A carne e o cosmos - Rodrigo Lobo Damasceno estreia

June 4, 2017 | Autor: G. Silveira Ribeiro | Categoria: Poesia Brasileira, Crítica literaria, Poesia brasileira moderna e e contemporânea
Share Embed


Descrição do Produto

A carne e o cosmos: Rodrigo Lobo Damasceno estreia (anotações à margem de Tatuagens complicadas do meu peito)

Gustavo Silveira Ribeiro Universidade Federal de Minas Gerais

1. Inscrição, rastro, cicatriz Voz que vem do futuro, a poesia – ainda inédita – de Rodrigo Lobo Damasceno apresenta uma série múltipla e intercambiável de sentidos para o ato da escrita, dos quais dois, em princípio, merecem ser destacados – posto que articulados e desdobráveis, retornando de diferentes maneiras ao longo do texto: para o poeta, escrever é tatuar (na pele do papel) a Letra indelével do afeto e da experiência, gravando-a a ferro e sangue; e escrever é também – num mesmo gesto – desvelar a tatuagem, as cores que o corpo abriga, expor o segredo indecifrável que se carrega no peito. Dessa forma, é possível observar como todo o vasto campo semântico que se articula em torno de ideias como gravação, marca e sobreimpressão se faz presente e decisivo no conjunto dos poemas, que não por acaso vai chamar-se Tatuagens complicadas do meu peito. Nele o corpo, a tela, a folha em branco são superfícies onde vão se inscrever as palavras, cada uma delas indicando, para além da sua materialidade de signo (dado incontornável no projeto), o lastro vivo que as atravessa e de certo modo embasa: “‘diz ando bordando corações’ como se a bordo do corpo passasse a ser tudo tatuagem:e passa: [...] repara na pele a linha magnífica e magenta q pode ser ruína,cicatriz,marca de unha,” (LOBO DAMASCENO, 2016, p. I).

As palavras/signos/imagens só são gravadas, só se fixam fortemente porque são sulcos, pegadas, ranhuras que a experiência e a imaginação – os choques com o mundo e os



1

volteios da inteligência – deixam no sujeito da escrita. Não se trata, por suposto, de qualquer traço biográfico verificável: para além das cenas do dia a dia e do registro das atividades pessoais, os poemas propõem um modo visceral de conceber a escrita, segundo o qual ela é, só pode ser, cicatriz, isto é, memória do vivido que no entanto não traduz diretamente e de modo integral os acontecimentos do passado; toda cicatriz é uma inscrição que é preciso decifrar, para a qual faz-se necessário inventar um sentido que a torne legível. Matéria de recordação, a escrita/cicatriz de Rodrigo Lobo Damasceno é também elaboração permanente de outras possibilidades, outras identidades, outras leituras possíveis para o que nos afeta e marca o corpo: querida.01 noite pode durar 3 dias(e ser uma apoteose de brigas e cantos e galos bêbados lágrimas carícias-de histórias russas protagonizadas por bailarinas).assumir o risco:levá-lo no peito p/ todos os lados./estrelas,planetas,álcool:o coquetel explosivo nas mãos do universo-ou nos teus bolsos/.querida.pense no big bang:isto é,ato de vandalismo repetido a cada vez que a águia sai da tua cabeça(e grita)e encontra o lobo sobre a minha;a cada vez q o peixe atravessa os fluidos tuas águas o doce de leite e chega se debatendo em tua perna(ou chaga a minha língua).recordo e reconto todas as penas de uma ave extinta(q sobrevive pelo plágio das aves tóxicas q ainda voam em nosso dias).1 noite pode durar 03 vidas(e ser a colina úmida sobre a qual os pés esfriam qnd já nda contém a paixão q escapa do barro e dos lábios:td pode ser expulso às quatro da manhã-eu não fui.querida). huma noche pode durar 3 dias.ou nunca mais acabar, tatuar-se complicada em nosso peito.ferida. [LOBO DAMASCENO, 2016, p. VII] O elemento visual que constitui os poemas – e que se afirma desde o título – é mais que uma metáfora: como se vê, além da referência às tatuagens e às diversas marcas que o amor, a frustração e o desejo podem deixar sobre as superfícies que se espalham, o próprio corpo do texto se coloca como uma imagem antes de tudo. Aproveitando o espaço entre as palavras, ou a ausência dele, como elemento criativo, e aproveitando igualmente, e de modo muito sofisticado, a linguagem telegráfica (ou diríamos eletrônica) da comunicação on-line, reduzida tantas vezes a apenas duas ou três consoantes, o poeta



