A celebração da face oculta: a predominância da imagem do ânus na pornografia contemporânea

June 15, 2017 | Autor: Jorge Leite Jr | Categoria: Pornography, Pornography Studies
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Artigo originalmente publicado em espanhol no livro: Actualidad de Erotismo y pornografía (2015).

Referência: LEITE Júnior. La celebración de la cara oculta: la predominancia de la imagen del ano em la pornografia contemporánea. In: BARZANI, Carlos Alberto (org.). Actualidad de Erotismo y pornografía. Buenos Aires, Topia Editorial, 2015, pp 63-79

A celebração da face oculta: a predominância da imagem do ânus na pornografia contemporânea Jorge Leite Júnior1

El culo parece muy democrático, todo mundo tiene uno. Pero veremos que no todo mundo puede hazer lo que quiera com su culo (Sáez e Carrascosa, 2011: 14).

O objetivo deste artigo é discutir a predominância da imagem do ânus na pornografia convencional heterossexual contemporânea. Seja como prática sexual (sexo anal) ou, principalmente, como exposição do órgão, o ânus nestas produções parece cada vez mais tomar o lugar que, historicamente, foi reservado ao rosto: a expressão da individualidade humana. Em um processo de celebração de inversões e do baixo corporal típico do realismo grotesco, a imagem desta parte do corpo, tão escondida e secreta em outros discursos audiovisuais, parece aqui ser polissêmica, indicando tanto a voracidade do capitalismo atual, quanto o questionamento de nossa humanidade ou mesmo o surgimento de uma política sobre sexo e gênero.

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Professor do Departamento de Sociologia da Universidade federal de São Carlos (UFSCar) – Brasil – [email protected]

O rosto Tradicionalmente, podemos afirmar bem grosso modo que as correntes de pensamento que mais se ocuparam de pensar o rosto e seus significados, até o início da chamada modernidade, foram a religião, a filosofia e, como uma mescla destas duas junto à noções populares de medicina e adivinhação, a fisiognomonia (Agamben, 1996; Altuna, 2010; Baltrusaitis, 1999). Conforme Foucault, segundo a epistemé antiga ou arcaica, que vai reger a maneira em que se cria e organiza o conhecimento na chamada “cultura ocidental”2, até o século XVI, o corpo humano é pensado como um microcosmo em relação constante de trocas com o macrocosmo (o meio social e o universo). Conforme este autor, até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a exegese e a interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. O mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao homem. A pintura imitava o espaço. E a representação – fosse ela festa ou saber – se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar. (Foucault, 1987: 33). Assim, qualquer alteração em um desses pontos irá reverberar, de maneira mais ou menos intensa, nos outros pontos. Uma troca não autorizada de posições sociais ou mesmo de roupas pode, nesta lógica, levar a uma desorganização do universo, gerando de períodos de secas fora de época até a morte por doença de algum membro da comunidade. Da mesma forma, o corpo humano dialoga e mantém correspondência entre suas partes, cada uma revelando, comentando e interferindo nas outras.

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Os estudos pós-coloniais e decoloniais já nos mostraram o quão problemático e autoritário é este conceito de “cultura ocidental”, com sua visão única e restritiva de história e cultura. Utilizo esta expressão entre aspas justamente para ressaltar como mesmo as epistemés aqui analisadas não são universais, mas foram assimiladas durante séculos de colonização de territórios, corpos e ideias.

