A Casa A Electrica e os Discos Gaúcho - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo III:

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Descrição do Produto

A utopia da Casa A Electrica Saverio Leonetti era uma figura. O italiano nasceu – as fontes divergem – em Cremona ou em Catanzaro, na província da Calábria, dia 16 de outubro de 1875. Chegou em Porto Alegre quando se acendiam as primeiras luzes do século XX. Tinha 25 anos, muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender. Era um ragazzo solto no mundo – ainda que já casado – e em plena virada de século. Nada parecia difícil. Principalmente para quem tinha a mesma vontade de fazer a América que motivara tantos compatriotas seus a se mandarem para o outro lado do Atlântico (gente como, pra ficar em um exemplo, o pai de Radamés Gnattali, de quem ainda falaremos muito, e que havia feito o mesmo poucos anos antes).

Savério na época em que chegou a Porto Alegre

A saga de Leonetti começa numa terra que recebia buona gente aos magotes, importando até a máfia siciliana: os Estados Unidos. Aliás, falando em máfia, o pesquisador Hardy Vedana adorava contar a versão de que Leonetti teria engravidado uma moça de família cujo pai era ligado a essa turminha – e que, por isso, ele teria se mandado da Itália. A versão é cinematograficamente ótima, mas tão pouco comprovável que Vedana nem sequer a cita em seu livro definitivo sobre o tema: A Electrica e os Discos Gaúcho. O fato é que nem Saverio nem seu irmão e companheiro de viagem Emilio acharam o que queriam em Nova York. Embarcam então em outro navio, para uma cidade que era, nesse momento, quase uma colônia italiana: Buenos Aires. A capital argentina recebera

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nada menos que 800 mil imigrantes vindos da Itália durante a segunda metade do século XIX. Ali, a influência dos oriundi é até hoje imediatamente conferível em qualquer breve lista de tangueiros, por exemplo: Piazzolla, Pugliese, Troilo, Berlingieri, Tarantino, Marconi, Di Sarli, Canaro… Mas também não estava na capital portenha o que Leonetti procurava. Contrariando todas as expectativas, ele se agradou mesmo foi de uma pequena capital regional, de pouco mais de 100 mil habitantes, chamada Porto Alegre. Tinha sido a penúltima escala do navio que os trazia dos Estados Unidos, e haviam ficado ali dois dias antes de seguir para Montevideo e, finalmente, Buenos Aires. Pois não é que aquele lugarzinho parecia ser o mais fértil terreno pras ideias do italiano? Dito e feito: mal chegam a seu destino argentino, ele manda Emilio de volta pra capital gaúcha com a missão de alugar um prédio pra montarem uma loja. Enquanto isso, pega mais um navio, de volta aos Estados Unidos. Missão: comprar o primeiro estoque que vai abastecer a loja na cidadezita. Resultado: em novembro de 1908, Saverio e Emilio Leonetti inauguram sua primeira firma, dedicada ao ramo de artigos de papelaria, cartões, postais, no varejo e no atacado. Vendiam também louças e brinquedos importados da Alemanha, França e Itália, instrumentos musicais, gramofones, discos e agulhas. A loja também era a representante oficial das lâmpadas Osram para todo o estado – numa época em que a luz elétrica deixava rapidamente de ser um luxo de poucos para se espalhar pelos lares. Deu-se muito bem o gringo. Em tempos novidadeiros como aqueles, Porto Alegre não fugia à regra. Um dos assuntos de maior interesse eram os gramofones, que, devido aos seus altos preços, ainda eram privilégio dos muito ricos. Importado da Europa, na primeira década do século um aparelho desses custava entre 75 e 450 mil réis, quando o salário de um trabalhador não passava de 150 mil. Pra piorar, os únicos discos que havia também eram, em sua maioria, fabricados no Velho Continente. Chapas com as vozes de grandes tenores, como Caruso, ou álbuns com 20 ou mais discos de 78rpm registrando óperas completas. Todos caros: um único disquinho variava entre três e seis mil réis.

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Capa do livro do Vedana, que vale procurar Além disso, eram encontrados em apenas três endereços: a Relojoaria Guarany, a Guinle & Cia e a Au Palais Royal. Leonetti abriu um olho gordo pro negócio e, em 1911, muda o nome de sua loja – que ficava originalmente na Rua dos Andradas 275-A, depois no 413 e finalmente no 302 – para Casa A Electrica. Chegava bem a tempo de pegar a explosão (mundial) de interesse no mundo da música gravada. Meia década depois, já passaria de uma dezena o número de estabelecimentos comerciais porto-alegrenses que vendiam gramofones, discos, agulhas e outros acessórios. *** Enquanto isso, longe dali, desde agosto de 1902 a Casa Edison do Rio de Janeiro era a pioneira da gravação de música no Brasil. Seu dono era o tcheco naturalizado norte-americano Fred Figner, uma das figuras mais comentadas da Capital Federal. O cara tinha estratégia. Montara primeiro uma fábrica das suas máquinas Figner: fonógrafos com cilindros descartáveis e regraváveis, que eram o que havia de mais moderno então. Logo depois, se pusera a gravar. Leonetti certamente prestou atenção nisso. E aí se dá margem para o primeiro da série de equívocos que esse capítulo se propõe a esclarecer. É o que afirma que, quando começou seus trabalhos, a Edison era a única gravadora da América Latina.

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Uma capa muito sugestiva da clássica revista argentina, de 1902 Só que em Buenos Aires, por exemplo, o primeiro estúdio de gravação (então chamado de laboratório de fonografia) é de 1900, e a primeira propaganda sobre discos gravados saiu na revista Caras y Caretas de 23 do mesmo agosto de 1902 em que a Edison começou seus trabalhos.

