A BUSCA PELA IDENTIDADE NEGRA BRASILEIRA E SEU PROCESSO DE DESALIENAÇÃO

May 30, 2017 | Autor: André Simões | Categoria: Judith Butler, Frantz Fanon, Stuart Hall, Identidades, Raça, Alienação
Share Embed


Descrição do Produto

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas Departamento de Sociologia

ANDRÉ DA SILVA SIMÕES

A BUSCA PELA IDENTIDADE NEGRA BRASILEIRA E SEU PROCESSO DE DESALIENAÇÃO

PORTO ALEGRE 2015

1

Um conjunto de debates está sendo desenvolvido no campo das ciências humanas e nos movimentos sociais sobre o que seria identidade? Identidade é um conceito único? Identidade é um conceito importante? Identidade é um conceito libertador ou é necessário subverter a identidade? (BUTLER, 2003). No presente ensaio não desenvolverei o conjunto das perguntas, mas pretendo debater como o sociólogo Stuart Hall e a filosofa Judith Butler enxergam o conceito de identidade. E partir disto desenvolver em base ao ensaio Dar forma a la teoria feminista de Bell Hooks a minha perspectiva sobre o conceito de identidade. Desatacando a importância como categoria política para a desalienação da população negra brasileira. Stuart Hall em seu ensaio Quem precisa de identidade? desenvolve que existe uma crítica atualmente a uma perspectiva por uma identidade integral, originaria e unificada. Nestas perspectivas o conceito de identidade é extremamente essencialista e construído a partir do reconhecimento de uma origem comum (HALL, 2011, p.106). Esta perspectiva não levaria em conta de que cada vez mais as identidades na modernidade tardia são fragmentadas e fraturadas, não sendo singulares, mas sim múltiplas (HALL, 2011, p.108). Na perspectiva de Hall as identidades são um processo nunca completado, sempre contínuo. Assim para ele a identidade seria um ponto de encontro entre por um lado os discursos que fazem parte do processo de identificação e por outro lado dos distintos processos que produzem subjetividades (HALL, 2011, p. 112). Portanto “as identidades são pontos de apego temporário às posições- de sujeito que as práticas discursivas constroem para nós” (HALL, 2011, p. 112). Judith Butler também faz a crítica a forma como conceito de identidade tem sido tratado nos debates feministas e sobre a perspectiva universalizante do conceito. Na sua obra Problemas de Gênero - Feminismo e subversão da identidade, Butler desenvolve que a origem e causa da categoria identidade é um conjunto de efeitos de instituições, práticas e discursos múltiplos e difusos (BUTLER, 2003, p. 2). Butler desenvolve uma crítica da identidade como formuladora de política feminista. Para ela a partir do debate sobre gênero, sexualidade, sexo é chegada a perspectiva que a ideia de uma identidade negaria a multiplicidade das pessoas e que, portanto, a identificação em um gênero ou sexo por distintas perspectivas ao invés de ser uma proposta política libertadora é ao invés aprisionadora, em especial ao patriarcado. Judith Butler no debate sobre identidade atualmente caracteriza-se como parte dos teóricos pós-estruturalistas tão reconhecidos como pós-indentitarios. Para estes autores e

2

autoras a identidade é uma categoria socialmente e discursivamente construída e neste sentido ela perpetua a manutenção das desigualdades. Entendemos por identidade aquilo que unifica um grupo, econômica, social e politicamente. Como desenvolve Stuart Hall a identidade é uma construção, um processo de subjetivação (HAAL, 2011). Mas diferentemente de Hall desenvolvemos identidade também a partir de um ponto comum de ligações históricas. São essas ligações históricas em conjunto com as experiências vividas que formam sua subjetivação, como sua própria consciência política e pertencimento na sociedade. Nesta perspectiva, portanto também divergimos de Judith Butler, pois entendemos a própria formação da identidade como um processo, um primeiro passo para libertação. A partir dos debates raciais e principalmente no Brasil, chegamos a percepção de que a identidade como uma unidade política é extremamente importante para a crítica a hegemonia branca na sociedade, traduzida a partir da cultura e do conjunto de ideologias em nossa opinião. No debate racial a identificação como uma raça desprivilegiada, social, econômica e politicamente é importantíssima para garantir uma unidade social como grupo, mas também para gestar aspectos de solidariedade entre aqueles que compreendem que existe uma ligação existente para além da cor de pele, mas sim pela diáspora africana (dispersão forçada para várias partes do mundo, de africanos sequestrados da África). Entendemos como uma importante contribuição de Butler e de Hall o fato de entender a identidade como uma multiplicidade que neste sentido para nós não pode também ter um aspecto universal. Como bem crítica Butler É minha sugestão que as supostas universalidade e unidade do sujeito do feminismo são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em que funcionam. Com efeito, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo, compreendido como uma categoria una das mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas recusas a aceitar essa categoria. Esses domínios de exclusão revelam as consequências coercitivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção é elaborada com propósitos emancipatórios. Não há dúvida, a fragmentação no interior do feminismo e a oposição paradoxal ao feminismo por parte de “mulheres” que o feminismo afirma representar sugerem os limites necessários da política da identidade. (BUTLER, 2003, p.11)