2

constrói uma poesia para os olhos, que tem consciência da sua condição de matéria sígnica e do espaço que ocupa na página, sendo antes de tudo mancha gráfica, forma visual que se entrega também à contemplação (e não apenas à leitura). Conscientes de ser imagens, os poemas – como o exemplo antes transcrito permite perceber – aproximamse da tatuagem e aceitam, como um seu tema fundamental, a relação entre escrita e memória. A duração expansiva, virtualmente interminável de uma noite intensa é expressão do caráter incontrolável do vivido, que se desdobra, metamorfoseia e confunde pela lembrança, ora transformando-se em símile do universo, ora reduzindo-se a simples ponto sobre a pele. Mais do que apresentarem-se como poesia (também) visual – o que certamente será muitas vezes intensificado com a entrada em cena dos desenhos e bordados da artista plástica Camila Hion, que irão se costurar aos textos e dar forma final ao livro – as Tatuagens complicadas do meu peito assumem e incorporam o que há nelas de rastro e pegada viva, fazendo disso mote e obsessão.

2. Saturno entre os pelos A melancolia percorre o livro de Rodrigo Lobo Damasceno de modo discreto mas seguro. Tratando de ser uma poesia do afeto e da memória, ela é também uma poesia da finitude, para a qual a intensidade do instante se paga com a consciência dolorosa da sua condição fugaz, do seu aspecto passageiro e incerto. O fato de que as experiências podem ser reelaboradas e, de certo modo, fixadas na pele e na página, gravadas como tatuagens, não anula o que há de inconstante nelas, antes o acentua, na medida em que se revela, no próprio gesto da escrita, a sua precariedade (e das suas técnicas de condensação, deslocamento e livre associação) diante da inapreensibilidade de uma realidade fugaz; escrever é identificar e produzir rastros – o livro parece nos dizer – sabendo-os sinais breves e necessários.



3

A representação proposta nas Tatuagens complicadas do meu peito do encontro amoroso, suas alegrias e tensões – elementos que se intuem desde o título – dá bem a medida do que afirmamos. Um traço constante do texto, repetido em vários poemas, é significativo aqui: a cadeia metafórica perseguida muitas vezes para descrever o que há de impactante e único na aproximação desejante dos corpos guarda a memória da morte e da destruição, fazendo ver que a beleza do amor se constrói também da certeza de seu fim. No segundo dos poemas do livro (que não têm título ou numeração específica), o eu-lírico procura descrever metonimicamente a mulher a quem, em outras passagens, se dirige: seus traços físicos e seu temperamento, seus encantos e fúrias, partindo sempre de imagens como essas: “a de cachos mais revoltos q as fronteiras onde o espaço e o tempo devoram o vazio”; ou “a de boca mais rubra que as águas do pacífico antes de dissolverem em azul o sangue quente e vermelho do último corsário devorado pela grande tubarão branco.” (LOBO DAMASCENO, 2016, p. II) Nos dois trechos o procedimento é o mesmo: os caracteres da mulher tornam-se as circunstâncias extremas de uma experiência irrepetível e finita, marcada pelo desaparecimento e pela fragilidade. O naufrágio e a deglutição do último corsário, que se apaga sem deixar vestígio, tragado pelo oceano, traz junto a si, como imagem, a sensação do irrecuperável que caracteriza a melancolia, essa constelação afetiva que se liga, de diferentes maneiras, à perda do objeto amado e ao desencantamento do mundo. Do mesmo modo, todas “as penas de uma ave extinta” (LOBO DAMASCENO, 2016, p. VII), no dúbio sentido que o trecho propõe, e a altura inalcançável de uma certa nota musical são outras tantas imagens possíveis daquela sensação ambígua de vazio e esplendor que cerca o amor e suas ruínas: a de olhos mais longos q a noite e que o ano da serpente.dizem que nos limites do universo o big bang ainda é um perigo iminente.a de cachos mais revoltos q as fronteiras onde o espaço e o tempo devoram o vazio(com o pó de estrelas que ainda vão