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Ou seja: pra que os discos fossem vendidos, obviamente já tinham sido gravados. Além disso, só havia fábricas nos Estados Unidos e na Europa. Para percorrer o longo percurso oceânico de ida e volta, as gravações teriam de ter sido feitas bem antes de agosto de

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1902. Ou seja: não. A Edison não foi a primeira gravadora da América Latina. E nada garante que, de toda a América Latina, só em Buenos Aires se gravasse antes que no Rio. Haveria de se conferir isso pelo menos em mais dois ou três países (quem se habilita?). O mais irônico disso é que quem tem fama de se achar o centro do mundo são justamente os argentinos, e não os brasileiros… Voltando a Leonetti, ele já tinha juntado um bom dinheiro vendendo suas novidades elétricas e acústicas. Foi quando pegou mais um navio, agora pra sua Itália, com uma ideia na cabeça. Arrecada lá dois outros irmãos, Aquiles e Carlo. E se vão os três para a Alemanha, onde compram o que de mais moderno existia na nascente indústria do disco. Traz junto com os equipamentos um profissional especializado pra treinar seus funcionários e uma série de matrizes de gravações alemãs – que mais tarde acabaria lançando como se tivessem sido gravadas por ele e tocadas por grupos gaúchos (o gringo não era fácil).

Atual estado do casarão De volta à cidade, vai trabalhando na maciota. Primeiro atiça sua fama de bon vivant, amante da música e promotor de inesquecíveis festas em sua requintada chácara – que contava com bosque, jardins, pomar de árvores frutíferas, quadra de tênis, cancha de bocha e até um riacho particular. Ficava na Avenida Sergipe, 09 (hoje, 220), divisa dos bairros da Glória e Teresópolis (e o prédio está lá no mesmo lugar, tombado, abandonado, e se desmanchando). Naquela época, para um porto-alegrense, isso era algo como a fronteira entre a casa do Chapéu e onde o Judas perdeu as botas. Por isso, o pessoal ia pras festas, e ficava – às vezes por dias.

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Nessas celebrações fitzgeraldianas da Belle Époque, o quase quarentão pai de três filhos ia se enturmando com os melhores músicos da capital, e sentindo o terreno. Sabia o que queria: conquistar a amizade dessa gente boa, que no futuro seria gentilmente convidada a gravar – e não há provas, mas dá pra apostar alguns tostões que eles o fariam, na mais das vezes, de graça. Ou quase. Quando a sociedade porto-alegrense já tinha comprado um número significativo de gramofones importados, aparece o óbvio: era preciso ter o que tocar nos aparelhos que ocupavam lugar de honra nas salas de estar (é bom lembrar que rádios ainda não existiam, e TV nem em sonho). Hora de botar em andamento a segunda parte do plano. Se a Casa A Electrica vendia gramofones, nasceriam os Discos Gaúcho para gravar e fabricar o que tocar nesses aparelhos. Sim. O cara montou na sua chácara uma gravadora (o destino fez com que ele não pudesse utilizar o nome A Electrica porque outro empresário local – Engelbert Hobbing – havia registrado a marca para a eventualidade de começar a fabricar discos, o que nunca aconteceu, mas comprova que a coisa tava estourando no interesse popular). Mais ou menos nessa época, dezembro de 1912, Fred Figner inaugurara finalmente sua própria fábrica, no Rio, em parceria com a multinacional Odeon. A partir dali, ainda que um punhado de outros pequenos selos surgisse na capital federal, a Odeon-Casa Edison reinaria absoluta. Afinal, era a única com capacidade de prensar o que gravava sem ter de mandar as matrizes para o exterior. Por isso, quando Fred ficou sabendo, meses depois, que a Casa A Electrica do nosso Saverio Leonetti iria também lançar uma gravadora, quase teve um piripaque. A Odeon tinha filiais em São Paulo, Pará e Bahia, e a iniciativa porto-alegrense se apresentava como uma grande pedra no sapato em sua próxima pretensão expansionista: o Rio Grande do Sul. Era preciso agir rápido. Na Praça da Alfândega (mais especificamente Rua dos Andradas, 289), existia a tradicional Casa Hartlieb – dos músicos Theodoro Hartlieb & Irmão, parentes do futuro cantor e compositor Carlinhos Hartlieb. Os Hartlieb vendiam instrumentos musicais de todos os tipos, afinavam e arrumavam pianos, órgãos e harmônios, imprimiam, publicavam e divulgavam partituras de compositores locais e vendiam discos e fonógrafos de várias fábricas. Pra completar, 7

tinham exclusividade no sul do Brasil para o catálogo da Casa EdisonOdeon. Em 1908, haviam até recebido uma equipe enviada por Figner à capital gaúcha. Equipe que gravou algumas chapas com artistas locais e chegou a colocá-las à venda, mas sem maiores repercussões. Pois então: os Hartlieb seriam os aliados naturais na primeira tentativa de Fred em derrubar Leonetti. Ele manda novamente para o sul equipamentos e dois funcionários – um deles chamado João Gonzaga, e é possível que seja o mesmo João Gonzaga marido de Chiquinha Gonzaga (que se passava por filho adotivo dela, mas isso não vem ao caso). Em poucos dias, na pressão, a equipe registra 102 músicas (28 delas, composições de Octavio Dutra, mas também muita coisa de Edu Martins e alguns registros únicos de instrumentistas como o também compositor e violonista Álvaro Mabilde). Esses discos foram prensados no Rio, e lançados dia dois de julho de 1913. O selo se chamava Discos Rio-grandense, e ainda tiraria mais duas fornadas – a última delas chegando na cidade em 12 de outubro do mesmo ano, e vendendo milhares de cópias em poucos meses. Teria dado certo, não fosse o ímpeto com que Leonetti entrou no mercado, soterrando os projetos expansionistas da Odeon.