É neste contexto que o rosto torna-se a síntese e a crônica tanto do corpo quanto da alma da pessoa, incluindo suas filiações espirituais, disposições de caráter e presságios de destino. Pelo rosto acredita-se reconhecer mensagens e sentidos cifrados – mas não ocultos - pois estes encontram-se literalmente na face. O platonismo será uma das correntes antigas que irá alimentar as possíveis interpretações do rosto, com sua associação entre a beleza e o bem. Quanto mais harmonioso e belo (para os padrões do período histórico) for um rosto, mais ele exprimirá a perfeição, a pureza e a bondade encontrada do mundo das ideias. Influenciados por estas ideias, agora sob o viés da formação conceitual do cristianismo, durante a Idade Média, os teólogos verão na face humana expressões da caridade divina ou marcas da corrupção demoníaca. Da mesma maneira que o belo será associado ao Bem, o feio (para os padrões teológico-estéticos do período) será associado ao Mal, onde a “deformidade” do corpo e do rosto denunciarão a depravação da alma (Altuna, 2010; Le Breton, 2009; Rosa, 2007). Desta forma, filosofia e religião contribuem irremediavelmente para a importância do rosto como local privilegiado de conhecimento sobre o ser humano. Unindo estas duas formas de saber, mais a medicina popular medieval e a teoria das semelhanças - como explicada por Foucault – desenvolve-se também um discurso sobre o rosto humano que possui suas origens na própria antiguidade grega, mas que, especialmente após o Renascimento, irá se reatualizar e se manter até o século XVIII: a fisiognomonia animal: as relações de semelhança, simetria e proximidade entre os animais e os humanos, expressas particularmente no rosto. Se o homem é o universo em tamanho reduzido, sua cabeça é como o resumo de todo seu corpo. Essa cabeça, esse mundo, um corpo em resumo, que é também com sua glândula, a sede da alma, contém, além disso, um mundo animal. Os animais diferem em suas inclinações tanto quanto os humanos em suas afeições, mas são os primeiros que fornecem um alfabeto mais seguro dos sinais. (Baltrusaitis, 1999: 35). Desta forma, traços de caráter e mesmo possíveis doenças poderiam ser lidas na face através de traços que denotariam características psíquicas. Por exemplo, um homem com rosto que lembrasse um leão seria corajoso; uma mulher com rosto que evocasse um cisne seria pura. O importante a ressaltar aqui sobre esta teoria é

justamente a íntima relação entre o universo humano e animal, onde suas formas e substâncias psíquicas influenciam e dialogam entre si. É também a partir do Humanismo que o rosto adquire, cada vez mais, a capacidade de representação do próprio humano, até alcançarmos a modernidade, quando muito do que era debatido pela fisiognomonia será redimensionado sob o viés científico, excluindo as interpretações mágicas e espirituais. Assim, da psicologia à sociologia, da medicina à criminologia, o rosto será motivo de novas reflexões e antigos preconceitos. Simultáneamente el rostro acerca a una comunidad social y cultural por la forma de las facciones y de la expresividad, pero también traza una vía imponente para diferenciar al individuo y traducir su unicidad. A medida que una sociedad concede mayor importancia a la individualidad, aumenta el valor del rostro. (Le Breton, 2009: 143). Desta forma, o rosto manifesta a expressão máxima e última da individualidade, representando para si mesmo e para os outros o ápice da “identidade” pessoal, ao mesmo tempo em que revela fisicamente a grande promessa da modernidade: a autocriação; o controle e o desenvolvimento do próprio “eu”, expresso do corte de cabelo às cirurgias estéticas faciais, passando pela indústria de cosméticos e cuidados voltados exclusivamente para a face (Agamben, 1996; Altuna, 2010; Simmel, 2011). Conforme Simmel em texto de 1902, El rostro es el símbolo no sólo del espíritu, sino del espíritu en tanto personalidad singular, lo cual se debe en gran medida a la ocultación del cuerpo y, por tanto, especialmente al cristianismo. (...) Gracias a su notable plasticidad, sólo el rostro se convierte, por así decir, en el lugar geométrico de la personalidad íntima, en lo que de visible pueda tener; de la misma manera que el cristianismo, cuya tendência a cubrir el cuerpo ha hecho del rostro el único representante de la figura humana, se ha convertido en escuela de la consciencia individual. (Simmel, 2011: 13).

