mínimo de 20 hectares, condição para se ter um razoável nível de produtividade. Na Zona-da-Mata, o problema maior não era o latifúndio, mas a monocultura do açúcar. Ao contrário do que dizia a propaganda conservadora da época: “Furtado estava muito longe de ser o „incendiário comunista‟ (...). Sua preocupação era introduzir a racionalidade capitalista no campo, criar uma economia mais eficiente de modo a incorporar a população sertaneja às relações de mercado e, sobretudo, ampliar a oferta de alimentos para que o projeto de industrialização no Nordeste pudesse se viabilizar. Nada além de um plano de reforma capitalista das estruturas produtivas que, no entanto, inviabilizava os interesses das elites agrárias tradicionais que há

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séculos controlavam as terras e exerciam o domínio sobre a massa de trabalhadores rurais.” (Ibid., p. 237) Nesse sentido, dado os interesses das elites agrárias e a ausência de iniciativa do empresariado local, caberia à intelligentsia a tarefa das reformas, diferente daquelas feitas, posteriormente, pelos militares. Em O Brasil pós-“milagre”, o autor mostrava todo o seu descontentamento: “(...) o quadro estrutural das relações inter-regionais que emergiu da industrialização recente opera no sentido de aprofundar a dependência do Nordeste: o mercado da região é cada vez mais complemento do mercado do Centro-Sul e os investimentos industriais que aí se realizam subordinam-se à lógica da economia do Centro-Sul; destarte, as malformações do desenvolvimento desta última aparecem ampliadas na região mais pobre.” (Furtado, 1983, p. 125) A industrialização do Nordeste foi realizada conforme às exigências do Centrosul. A produção de insumos para essa região tinha como contrapartida a adaptação do mercado de bens de consumo nordestino à estrutura da oferta de produtos industriais originários da região de maior desenvolvimento relativo, a “imitação dos padrões de consumo” também estava presente nessa relação. Furtado adaptou o seu raciocínio usado para teorizar a relação centro-periferia no tratamento do Nordeste. Dessa forma, ao mesmo tempo que inovava, mostrando que o problema da seca era social, o autor aprisionava a sua leitura da “questão regional” ao “dualismo estrutural”. Não via que a relação de complementaridade entre as duas regiões e a expansão do capital oligopolista internacional não abria qualquer espaço para uma “burguesia nordestina”. Em suma: não havia lugar para um capitalismo autosustentado nessa região num momento em que isto era inviável até mesmo em âmbito nacionais. (Cano, 2001; Vieira, 2003) Em suas obras mais recentes – a partir da década de 1990, principalmente – a “questão regional” aparece atrelada à “construção nacional interrompida”, ou seja, à expansão do poder das empresas transnacionais, planejando as suas atividades em escala internacional, diminuindo a força dos Estados e perpetuando as contradições do subdesenvolvimento nos países que não complementaram o seu processo de construção da nação, alimentando, assim, as disparidades regionais. 3.2.3 – Da modernização dependente ao desenvolvimento: o papel da cultura “Cada homem especula sobre a maneira de como criar no outro uma nova necessidade para o forçar a novo sacrifício, o colocar

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em nova dependência, para o atrair a uma nova espécie de prazer e, dessa forma, à destruição.” (Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos) “Criando „necessidades‟ ao consumidor (que deve contentar-se com o que é oferecido), a industria cultural organiza-se para que ele compreenda sua condição de mero consumidor, ou seja, ele é apenas e tão-somente um objeto daquela indústria. Desse modo, instaura-se a dominação natural e ideológica.” (“Adorno – vida e obra”, coleção Os Pensadores) A cultura foi nos anos 1980 um dos temas de Celso Furtado. A grande questão levantada dizia respeito ao nosso papel num contexto de homogeneização cultural com a maior integração das relações entre as nações capitalistas e a padronização do consumo pelo mundo: “a questão central se cinge a saber se temos ou não possibilidade de preservar nossa identidade cultural. Sem isso seremos reduzidos ao papel de passivos consumidores de bens culturais concebidos por outros povos.” (Furtado, 1984, p. 32) A diversificação das formas de consumo, após a Revolução Industrial na Europa do século XVIII, provocou uma espécie de cisão cultural no país. As elites, “hipnotizadas”, passaram a imitar os padrões de consumo dos países centrais, concentrando toda a nossa riqueza cultural no povo, “reduzido a uma referência negativa, símbolo do atraso, atribuindo-se significado nulo à sua herança cultural não européia e recusando-se valia à sua criatividade artística.” (Ibid., p. 23). A esse movimento, Furtado deu o nome de “modernização dependente”, que tinha origem na maneira como era utilizado o excedente, trazendo a “modernização” do consumo de poucos, mas estreitando as diversas relações de dependência com as economias centrais. Nesse caso: “(...) a utilização do excedente, gerado pela especialização na exportação de produtos primários e retido localmente, para modelar os padrões de comportamento de forma a estimular a importação de manufaturas destinadas ao consumo, cristalizando um certo padrão de divisão internacional do trabalho.” (Ibid., 22-23) Posteriormente, a ascensão da economia norte-americana e de sua “cultura de massa”, dotada de alto poder de “difusão”, operou contra esse isolamento cultural do povo. Alimentava esse processo a urbanização crescente e a emergência de uma classe média, que orientava, através de seu tipo de consumo, o processo de substituição de importações. O “fim do isolamento do povo” era o “começo da desarticulação deste como força criativa”, ou seja, o maior contato da classe média com o povo acabava com essa “ruptura cultural”, ao aproximá-los dos novos “bens culturais adquiridos no mercado”. (Ibid., p. 22-25):

