A capa de newsmagazine como dispositivo de comunicação

August 29, 2017 | Autor: Carla Cardoso | Categoria: Communication, Journalism, Content Analysis, Comparative Study, Magazines, Newsmagazines, Cover, Newsmagazines, Cover
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Observatorio (OBS*) Journal, 8 (2009), 162-203

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A capa de newsmagazine como dispositivo de comunicação Carla Rodrigues Cardoso, Universidade Lusófona

Resumo Neste artigo desmonta-se e procura-se compreender a lógica de construção da capa das newsmagazines. Seleccionou-se um corpus que inclui a newsmagazine portuguesa mais antiga e de maior tiragem (Visão) e três títulos estrangeiros de newsmagazines internacionais com tiragens elevadas (L’ Express, Newsweek e Veja). Em termos metodológicos fizeram-se duas apostas: conjugar a análise de conteúdo, que permite decompor as capas nos elementos que as constituem de forma a procurar eventuais padrões, com a análise semiológica, que analisa a capa como dispositivo pleno de sentido, encerrando narrativas que lhe conferem unidade e coerência. O período de análise abordado, no que diz respeito à análise de conteúdo, corresponde aos três primeiros meses de 1999, traduzindo-se num corpus com 48 capas. A análise semiológica, pela sua natureza e profundidade, cinge-se aos primeiros quinze dias de Janeiro, incidindo sobre oito capas. A questão orientadora, que enforma toda a investigação é saber de que forma funciona a capa de revista de informação geral como dispositivo de comunicação. O leitor de newsmagazines espera encontrar neste tipo de publicações informação diversificada, nacional e internacional, assim como uma abordagem séria e equilibrada das problemáticas. Serão estas também as preocupações subjacentes à construção da capa?

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Introdução Estudar newsmagazines implica sempre fazer uma referência à revista Time, lançada em 3 de Março de 1923 nos Estados Unidos. Fundada por Briton Hadden e Henry Luce, o formato inovador obedecia a quatro princípios básicos: 1) organizar as notícias de forma lógica, em secções pequenas; 2) avaliar e interpretar as notícias; 3) escrever de forma clara, curta e completa; 4) colocar a ênfase nas personalidades que protagonizavam as notícias (Jonhson e Prijatel, 2007: 72). A fórmula revelou-se um êxito e criou um novo género dentro da imprensa: a newsmagazine ou revista de informação geral que, oito décadas volvidas, continua em franca expansão um pouco por todo o mundo. O mercado de revistas tem conquistado progressivamente terreno aos jornais com os grandes grupos de comunicação internacionais a apostarem na exploração de vários títulos dirigidos a públicos diferentes. Contudo, se já houve tendências (como as revistas sobre televisão), que passaram por períodos de ouro, com vendas de milhões de exemplares, para a seguir entrarem em declínio, a consistência das newsmagazines – Time, Newsweek, The Economist, Le Nouvel Observateur, L’Express, para citar alguns exemplos –, mantém-se, 85 anos volvidos. Um facto que sustenta a pertinência da análise que se segue.

Objecto de análise Johnson e Prijatel1 aplicam a teoria dos usos e satisfações (uses and gratifications) de Katz, Gurevitch e Haas (1973)2 ao universo das revistas. A riqueza e diversidade deste segmento da imprensa permite dividi-lo em: A) Revistas que satisfazem necessidades cognitivas; B) Revistas que satisfazem necessidades afectivas; C) Revistas que satisfazem necessidades pessoais; D) Revistas que satisfazem necessidades sociais; E) Revistas que são libertadoras de tensão (Johnson e Prijatel, 2007: 5)3.