O ânus Literalmente ao contrário do rosto, o ânus é sinônimo de imundície, desumanização, alvo de injúrias e condenações. Sendo historicamente associado a um portal de pecado e doenças, esta é a parte do corpo mais abjeta para a dita “cultura oficial”. Sobre o ânus recaem proibições bíblicas, tabus filosóficos, ódios sociais e medos científicos (Camion, 1982; Hennig 1996; Preciado, 2009; Saéz e Carrascosa, 2011). Quando este órgão não está relacionado ao indigno - junto com as nádegas - é associado ao ridículo e à ofensa. Segundo Macedo (2000), canções de gesta cômicas do século XII já narram sobre cavaleiros vencidos em combate que, como forma de subserviência, devem beijar as nádegas do vencedor, estabelecendo uma relação entre o ridículo, a humilhação e os prazeres anais. No século XVI, o médico Laurent Joubert, escreve o famoso Tratado do Riso, no qual observa que mostrar as nádegas a alguém é grosseiro, mas mesmo assim nos provoca risadas, pois esta é uma forma de humilhar as pessoas. Por tratar com a parte de trás do baixo corporal e estar diretamente ligado às fezes e à sujeira, proporcionando prazer sem nenhuma “utilidade” como a procriação, o ânus é associado ao desregramento e à luxúria indomada. Na Idade Média, teólogos cristãos consideravam esta parte da anatomia como a face do Mal, aquilo que instiga a transgressão “contra a natureza”. Em uma gravura hamburguesa de 1498, uma mulher que se olha no espelho, na verdade vê a traseira de um demônio. Conforme Jean-Luc Hennig (1996: 16), em seu estudo sobre as nádegas, o próprio espelho era chamado o verdadeiro cu do Diabo, por sua capacidade de incitar a vaidade e o orgulho. Durante a caça a caça às bruxas, dos séculos XV ao XVIII, teólogos afirmavam que no auge do sabá, a confirmação do pacto satânico era celebrada pelo Osculum Obscenum, o “beijo obsceno”, dado pela feiticeira no ânus do diabo. Conforme Foucault (2001: 263), analisando o pacto satânico: Princípio da troca, que é assinalado precisamente pelo pacto, um pacto que sanciona um ato sexual transgressivo. É a visita do íncubo, é o beijo no traseiro do bode do sabá. Este é um ponto extremamente importante: a ideia do uso anal como uma ação intencionalmente transgressiva. Também a ciência contribuirá para a desqualificação social do ânus. No início do século XX o sexo anal era visto como perversão, desvio ou transtorno de uma

sexualidade “normal”. Até a década de 80 do século XX, o prazer anal no discurso científico será visto com receio e até desprezo por parte de alguns médicos e psicanalistas (Colling, sem data; Leite Júnior, 2006; Saéz e Carrascosa, 2011). A partir desse período, mesmo com o substancial aumento das discussões sobre a legitimidade de tal prazer, ainda em 1997 o famoso médico ginecologista Gérard Zwang deslegitima de maneira agressiva qualquer tipo de prazer anal: o orgasmo anorretal da sodomização passiva, por não se apoiar em nenhuma estrutura biológica, não passa de uma odiosa mentira, uma fantasia de punheteiros problemáticos e de sexólogos mitômanos (Zwang, 2000: 313)3. Percebe-se assim como o prazer anal é talvez o deleite sexual maldito por excelência. Da religião à psicanálise, da bruxaria à medicina, é sempre deslegitimado, desqualificando e inferiorizando os que o praticam. Na pornografia, tal prática já existe desde o princípio das produções, mas somente a partir da década de 90 do século XX tornou-se um dos ramos mais importantes da indústria pornográfica, em especial a norte-americana. A produção com este mote cresceu tanto que hoje em dia não mais se caracteriza como uma “ramificação”, mas confunde-se com a própria corrente principal do universo pornô. Outro dado importante é que a própria imagem do ânus foi praticamente banida da história da representação do corpo humano dentro da chamada cultura “oficial”. A não ser em obras médicas/ científicas, ainda hoje o único discurso que mostra explicitamente este órgão é a pornografia. A estética do grotesco Conforme trabalhado em outro texto, creio que muito da imagética encontrada na pornografia contemporânea segue a chamada estética do grotesco (Leite Júnior, 2011). Ao mesmo tempo em que historicamente se forma, a partir do Renascimento, o atual padrão de belo associado às formas harmoniosas, equilibradas, proporcionais e simétricas, o grotesco vai se desenvolver trabalhando com a desarmonia, o desequilíbrio, a desproporcionalidade e a assimetria nas imagens (Hugo, 2002; Kayser, 1986; Sodré e Paiva, 2002).

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É importante assinalar que o médico citado esta falando sobre relações heterossexuais. Provavelmente, pelo tom geral de seu livro, as mesmas afirmações (ou piores) seriam feitas sobre relacionamentos homossexuais, pois em passagens mais à frente da obra o autor faz declarações extremamente preconceituosas sobre as travestis (Zwang, 2000: 316).