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“(...) o caráter de massa da cultura da classe média faz com que suas relações com o povo não sejam de exclusão, como era o caso das elites bovaristas, e sim de envolvimento e penetração. Desta forma, a ascensão cultural da classe média é o fim do isolamento do povo, mas também o começo da descaracterização deste como força criativa.” (Ibid., p. 24) A modernização dependente era acelerada pelas indústrias transnacionais e a conseqüente mundialização dos padrões de consumo. Esse movimento, ao provocar uma crescente exteriorização da cultura, dava origem a “uma incipiente autonomia criativa de uma classe média” voltada para as massas, “sobre a qual pesa crescente ameaça de descaracterização.” A emergência de uma “consciência crítica” por parte de uma classe média criava a possibilidade de resistir, “contribuindo para elevar o grau de percepção dos valores culturais de origem popular.” (Ibid., p. 24-25) O desenvolvimento aparece então da seguinte maneira: “(...) o desenvolvimento não é apenas um processo de acumulação e de aumento de produtividade microeconômica, mas principalmente uma via de acesso a formas sociais mais aptas para estimular a criatividade humana e para responder às aspirações de uma coletividade (...)” (Ibid., p. 70) Nesse sentido, a política de desenvolvimento precisava ser colocada a serviço do enriquecimento cultural, voltando a capacidade criativa do homem para si. Estamos diante de uma crítica a todo o arsenal teórico da chamada “ciência econômica31”. A obra Cultura e desenvolvimento em época de crise (1984) talvez já apresente pelo menos um aspecto das constatações de Francisco de Oliveira ao na analisar a última obra de Furtado (2002). Nela o consumo, visto de maneira próxima aos frankfurtianos, quando levado aos setores mais pobres da sociedade era um “poderoso narcótico social”. O acento, antes presente na incorporação dos padrões de consumo predatórios32, agora teria na distribuição de renda o seu motor33. (Oliveira, 2003a, p. 114). O que a obra de 198434 adianta é a relação com a Escola de Frankfurt, guardadas as devidas proporções. Quando Furtado fala em “consciência crítica” lembra Adorno, analisando o “fetichismo da música”: “A consciência da grande massa de ouvintes está em perfeita sintonia com a música fetichizada. Ouve-se a música conforme os preceitos estabelecidos pois, como é óbvio, a depravação da música não seria possível se houvesse resistência por parte do público, se os ouvintes ainda fossem 31

Para uma análise mais completa sobre essa crítica de Furtado ver Oliveira (2003b). Ver Furtado (1966, 1972 e 1974). 33 A relação com a Escola de Frankfurt não é uma mera imaginação de Francisco de Oliveira. Nessa sua última obra, Furtado faz algumas referências a Hebert Marcuse e a Habermas. (Furtado, 2002, p. 58-59) 34 Essa relação não pode ser transposta para obras anteriores. 32

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capazes de romper, com suas exigências, as barreiras que delimitam o que o mercado lhes oferece.” (Adorno, 1999, p. 87) A cultura para Furtado, assim como para Adorno, aparece como algo exteriorizado. Para o primeiro aparece como mundializada, uniformizada, ou, se preferir, até mesmo imposta pelo centro capitalista, mas, de qualquer forma, como uma coisa estranha, que não pertence às nossas “raízes”, às “particularidades” do Brasil e da América Latina, em geral. Adorno, diferentemente, enfatiza as relações capitalistas como um todo, a sua preocupação está voltada para a “transferência de afetos para o valor-detroca”; à medida que a cultura passa a ser uma mercadoria, o próprio valor-de-troca passa a ser objeto de prazer, dando origem à padronização e à indústria cultural. A unidade presente nessas duas constatações seria a “renúncia à individualidade que se amolda à regularidade rotineira daquilo que tem sucesso, bem como fazer o que todos fazem, seguem-se do fato básico de que a produção padronizada dos bens de consumo oferece praticamente os mesmos produtos a todo cidadão.” (Ibid., p. 80) 3.2.4 – Globalização e Estado-nação: a construção interrompida “Os sistemas de poder se fazem cada vez mais heterogêneos em um mundo em que os Estados nacionais perdem importância para instituições transnacionais, multinacionais e mesmo regionais. (...) As atividades produtivas de alcance estratégico tendem a ser controladas por grupos privados transnacionais, o que está reforçando a concentração do poder econômico e a exclusão social.” (Celso Furtado, O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil) “O que importa é que as novas gerações recuperem o gosto pelo exercício da imaginação e se convençam de que a obra que lhes cabe realizar é nada menos do que dar continuidade à construção deste grande país” (Celso Furtado, O capitalismo global) Em seus trabalhos mais recentes – década de 1990 e início de 2000 –, Celso Furtado procura resumir a sua extensa obra, não apresentando, em geral, nada de novo. Chamando atenção apenas pela sua “lucidez incansável35”, a “atualidade” de suas proposições e a sua “atualização”, ao incorporar autores que não estavam presentes em seus textos clássicos. Todas elas representam uma espécie de legado e que, por isso mesmo, se tornam “leituras obrigatórias”. (Oliveira, 2003b) Numa preocupação “intelectual-militante”, o autor procura desfazer a idéia religiosa de progresso técnico – relembrando O mito do desenvolvimento econômico (1974) 35