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A primeira edição da obra dos académicos norte-americanos da Trinity University e Drake University, respectivamente, foi publicada em 1999. Uma segunda edição, revista e aumentada, foi lançada em 2007. Mauro Wolf referencia-a em Teorias da Comunicação (2003: 72,73) da seguinte forma: “(…) Katz, Gurevitch e Haas (1973) distinguem cinco classes de necessidades que os mass media satisfazem: a. necessidades cognitivas (aquisição e reforço de conhecimentos e de compreensão); b. necessidades afectivas e estéticas (reforço da experiência estética, emotiva); c. necessidades de integração a nível da personalidade e da posição social (segurança, estabilidade emotiva, incremento da credibilidade e da posição social); d. necessidades de integração a nível social (reforço dos contactos interpessoais, com a família, os amigos, etc.); e. necessidades de evasão (abrandamento das tensões e dos conflitos). Depois de Katz, Gurevitch e Haas, vários autores trabalharam a questão dos efeitos dos media, entre os quais Elihu Katz, Denis McQuail e Jay Blumer.

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As newsmagazines (os autores referenciam os títulos Newsweek e Time), enquadram-se na satisfação das necessidades cognitivas dos consumidores, uma vez que são “revistas que nos ajudam a adquirir informação, conhecimento e compreensão. Informam-nos sobre assuntos e acontecimentos que podem afectar-nos; dizem-nos o que se está a passar no nosso mundo e o que isso significa para nós” (Johnson e Prijatel, 2007: 5). Os autores citam como exemplo o tema clonagem: “A Newsweek e a

Time dão-nos o background dos métodos de clonagem e analisam as possibilidades e problemas da clonagem humana” (Johnson e Prijatel, 2007: 5-6). A herança da tradição interpretativa da Time e o esmagador êxito deste título pioneiro traçam objectivos ambiciosos a qualquer nova newsmagazine. Tentar compreender este meio de comunicação específico implica optar por um caminho entre as várias abordagens analíticas possíveis. Escolheu-se centrar a atenção na capa, um território movediço, por se formar na fronteira entre o jornalismo e a publicidade. Espaço de encenação por excelência, pretende-se neste artigo desmontar as estratégias subjacentes à construção da capa de newsmagazine, teoricamente enquadrada como dispositivo de comunicação. Para estudarmos o nosso objecto, usámos um conceito que, em termos filosóficos, remete para Michel Foucault 4 . Segundo o autor francês, “o dispositivo na sua essência é a rede que nós podemos estabelecer entre os elementos”5. Apesar de o conceito definido por Foucault ter sido pensado para “mostrar a imbricação do poder com um ‘saber’ técnico específico” (Berten, 1999: 34), e de o filósofo o ter aplicado a dispositivos disciplinares, na sua maioria repressivos, a riqueza de dimensões exploradas e a plasticidade que a formulação expressa, tornaram-no um dos conceitos mais fecundos e apropriados pelas mais variadas áreas de saber científico. Gilles Deleuze, interrogando-se sobre a natureza do dispositivo, sublinhava que este “é antes de mais uma meada, um conjunto multilinear”, composto por “linhas de natureza diferente” (Deleuze, 1989: 185). Os dispositivos compõem-se por linhas de visibilidade, de enunciação, de força, e de fractura; todas essas linhas se interrelacionam através de variações ou até de mutações, tornando cada dispositivo um território de multiplicidade. Embora o conceito de dispositivo varie em função dos contextos históricos e institucionais, “certos autores ressaltam o seu carácter de figura intermediária6 que visa encontrar uma posição entre, por um lado, uma abordagem totalizante que coloca em evidência a ideia de uma estrutura, de ordem homogénea, e, por outro lado, uma abordagem rizomática, que coloca em 4 5 6

Foucault definiu o conceito de dispositivo de forma rigorosa e exaustiva em Surveiller et Punir – Naissance de La Prison, em 1975. Foucault, Michel, Dits et Écrits 1954-1988. Tome III: 1976-1979, Paris, Gallimard, 1994, p. 299 (frase citada por (Charlier e Peeters, 1999: 15,16). Em itálico no original.

