A capoeira apropriada pelos Europeus, novos usos e significados da prática “Afro-brasileira”

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XII CONLAB – Congresso Luso Afro-Brasileiro de 1-5 de fevereiro de 2015 Lisboa. A capoeira apropriada pelos Europeus, novos usos e significados da prática “Afro-brasileira”

Daniel Granada Université de Paris Ouest –Nanterre La Défense Univates – Brasil [email protected] GT 28A – Migrações, Interculturalidades e Subjetividades

Doutor em etnologia e história pela Université de Paris Ouest Nanterre La Défense e University of Essex. Professor adjunto de antropologia e sociologia na Univates (Brasil). Desenvolve pesquisas sobre a expansão da capoeira no mundo desde 2002, é autor de diversos artigos sobre o processo de transnacionalização da capoeira e do livro “La capoeira em France et au Royaume-Uni”, L’Harmattan, 2014. Os temas de interesse são as trocas globais, a transnacionalização de bens simbólicos, processos migratórios e a diáspora haitiana no Brasil.

Resumo Arte “popular” de origem “Afro-brasileira” a capoeira se espalhou por diversos países do mundo a partir da década de 1970. Atualmente é praticada nos cinco continentes, sendo reapropriada e resignificada de acordo com demandas do contexto local. Fruto de uma tese de doutorado defendida em 2013, o artigo explora as novas apropriações feitas sobre a capoeira no Reino Unido em Londres e Manchester. Esta pesquisa foi realizada por meio de observação participante e etnografia multisituada (Marcus, 1995) entre os anos de 2009 e 2011 e de entrevistas com capoeiristas que utilizam a prática na realização de espetáculos ligados à dança e ao teatro, criados e apresentados pelos próprios capoeiristas locais em sua maior parte não-brasileiros integrantes dos grupos. Estas apropriações mostram as adaptações criativas operadas pelos agentes no sentido de relocalizar a prática “Afro-brasileira” num contexto transnacional abrindo novos espaços de inserção sua e atribuindo novos significados a esta prática. Palavras Chave: Transnacionalização; globalização, capoeira, Reino Unido.

Introdução O crescimento da prática da capoeira em diversos países do mundo tem sido notável, a capoeira começou sua expansão no mundo a partir da década de 1970. Esta comunicação é fruto de uma tese de doutorado defendida em 2013, explora as novas apropriações feitas sobre a capoeira no Reino Unido em Londres e Manchester. A pesquisa foi realizada por meio de observação participante, etnografia multisituada (Marcus,1995 ; 2002) entre os anos de 2009 e 2011 e de entrevistas com capoeiristas que utilizam a capoeira como técnica do corpo (Mauss, 1950: 380) na realização de espetáculos ligados à dança e ao teatro. Os casos estudados evidenciam a busca de diferenciação no “mercado da capoeira”, prática que se insere como “bem cultural” cuja distinção está associada à valorização positiva de um “bem cultural” associado ao Brasil e a uma “maneira de ser brasileira” que responde a representações locais sobre o “Brasil” e a “brasilidade”. A noção da existência de um “mercado da capoeira” ou um “campo social transnacional da capoeira” repousa sobre ideia da constituição de um mercado, onde um campo ou um mercado podem ser vistos como um espaço estruturado de posições dentro do qual estas posições e as interações que delas decorrem são determinadas pela distribuição das diferentes formas de recursos ou “capitais” (Bourdieu, 2002: 113-20). Bourdieu assinala que: « pour qu’un champ marche, il faut qu’il y ait des enjeux et des gens prêts à jouer le jeu, dotés de l’habitus impliquant la connaissance et la reconnaissance des lois immanentes du jeu, des enjeux, etc. » (Idem, pp.114). Levitt et al. (2004: 1009) utilizam o termo "campo social” como « um conjunto de redes interconectadas de relações sociais através das quais as ideias, as práticas e os recursos são trocados, organizados e transformados de forma desigual» (tradução do autor). Neste artigo o emprego do termo “mercado” ou “campo social” ligado a prática da capoeira, coloca em relevo as disputas existentes entre os diversos grupos de capoeira em Londres, evidentemente que estas disputas não são somente com relação a dinheiro, mas poder e reconhecimento entre os praticantes. A existência destas disputas não impede também a colaboração entre capoeiristas e grupos que atuam na cena local e transnacional da capoeira.