A expressão é de Oliveira (2003b).

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– e rejeitar o pensamento único que se expressa na globalização como algo inevitável, apontando para as futuras gerações a insuficiência do atual quadro conceitual de análise econômica. Nesse sentido, algo de novo transparece nesses trabalhos: as contradições que a globalização traz aos países subdesenvolvidos. O atual processo de globalização é entendido por ele como “acima de tudo um fenômeno financeiro, mas com projeções significativas no sistema de produção.” (Furtado, 2001, p. 75). “Trata-se de dois processos distintos que se alimentam da mesma fonte de inovações tecnológicas.” (Furtado, 1999, p. 87). As grandes empresas projetam a sua localização e suas atividades em escala mundial, escapando da ação reguladora dos Estados, desarticulando o dinamismo dos sistemas econômicos nacionais e, com isto, também “a prevalência de critérios políticos que permitem superar a rigidez da lógica econômica na busca do bem-estar coletivo.” (Furtado, 1992, p. 30). A discrepância entre a racionalidade dos mercados e o interesse social se agrava com a globalização. A procura por maiores retornos é um dos motivos do redirecionamento dos investimentos para a Ásia, pois “Enquanto a taxa de lucro dos investimentos americanos em 1984 era na Europa de 4,3% e na América Latina, de 7,2%, na Ásia alcançou 14%, sendo 21,8% em Taiwan, e ainda mais alta em Cingapura e na Coréia do Sul.” (Walden Bello, in Furtado, 1992, p. 20) A disparidade nos preços da mão-de-obra é uma das razões que determinam a preferência dessas empresas por certas regiões. A violência com que se dá esse processo de internacionalização das atividades impediria o autor de continuar vendo os conflitos entre classes no centro a partir de uma tendência à “harmonização”: “Não há mais movimento social. Os operários, os trabalhadores têm pânico de perder o emprego porque a resposta da tecnologia é poupar empregos, é anular postos de trabalho. Surgiu uma nova temática, que é a da globalização” (Furtado, 1999, p. 87-88) Trata-se, sem dúvida, de um momento em que a correlação de forças é desfavorável para o trabalhador. A globalização é ainda mais problemática no caso dos países subdesenvolvidos, que não terminaram o processo de formação de seus mercados internos e a construção da nação. O fortalecimento das empresas transnacionais se dá em condições de heterogeneidade nos níveis de produtividade, oferta abundante de mão-de-

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obra, concentração de renda, disparidades regionais e ausência de movimentos sociais reivindicatórios36. As empresas transnacionais se nutrem ao mesmo tempo que recriam a concentração de renda, pois os mercados internos deixam de ser o “motor do crescimento”. A escolha de certa região tem como única justificativa os preços de produção. A globalização opera em benefício daqueles que comandam a tecnologia e exploram os desníveis de desenvolvimento entre os países. Nessas condições, a possibilidade de negação desse movimento, o encontro de um “novo modelo”, teria, como ponto de partida, o retorno da “idéia de projeto nacional, recuperando para o mercado interno o centro dinâmico da economia.” O último trabalho de Furtado (2002), certamente, poderia ter sido recado – hoje constata-se que foi pouco ouvido – aos então futuros presidenciáveis da época, como bem assinalou Francisco de Oliveira37. A maior dificuldade, prevenia o autor, estará “em reverter o processo de concentração de renda”, o que somente será possível “mediante uma grande mobilização social. (...) podemos afirmar que o Brasil só sobreviverá como nação se se transformar numa sociedade mais justa e preservar a sua independência política. Assim, o sonho de construir um país capaz de influir no destino da humanidade não se terá desvanecido.” (Furtado, 2002, p. 42-43) 3.3 – Do dinamismo excludente à exclusão parasitária “Lido com fôrmas e faço girar a roda. Chego ao trabalho às 6 horas da manhã, às vezes às 4. Trabalhei toda a noite passada, indo até as 6 horas da manhã. Não durmo desde a noite passada. Havia ainda 8 ou 9 garotos que trabalharam durante toda a noite passada. Todos, menos um, voltaram esta manhã. Recebo por semana 3 xelins e 6 pence. Nada recebo a mais por trabalhar toda a noite. Na semana passada trabalhei duas noites.” (J. Murray, menino de 12 anos, in Marx, O Capital, A jornada de trabalho) A esfera financeira assume, a partir da década de 1980, mais amplamente, o comando sobre o movimento mundial de valorização do capital. É nessa esfera onde as operações do capital passam a envolver um montante de recursos mais elevado, onde a sua mobilidade é maior e onde, aparentemente, os interesses privados recuperam a iniciativa em relação ao Estado com maior força. Esse processo, denominado por Chesnais 36