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evidência

uma

fluência

generalizada,

de

conjuntos

complexos

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abertos,

da

mais

próximos

indiferenciação e do caos” (Charlier e Peeters, 1999: 15). Sobre a capa de revista é possível dizer que possui linhas de visibilidade (as imagens, por exemplo); de enunciação (os títulos); de força (o título e a imagem principais); de fractura (mecanismos de separação dos temas, quando são múltiplos). Para além disso, a capa de revista é também uma figura intermediária, que faz parte da publicação, mas ao mesmo tempo se demarca dela, vale por si, construindo-se como uma janela de contacto com o exterior. A capa não se reduz a informação, mesmo que este seja o teor do interior da revista; a capa anuncia o conteúdo da revista e reforça a notoriedade e a identidade da publicação, sem se perder no universo da publicidade. Uma sucessão de capas, reunidas ao acaso, podem assemelhar-se facilmente a “conjuntos complexos abertos”, mas cada capa por si só segue uma estratégia específica de arrumação dos elementos do dispositivo que lhe conferem uma leitura homogénea e totalizante. Como Hugues Peeters e Philippe Charlier fazem questão de referir, muitos autores sublinham também o carácter híbrido da noção de dispositivo – um traço aplicável na perfeição à capa de revista, que se situa entre o território da informação e da sedução. Jean-Pierre Meunier parte da noção de dispositivo tal como pode ser encontrada em qualquer enciclopédia – “conjunto de peças que constituem um mecanismo, um aparelho qualquer, esse mecanismo, esse aparelho” –, para sublinhar que em todos os sentidos secundários associados ao termo “dispositivo” subsiste a intenção de articular os meios em função de um fim. Também esta acepção se aplica à capa de revista, se consideramos que a multiplicidade dos seus elementos se articula em função de um único fim: captar a atenção do leitor. Demonstrada a validade da análise da capa de revista como dispositivo de comunicação e definido o tipo de publicação a investigar – a newsmagazine – chega o momento de delimitar um corpus e definir uma metodologia a aplicar, adequada às especificidades que caracterizam o território que corresponde ao rosto de uma publicação.

Corpus Nesta tentativa de radiografar a capa da newsmagazine, uma das primeiras decisões foi incluir a Visão, uma vez que se trata da revista de informação geral portuguesa mais antiga e de maior prestígio. Pretendia-se um estudo comparativo, transnacional, que englobasse revistas europeias e americanas. Assim, fixou-se um período de análise (os três primeiros meses de 1999) e escolheram-se também os títulos L’ Express, Newsweek, e Veja, o que corresponde a um universo de 48 capas.

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Dos quatro títulos escolhidos, foram analisadas as edições internacionais da Newsweek e da L’Express enquanto as edições da Veja e da Visão são nacionais. A história de cada uma das publicações é também muito diferente.

Newsweek A Newsweek, com oito edições internacionais, vende quatro milhões de exemplares semanalmente. Fundada em 1933, continua a ser a única rival real da Time. Após lutar pela conquista de um lugar no mercado editorial durante os anos 40 e 50, a consolidação do título acontece na transição para os anos 60, com a circulação média a subir 80 por cento entre 1950 e 1962, ano em que atingiu o milhão e meio de exemplares e tinha já duas edições internacionais. Um ano antes, em 1961, a Newsweek tinha sido comprada por Phil Graham, proprietário do The Washington Post, que pagou nove milhões de dólares pelo título. Osborn Elliot assume a responsabilidade pela redacção, mas as verdadeiras alterações na Newsweek surgem apenas dois anos mais tarde, após a morte de Graham, em 1963. Nesse ano, Katharine 7 Graham assume a presidência do grupo The Washington Post e fornece à