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A lista de gravações para a Casa Hartlieb, assinada por um gênio da época: Oscar Preuss. Anos depois, na Inglaterra, ele passaria o bastão de produtor da EMI para George Martin, o quinto Beatle.

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*** Saverio Leonetti começa como Fred Figner: gravando em Porto Alegre, mas prensando na Alemanha. O lançamento da marca Gaúcho é de dois de junho de 1913, e os primeiros discos são deste ano. Leva um ano pra suas prensas começarem a funcionar: sete de junho de 1914. E quem vai estrear o lance? O grupo Terror dos Facões, de Octavio Dutra (vão guardando esse nome). Dia 22 de julho de 1913, ali na chácara de Leonetti, eles são os primeiros artistas brasileiros fora do Rio de Janeiro a gravar e prensar um disco – ainda que como teste. E aí, dia 1º de agosto de 1914 deveria ser feriado municipal em Porto Alegre: nessa data, a Casa A Electrica inaugurava oficialmente sua fábrica (que chegou a ter 41 funcionários). O Correio do Povo estava lá: Realizou-se, ontem, a inauguração da fábrica de discos para gramofone, denominada GAÚCHO e de propriedade dos srs. Saverio e Cia., de cuja firma faz parte o capitão Saverio Leonetti, proprietário da Casa A Electrica, à rua dos Andradas, nº.302. (Sim. Sabe-se lá porque, em algumas matérias de jornais da época Saverio é chamado deCapitão Leonetti. É divertido pensar no que terá o gringo inventado para ganhar essa aura extra de respeitabilidade?) Continua o Correio: Essa fábrica instalada recentemente é a segunda no gênero existente no Brasil. A inauguração efetuou-se às 15hs e a ela assistiram, além dos representantes da imprensa local, o Cônsul da Itália Cav. Beverini, o General João Batista Mena Barreto e outras pessoas. Depois de demorada visita à fábrica em que foram mostradas aos presentes todas as dependências do estabelecimento, passou-se a uma experiência que deu os melhores resultados. Essa experiência consistiu na gravação de diversos discos, com discurso pronunciado por um dos presentes e com números de música executados por um quinteto da Brigada Militar do Estado. Assim que terminava cada parte, o disco era passado num aparelho em que se reproduziam, nitidamente, os sons apanhados.

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Os visitantes assistiram aos trabalhos de fundição dos discos, mostrando-se agradavelmente impressionados com o funcionamento das modernas máquinas do estabelecimento. Além de ser a segunda fábrica de discos do Brasil, era uma das pouquíssimas no Planeta: algumas poucas havia nos Estados Unidos e Alemanha, uma que outra na França e na Itália. Em uma semana chegavam às lojas os primeiros 15 lançamentos e começava ali um momento de efervescência fonográfica que Porto Alegre levaria mais de 70 anos para repetir. Ao longo de pouco mais de uma década, a Casa A Electrica e os Discos Gaúcho – com a garbosa estampa de um gaudério a cavalo e com um jeitão meio gaucho argentino – construiu um catálogo de (segundo o pesquisador Hardy Vedana) fabulosos 3.500 lançamentos. Boa parte deles, de artistas locais. O que dá uma impressionante média de quase 30 discos por mês. Um título diferente por dia. Tudo saído das prensas: cada uma com dois pratos de ferro que imprimiam 10 toneladas de peso sobre uma bola de cera de carnaúba que virava um disco. *** Os Leonetti e os Figner seguiam se cruzando. Saverio se associa ao selo Phoenix, de Gustavo Figner – irmão e inimigo de Fred, seu mais forte concorrente em São Paulo, onde era a sede do Phoenix. A Casa A Electrica é quem vai prensar seus discos. E aí Emilio Leonetti abandona o barco da Electrica. Em última instância, por causa de Fred Figner. Injuriado pelo sucesso de Saverio, o tcheco moveu contra ele o primeiro rolo judicial por direitos autorais no Brasil. Os Discos Gaúcho tinham lançado uma gravação de Cabocla de Caxangá, música cujos direitos autorais estavam registrados como de Figner. O processo de busca e apreensão chegou até o Supremo Tribunal Federal. Está lá no Correio do Povo de 26 de março de 1915: Pelo Dr. Luiz José de Sampaio, juiz federal, a requerimento de Fred Figner, negociante no Rio de Janeiro, foi expedido mandado de appreensão de discos gramophonicos com a música da canção Cabocla de Caxangá, fabricados e expostos à venda, nesta Capital, pelo capitão – capitão! – Saverio Leonetti, proprietário da fábrica de 11