Salvo o Movimento dos trabalhadores Sem-Terra (MST), a “única força social com grande capacidade de mobilização, entre nós (...)” (Furtado, 2001, p. 78) 37 Ver Oliveira (2003b, p. 113)

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(1998) como a “mundialização financeira”, caracteriza-se pelas “estreitas interligações entre os sistemas monetários e os mercados financeiros nacionais, resultantes da liberalização e desregulamentação adotadas inicialmente pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, entre 1979 e 1987, e nos anos seguintes pelos demais países industrializados.” (Chesnais, 1998, p. 11-12) No nível da concorrência entre os capitais, esse movimento põe em evidência a indiferença entre os diferentes capitais, pois cada um deles, em sua individualidade, realiza a sua finalidade geral como se fosse exclusivamente sua. Na busca insaciável por valorização, o dinamismo das finanças atrai os recursos dos capitais da esfera produtiva, tudo como se D fosse automaticamente D‟38. O “„estrangulamento‟, resultante da dominância financeira, impele o capital produtivo a buscar a redução do custo da força de trabalho enquanto objetivo primordial.” (Marques, 2004). Esse ciclo recebe o apoio do Estado que orienta a política econômica com vistas a essa valorização “fictícia”. O atual processo de integração das economias, a liberalização dos investimentos e do comércio exterior, e o brutal agravamento das contradições da relação capitaltrabalho não podem ser entendidos de forma descolada do movimento de financeirização. A pressão pelo aumento da exploração do força de trabalho – o aumento do desemprego, a maior intensidade o trabalho e a flexibilização salarial que visa o prolongamento da jornada de trabalho – e pela destruição do sistema de proteção social, construído na Europa e, em menor medida na periferia, é exercida pelo capital financeiro, “cujos interesses são defendidos, sem trégua, pelas agências e organismos internacionais, tais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). Para essas agências, os fundos, de todos os tipos, constituem espaço privilegiado da acumulação do capital financeiro.” (Ibid.) Nos países periféricos essas transformações se dão de forma ainda mais violenta sobre a classe trabalhadora. No Brasil, a financeirização se desenvolve, basicamente, em dois momentos: nos anos 1980, durante a “década perdida”, está correlacionada a forte inflação; a partir dos anos 1990 resulta da tentativa de solucionar a crise anterior através da liberalização dos mercados.

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As finanças deixam de ser “virtuosas” para serem “viciadas”. No primeiro caso, as atividades financeiras atuam de forma complementar, permitem que o capital produtivo se desenvolva. Apesar de absorverem parte da mais-valia, possibilitam a geração de mais mais-valia, sendo, portando, assim como as atividades de comércio, “indiretamente produtivas”. (Salama, 1998, p. 232)

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Nos anos 1980, o desenvolvimento das atividades financeiras, ligadas a inflação, conduzia a crescente financeirização das atividades das empresas, levando a insuficiência de recursos para alimentar o sistema produtivo face às necessidades dessa acumulação fictícia. No nível das relações externas, os capitais de empréstimos, até 1982, entraram somente para financiar dívidas passadas, esgotando-se após essa data. O aumento da mais-valia absoluta39 foi a forma como essas contradições puderam se mover, a inflação corroía os salários reais da classe trabalhadora, obrigando-os a prolongar a jornada de trabalho, seja através de um segundo emprego, seja através do aumento do número de trabalhadores em uma família – “trabalho de crianças, trabalho a domicílio, o que faz lembrar o putting out system do início da revolução industrial na Europa.” (Salama, 1998, p. 229) Gráfico 3 Porcentagem de ocupados que trabalham acima da Jornada Legal na Região Metropolitana de São Paulo 48,0 45,0 42,0 39,0 36,0 33,0 30,0 27,0 24,0

Total

2003

2002

2001

2000

1999

1998

1997

1996

1995

1994

1993

1992

1991

1990

1989

1988

1987

1986

1985

21,0

Indústria

Fonte: Seade/Dieese. (elaboração própria) O excedente extraído não trouxe uma maior capacidade de investimento produtivo porque precisava alimentar o sistema financeiro interno e externo. O esgotamento do financiamento externo obrigou o Brasil e, em geral, os demais países periféricos a pagar a dívida externa com os seus próprios recursos. O ciclo do capital-dinheiro, do ponto de vista das relações externas, basicamente, apresentava-se, nesse momento, da seguinte maneira: 39

Nos anos 1980, a produção para a exportação se fez em detrimento da produção para o mercado interno, resultando na queda da produtividade do setor de bens salários e impedindo o aumento da mais-valia relativa. (Salama, 1985; Casseb 1996).