4

nascer de dentro do fogo).dizem q nos traços mais finos de toda pele,todo pelo,tudo,energias opostas se encontram se chocam se curtem para formar o coração e a faca,os olás e as rosas,os lobos e as águias:a de boca mais rubra que as águas do pacífico antes de dissolverem em azul o sangue quente e vermelho do último corsário devorado pelo grande tubarão branco.dizem q nos movemos por entre cordas e q cada passo e cada toque entre corpos dispara uma nota que nenhum músico alcança(apenas lou reed em sua prática diária e eterna do tai chi):a de cílios mais longos que as noites e as flautas.dizem que ainda nesta galáxia circula a canção “dark was the night,cold was the ground”,o blues que nos apresentará à eternidade:a de pé quente(cabeça idem). [LOBO DAMASCENO, 2016, p. II] Outra indicação da presença da melancolia no livro pode ser percebida na configuração de um olhar atento às muitas formas de desespero e solidão que vão como que se multiplicando ao seu redor. A partir de uma estrutura de oposições, os poemas constroem-se quase sempre pela contraste entre uma cena interior, profundamente íntima (que pode se dar no espaço fechado do quarto, sobre a superfície do colchão, no recesso do coração ou da memória) e os movimentos que crescem à sua volta, venham eles da rua, do céu povoado de signos ou da consciência angustiada da morte ou do sofrimento próximo. Instigado, talvez, pela lembrança “matinal de mallarmé(carne e tristeza)” – cuja brise marine invade, trazendo tédio e cansaço, alguns dos textos de Tatuagens complicadas do meu peito – o poeta pressinta e procure abrigar em si ‘o choro que há sempre no campus’, quase tão comum, naquele cenário, como ‘o cheiro de cânhamo’ (cf. LOBO DAMASCENO, 2016, p. VI), ou ainda a força da dissolução, “a foice afoita” (LOBO DAMASCENO, 2016, p. VI) que espreita a vida geral e lhe deixa um gosto vago e persistente de negatividade. Mais do que em qualquer outro dos textos do livro, o poema (o quinto da série) no qual a imagem do poeta se confunde com a de seu cadáver, dando a ver a prevalência do deserto, do Nada sobre esforços e racionalizações:



5

q importa a porta aberta se o q vinga além dela é terra?nado.mas não sei nadar.pode ser q confunda os movimentos ágeis dos meus ombros com os braços pensos do meu cadáver afogado.extremar:esta,a via p/ o verso e p/ as mamas onde andorinhas mergulham,mordiscam e ressuscitam os corpos q morrem sem ar.um imenso livro azul e sem paginas.um abismo.outro deserto.filosofia:nenhuma:nenhum:medo.pode ser q sereias.a noite(e a viagem)não é óbvia-ela tem mil bocas e 03 mil bucetas: ninguém irá conhecê-la. não importa a porta aberta(observá-la,escrevê-la:nada disso adianta):nade,adiante. (LOBO DAMASCENO, 2016, p. V)