A presença da capoeira Os primeiros estudos que assinalaram a presença da prática da capoeira fora do Brasil foram estudos dedicados a compreender a imigração brasileira nos Estados

Unidos (cf. Margolis, 1994 ; Ribeiro, 1999 ; Penha, 2001 ; Martes, 2003). Muitos dos brasileiros que emigraram em busca de melhores condições de vida e trabalho durante os anos 1980 e 2000 levaram em suas bagagens a prática da capoeira, ou descobriram, uma vez fora do Brasil a possibilidade de ganhar a vida mantendo contato com uma prática do país de origem. A emigração dos brasileiros para os Estados Unidos é um movimento migratório caracterizado, entre outros, pela importância dada às redes transnacionais estabelecidas pelos brasileiros na explicação do fenômeno (Martes, 1999 ; Margolis, 2003 ; Patarra, 2005). Uma pesquisa realizada em Boston em 1995 demonstra que os brasileiros que optavam por emigrar para os Estados Unidos partiam em busca de oportunidades de trabalho que lhes era negada no Brasil (Sales, 1999: 33). A emigração de brasileiros para aquele país seria uma emigração de “classe média”, porque para que ela se efetive são necessários pelo menos os recursos que garantam a compra das passagens de avião (Sales, 2005). A crise econômica dos anos 1980 no Brasil, chamada a “década perdida”, é vista como o fator decisivo que desencadeia a emigração de brasileiros. Sales (1999: 28) acrescenta o fator político associado principalmente às esperanças e desilusões do período da redemocratização do país, marcado pelo fracasso de diversos planos econômicos, aumento do desemprego e da inflação. Patarra (2005) explora a heterogeneidade dos movimentos migratórios a partir do Brasil e para o Brasil, ela assinala a existência de diversos fenômenos e diversos grupos sociais que emigram. A autora acentua a necessidade de levar em conta na explicação dos fenômenos migratórios do Brasil contemporâneo a importância da circularidade destes movimentos, bem como, as redes sociais que se constituem e se reforçam (Patarra, 2005: 25-26). Nos estudos sobre Brasileiros nos Estados Unidos, a capoeira, o samba e a batucada são frequentemente apresentados como manifestações de “brasilidade” ou “afro-brasilidade”. Entretanto, alguns destes estudos concluíram que a participação de brasileiros não era muito representativa em número de praticantes dentro destes grupos (Margolis, 1994: 307). Os grupos de capoeira e de batucada são, fora do Brasil, grupos de expressão de brasilidade que na maior parte não são compostos por brasileiros. Em geral somente o professor e um pequeno número de brasileiros integram estes grupos, apesar da grande presença de brasileiros nos Estados Unidos. Margolis (1994) interpreta a pouca presença de brasileiros nestes grupos como um exemplo da falta de laços

comunitários entre eles, ou falta de interesse dos brasileiros nas práticas de seu país. Entretanto, o que é interpretado pela autora como falta de engajamentos da parte dos brasileiros, se mostrou durante a pesquisa de campo como uma das características centrais do processo de implantação da capoeira fora do Brasil. Durante minha pesquisa de campo a maior parte dos praticantes de capoeira nos grupos estudados na França e no Reino Unido, era de não brasileiros. De maneira geral o número de brasileiros não é muito expressivo nos grupos de capoeira fora do Brasil, mesmo em cidades como Paris e Londres onde a imigração brasileira é considerável. Após esta primeira vaga de estudos sobre a imigração brasileira nos Estados Unidos, dois estudos foram dedicados à análise da prática da capoeira e de sua apropriação fora do Brasil: os estudos pioneiros de Travassos (2000) sobre a capoeira nos Estados Unidos e de Vassalo (2001) sobre a capoeira na França. As teorias sobre as migrações internacionais ocupam um lugar central na explicação da expansão da capoeira fora do Brasil. Trabalhos como o de Aceti (2011) sobre a expansão da capoeira na Europa, bem como os estudos de Guizardi (2011) que trata da capoeira na Espanha e em Madrid, mostram a importância atribuída às teorias sobre imigração para explicar a expansão da capoeira na Europa. Entretanto a perspectiva das migrações internacionais apresenta dois problemas centrais. Primeiro, o quadro assimilacionista (Capone, 2010: 236-237) destes estudos pode ser questionado, porque é justamente através da valorização positiva no espaço público, de um “bem cultural” do país de origem, que o capoeirista consegue sua integração no país de acolhimento. Segundo, porque não são unicamente os imigrantes brasileiros que fazem parte destes grupos, em geral somente o mestre ou professor são brasileiros, pontualmente um ou outro aluno é brasileiro. Dos grupos que estudei três tinham os professores não brasileiros, bem como a grande maioria dos alunos em Paris e Londres. Alguns grupos sendo compostos exclusivamente por não brasileiros. Não se trata de esquecer a contribuição das teorias sobre as migrações internacionais na explicação do fenômeno de expansão da capoeira fora do Brasil, mas é necessário enquadrar o fenômeno dentro de uma perspectiva que considere a participação dos não brasileiros no processo de relocalização da prática fora do Brasil. Por relocalização entendemos o processo de apropriação e a capacidade de ação (agency) dos praticantes, no sentido de aclimatar a prática ao novo contexto, transformando-a em versões locais e regionais adaptadas e apropriadas criativamente dentro dos contextos nos quais os agentes operam.