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D – M ... P ... M‟ – D‟ Destinado à circulação internacional, em especial sob a forma de juros Realização das mercadorias, sobretudo, em mercados externos Extração da mais-valia absoluta, preponderantemente F: salários comprimidos pela inflação Mp: redução da compra devido a insuficiência de recursos Redução drástica do financiamento externo

O processo de pagamento da dívida externa consistia na atuação de três agentes: o Estado, a quem recaia o maior parcela da dívida; o setor privado exportador, responsável pela geração de divisas; e o trabalhador, quem, de fato, pagava a dívida externa. A inflação, recaída sobre o trabalhador, liberava uma “poupança forçada”, mas em moeda local. O Estado, do outro lado, emitia títulos públicos com o intuito de comprar as divisas do setor privado e pagar o serviço da dívida externa. A baixa valorização do capital produtivo e os títulos indexados e com grande remuneração atraíam as empresas. A contrapartida era a realimentação da inflação, através da crescente indexação, e o endividamento interno do Estado. Dessa forma, a “transferência de uma parte da poupança interna pode se realizar (...), mas só é viabilizada mediante um processo de poupança forçada e ao custo de uma „dolarização‟ mais duradoura. Tudo se dá como se fosse a poupança forçada que financiasse o serviço da dívida externa, tanto que a taxa de poupança voluntária não aumenta.” (Salama, 1998, p. 231) Nos anos 1990, uma nova expansão da liquidez internacional amenizou os problemas relacionados ao pagamento da dívida externa e possibilitou, a partir de 1994, o controle da inflação através da sustentação fictícia do valor externo da moeda, o real. A década é marcada pela brutal liberalização comercial e financeira e o aumento da dependência da entrada de capitais especulativos. A abertura comercial, a taxa de câmbio valorizada e as privatizações permitiram diminuir – pelo menos em relação aos anos 1980 – o fosso que separa as tecnologias usadas nos países centrais e periféricos, através da “importação de máquinas e linhas de produção incorporando os últimos desenvolvimentos tecnológicos.” (Ibid., p. 242). Houve uma espécie de “dessubstituição de importações”, em razão da queda relativa da produção interna de equipamentos e produtos intermediários em favor de bens importados. (Salama, s/d, p. 3-4).

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As novas tecnologias trouxeram modificações na organização do trabalho40 em direção a uma maior flexibilização “tanto externa à empresa (maior rotatividade da mão-de-obra), quanto interna (diminuição do trabalho preestabelecido e aumento da polivalência dos trabalhadores)”. (Salama, 1998, p. 229). A queda da inflação impôs outras formas de extração da mais-valia absoluta, através da intensificação do ritmo de trabalho e da redução dos “tempos mortos41”. Contudo, as medidas tomadas ao longo da década de 1990 não mudaram a trajetória da economia que vinha se dando desde os anos 1980: o lento crescimento e a especulação financeira. Em suma: persiste a acumulação insuficiente face às necessidades do sistema financeiro. A sustentação da taxa de câmbio se dava através de altas taxa de juros internas, necessárias para estimular a entrada dos capitais externos – que garantiam o valor da moeda nacional e financiavam a balança comercial –, dando uma alta rentabilidade aos títulos do governo. A mudança no regime cambial, em 1999, não alterou a situação, as taxas de juros precisam ser altas para provocar um impacto recessivo interno e redirecionar as vendas para os mercados externos, para conter a inflação e para atrair capitais externos. Dessa forma, o Estado permite a reprodução do valor de forma descolada do processo produtivo: “(...) a riqueza pública, em forma de fundo, sustenta a reprodutibilidade do valor da riqueza, do capital privado. Esta é a forma moderna de sustentação da crise do capital, pois anteriormente, como mostrou a Grande Depressão de trinta, assim como todas as grandes crises anteriores, o capital simplesmente se desvalorizava.” (Oliveira, 2000, p. 68) Disto resulta que o retorno dos capitais externos, sob a forma de investimentos diretos, assumam uma característica diferente dos anos 1950, pois o grande volume que persiste, mesmo após o período de privatizações, não financiou investimentos produtivos, dado que a Formação Bruta de Capital Fixo oscila durante quase toda a década de 1990 e início de 2000 em níveis inferiores a 20% do PIB. Gráfico 4 Formação Bruta de Capital Fixo em % do PIB 21,0 20,5 20,0 19,5 19,0 40

Sobre as formas flexíveis de organização do trabalho ver Marques (s/d). Por “tempos mortos” entende-se o “tempo que o trabalhador não está produzindo valor porque está à 18,0 de materiais ou peças para dar continuidade a sua tarefa.” (Marques, s/d, p. 17). espera 18,5 41

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17,5

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Fonte: Ipeadata (elaboração própria). Para a classe trabalhadora a estagnação dos investimentos produtivos, somada a relativa modernização do parque produtivo, provocou uma contínua diminuição do nível de ocupação. No Estado de São Paulo, principal pólo industrial do país, a queda acumulada na década de 1990 sobre a de 1980 foi de 17,3%.