discos Gaúcho. Foram appreendidos, pelos officiaes de justiça encarregados da diligencia, 12 discos na Casa A Electrica, e 13, com as matrizes, na fábrica Gaúcho, à avenida Sergipe, nº.9, em Therezopolis. Outra reportagem, no dia seguinte, anunciava que o advogado de Figner iria propor uma ação de indenização por perdas e danos, contra os fabricantes de discos de gramofone com aquela música. Emilio, possivelmente não compartilhando os flexíveis conceitos do irmão quanto ao que era recomendável a uma empresa honesta, pode ter visto ali a gota d’água – o fato é que pula fora da sociedade. Não chega nem a participar do próximo empreendimento de Leonetti: a fábrica de gramofones, que os produziria muito mais baratos que os importados - ainda que não muito bons, segundo o expert em remasterização de gravações antigas Marcos Abreu, que testou alguns para compará-los com outros da mesma época. Abreu, aliás, também não é muito fã da qualidade das gravações de Leonetti: Acho que o gravador do Leonetti era bem vagabundinho. Os bons vinham com varias cornetas, adequadas a captar o som conforme a necessidade. E, convenhamos, as gravações da Elétrica são muito ruins. *** Algumas dessas gravações, ruins ou não, já renderam muito pano pra manga entre os pesquisadores. Mas nenhuma polêmica supera a que envolve Don Francisco Canaro, o band-leader e violinista uruguaio radicado na Argentina e conhecido então por lá como El Rey del Tango – sua orquestra era tão renomada que gravaria até com Gardel (que raríssimamente aceitava algo que não violões a seu lado), e seria sucesso por décadas. Em 1915, entrando na sua fase de maior popularidade, Canaro vai a Porto Alegre gravar para o selo Atlanta. Há um consenso de que as músicas em questão seriam os tangos instrumentais El Chamuyo e El Desalojo, ainda que não se tenha certeza absoluta. Ambas as gravações podem ser escutadas, remasterizadas, nos CDs que acompanham o livro de Hardy Vedana. Mas porque Canaro teria ido até Porto Alegre?

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Emilio Marchiano (violino), Luis Teisseire (flauta), Francisco Canaro (violino), Leopoldo Thompson (violão), Pedro Polito (bandoneon). Mais Francisco Schultz (engenheiro de gravação), Alfredo Améndola (o dono do selo Atlanta), e ele: Saverio Leonetti. Foto da mítica gravação de Canaro em Porto Alegre.

Como já se viu, ainda não se prensavam discos na Argentina: as matrizes eram gravadas lá e enviadas para a Alemanha, França ou Estados Unidos. Só que entrávamos na I Guerra Mundial e, um belo dia, um navio que voltava cheio de discos hermanos foi afundado. A solução então passa a ser a fábrica mais próxima: Leonetti (logo em seguida os argentinos passariam a prensar também na Odeon, no Rio). E aí o diferencial: se o resto dos artistas portenhos se limitaria a enviar as matrizes para serem prensadas, Canaro era gato escaldado: parte do material que tinha ido fazer companhia aos peixes do Atlântico era dele. A gravação original de El Chamuyo, por exemplo. Pediu, e levou: seu patrão Alfredo Améndola resolveu que os dois –

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mais um par de músicos argentinos – iriam viajar para a capital gaúcha, para gravar lá.

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A partitura original de El Chamuyo, editada provavelmente junto com a matriz do disco que foi parar no fundo do oceano.

Don Francisco acabara de ganhar o primeiro prêmio num concurso de tangos. E conta sua aventura porto-alegrense na autobiografia Mis Bodas de Oro Com El Tango: En virtud de tal contrato com el señor Améndola, nos enbarcamos para Porto Alegre en un pequeño vapor de carga. (…) Me acompañaron Pedro Polito, bandonéon, y Leopoldo Thompson, contrabajo; los demás músicos por razones de economía en los gastos, fueron contratados en Porto Alegre. Segue Canaro: Se grababa por sistema mecánico y por medio de unas bocinas largas y muy incómodas (olha a foto aí: esse era o incrível amontoamento necessário pra se captar alguma coisa numa sala de gravação mecânica, com todo mundo socado de frente pra tal corneta larga e muy incômoda de que fala Canaro).

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Assim é que se gravava antes da eletricidade entrar na parada, já nos anos 1920. Na Casa A Electrica era assim, sempre.

Mas, voltando: isso foi o que ele escreveu. A partir dessas memórias, redigidas 40 anos depois do acontecido, dois grandes equívocos têm sido perpetrados por vários pesquisadores, músicos e jornalistas interessados no assunto (inclusive por este que vos escreve, conforme está no livro RS: 100 Anos de Música). O primeiro: o fato de Canaro ter vindo somente com um bandoneonista e um contrabaixista seria sinal evidente de que o idioma da música do Prata já era tão conhecido pelos músicos portoalegrenses que poderia ser reproduzível perfeitamente por músicos locais. Portanto, a banda não precisaria vir completa. O que, em outras palavras, colocaria essas gravações como a primeira coprodução mercosulista da história: Canaro, uruguaio, Pedro e Leopoldo, argentinos, e o resto do time composto por brasileiros do Rio Grande do Sul. Só que não foi assim. A ficha começou a cair graças às remasterizações disponíveis nos discos anexos ao livro de Vedana. Primeiro: não se ouve ali nenhum contrabaixo. Se Leopoldo Thompson efetivamente gravou, foi tocando o violão. Teria Canaro se enganado com o instrumento trazido pelo seu parceiro a Porto Alegre? Bem, se ele se lembrava de ter transportado num trem um imenso contrabaixo que nunca existiu, podia ter se enganado em outros detalhes. Segundo: a formação tem uma flauta em perfecto sotaque tangueiro. Ok que já haviam típicas em Porto Alegre, inclusive tocando como atração fixa em cabarets como o Clube dos Caçadores. Mas flauta, com aquele perfeito acento tangueiro na Porto Alegre de 1910? É de se duvidar. Quem matou a charada foi o argentino Enrique Binda, veterano professor e pesquisador, um dos diretores da Academia Nacional del Tango de Buenos Aires, colecionador de discos e especialista nas duas primeiras décadas do século XX (co-escreveu, por exemplo, o livro El Tango y La Sociedad Porteña / 1880-1920). Esclarece Enrique, que inclusive identifica todos os músicos da foto:

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La famosa fotografía de Canaro & friends tomada en Porto Alegre, al momento de grabarse “El Chamuyo” y posiblemente “El Desalojo”, muestra además del propio Canaro (violín) y Pedro Polito (bandoneón), a Emilio Marchiano (2º violín) y Luis Teisseire (flauta), Améndola, el técnico de las grabaciones y el próprio Leonetti. Por otra parte, Leopoldo Thompson no aparece como tocando el contrabajo (sería anacrónico, un “adelantado”) sino la guitarra. Luego que tal grabación haya sido “Mercosur” no es correcto (…) La memoria de Canaro, a casi 40 años de los hechos, no era “infalible”. Lamento si esto contradice supuestas “capacidades musicales” de músicos riograndenses para interpretar tangos argentinos, que fueran tan correctas para que el público consumidor de discos en Argentina no se diera cuenta de que eran extranjeros. La foto testimonia que Canaro si sabia (que não havia na cidade músicos capazes disso) y por eso no recurrió a ningún músico de Porto Alegre. Una cosa son sus memorias escritas 40 años después y otra la fotografía de aquel instante en la historia. Mas esse não é o pior equívoco com relação a essas gravações. Ainda na de década de 1970, o nunca por demais elogiado pesquisador Paixão Côrtes foi o pioneiro em levantar toda a história d’A Electrica. Causou furor no 1º Encontro de Pesquisadores da Música Popular Brasileira, em Curitiba, no ano de 1975. E não parou mais, publicando em 1984 o fundamental Aspectos da Música e Fonografia Gaúchas, livro editado por ele contando o resultado de suas pesquisas iniciadas em 1949 e que incluíram desde a descoberta de centenas de exemplares de discos da Electrica até uma das chapas da prensa, sendo usada para um fim muito nobre no velho casarão da rua Sergipe: dar comida pras galinhas. Era em cima daquele inútil e misterioso círculo de metal que os então moradores botavam o milho pras penosas. Estas e muitas outras histórias estão ali. E, quanto a El Chamuyo, Paixão revelava naquele momento que esse registro portoalegrense seria nada mais nada menos que o primeiro tango prensado na América Latina. A revelação foi mal-interpretada: os jornalistas não entenderam, ou decidiram fazer aquela tão irresponsável quanto clássica simplificação. O resultado é que o fato rendeu incríveis manchetes até em respeitáveis jornais argentinos como o El Clarín. Tá lá, em quatro 18

de setembro de 1980: ?Brasil grabó el primer tango? No mesmo dia, o La Razón estampa: Dicen que La Primera Grabación de Canaro se Hizo em Porto Alegre Entre 1914 y 1915. E aí a coisa vai crescendo. A revista Tal Cual rebate, dia 12: Polémica com “fueye”: ?el tango se inició em Brasil? Passaram batido – por ignorância, ingenuidade ou busca de uma boa manchete – pelo fato de que gravar é uma coisa, prensar é outra. Os próprios jornalistas argentinos pareciam ignorar o que qualquer pesquisador de tango sabe – e já sabia então. Como conta o músico, bailarino, compositor e membro da Academia Nacional de Tango Pedro Ochôa: desde 1902 os argentinos gravavam tango. E não era pouca coisa: o tal primeiro tango gravado em Porto Alegre deveria ser, na verdade, o milésimo ou até mais que isso. Binda completa: En cuanto a tangos, hasta 1910 detectamos inicialmente dos grabados em Royal y otros 322 em diferentes etiquetas, estimando un total de 350. Entre 1910 y 1920, hallamos 2.365, calculando hayan sido aproximadamente 2.500. E desde 1907 já era gravado até em Paris! Pior: em 1913, o Grupo Odeon – formado por músicos cariocas – tinha tido o privilégio de ser o primeiro a gravar e prensar um tango na América: El Irresistible. Pedro: Esto es mucho más meritorio para aquellos brasileños que toman las relaciones internacionales como un partido de fútbol: el primer disco de tango fabricado en Sudamérica fue interpretado por brasileños! ¡Y el sólo hecho de Porto Alegre estar compitiendo con Río y Buenos Aires es un golazo! Resumindo esse rolo todo que pode parecer bobo pra quem não se interessa muito pelo assunto, mas é uma bomba para os pesquisadores da área: o que houve com as gravações de Canaro é que elas resultaram no primeiro tango tocado por argentinos a ser gravado e prensadona América Latina. Ainda é um feito, mas jamais digno de uma manchete do Clarín. ***

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Discos Atlanta... os melhores do mundo, rererree

Durante um bom tempo, artistas uruguaios e argentinos seguiriam procurando Leonetti para lançar suas produções. Os selos Atlanta, de Alfredo Améndola, e Era, de Carlos Nasca, passam a trabalhar exclusivamente com ele. O resultado disso é que passam a ser prensadas em Porto Alegre gravações de importantes nomes desse cenário: além de Francisco Canaro, gente como Roberto Firpo, Pacho, o trio Fresedo-Tito-Cobián e El Tano Genaro. Améndola, italiano como Leonetti, tinha tido exatamente a mesma ideia que ele, viajado à Alemanha pela mesma época e começado a vender seus discos no mesmo 1913 da Casa A Electrica! Eram tantas coincidências que, como conta o site todotango.com, ele resolveu ir a Porto Alegre para encontrar-se com seu duplo. E logo chegaram ao acordo de que la forma más rápida de enviar las ceras grabadas era enviándolas por ferrocarril (trem) hasta la frontera y de allí en automóvil. Obviamente, ficaram amigos.