Em debate com as feministas brancas norte-americanas bell hooks questiona a transformação da experiência das mesmas como universal. As feministas brancas negavam uma realidade que condizia com diversas mulheres negras e da classe trabalhadora. Hizo de su situación, y de la situación de las mujeres blancas como ella, un sinónimo de la condición de todas las mujeres estadounidenses. Al hacerlo, apartó la atención del clasismo, el racismo y el sexismo que evidenciaba su actitud hacia la mayoría de las mujeres estadounidenses. En el contexto de su libro, Friedan deja claro que las mujeres a las que consideraba víctimas del sexismo eran universitarias,

3

mujeres blancas obligadas por condicionamientos sexistas a permanecer en casa. (HOOKS, 2004, p. 2)

Portanto a universalidade da identidade para negros e negras impossibilita a percepção de que sofremos de opressão racial e exploração social, e para as mulheres negras que ainda sofrem com o machismo. Uma compressão que se propõe a investigar a relação dialética entre este conjunto de opressões nos parece mais benéfica para compreender a situação dos negros, em especial das mulheres negras. É nesta compreensão não universalizantes da identidade e numa perspectiva dialética que constituem a identidade individual em relação com uma identidade social que percebemos a formação da identidade como um importante discurso político emancipatório. Entendendo deste modo que a busca por uma identidade racial tem um significado também político de um processo de desalienação histórica da população negra na compreensão de sua relação não apenas como cor de pele, mas como “filhos da Diáspora africana”. Como bem trata a autora italiana Silvia Torneri, (2008, citada por Edmundo Fernandes Dias, 2012). É a partir desta condição ambígua de subalternidade extrema ditada pelo fato de será ao mesmo tempo negra, mulher e proveniente dos degraus mais baixos da escala social que [ela] será empurrada a elaborar uma subjetividade, autônoma, própria, que saiba combinar estes diversos âmbitos de luta, sem cair em uma proposta “monista’ que a constrangeria a escolher apenas um [deles], chegando a oferecer uma visão revolucionaria mais ampla daquelas existentes, que abarca todos os âmbitos da existência. (TORNERI, 2008, p. 7 apud Dias, 2012, p. 62)

Neste trecho fica evidente que sem uma relação dialética entre o conjunto das opressões sofridas pelas mulheres negras trabalhadoras torna-se impossibilitada a formação de sua subjetividade, e consequentemente de sua identidade de raça, gênero e classe. Mas o que significa uma identidade racial? E de que forma isto pode ser uma proposta política emancipadora? A identidade racial é uma forma unificadora da população negra com seu passado diásporo e com sua ancestralidade constituída por homens e mulheres negras que foram escravizados e trazidos de forma forçada para distintos locais do mundo, em especial para o continente americano. No caso especifico do Brasil a identidade racial se manifesta na forma em especial cultural desenvolvida pelos afro-brasileiros, como nas religiões de matriz africana, capoeira, samba, como também no modo de vida próprio da população negra. Portanto na totalidade concreta do cotidiano de negros e negras. A identidade como categoria analítica tem o intuito de dar visibilidade normalmente há um grupo oprimido, como os trabalhadores, os negros, as mulheres e LGBT’s. Neste sentido a