Gráfico 5 Nível de ocupação industrial no Estado de São Paulo – índice (junho de 2004=100)

Fonte: Fiesp, in Ipeadata (elaboração própria) O rendimento real dos trabalhadores, depois do ganho imediato com a queda da inflação, apresenta um acentuado declínio. Essa queda permite que as “novas” formas de extração da mais-valia absoluta, dada pelas mudanças na organização do trabalho, convivam com as “antigas”, dada pelo aumento da jornada de trabalho, pela procura por um segundo emprego e pelo maior número de trabalhadores dentro de uma mesma família. Gráfico 6 Rendimento médio dos assalariados na Região Metropolitana de São Paulo 1.450,00 1.350,00 1.250,00 1.150,00

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Fonte: Seade/Dieese (elaboração própria). O aumento do desemprego e a brutalidade dessas formas de exploração resgatam o papel do exercito industrial de reserva, que incita uma concorrência entre os trabalhadores ao compelir os empregados ao trabalho excessivo e às exigências do capital. “A condenação de uma parte da classe trabalhadora à ociosidade forçada, em virtude do trabalho excessivo da outra parte, torna-se fonte de enriquecimento individual dos capitalistas”. (Marx, 1989, p. 738). A perda de empregos no setor industrial e no setor de serviços “moderno” aumenta a pressão pela flexibilização das relações capital-trabalho e a exclusão social, que se traduz no aumento do trabalho informal e das atividades ligadas à “estrita sobrevivência”. A violência com que se move essas contradições sociais não exclui, também, os setores que apresentam algum dinamismo, como aqueles voltados para a exportação de mercadorias. No agronegócio – conforme reportagem do jornal Folha de São Paulo –, “o trabalho escravo no Brasil acompanha o avanço das fronteiras agrícolas e da pecuária e está presente em grandes empreendimentos agrícolas para a exportação e em modernas fazendas de criação de gado que estão no topo da vanguarda tecnológica.42” Gráfico 7 População ocupada sem carteira assinada nas regiões metropolitanas – mil pessoas 5.000 4.500 4.000 3.500 3.000

“Agronegócios e pecuária de ponta usam trabalho escravo” In jornal Folha de São Paulo (18/07/2004). 2002

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2.500

1982

42

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Fonte: PME-IBGE, in Ipeadata (elaboração própria) A dominância financeira acentua impetuosamente as contradições sociais e cria um poder destrutivo cada vez mais insuportável para o atual nível de desenvolvimento das forças produtivas. Os trabalhadores, ao carregar todo o peso dessas relações, são impedidos de qualquer manifestação de si. “O trabalho, único laço que os une às forças produtivas e a sua própria existência, perdeu para eles toda a aparência de manifestação de si e só lhes conserva a vida definhando-a.” (Marx & Engels, s/d, p. 91). Contudo, as tensões sociais, ainda adormecidas, vão se avolumando e criando as condições para que essa massa de excluídos possa alcançar uma manifestação total de si, num rompimento tumultuoso com a aparente “ordem natural das coisas”.

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Conclusão O debate da década de 1970 sobre distribuição de renda e crescimento econômico não pode ser diretamente transposto para a atualidade por dois motivos: 1) as formulações teóricas de Celso Furtado e de seus debatedores são essencialmente históricas, correspondem a determinado período da economia brasileira; 2) não se tratava de um “modelo” adotado pela economia brasileira, mas a forma como se deu o movimento mundial de valorização do capital naquele período e que na periferia assumiu um conteúdo extremamente excludente. Furtado se firma como um dos grandes pensadores brasileiros nos anos 1950 e 1960 através de sua Teoria do Subdesenvolvimento e de seu método conhecido como histórico-estrutural, aparentemente adequado para captar as “particularidades” das economias periféricas. Contudo, a realidade mostrava as seguintes fragilidades de sua formulação: A oposição entre o “atrasado” e o “moderno” não era apenas formal, havia uma interação dialética em que o “moderno” crescia e se alimentava do “atrasado; O processo de industrialização por substituição de importações parecia se fundar numa necessidade de consumo e não de produção, ou seja, são as necessidades do processo de acumulação e não as do consumo que orientam o processo de industrialização; A ideologia desenvolvimentista desviava o foco da atenção da luta de classes para os “interesses da nação”. Não percebeu que a expansão do capital oligopolista internacional no período Juscelino Kubitschek requeria para a sua consolidação um aumento da taxa de exploração do trabalho, intensificando as contradições sociais; A emergência do capital internacional, associado ao capital nacional e apoiado pelo Estado, desfazia qualquer ilusão a respeito de um capitalismo autosustentado e regulado no país. Era a evidência de que o capital “precisa instalar-se em todos os lugares, acomodar-se em todos os lugares, estabelecer conexões em todos os lugares.” (Marx & Engels, 2002, p. 14). O apoio do Estado colocava à tona o seu conteúdo real, historicamente abusivo, a sua necessidade de adquirir uma característica anti-Nação para permitir a reprodução do capital. Tortura, morte, exílio, cassação de direitos etc., este foi o seu