Newsweek “a infusão de talento e capital que esta precisava para competir com a Time” (Sumner, 2003). O orçamento da redacção passou de 3,4 milhões de dólares para mais de 10 milhões de dólares no fim da década de 60. Katharine melhorou também o design gráfico e a capacidade de produção do título. O impensável aconteceu precisamente no fim dos anos 60, quando as receitas da Newsweek ultrapassaram as da Time durante alguns anos. Esta reviravolta na história da Newsweek está relacionada com a forma como Osborn Elliot e a equipa da redacção souberam tratar dois dos temas mais quentes da actualidade norte-americana da época: a guerra do Vietname e a luta pelo fim da desigualdade racial. Em ambos os casos, a Newsweek conseguiu antecipar melhor os acontecimentos e interpretar os factos com mais rigor, enquanto a Time perdia as duas grandes histórias dos anos 60. Osborn Elliot deixou a Newsweek em 1975 e a direcção da redacção da newsmagazine viveu um período de instabilidade, com três responsáveis diferentes em nove anos. A estabilidade chegou em 1984, quando Richard Smith assumiu a direcção editorial da Newsweek. A liderança de Smith consolidou-se em 1991, quando este se tornou presidente da revista, acumulando à responsabilidade pela redacção, a direcção de marketing, vendas de publicidade, circulação, produção e operações de distribuição. 7

Erroneamente, o nome surge muitas vezes como Katherine.

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Em 1998, Richard Smith é promovido a presidente do conselho de administração e Mark Whitaker substitui-o na chefia da redacção. Whitaker supervisionou toda a cobertura do escândalo Monica Lewinsky e graças a esse trabalho arrecadou para a Newsweek um prémio8 na categoria de reportagem em 1999 – o ano que corresponde ao período em análise. Em 2002, com a cobertura do 11 de Setembro, Whitaker volta a conquistar para a Newsweek um prémio nacional, mas desta vez na categoria de “excelência geral”. A Sociedade Americana de Editores de Revistas (ASME), responsável pela atribuição dos prémios, descreve esta categoria como a que “reconhece a excelência em geral nas revistas. Honra a eficácia com que a escrita, a reportagem, a edição e o design se conjugam para captar a atenção dos leitores e corresponder à missão editorial única da revista” 9 . Dois anos mais tarde, em 2004, Mark Whitaker volta a ganhar o prémio de “excelência geral”, com a cobertura do início da Guerra do Iraque, confirmando a Newsweek no seu estatuto de maior vencedora de prémios (dez) atribuídos pela ASME para a categoria de

newsmagazines, que acumula com muitos outros atribuídos por outras entidades. Actualmente, o responsável editorial pelas edições internacionais da Newsweek é Fareed Zakaria. Publicada em mais de 190 países em todo o mundo, a newsmagazine conta com quatro edições em inglês, três das quais internacionais – intituladas Atlântica10 (sobre a qual recai esta investigação), Ásia e América Latina. A edição norte-americana é também distribuída no Canadá e o título participa no “Boletim com a Newsweek na Austrália”. A Newsweek é também a única newsmagazine com edições semanais em língua estrangeira – oito no total. Esta aposta começou em 1986 com a edição japonesa, seguindo-se a coreana, em 1991 e a espanhola, cinco anos mais tarde. Em 6 de Junho de 2000, a

Newsweek International lançou o título Newsweek Bil Logha Al-Arabia, a edição em árabe da newsmagazine, e no fim desse ano surgiu a Newsweek Polska, a edição polaca. Dois anos mais tarde, em 2002, surge a edição em chinês (Newsweek Select), em 2004 a russa (Russky Newsweek) e, a última aposta foi para uma nova edição em espanhol, lançada em 2006:

Newsweek En Espanol Argentina, dirigida a este país sul-americano. L’Express A L’Express, a mais antiga revista de informação geral francesa, tem um percurso semelhante às

newsmagazines europeias mais antigas (Nouvel Observateur, The Economist ou Der Spiegel, por 8 9

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Um “National Magazine Award”, atribuído pela Sociedade Americana de Editores de Revistas (ASME). Consultável em “National Magazine Awards/Category Definitions”, [Em linha], American Society of Magazine Editors, Disponível na WWW:
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