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Alfredo Améndola, o Leonetti portenho...

Leonetti oficializou em seu nome a saída desses discos argentinos prensados no Brasil, se tornando, assim, o primeiro exportador de discos do país – à frente até da Casa Edison. O inverso também: graças a seus contatos internacionais, começa a lançar na cidade, também com exclusividade, gravações feitas na Europa e na Argentina. Músicos do centro do país que passavam por Porto Alegre, como Arthur Castro Budd ou o Regional do Canhoto, arranjavam um tempinho pra deixar suas vozes e instrumentos registrados nas matrizes da Casa. Invariavelmente antecedidos pelo anúncio feito aos berros por Paulinho Leonetti, sobrinho de Saverio: (…) gravado para a Caaaaaasa Eléééctrica, Poôrto Alegre! E, aí, mais um ponto delicado: já esclarecemos o assunto “primeiro tango gravado”. Agora, o tema é ainda mais cabeludo: o possível pioneirismo dos Discos Gaúcho na espinhosa polêmica sobre a primeira gravação de um samba. Até pouco tempo, Pelo Telefone, de Donga (ou Sinhô, ou Mauro de Almeida, mas não vamos entrar nessa discussão), era considerado o marco inicial do gênero em disco. Seu primeiro registro é pelo cantor Bahiano, em 1917, na Odeon. Mas quando, em 1984, Paixão Côrtes publicou seu Aspectos da Música e Fonografia Gaúchas, veio a bomba: ele mostrava ali sambas gravados em Porto Alegre em 1913 ou 14, pela dupla Os Geraldos. Só que, depois disso, novas pesquisas reeditaram a polêmica: a própria Odeon havia lançado, numa série editada entre 1912 e 1914, as canções Descascando o Pessoal e o clássico do choro Urubu Malandro, ambos com o nome samba no selo e no catálogo da fábrica. Antes ainda, o selo Columbia, em sua série de 1908 a 1912, registrou 21

três canções chamadas de samba, uma delas até no título: No Samba, por Pepa Delgado e Mário Pinheiro. Jairo Severiano, pesquisador da pesadíssima, garante: Baseado em nosso levantamento da Discografia Brasileira, existem 31 composições gravadas antes do Pelo Telefone com a indicação de samba nos catálogos das gravadoras. Dessa relação, a mais antiga é uma canção intitulada Michaella, lançada em 1908 no disco Columbia n° 11583. A questão aí é definir o que é realmente samba, numa época em que era obrigatório pôr o nome do ritmo no selo do disco. Sem falar que em sua edição de 23 de outubro de 1881 (sim!!!), no jornal portoalegrense O Século, o colunista Miguel de Verna, comentando as primeiras aparições do maxixe na capital, escreve: Como tudo neste mundo, tem o Maxixe os seus inimigos, os seus detratores que o alcunham: Bico, Samba, Forrobodó e outros absurdos de igual jaez. Ou seja: eram cometidos os maiores disparates, já que os gêneros ainda estavam se definindo – Batuta, de Octavio Dutra, por exemplo, foi chamada de polca, samba e até choro one-step! O próprio Jairo faz a ressalva: Infelizmente, só tive a oportunidade de ouvir uns três ou quatro desses “sambas” e nenhum deles era samba e nem mesmo maxixe como o Pelo Telefone. Incontestável mesmo só Samba em Casa de uma Baiana, já apresentado aos gritos no próprio 78rpm como samba de partido-alto. Não há indicação de autoria, mas o gênero é perfeitamente reconhecível – e interpretado pelo Conjunto da Casa Falhauber em 1910 e lançado pela Favorite Record, que prensava na Europa para a Casa Falhauber do Rio de Janeiro. Está lá, pra quem quiser ouvir, no CD 11 da caixa Memórias Musicais, da Sarapuí/Biscoito Fino. Ou seja: 1910. Ou seja-II: Não, Leonetti não gravou (na nada sambística Porto Alegre de 1913) o gênero pela primeira vez. Mas, sim, foi um dos pioneiros em registrar o nascente ritmo, e anos antes do 1917 “oficial”. 22

Nos Discos Gaúcho foram classificadas como samba, entre outras, as canções A Baianada, Catira Africana, Nhá Maruca Foi S’Imbora, Nhá Moça e Samba Africano (as duas últimas interpretadas por Os Geraldos), todas gravadas entre 1913 e 1914. Além dos sambas carnavalescos Iaiá me Diga e Iaiá Vem à Janela, interpretados por Juca Castro e colocados no lado A de discos que tinham Os Geraldos no lado B. Deixando as curiosidades e polêmicas de lado, o forte dos Discos Gaúcho eram os artistas locais. Entre eles, destacam-se nomes como o do gaiteiro Moysés Mondadori, o Cavaleiro Moysé – que também acumulava funções como chefe de prensagem da fábrica. Moysés compôs e tocou muitas polcas e schottischs cem por cento ‘gauchescos’, onde a gente já identifica a atual música campeira gaúcha (lá no fim, link pro nosso soundcloud). Mas ele não era o único regionalista d´A Electrica, ainda que seja provavelmente o gaiteiro em todos os outros discos do gênero não creditados à ele, como, por exemplo, as Trovas do Boi-Barroso (clássico do folclore local), Trovas Gaúchas ou Cantos Gaúchos. Registros de folclore como o Boi Barroso, por sinal, eram raros por esses tempos. Mais sobre Moysés daqui a alguns capítulos, quando se falar sobre a música regional em Porto Alegre. Mudando de foco: cidade chorona por excelência, a Porto Alegre da Belle Époque gravaria centenas de discos com o nascente gênero, ainda que na época raramente fosse chamado por esse nome. Hoje a gente escuta e soa como um chorinho, mas, na real pode ser tanguinho, tango brasileiro, polca-tango, tango-choro, polca ou mesmo polca-choro. Essa era, ao lado das valsas e dobrados, a base do repertório de figurinhas carimbadas no elenco dos discos de Leonetti, como as bandas da Brigada Militar de Porto Alegre – que teve a honra de ser o primeiro grupo a ter sua música gravada e prensada – , as bandas do Primeiro edo Décimo Regimento de Infantaria, os grupos Rio-Grandense, Sulferino, Lira eInfernal. Havia também os (opostos e complementares?) Grupo Choroso e Grupo Faceiro. E os “importados”: os impecáveis Grupo Cahyense – de São Sebastião do Cahy – eHamburguez – de Novo Hamburgo, 37 km a nordeste de Porto Alegre – mais o Grupo dos Fanáticos, de São Leopoldo. Todos de cidades de forte colonização alemã. O Grupo Hamburguez existia desde 1895 e era dirigido pelo maestro, compositor, clarinetista, dono de loja de instrumentos 23