Assim, de maneira geral, podemos afirmar que alguns elementos característicos do grotesco são o hiperbolismo, o excesso, a proximidade exagerada (como nos super closes), a combinação inusitada e deformante entre categorias (especialmente a humana e animal); a monstruosidade; a deformidade; a desproporção; as medidas absurdas e, principalmente, a inversão de hierarquias estabelecidas. Mikhail Bakhtin (2010), um dos principais autores a tratar do grotesco, em sua pesquisa sobre a Idade Média e o Renascimento, analisa a importância dos ritos e festas de inversão deste período e mostra como o corpo humano era visto como um mediador fundamental entre o sublime e o animalesco. O autor chama isto de “realismo grotesco”, onde os corpos são pensados e apresentados sempre em transformação e mudança de formas. Os magros ficam gordos (e vice-versa), jovens tornam-se velhos e a morte está cotidianamente a zombar da vida. A barriga, os genitais e os orifícios corporais, especialmente os do baixo ventre, ganham prioridade sobre as abstrações filosóficas e religiosas. Conforme o crítico russo, [o grotesco] só se interessa pelos olhos arregalados, pois interessa-se por tudo o que sai, procura sair, ultrapassar o corpo, tudo o que procura escapar-lhe. Assim, todas as excrescências e ramificações têm nele um valor especial, tudo o que em suma prolonga o corpo, reúne-o aos outros corpos ou ao mundo não corporal. [...] No entanto para o grotesco, a boca é a parte mais marcante do rosto. A boca domina. O rosto grotesco se resume afinal a uma boca escancarada, e todo o resto só serve para emoldurar essa boca, esse abismo corporal escancarado e devorador (Bakhtin, 2010: 276, itálico do autor). Desta forma, tudo o que é ideal, sublime e compreendido como espiritual e imaterial é literalmente encarnado no realismo grotesco. E o que foi citado acima sobre a boca escancarada também cabe perfeitamente sobre a imagem do ânus. Esta inversão do sagrado ao profano alcança sua expressão máxima na importante imagem da troca entre o rosto e as nádegas/ ânus, como nos mostra tanto Bakhtin (2010) quanto Octávio Paz (1979). Conforme o segundo autor, este tema frequente no imaginário popular tanto da Europa quanto da América Latina - onde, na figura humana, em lugar do ânus se apresenta uma face - representa a afirmação das potências do corpo material sobre a psique

incorpórea, na qual o rosto pode ser tão bestial quanto o ânus e as hierarquias corporais são apenas incorporações de hierarquias sociais: Ao dizer que a bunda é como a cara, negamos a dualidade alma e corpo: rimos porque reatamos a discórdia que somos (Paz, 1979: 14).

Desta forma, podemos afirmar que o ânus se transforma na outra face, a face oculta do ser humano, ridicularizando o rosto como a expressão última da individualidade burguesa e a espiritualidade cristã. Conforme Eliane Robert Moraes (2002) analisando o surrealismo francês e a obra de Georges Bataille, que também se utiliza dessa figura para questionar o próprio humano, trata-se pois, de uma réplica perversa – digamos também, monstruosa – que interroga a identidade do homem naquela parte de seu corpo onde ela sempre foi considerada inequívoca (Moraes, 2002: 207). Talvez não seja coincidência que, no início do século XXI, quando a face do humanismo ocidental mostra-se cada vez mais monstruosa, agressiva e desumana, a temática e a própria imagem do ânus, mesmo que ainda um tanto restrita, nunca esteve tão à disposição dos meios de comunicação e quase que onipresente na pornografia convencional4 (Leite Júnior, 2006; Viana, 2014).

A pornografia e o ânus Desde a década de 90 do século XX, o sexo anal ganha cada vez mais importância na pornografia, especialmente na produção norte americana, a maior do mundo (Leite Júnior, 2006). Um marco dessa mudança foi o filme “As aventuras de Buttman”, do diretor John Stagliano, em 1989. É importante lembrar que, na década de 80, através do videocassete, a pornografia fílmica se tornou acessível ao universo privado do lar e, consequentemente, passou a adentrar o casamento como um item de “incremento” sexual para casais. Desta forma, a pornografia perdeu muito de seu elemento histórico estruturante: a transgressão. Ao entrar nas casas e se aproximar dos casamentos, o pornô também se domestica. Como reação da própria indústria para manter sua capacidade de desrespeitar 4