3. O coração e a faca Há um interessante jogo de ficção proposto pelo livro de Rodrigo Lobo Damasceno. Nele, o poeta aproveita o próprio sobrenome para figurar-se como um personagem de seus poemas, o Lobo. Falando quase sempre na terceira pessoa, vendo-se de longe, o poeta lança mão de um dispositivo autobiográfico interessante, na medida em que a sua imagem mistura-se e sobrepõe-se aos desenhos que formam as tatuagens tão presentes no texto, indicando uma intrincada rede de significados: lobo é o animal feroz, solitário e capaz de uivos extensos, naturalmente associado à violência; lobo será também a imagem impregnada na pele, espécie de insígnia (ou inscrição totêmica) a lembrar tanto a devoração e quanto o canto, atividades co-extensivas da escrita e da criação poética; por fim, Lobo é a máscara com que se apresenta, em certos momentos-chave, o autor, costurando a partir dela os sentidos mobilizados pelo signo plural que escolhe e instaurando assim um regime de ficcionalidade que potencializa a presença das muitas identidades e das muitas vozes que se reúnem e combinam no corpo dos poemas:



6

(...) mas,então,existe o LOBO-aquele para o qual já nenhum segredo existe porque é da natureza do lobo devorar todo e qlq número,toda e qlq palavra-:dizem q qnd o lobo uiva por dentro da noite,atravessando a planície ou superando o planalto,está tentando nos revelar esse segredo q não sabemos,mas é q nós não sabemos também como escutá-lo.e falamos. [LOBO DAMASCENO, 2016, p. III] A presença mais marcante dessa figura no texto está associada, uma vez mais, à abordagem feita dos traços e tramas amorosas que o povoam. Dessa vez, no entanto, a melancolia não é o afeto decisivo, mas a paixão, talvez mais propriamente a intensa carga erótica com que ela se inscreve nos poemas. O encontro dos corpos é às vezes doce, às vezes enérgico em Tatuagens complicadas do meu peito, mas sempre é a experiência fundadora, aquela que é capaz de criar novos mundos e novas linguagens. A palavra mais adequada para descrevê-lo é a luta. O toque, a descoberta, a troca, atos inerentes ao exercício amoroso e à aventura do sexo, são quase sempre violentos, apresentados a partir de metáforas bélicas (“e se esta tua bota preta-a de cano curto-for uma espécie de beretta pronta p/ me acertar no peito?”) ou relativas a conflitos entre animais selvagens, todos eles aptos à captura da presa ou à defesa de seu espaço vital. É precisamente nesse ponto que a figura do Lobo ganha destaque, uma vez que será em torno do sentido ambíguo e flutuante desse termo que o poeta irá situar o erotismo que tão decisivamente marca o livro.

Assentado na imagem do lobo, Rodrigo Damasceno traz para o centro da cena um outro personagem, outra figura de animal que aqui irá ocupar o lugar do feminino: a águia. Imagem icônica de certos tipos de tatuagem, bicho agressivo e perigoso, ela liga-se ao voo e ao céu, enquanto o lobo está preso à terra (e não é demais lembrar que à terra está atado, pelo pensamento analógico, o melancólico). A luta que se dá entre os dois, a diferença existente entre ambos e o contato tenso que mantém anima a dinâmica erótica



7

que percorre os poemas, dando a eles uma carga de crueza, um quê de naturalismo que torna mais forte e sensorial o rito da paixão que eles encenam. As tatuagens complicadas de que fala o título, e que vão estampadas na altura do coração, revelam aqui um dos seus sentidos mais imediatos: colocados lado a lado na superfície do corpo, essas imagens (e tudo que elas simbolicamente arrastam consigo) vão enfrentar-se e desejar-se, fazendo do peito palco privilegiado da ação, símile da página em branco e da tela de tecido, sobre as quais vão se lançar as palavras e os bordados que prolongam, em registro e linguagens diversas, o mesmo combate. A violência disruptiva desse momento, a potência oculta na sua mistura de abraço e peleia, ganha, quem sabe?, sua melhor formulação nos versos a seguir, nos quais o instante preciso do amor vai ser comparado à grande explosão, ao estouro (como o gozo? como um soco?) que inaugurou o universo. Como se vê, nela vão juntos a carne o cosmos – a matéria vasta e perecível com que é feita essa poesia: (...).querida.pense no big bang:isto é,ato de vandalismo repetido a cada vez que a águia sai da tua cabeça(e grita)e encontra o lobo sobre a minha; [LOBO DAMASCENO, 2016, p. VII]



8

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.