musicais, partituras e discos (com destaque para os seus, evidentemente): Felipe Blankenheim. Definido pela pesquisadora Erica Sarlet e pela pianista Olinda Alessandrini como um dos orgulhos da cidade, Blankenheim tinha fama de possuir um talento musical acima do normal. E o aliava ao tino para negócios, dando aulas coletivas para futuros instrumentistas que comprariam em sua loja os instrumentos e partituras necessários para espalhar pela região as bandinhas alemãs, de sopro e percussão. Como o Hamburguez que, na época das gravações, tinha 10 integrantes (inclusive, raridade no lugar e no momento, um deles negro): flauta, trompete, dois clarinetes, dois trompetes-baixo, um bombardino, tuba, caixa e prato. Gravaram cerca de uma centena de títulos – quase a metade valsas, o ritmo campeão nas chapas da A Electrica. Já o Cahyense veio do Grupo Capellista (São Sebastião do Cahy era o município, que tinha um distrito chamado Capela de Santana, 60km ao norte de Porto Alegre). Ambos eram dirigidos pelos irmãos Adalberto e Miguelino Silveira. Nascidos na capital gaúcha, já eram músicos respeitados quando se mudaram primeiro pra Capela, depois pro Cahy, cidade que crescia rapidamente mas ainda não tinha nenhuma banda de música. Montaram a primeira, somando-se a músicos de lá, e gravaram quase 100 músicas para Leonetti – quase todas compostas pelos irmãos. Ambos os grupos são do que de melhor se escuta em todo o acervo da Casa: afinadíssimos, ensaiados e ressaltando as qualidades de compositor dos Silveira.

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Arthur Castro Budd

Além deles, há, creia, muitas gravações de discursos de políticos. E pouquíssimos cantores, como o célebre barytono brazileiro Arthur Castro Budd. Baiano, possivelmente viajando ao sul com alguma companhia de ópera, teatro ou teatro de revista, gravou para Leonetti nada menos que 118 canções em cinco dias – de 15 a 20 de julho de 1914. Que seriam lançadas homeopaticamente nos dois anos seguintes. Budd era uma raridade porque nesses tempos as gravações eram tão precárias que instrumentos eram muito mais fáceis de registrar do que vozes. Conta-se nos dedos o número de cantores gravando na década de 1910 no Brasil (mais sobre isso no citado capítulo d´Os Geraldos). Aliás, uma curiosidade: as dificuldades técnicas de gravação fizeram que houvesse então uma curiosa hegemonia da música instrumental. O já citado Jairo Severiano contabilizou que, entre 1902 e 1920, 61,5% dos discos brasileiros não tinham voz. Pra se ter uma ideia, em 1940 essa porcentagem tinha caído para 13,8% – e hoje periga ser um décimo disso. A popularidade discográfica da música cantada só começaria a partir do advento do sistema elétrico de gravação, que estreia nos Estados Unidos em 1925 e, no Brasil, em 1927, quando A Electrica já havia fechado as portas. Fechado as portas? Pois é. 25

O problema é que o espírito decididamente perdulário de Leonetti acaba sendo mais nocivo a ele que qualquer concorrência. Ganhava muito dinheiro, sim, mas também não media esforços para gastá-lo. No final do ano de 1923, exatos 10 anos depois do início de sua epopeia meridional, a Junta Distrital da Vara Comercial de Porto Alegre pedia a falência da Indústria de Discos e Gramophones União, que era então a razão social da Casa A Electrica e seus Discos Gaúcho. A Leonetti, só restou entregar as chaves pro oficial de justiça e desaparecer. Só se foi saber dele um ano depois: estava em Buenos Aires. Acolhido pelo amigo de fé Alfredo Améndola, agora era… sócio do selo Electra, que havia sucedido o Atlanta. Que fabrica seus discos justamente com a tecnologia trazida de Porto Alegre por Leonetti. Só que agora foi ainda mais rápido: faliu em três anos. E voltou a ter de fugir dos credores. De volta ao Brasil, por motivos óbvios, passa batido por Porto Alegre. Vai tentar reorganizar a vida em São Paulo, com outro velho amigo: Gustavo Figner, o irmão de Fred Figner. Ali consegue reativar a marca Discos Gaúcho, já no revolucionário sistema elétrico! Só que agora não era mais dono – mas seguia como consultor, diretor artístico e produtor musical do novo-velho selo. Que belez… Fracassam espetacularmente. The End. E aí entra aquele texto branco em fundo preto, subindo de baixo pra cima da tela: em 1932, Fred Figner seria enrolado e afastado do mercado do disco pela própria multinacional Odeon. Mas não se importou muito: afinal, nos 30 anos em que trabalhara como pioneiro do mercado fonográfico brasileiro, arrebanhara a fortuna inimaginável de 140 milhões de dólares. Quando isso aconteceu, Saverio Leonetti era um respeitável senhorzinho dono de uma metalúrgica em Niterói, no Rio de Janeiro. Cidade onde morrerá aos 76 anos, em 21 de junho de 1952. Nunca enriqueceu. Mas se divertiu. Ôôoooo, se divertiu! *** P.S.: Peguemos a lista dos discos lançados por Leonetti e eliminemos os vários relançamentos de uma mesma gravação. Em seguida, eliminemos também gravações de determinados artistas, relançadas anonimamente sob nomes fantasia, como Banda da Casa. 26