Diferentes etapas da expansão da capoeira fora do Brasil O primeiro momento da expansão da capoeira fora do Brasil está ligado à apropriação da prática por grupos folclóricos compostos por brasileiros que partiam em turnê para apresentações (Assunção, 2005: 186-189). Assunção assinala que o primeiro capoeiristas a se apresentar fora do Brasil tenha sido Mestre Arthur Emídio. Alguns anos mais tarde será Nestor capoeira o primeiro a dar aulas de capoeira no velho continente por volta de 1970 em uma escola de dança de Londres (Assunção, 2005: 187-8). Com o passar dos anos o número de escolas de capoeira se multiplica, assim com o número de praticantes. Se atualmente o número de grupos e de praticantes é bastante elevado, no início dos anos 1980 não era difícil para os aventureiros se afirmarem como professores de capoeira mesmo com pouco conhecimento da prática. Muitos destes praticantes vão ficar conhecidos como “capoeiristas do avião”, ou seja, aqueles que descobriram uma vez no exterior que seria possível viver da prática da capoeira. A segunda leva de capoeiristas se situa por volta de meados dos anos 1990, estes novos aventureiros já possuem experiência com a capoeira no Brasil e sabem das histórias de sucesso de alguns de seus pares que conseguiram sobreviver através do ensino da capoeira no exterior. Esta segunda vaga vai proporcionar o aumento do controle pelos pares sobre o “mercado da capoeira” fora do Brasil, tornando mais e mais difícil para que os aventureiros se imponham neste novo contexto. A terceira vaga da expansão da capoeira está diretamente associada aos praticantes locais, são eles que muitas vezes convidam os capoeiristas a vir se instalar fora do Brasil. A aliança com os praticantes locais é fundamental para o sucesso da instalação dos brasileiros, os alunos locais desempenham um papel de verdadeiros intérpretes e tradutores da prática para o contexto local. Não é raro que os brasileiros encontrem namoradas no interior dos grupos, estas namoradas vão desempenhar um papel central na organização dos grupos, exercendo um papel de secretariado e frequentemente alojando o capoeiristas e pagando suas contas, como explica Aceti (2011: 441). No caso dos praticantes locais se lançarem como professores de capoeira é fundamental que eles tenham alguma ligação com mestres ou grupos brasileiros, que os validam enquanto praticantes legítimos de capoeira. Deste modo o praticante local é autorizado a dar aulas, mas deve, por outro lado periodicamente organizar oficinas e convidar os mestres de sua escola para vir participar.

Apropriação da capoeira fora do Brasil Os grupos ou rodas de capoeira são apenas a face mais evidente do processo de expansão da prática fora do Brasil, assim é possível identificar dois níveis do processo de expansão da capoeira fora do Brasil, um nível micro que se relaciona com a transnacionalização e se refere à escala dos indivíduos (Hannerz, 1996: 6) e grupos que a praticam e outra associada à globalização que indica os processos mais amplos de difusão de imagens e narrativas diversas sobre a capoeira através da mídia e outros veículos de comunicação (cf. Granada, 2008)1. A capoeira tem sido fonte fecunda de inspiração para diferentes tipos de produções artísticas e midiáticas. Ao nível das apropriações e criações dos indivíduos e grupos existem experiências que transcendem o espaço “tradicional” da roda de capoeira e procuram inserir a prática dentro de contextos mais amplos, principalmente relacionados com o teatro e a dança. A pesquisa conduzida entre 2009 e 2011 coloca em evidência a apropriação e relocalização da prática da capoeira no Reino Unido, três casos exemplares foram selecionados em razão de suas características associadas à criatividade e capacidade de ação dos indivíduos e grupos. Eles foram resumidos e colocados em evidência neste trabalho.