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esforço desesperado para anular qualquer movimento de construção política feito pelas classes oprimidas e a forma de impossibilitar a “reivindicação da parcela dos que não tem parcela, tanto na produção quanto na distribuição do produto social.” (Oliveira, 2000, p. 64) O debate sobre a “questão distributiva” foi inaugurado em 1966, período de ajustamento para a posterior fase de expansão econômica (1968-1973). A queda nas taxas de crescimento da economia entre (1962-1967) levou Furtado a achar que havia uma insuficiência de mercado criada pela concentração de renda gerada pela “espontaneidade” do processo de substituição de importações. Maria da Conceição Tavares e José Serra, em 1971, e Francisco de Oliveira, em 1972, trataram de refutar a idéia de Furtado e afirmar que o movimento de valorização do capital de certa forma cria o seu próprio mercado e resolve o problema da realização. Isto não significa suprimir as contradições, mas é apenas a forma pela qual elas podem se mover em nível cada vez mais ampliado. A concentração de renda era a forma momentânea de realizar as mercadorias do setor produtor de “artigos de luxo”. As críticas e a expansão econômica impossibilitou Furtado de qualquer defesa, obrigando-o a introduzir a contribuição de Tavares e Serra, essencialmente, nas suas obras de 1972 e 1974. Contudo, essa resolução momentânea recriava uma contradição do próprio processo de acumulação existente desde a segunda metade dos anos 1950: a produção e a realização interna das mercadorias contrastava com a propriedade externa do capital, criando uma crise recorrente no balanço de pagamentos, através das remessas de lucros e juros. A grande disponibilidade de capital-dinheiro, sob a forma de empréstimo, no sistema financeiro internacional ocultava as contradições da dependência e criava uma ilusão de complementaridade entre os “interesses do capital internacional” e o da “nação”. O capital busca realizar a sua finalidade, valorizar-se, e não “desenvolver” o país, trazendo futuramente (depois que o “bolo” crescesse) o benefício para todos. O crescente “custo da dívida” e o primeiro choque do petróleo, em 1974, desfez não só a unidade ilusória de interesses como evidenciou que o crescimento do departamento III não pode ser “indiferente” aos demais, colocava-se a necessidade de “concrescência” e “entrelaçamento” entre eles cuja síntese foi o II PND. O Plano era a restauração da unidade ilusória de interesses, possibilitada ainda pelo capital-dinheiro internacional farto. O esforço “substitutivo” no departamento I implicava, num primeiro momento, maior volume de importação e o recurso a uma nova onda de empréstimos – agora não mais por parte das empresas privadas, mas sobre-

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tudo pelas empresas estatais – refazia a contradição anterior num nível mais elevado. Os juros internacionais mais altos recaiam sobre um montante de dívida maior, dando uma forma cada vez mais financeira à dependência. O segundo choque do petróleo e o choque dos juros nos Estados Unidos, em 1979, não eram o acaso determinando a “crise da dívida” e a interrupção do processo de expansão econômica, mas a ruptura violenta da falsa unidade de interesses e a evidência, novamente, do caráter abusivo do Estado em relação a classe oprimida, pois o processo de “estatização da dívida” nada mais era que uma forma de “socializar o prejuízo”. A “crise da dívida” evidenciou uma “nova” indiferença, não apenas entre os departamentos, mas entre os diferentes capitais no nível da concorrência, pois os capitais singulares devem realizar a sua finalidade geral, valorizar-se, como se fosse apenas sua, até em detrimento dos outros. Era a dominância do capital financeiro sobre o produtivo se apresentando numa forma mais cabal. O choque dos juros obrigou todos os países com exceção dos Estados Unidos a obterem superávits comerciais com o intuito de financiar a conta capital. Nos países periféricos, em especial o Brasil, isto se deu através de um forte ajuste recessivo com a finalidade de diminuir a absorção doméstica. A drástica queda na taxa de crescimento econômico determinou o fim do debate sobre a “questão distributiva”, tratava-se agora de interpretar as contradições da expansão dos anos 1970 e Furtado fez isto dando ênfase à “esterilização” da poupança financiando o consumo de “bens duráveis” e impedindo a criação de um poder de autotransformação do país. A cultura, imposta pelos países centrais e hostil à criatividade de nosso povo, foi também outra preocupação sua na década de 1980. Em suas obras mais atuais, a partir da década de 1990, a sua atenção volta-se para o processo de globalização que interrompe precocemente a construção dos Estados-nações nos países subdesenvolvidos, a negação dessa contradição passaria pela convencional idéia de projeto nacional. Entretanto, a dominância financeira traz contradições sociais que não estão presentes nos trabalhos atuais de Celso Furtado. A crescente financeirização das atividades das empresas leva à insuficiência de recursos para alimentar o sistema produtivo face às necessidades da acumulação fictícia. Os recursos menores ocasionam um brutal agravamento das contradições da relação capital-trabalho – aumento do desemprego, maior intensidade de do trabalho, flexibilização salarial e o prolongamento da jornada de trabalho – e a destruição dos sistemas de proteção social.