Apesar das produções que valorizam o sexo anal e a imagem do ânus serem tanto do mercado hetero quanto homo ou bissexual (segundo classificações do próprio mercado), analisarei aqui apenas a pornografia heterossexual, cujo foco é o corpo da mulher.

convenções morais e apresentar um espetáculo para os sentidos, os prazeres anais foram alçados à categoria de transgressão autorizada mais importante, rentável e longeva desta indústria. Embasado em preceitos e preconceitos religiosos cristãos e científicos, o sexo anal e sua visibilidade consegue assim manter seu caráter transgressor sem sair da privacidade do lar. Com o advento da internet comercial na década de 90, a pornografia se estabelece de vez como voltada para o consumo caseiro. Ao mesmo tempo, literalmente milhares de sítios pornôs surgem em todo mundo a partir desse período, transformando tanto a produção e o consumo, quanto a linguagem e a estética da pornografia. E durante todo esse período, as imagens do ânus, suas práticas e prazeres vão se internacionalizando e conquistando cada vez mais espaço nestas produções. Francisco Ortega, ao analisar as tecnologias médicas de visualização do corpo e de seu interior, e como estas imagens são cada vez mais comuns em nosso cotidiano, afirma: Numa cultura na qual a intimidade deixou de ser valorizada e protegida, passando a ser exposta nos mais ínfimos detalhes em reality shows, programas de auditório, diários na Internet e outros teatros do eu contemporâneos, a interioridade visceral revelada pelas novas imagens acompanha esse processo de externalização. Apesar de essas imagens serem tão pessoais e “íntimas” por pressagiar de maneira tão eficaz nossa condição mortal,

estamos

nos

acostumando

à

sua

difusão

e

reprodutibilidade (Ortega, 2013, p. 91).

A exposição do interior do corpo, como uma das características da estética do grotesco, é também uma das marcas distintivas da pornografia contemporânea. A partir dos anos 2000, não apenas a imagem do ânus (e dos genitais, principalmente o feminino5) ganha destaque na pornografia, mas a apresentação do interior do corpo se torna quase um padrão. As imagens da garganta (como já se referia Bakhtin) e do interior da vagina e do ânus, são mostradas em planos detalhe mostrando a abertura 5

Nas produções heterossexuais voltadas para o público masculino, ou seja, o chamado pornô convencional ou mainstream, que é o objeto principal de análise deste artigo.

máxima conseguida por essas partes do corpo, ora privilegiando o espaço criado por tal alongamento6, ora realçando as paredes internas destes órgãos, especialmente quando elas são deslocadas para fora do corpo. Este é um dos pontos mais importantes: em certas produções pornográficas conhecidas como “bizarras”, o foco é justamente o deslocamento das paredes internas da vagina ou do reto, na qual estas partes interiores do corpo se desprendem e saem para fora, em uma situação conhecida na clínica médica como “prolapso”, ou seja, o deslocamento do órgão (Morken, sem data; Palma et al, 2008). A prática do prolapso do reto nestas produções é também chamada de “sair a rosa”, ou mesmo de rosebud ou rosebutt (Viana, 2014). Existem diversos sítios na internet que comercializam produções pornôs especificamente com este tema (como Prolapse Party7) ou afins (Anal Acrobats8, entre outros). Nestes filmes, atrizes (e atores nos filmes gays), após a prática sexual, expelem para fora parte de suas vaginas, úteros e retos para o espanto e êxtase do público consumidor.

O prolapso pornô Afirmar que o rosto humano é um local privilegiado de interpretações e valores não é novidade nenhuma, como visto. Da mesma forma, dizer que existe uma relação de significados cruzados entre a parte cima do corpo e o baixo corporal, entre a cabeça e o sexo, entre o rosto e o ânus, também não possui nenhuma originalidade. Mas acredito que, no campo da pornografia contemporânea, esta relação tão antiga quanto constante possui um traço de ineditismo histórico: nestas produções o ânus deixa de representar a parte genérica, vulgar e despersonalisada do ser humano para alcançar a característica de um traço identitário pessoal e único. Explico melhor: nestas obras pornográficas atuais, especialmente as produzidas para consumo através da internet e novas tecnologias digitais, o sexo anal e a própria 6