London School of Capoeira (LSC) No Reino Unido as experimentações realizadas com o teatro e dança têm sido frequentes e conseguem atrair bom público. No caso da LSC dirigida pelos Mestres Sylvia e Marcos os espetáculos associando capoeira e dança possuem uma longa trajetória2. Desde o princípio das atividades de dança e capoeira fizeram parte da trajetória de Mestre Sylvia. Esta experiência pessoal se reflete no seu grupo desde a sua criação. Sylvia conta ter começado a ensinar capoeira na escola de dança The Place em Londres em 19883. Em 1993 eles decidem criar uma companhia de dança, a Passo Co., desde então criaram oito espetáculos e participaram de diversos comerciais para a

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O potencial de persuasão de filmes e comerciais para atrair alunos para os grupos de capoeira deve ser considerado. Por exemplo o filme Only the Strong (1993 – USA), dirigido por Shendon Lettch, foi eficaz na popularização da capoeira na Europa. Diversos adultos e crianças relatam terem procurado grupos de capoeira após assistirem ao filme (cf. Anderson, 2001: 15). 2 Para uma análise detalhada das atividades da LSC e a trajetória de Mestre Sylvia cf. Granada, 2013: 194-222. 3 O The Place é um espaço que reúne salas de espetáculo e cursos dedicados à dança, é muito conhecido e respeitado na cena artística de Londres. Atualmente é Mestre Poncianinho do grupo de capoeira Cordão de Ouro Londres (CDOL) que dá aulas no local.

televisão4. Apesar do sucesso conquistado no Reino Unido, Sylvia lamenta que atualmente um dos grande eventos de seu grupo está perdendo espaço e importância. Ela explica que em 2004, quando o grupo realizou seu festival anual, o batizado dos alunos, eles tinham alugado um teatro de seiscentos lugares durante duas noites, para as quais os ingressos foram todos vendidos com antecedência, entretanto em 2012 eles alugaram uma sala de 150 lugares para apenas uma noite. Segundo Sylvia a redução no público se explica pela presença de outros grupos no mercado da capoeira londrina, para ela os grupos que realizam espetáculos de baixa qualidade são os responsáveis pela desvalorização dos espetáculos que mesclam dança e capoeira. O depoimento de Sylvia demonstra que a presença de outros concorrentes no mercado local da capoeira pode não ser apreciada do ponto de vista daqueles que se encontram a mais tempo no local.

Grupo Kabula Outro grupo que realiza experiências fazendo a capoeira dialogar com outras modalidades artísticas é o grupo de capoeira Kabula, dirigido por Mestre Carlão. Formado nos grupos de capoeira angola entre Niterói e Rio de Janeiro a trajetória de Carlão é marcada por uma ligação com o meio universitário, principalmente na Universidade Federal Fluminense de Niterói – RJ5. Esta ligação fez com que seu grupo tivesse um grande número de estudantes de graduação e mestrado entre seus integrantes, estes alunos influenciaram os rumos do grupo propondo uma série de atividades além da capoeira. No ano de 1996 Carlão, que na época era professor de capoeira, parte pela primeira vez do Brasil para Londres para fazer um mestrado em arte e performance na Queen Mary University of London sobre o tema da capoeira. Ele decide então criar o grupo de capoeira Brincadeira de Angola, começa a dar aulas e recebe um grupo de alunos ligados ao teatro, entre eles Greg Hicks, ator da Royal Company of Shakespeare. Greg vai ter um papel influente na trajetória de Carlão e na formação do grupo em Londres, o que demonstra a importância dos praticantes locais no processo de expansão da capoeira fora do Brasil. Greg foi um dos primeiros alunos de Carlão, ele é atualmente um dos principais intérpretes de Shakespeare. Quando realizamos a entrevista em 2010, ele atuava no papel principal de Rei Lear em Londres e Nova Iorque. Na época Greg explicava 4

Os espetáculos criados por eles são Morte do Capoeira, Maré, Arid Land, Play Low, Capoeira Is, Baker Street 5, Waterloo 3 e Long Haul. Com relação aos comerciais ver, por exemplo, o comercial de Nokia de 2000: https://www.youtube.com/watch?v=epwHWnSLiZs 5 Para uma visão detalhada da trajetória de Mestre Carlão cf. Granada, 2013: 288-310.