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No Brasil é possível caracterizar dois momentos desse processo. Nos anos 1980, as contradições de um processo de crescente financeirização das atividades das empresas e de escassez de recursos externos puderam se mover através da extração da maisvalia absoluta. A inflação em alta se por um lado era fonte de ganhos para as empresas e todos aqueles que podiam comprar os títulos indexados do governo, por outro comprimia a renda dos trabalhadores, obrigando-os a prolongar a jornada de trabalho através de um segundo emprego ou aumentar o número de trabalhadores em uma família. Nos anos 1990, a queda da inflação e a abertura comercial, trazendo técnicas produtivas mais avançadas, fizeram com que o aumento da mais-valia absoluta se desse principalmente pela maior intensidade do trabalho e pela redução de tempos mortos. Contudo, as mudanças ocorridas não mudaram a trajetória da economia que vinha se dando desde os anos 1980: o lento crescimento e a especulação financeira. A acumulação insuficiente face às necessidades do sistema financeiro e a relativa modernização do parque produtivo provocaram uma contínua diminuição do nível de ocupação e a queda no rendimento real dos trabalhadores, permitindo que essas “novas” formas de extração da mais-valia absoluta conviva com as “antigas”. A perda de empregos no setor industrial e no setor de serviços “moderno” aumenta a pressão pela flexibilização das relações capital-trabalho e a exclusão social, que se traduz no aumento do trabalho informal e de atividades ligadas à “estrita sobrevivência”. A dominância do capital financeiro nos últimos vinte anos aprofundou as desigualdades na distribuição de renda, o aumento da miséria contrasta com os altos ganhos financeiros dos segmentos mais ricos. Nesse sentido, os setores produtores de “artigos de luxo” continuam a se apoiar no alto poder aquisitivo de uma parte da população, conforme mostrou o debate iniciado por Furtado em 1966. Adquirir “bens duráveis” e mesmo aqueles não tão “duráveis”, tais como os modernos celulares que se tornam obsoletos aceleradamente, continua representando sinal de status. Tal como antes a “classe média” e a classe trabalhadora continuam tentando reproduzir esses “padrões de consumo”, contudo, trata-se de uma necessidade criada e não de um “mimetismo”; “se o consumismo é o novo fetiche e a nova forma de alienação, pedir à classe trabalhadora que desmitifique o fetiche sem ela estar no poder é como pedir „peras ao olmo‟.” (Oliveira, 2003a, p. 85). Para o não-produtor consumir essas mercadorias é a forma ilusória de adquirir a humanidade que perdeu; para o trabalhador é a forma de reapropriar, também ilusoriamente, a humanidade que transfere freqüentemente para a coisa.

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O maior acesso a esses bens por parte da classe trabalhadora em 1986, com o Plano Cruzado, e em 1994, com o Plano Real, não permite concluir que talvez não exista um conflito entre os trabalhadores e as empresas multinacionais por melhor distribuição de renda, pois nega as leis que movem o sistema capitalista, ou seja, não há dúvida de que “os trabalhadores, como compradores de mercadorias, são importantes para o mercado. Porém, como vendedores de sua própria mercadoria – força de trabalho –, a sociedade capitalista tende a reduzi-los ao preço mínimo.” De modo que “a venda de mercadorias, a realização do capital mercantil e portanto também da mais-valia, não é limitada pelas necessidades de consumo da sociedade, consideradas de modo genérico, mas sim pelas necessidades de consumo de uma sociedade em que a grande maioria é pobre e está condenada a sê-lo.” (Marx, in Rosdolsky, 2001, p. 405) Contudo, hoje a atenção para esse problema é deslocada pela própria dominância das finanças que traz contradições sociais insuportáveis para o atual nível de desenvolvimento das forças produtivas. A inviabilidade do projeto de nação, já colocada na década de 1960, torna-se mais evidente no momento que a mundialização financeira estreita a interdependência entre as nações e aprisiona a atuação do Estado à sua lógica. A forma como o Estado atua, permitindo a reprodução do capital financeiro, expõe, sem nenhuma censura, a violência com que atua sobre a sociedade. A real possibilidade de negação passa pelo próprio movimento dessas contradições sociais que se avolumam e que criam as condições materiais para que a classe oprimida se coloque em movimento, rompendo com a aparente naturalidade das atuais relações de produção e submetendo-as ao poder dos indivíduos unidos.

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