Criando uma das convenções da pornografia atual: o “gape” – do verbo “to gape” que literalmente, em inglês, significa escancarar, abrir a boca para bocejar ou de espanto, mostrando o vão criado dentro do corpo pela abertura intencional da boca, vagina ou ânus. 7 http://www.prolapseparty.com/; http://www.bubdzia.com/index/index.htm 8 http://www.analacrobats.com/; http://www.kinkyniky.xxx/;

figura do ânus não apenas são a temática principal, mas algumxs dxs atores/ atrizes/ performers já podem ser reconhecidxs e identificadxs por esta parte do corpo. Mila Shegol9, psicóloga ucraniana que fez sua carreira como atriz pornográfica nos Estados Unidos foi uma das pioneiras desta tendência no pornô já na segunda metade da década de 90 do século XX. Ela chegou a receber mais de uma vez o prêmio da Adult Video News (AVN), o “Oscar” do pornô norte americano, na categoria “cena de sexo mais ultrajante/ obscena10” justamente por suas cenas de prolapso, algo ainda recente à época. Atualmente, Roxy Raye11, Hot Kinky Jo12, Prolapse Queen13 e Dirty Garden Girl14 alcançam sucesso e reconhecimento do público através de suas práticas sexuais anais extremas e de traços característicos singulares de seus corpos, especialmente seus prolapsos retais. Em seus filmes, elas penetram objetos enormes como garrafas de refrigerante de um litro e meio na vagina ou duas mãos inteiras dentro de seus retos15. No meio pornô, seus ânus são únicos e prontamente reconhecidos, seja pelo formato, pelo diâmetro ou pela capacidade de expelir o próprio reto em dimensões até então só vistas em livros médicos. Como exemplo característico, podemos citar Dirty Garden Girl. Esta atriz mais velha para a média de idade das produções pornográficas, possui a incrível capacidade física de conseguir colocar em seu ânus os objetos mais variados e dildos de tamanhos colossais. Inclusive, ela recebe a penetração de pés ou mesmo de três mãos inteiras dentro de seu ânus. Mas o que a caracteriza e a torna reconhecível mesmo sem mostrar seu rosto é a extensão e largura do quanto ela consegue colocar da parede do reto para fora do corpo. Seu prolapso, conforme mostrado e medido em seus filmes, pode chegar a 12,5 centímetros de comprimento com uma largura bem próxima desta medida, tornando-a única na pornografia atual.

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http://www.iafd.com/person.rme/perfid=mila/gender=f/mila.htm No original: Most Outrageous Sex Scene. 11 http://www.roxyraye.com/main.html 12 http://hotkinkyjo.xxx/guest/ 13 http://prolapsequeen.com/guest/index_hd.php 14 http://dirtygardengirl.com/guest/index_hd.php 15 A penetração da mão inteira até o punho, na vagina ou no ânus, é uma prática sexual conhecida como “fisting”, muito comum na pornografia bizarra. 10

As políticas do ânus: o cu Ora, se a identidade contemporânea não é mais algo fixo e constante, como nos mostra Hall (2004), então o locus corporal de sua representação também não é fixo, podendo se deslocar para qualquer parte, inclusive aquela historicamente associada à injúria, à abjeção e ao não humano. A socióloga argentina María Inés Landa (2009), eu sua pesquisa sobre o fitness e as academias de ginástica de seu país e da Espanha, percebe o quanto estes locais são espaços de criação de subjetividades: Tal como se ha ido evidenciando hasta aquí, estas prácticas, narrativas, espacios, los del Fitness, inducen a modos de parecer, actuar y ser, pero hay que ressaltar que los sujetos para hacerse visibles y tener existencia social en estos escenarios especulares y corporales deben inscribirse en las normativas y reglas prescriptas por estas tecnologias textuales, espaciales y subjetivas de dicho universo moral. Y en este sentido, dichas tecnologías funcionan en relación a dos figuras: el desviado y el normal (en tanto, modelo, estereotipo, encarnación de todas las prescripciones). Los desviados, finalmente, podemos ser todos (los flácidos/as, los/las com sobrepeso, los/las viejos/as, los/las feos/feas, los/las “muy” flacos/as) (Landa, 2009; sem página). Em seus trabalhos, ao analisar as propagandas de academias de fitness, Landa percebe o enorme foco dado à imagem do abdômen. Nelas, a barriga passa a ser o locus da subjetividade do novo corpo autogerenciado do capitalismo contemporâneo. É através da imagem do abdômen que o caráter da pessoa pode ser reconhecido: uma barriga grande e flácida denota preguiça, descaso e falta de compromisso consigo próprio. Um abdômen magro e musculoso expressa autocontrole, determinação, esforço e, claro, tempo livre para poder se dedicar aos exercícios que irão moldar tal tipo de corpo. Resumindo, o interessante das pesquisas de Landa é mostrar o quanto a expressão do caráter e da subjetividade, nas propagandas analisadas, se desloca do rosto para o abdômen.