conhecer Carlão há mais de treze anos e manter uma grande amizade com ele, pois tinham inclusive morado juntos por anos em Londres. O contato de Greg com a capoeira foi marcante, ele afirma que juntamente com Carlão eles desenvolveram um método utilizando a capoeira para auxiliar a interpretar Shakespeare no teatro. Segundo Greg, este método é único e original, na época da entrevista este método já havia sido aplicado em Madrid e Londres, em trabalhos dirigido a atores de teatro. Ele acrescenta que se dedica a desenvolver e aperfeiçoar esta técnica e que a utiliza no cotidiano de seu trabalho de ator. Antes de entrar em cena ele se prepara realizando movimentos de capoeira, ele canta as músicas e incentiva os atores do grupo a seguir seus passos no aquecimento. Segundo Greg, ele e Carlão discutiram muito sobre as possibilidades de utilização da capoeira enquanto preparação de atores e com relação ao desempenho em cena com o objetivo de fazer o ator “jogar” em cena, o que para ele é totalmente inovador, em suas próprias palavras: Eu acredito que aquilo que você encontra na capoeira, o dialogo conectado, a ligação com a arte, a pergunta, a enganação, a malandragem, o companheirismo, a qualidade, o desafio, a decepção... todas estas coisas você encontra em uma peça de teatro. Então eu realmente creio nisso. Eu trabalho em uma companhia de teatro muito tradicional e estabelecida. O Royal Shakespeare Company é a melhor companhia de Shakespeare no mundo, então não é fácil despertá-los com a capoeira. Nós fizemos muitos workshops lá. Nós fizemos durante os anos talvez seis a oito vezes. A apropriação da capoeira e sua relocalização operada por Greg em seu trabalho de artista de alto nível o fez influenciar uma das companhias mais “tradicionais” de teatro. Mas outras atividades também são fruto da influência de Greg, ele está por exemplo, na origem da peça In Blood, que eles apresentaram no teatro Arcola em 2009, onde a capoeira fazia parte do enredo da peça e outros membros do grupo atuavam. A influência de Greg e seu auxílio proporcionaram a Carlão outros espaços de inserção da prática da capoeira que vão além do espaço de treinamento do grupo e seus praticantes, estabelecendo um diálogo entre ela e outras formas artísticas. Em junho de 2011, em um festival de dança em Manchester Mestre Carlão realizou uma série de oficinas de capoeira para dançarinos, dentre as atividades que foram realizadas por ele estava a realização de performances utilizando os movimentos da capoeira em parceria com um aluno Sébastien, de um grupo de capoeira local.

Figura 1: Mestre Carlão (direita) e Sébastien, performance, Manchester 2011 © Daniel Granada

Além destas performances Carlão participou de uma atividade dentro do festival enquanto percussionista. Se tratava de um duelo de dança contemporânea entre bailarinos locais e outros que se encontravam em Los Angeles na Califórnia, realizada com o auxílio do programa Skype a dança e a música eram apresentadas em conjunto entre os praticantes de ambos os locais. Enquanto alguns dançavam no palco, as imagens dos outros dançarinos era projetada em uma tela translúcida posta frete ao palco, simultaneamente os dançarinos interagiam. A possibilidade de associar a capoeira a dança e teatro permite novas inserções da capoeira. Estas atividades, fruto da inventividade do Mestre e de seus alunos, exprimem a vontade de Carlão de expandir a prática da capoeira para outros praticantes dentro do processo de relocalização da prática fora do Brasil. Grupo Cordão de Ouro Londres O caso da apropriação feita pelo grupo CDOL se liga de maneira importante ao líder do grupo Mestre Poncianinho6. Filho de pai mestre de capoeira e mãe bailarina, Poncianinho tem sua vida profundamente associada à capoeira, a tal ponto que quando perguntamos como a capoeira modificou sua vida ele responde que a capoeira sempre fez parte dela. Poncianinho trabalhava em navios cruzeiros fazendo espetáculos e performances para turistas como capoeirista, foi numa destas viagens que ele conheceu uma jovem inglesa que viria a se tornar sua companheira. É razão deste encontro que ele decide partir para Londres. No ano de 2000, Poncianinho se instala na cidade, segundo ele sem a intenção de trabalhar com a capoeira. Pouco a pouco, frequentando as rodas, 6