4

identidade de um povo seja no seu caráter de raça, gênero ou classe tem um significado importante como um passo de uma política questionadora e emancipadora diante de sua própria opressão. No Brasil a forma como foi constituído o capitalismo baseia-se na própria negação dos negros e negras na história do país, em especial suas resistências a escravidão. A ideia seja na concepção universalizante, como numa perspectiva diversificadora tem o intuito de “apagar o negro da história do país”. As ideologias como do embranquecimento e do mito da democracia racial tem cada uma a seu modo atender a este propósito. A ideia de uma hegemonia branca é aplicada não no simples extermínio de negros e negras, mas sim na utilização de atributos ideológicos que consigam diminuir ou acabar com a identidade da população negra. Isto tem um interesse próprio de impedir a tomada de consciência necessária de negros tanto como uma raça oprimida, como uma classe explorada, o que consequentemente impede que a população negra se organize politicamente e radicalmente no enfrentamento ao racismo e ao capitalismo. Como bem coloca bell hooks em seu ensaio, de forma semelhante existe relação entre o racismo e o capitalismo no Brasil. Sin embargo, la estructura de clase en la sociedad estadounidense se ha formado a partir de la política racial de la supremacía blanca; sólo a través del análisis del racismo y de su función en la sociedad capitalista se puede obtener una comprensión completa de las relaciones de clase. La lucha de clases está unida de forma inseparable a la lucha para terminar con el racismo. (HOOKS, 2004, p.3)

Neste sentido entendemos a classe não apenas com sua relação com os meios de produção (HOOKS, 2004, p.3), mas também como formadora de identidade social, como por exemplo a forma como se relacionam membros de uma mesma classe social e como enxergam o mundo. É nesta relação que se relaciona identitariamente a compreensão de raça e classe. Em Peles negras, máscaras brancas Frantz Fanon (2008) trata da importância da ruptura com ideal do colonizador como parte de tomada de sua consciência e na sua desalienação. É neste contexto que o negro ou/e colonizado se vê como parte de uma identidade política associada à sua ancestralidade deixando para traz a forma colonizada de pensar, agir, se ver e enxergar o mundo. Como o próprio Fanon (2010) escreve referindo-se a esta tomada na consciência “Tendo o campo de batalha delimitado, entrei na luta”. Tomar a identidade como categoria política tem uma grande importância para refletirmos sobre a desalienação de negros e negras em nosso país. Esta identidade não é dada a priori, mas é obtida com uma ruptura política com a hegemonia branca e com um

5

reposicionamento radical diante da sociedade. Se dá pela compreensão de distintas circunstâncias sociais como desenvolve hooks (2004) Mi crítica persistente está atravesada por mi situación como miembro de un grupo oprimido, una experiencia de explotación y discriminación sexista, y por el sentido de que el análisis feminista dominante no ha sido la fuerza que ha dado forma a mi conciencia feminista. Esto es cierto para muchas mujeres. Hay mujeres blancas que nunca se habían planteado resistir a la dominación masculina hasta que el movimiento feminista creó la conciencia de que podían y debían. Mi conciencia de la lucha feminista se vio estimulada por circunstancias sociales. Crecí en un hogar negro y de clase obrera del sur, dominado por mi padre. Experimenté —como mi madre, mis hermanas y mi hermano — diferentes grados de tiranía patriarcal y eso me enfadó; nos enfadó a todas. La rabia me llevó a cuestionarme la política de dominación masculina y me permitió resistir a la socialización sexista. (HOOKS, 2004, p.9)

Ou na escrita de Neusa Santos Souza, autora do livro Tornar-se negro. saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas expectativas, submetida às exigências, compelida [forçada] às expectativas alienadas. Mas também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades. (SOUZA, 1990, p.17)

As duas autoras negras mesmo sendo de países diferentes trazem uma perspectiva de grande importância na relação existente entre suas relações sociais (e raciais) na formação de uma identidade racial. Para as duas é no enfrentamento de um conjunto de dificuldades, discriminação, racismo, sexismo, machismo que suas identidades se constituem e que seu enfrentamento com esta situação inferiorizada lhes possibilita a tomada de consciência necessária para desenvolver suas potencialidades não apenas como indivíduos, mas como parte de um grupo social oprimido. Portanto a identidade racial coloca para negros e negras a “delimitação do campo” que Fanon escreve em seu livro. É um novo reposicionamento na sociedade que se manifesta de distintas maneiras e é parte constituinte do sucesso ou não dos movimentos negros. Como por exemplo, ao uma garota deixar de alisar seu cabelo – o padrão hegemônico branco - para manifestar a sua identidade deixando seus crespos e Black Power tem grande importância na sua ligação com o grupo social e/ou racial da qual a mesma é pertencente historicamente, enfrentando o racismo e o machismo cotidianamente. É um primeiro – importante - passo no questionamento das ideologias que regem historicamente a sociedade brasileira, em especial o mito da democracia racial. Se analisarmos o movimento negro estadunidense durante o período organizado sobre o slogan do Black Power, percebemos um questionamento a hegemonia branca a partir da sua ligação ancestral e a partir da percepção de uma unidade política – identidade negra – que como proposta política se contrapõe ao ideal de branquitude da sociedade. O movimento Black Power