Pra completar, tiremos da lista discos de gravações feitas na Argentina, São Paulo ou Rio de Janeiro lançadas pela Casa. O que restam são 620 músicas. Todas gravadas entre 1913 e 1916 (porque só gravou durante esses três anos é um mistério, já que a fábrica só fechou em 1923 –, mas é fato: depois de 1916, há apenas três registros com O Terror dos Facões). E aí, fazendo um levantamento do que foi gravado, tem-se um mapa bastante interessante dos gêneros mais populares na Porto Alegre dos anos 1910: A valsa reina soberana, com 129 registros. Empatadas em segundo, equânimes 69 modinhas (ok, quase qualquer música lenta brasileira cantada podia ser chamada de modinha) e 69 polcas. Aí vêm 53 schottischs, 47 mazurkas e 40 tangos brasileiros/tanguinhos (como se viu, tangos, tanguinhos e polcas são hoje escutáveis como choro): 109 choros, portanto. Mais duas gravações com esse nome mesmo, choro, e chegamos a 111 “choros”. Depois, além de 22 gravações de ritmo não-identificado, há 31 discursos ou cenas humorísticas, 21 dobrados, 20 fados, 18 canções, 16 cançonetas, quatro duetos, três hinos, três romanzas, duas barcarolas, duas canções natalinas e uma serenatella. Sambas e sambas carnavalescos somam apenas 16 gravações (a maior parte d’Os Geraldos), além de cinco lundus, cinco serenatas, três marchas e dois maxixes. Há menos ainda das regionalistas havaneiras (11), canções gaúchas (9), chulas (5), trovas/desafios (3) ou rancheiras (2). Na parte internacional, além dos dois tangos argentinos gravados por Canaro, há também um Fox-Trot, um One-Step e um Two-Step. Dá pra se comparar com um interessantíssimo registro de gravações feitas na mesma década de 1910 pela pesquisadora carioca Dulce Lamas. Ela catalogou 469 discos da coleção recolhida na Biblioteca Nacional pelo prof. Luiz Heitor. A lista está no seu livro Música Popular Gravada na Segunda Metade do Século e inclui os Discos Rio-grandense, mas, ora, veja só, ignora os Discos Gaúcho. A valsa ganha novamente, com 206 gravações, confirmando sua soberania nacional na década de 1910 na terra do samba. Logo em seguida, também em segundo lugar, 186 polcas. Em terceiro, como na coleção de Leonetti, os schottischs (173). Ou seja: a produção musical porto-alegrense, até aqui, espelha a nacional. Mas aí as particularidades: Enquanto que na capital gaúcha as modinhas empatam no segundo lugar com as polcas, nacionalmente elas são o sétimo gênero 27

mais gravado. Em Porto Alegre, o tango brasileiro ou tanguinho é o sétimo na lista de prioridades. Nacionalmente, já quase choro, é o quarto. São 67 tangos, 47 dobrados, 39 mazurkas, 30 modinhas, 22 choros, 10 sambas, nove marchas, oito canções, seis lundus, seis quadrilhas, cinco diálogos, duetos ou monólogos, quatro cançonetas, quatro havaneiras, três arranjos cômicos, três maxixes, duas canções sertanejas, duas serenatas, duas gavotas, um batuque sertanejo, um fado, um cakewalk, um cateretê, um pot-pourri. Ou seja: nada tão diferente assim no panorama nacional. Ou seja: musicalmente, Porto Alegre estava absolutamente integrada ao conceito nacional de música brasileira já na década de 1910. O que é, no mínimo, espantoso, num país desse tamanho, tão centralizado administrativamente e com uma indústria cultural que minimamente se esboçava. P.S. 2: Em 2006, a Petrobrás banca a edição do citado A Electrica e os Discos Gaúcho, do pesquisador e músico portoalegrense Hardy Vedana. O indispensável livrão vem com três CDs com preciosíssimas remasterizações de parte do acervo de gravações da Casa. Mate por esse livro. P.S. 3: Em 2008, dois projetos cinematográficos sobre a saga de Leonetti e A Electrica eram a novidade. O primeiro se chama Casa A Electrica e o Nascimento do Disco em Porto Alegre e é um documentário feito pelos alunos do curso de cinema da Famecos/PUC do Rio Grande do Sul, dirigido por Gabriel Cevallos. Fácil de achar no www.vimeo.com . O segundo se desdobra em dois, ambos dirigidos por Gustavo Fogaça e lançados em 2013: um documentário – acasaeletrica.doc - e um longa de ficção – A Casa Elétrica - baseado em fatos reais, com elenco e produção brasileira e argentina. Neste último, Leonetti é interpretado pelo galã italiano Nicola Siri. Ele ia adorar saber disso.

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