Para uma análise detalhada das atividades do CDOL e da trajetória de Mestre Poncianinho cf. Granada, 2013: 257-277.

os alunos de outros grupos começam a solicitar a ele para dar aulas. É assim que Poncianinho afirma que seu grupo começou, quase por acaso. A ascensão do jovem capoeirista no mercado local foi rápida. Seu estilo adaptável fez com que logo ele conseguisse um papel de destaque face aos outros capoeiristas que estavam há mais tempo no país. O momento de maior notoriedade de seu grupo foi após ele ter sido selecionado para realizar a gravação da nova marca do canal televisivo da BBC de Londres. A rede de televisão queria modificar a antiga marca de um globo terrestre, considerada velha e desatualizada. Neste sentido a capoeira é relocalizada pela BBC One para promover sua imagem “multicultural”. Não apenas a capoeira, mas oito novos “idents” foram preparados com outros tipos performances como jogadores de basquete em cadeiras de roda, dançarinos de break dance, de salsa, ballet, jogadores de rugby fazendo o haka, meninas em uma rave e acrobatas. Todas estas performances visavam traduzir a nova imagem da BBC One e substituir o globo, que simbolizou a marca durante quase quarenta anos. Os novos “idents” foram apresentados quarenta vezes por dia entre março de 2002 e agosto de 2005, é preciso assinalar que em 2002 a audiência do canal era de 81 por cento da população do Reino Unido (The Guardian, 2002)7.

Figura 2: BBC “Idents” Capoeira 2002

Poncianinho afirma que é a partir dos “Idents” que os ingleses passaram a se interessar pela capoeira, neste sentido seu trabalho teria auxiliado bastante a difusão da capoeira no país. Na esteira do sucesso dos “Idents”, Poncianinho participou a seguir de um dos filmes de Harry Potter (Harry Potter e o Calice de Fogo, 2005). Esta inserção na mídia reforça o trabalho que ele realiza nas salas de dança em Londres. Poncianinho 7

Para uma análise do uso da capoeira em relação com o contexto social e político do Reino Unido no momento da transmissão dos Idents, até sua saída abrupta da programação cf. Ferreira, 2009.

trabalha sete dias por semana dando aulas em diferentes locais da cidade, alguns destes são escolas de dança bastante conhecidas como The Place e The Danse Attic, que fica no bairro de Chelsea em Londres. Juntamente com seus alunos Poncianinho promove espetáculos associando a dança e a capoeira, estes espetáculos são dirigidos por ele mesmo e contam com a participação de seus alunos como dançarinos. Outros espetáculos e performances são realizadas em diferentes bares da cidade. Barish, que treina com Poncianinho há mais de dez anos afirma que juntamente com outros colegas realizam espetáculos de capoeira nos bares, conta com humor que nenhum daqueles que se apresentam é brasileiro, mas ele se sente um brasileiro por adesão e se diz muito feliz de poder representar a “cultura brasileira” em Londres.

Considerações finais Se o Brasil ainda permanece a terra mítica da capoeira, a expansão da prática não repousa mais exclusivamente sobre um movimento migratório. Os capoeiristas europeus são cada vez mais numerosos, eles dirigem grupos e se apropriam da capoeira. O papel crescente dos capoeiristas locais não brasileiros vem sendo progressivamente reconhecido pelos mestres brasileiros a través do reconhecimento de treneis, instrutores professores, contramestres e mestres. Os capoeiristas locais operam uma verdadeira interpretação e tradução da prática da capoeira ao contexto local, o que torna evidente que a prática da capoeira é apropriada e relocalizada criativamente pelos seus praticantes, dando lugar a novas interpretações e aplicações da prática afro-brasileira. Os casos apresentados acima demonstram a capacidade de ação (agency) dos atores no processo de relocalização da capoeira. Fora do Brasil é preciso inventar e adaptar a prática para uma inserção mais vantajosa no “mercado de produtos étnicos” já bem diversificado em metrópoles mundiais como Londres. O que a experiência da expansão da capoeira deixa claro é a possibilidade de reinvenção e negociação com novos contextos, nos quais as alianças com praticantes locais se mostram com potencialidade criativa. Portanto é a partir da capacidade de adaptação e da liberdade criativa que os grupos de capoeira organizam novas formas de praticar a capoeira dialogando com a música, a televisão, o cinema, a dança e o teatro em um processo que está em constante construção.

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