6

neste sentido teve um papel fundamental na formação da subjetividade (individual e social) dos afroamericanos durante os anos de 1960 e 1970. Ainda que construindo sobre modelos ideológicos e políticos distintos ao dos Estados Unidos, o Brasil pela sua formação social e ideológica a partir do mito da democracia racial que nega a existência do racismo com ideia de “miscigenação” da sociedade brasileira e o proprio negro como sujeito histórico do país também perpetua uma hegemonia branca. Esta hegemonia branca não se demostra nos dados sobre o número de negros e negras na população brasileira, mas sim no ideal de que o belo, positivo e progressivo é o branco. Portanto em uma sociedade racista onde o ideal de beleza e de progresso é não ser negro o que consequentemente causa estragos psicológicos e aspectos alienantes na sua relação com o mundo, tomar a consciência da negritude é um ato radical. Como bem desenvolve Souza (1990) “não se nasce negro, torna-se negro”. O “tornar-se negro” é, portanto, o processo de subjetivação como bem trata Stuart Hall (2010) em seu ensaio. É um processo psicológico de se recolocar na sociedade. É nesta visão que compreendemos a identidade como uma “ontologia do ser” (emprestando o termo de Lukács). Portanto a identidade não é apenas uma identificação, mas sim o pertencimento social e psicológico há um grupo social, é o processo de tomada de consciência e desalienação. Como escreve Torneri (2008, citada por Edmundo Fernandes Dias, 2012) “a nascente sociabilidade feminina negra” nos ensina que criar uma sociabilidade contra e para além da Ordem do Capital implica em “decifrar a esfinge classe-etnia-gênero”. É no intuito de decifrar esta esfinge que historicamente o movimento negro brasileiro se organizou. Ao questionar o mito da democracia racial que apaga e aliena a população negra brasileira de sua própria história, o movimento negro colocou entre as suas principais bandeiras a luta pela conquista de uma consciência negra no país. Em especial a partir do final dos anos de 1970 com a formação de distintos grupos negros regionais e com a formação do Movimento Negro Unificado em 1978 esta proposta política se solidifica. A luta – ainda existente- pelo estabelecimento do dia 20 de novembro, como Dia Nacional da Consciência Negra é um signo deste resgate histórico e desalienador. Ao questionar a data imposta pela hegemonia branca do dia 13 de maio (Dia da Abolição da Escravatura) e ao estabelecer o dia 20 de novembro, relembrando e saudando a morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, o movimento negro se coloca como uma força propulsora na busca de uma identidade do povo negro brasileiro.

7

É com este proposito que a identidade como uma categoria política coloca-se no sentido de formar uma subjetividade própria da população negra que foi exteriorizada pelos anos de escravidão e pelas distintas ideologias dominantes que tentam esconder a existência do racismo no Brasil. É como formadora de uma subjetividade social, dando uma unidade política a um grupo oprimido que a identidade serve para organização da população negra e na busca por uma consciência política de raça e de classe que questione o padrão branco dominante na sociedade brasileira. Como bem tratou Fanon “Tendo um campo delimitado de batalha, entrei na luta”.

8

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. DIAS, Edmundo Fernandes. Revolução passiva e modo de vida: ensaio sobre as classes subalternas, o capitalismo e a hegemonia. São Paulo: Editora José Luis e Rosa Sundermann, 2012. FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. HOOKS, bell. Mujeres negras. Dar forma a la teoría feminista. In: Otras inapropiables, Traficantes de Sueños, Madrid, 2004. Disponível em https://www.marxists.org/espanol/tematica/mujer/autores/hooks/1984/001.htm. Acesso em 05de dezembro de 2015. HAAL, Stuart. Quem precisa de identidade. 2011 SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1990. TORNERI, Silvia. Tra femminismo e Black Power, 2008. Disponível em http://aulac.noblogs.org/gallery/399/Tra%20femminismo%20e%20black%20power:%20nascita%20dell a%20soggettivit%C3%A0%20femminista%20nera%20-%20Silvia%20Torneri.pdf. Acesso em 05 de dezembro de 2015.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.