Neste sentido, a mesma coisa pode ser pensada em relação à pornografia, na qual este deslocamento ocorre do rosto para o ânus. É nesta chave que pode ser pensada o reconhecimento de Dirty Garden Girl e várias outras atrizes pornôs associadas à estas práticas e imagens específicas do ânus e do reto. Estas partes de seus corpos expressariam um caráter devasso, luxurioso e transgressivo, elementos esses que são as ideias principais que a pornografia procura vender. A relação entre a subjetividade, o ânus e o capitalismo é trabalhada pela filósofa espanhola Beatriz Preciado. Em seu texto Terror anal (2009), escrito para apresentar o livro O desejo Homossexual, de Guy Hocquenghem, a autora mostra como a retenção do prazer anal heterossexual masculino está diretamente ligado à formação da subjetividade capitalista e da desqualificação do feminino. A filósofa mostra como durante a formação do homem ocidental contemporâneo, ao masculino foi privilegiado o espaço público e a fala, ao mesmo tempo em que seu orifício anal foi travado e o prazer nesta região foi castrado. Ao feminino, foi desautorizada a fala pública e deixado o acesso livre a seus orifícios corporais, em especial à vagina. Conforme Preciado (2009: 136), Fue necessário cerrar el ano para sublimar el deseo pansexual transformandolo em vínculo de sociabilidade, como fue necessário cercar las tierras comunes para señalar la propriedade privada. Cerrar el ano para que la energia sexual que podría fluir a través de él se convertiera em honorable y sana camaradería varonil, em intercambio linguístico, em comunicacíon, em prensa, em publicidade, em capital.

Na pornografia heterossexual convencional, isto é claro: o ânus do homem/ masculino nunca é apresentado como região erógena, apenas o ânus da mulher/ feminino. Durante a década de 70 do século XX no Brasil, quando se organiza o movimento homossexual brasileiro em plena ditadura militar, uma das palavras de ordem era “o sexo anal derruba o capital”. Ora, a pornografia globalizada percebeu muito bem que não existem limites ou pudores corporais para o capitalismo. O possível caráter transgressivo e desestabilizador de certas práticas sexuais foi, no final do século XX, incorporado ao casamento, à legitimidade social e, claro, ao consumo. Nunca os

prazeres anais foram tão tolerados como hoje em dia. Da mesma forma, a imagem do ânus e as práticas anais nunca foram tão consagradas quanto na pornografia contemporânea. Apesar do “terror anal” que Preciado fala não ter desaparecido, pois a heterossexualidade ocidental ainda é estruturada em cima da repressão anal masculina, o ânus parece já não assustar ou derrubar o capital. Ao contrário, ele gera capital - ao menos na pornografia. Agora que o ânus não é mais um tabu que contraria os pudores do mercado, a visibilidade deste órgão na pornografia parece não mais questionar a os limites do humano ou mesmo de nosso humanismo, mas ela mostra como o capitalismo investe na criação de identidades para alimentar o mercado através de produtos segmentados. Afinal, como mostram as atrizes acima citadas, o ânus também pode se tornar um elemento identitário. A teoria queer já nos mostrou o quanto o discurso dos sexos, gêneros, orientações, desejos e identidades sexuais são ficções políticas reguladoras e que, longe de serem “verdades naturais” firmes e impenetráveis, são discursos com falhas, contradições e fissuras. Desta forma, o ânus, mesmo agora sendo uma estrela pornográfica, não perde seu caráter político: ‘Habla desde tu ano’, es decír, explícame caules son los fujos de poder (libidinales, económicos, linguísticos...) que te constituyen (Preciado, 2009: 159). Com a visibilidade do ânus e seus prazeres na pornografia contemporânea, mesmo que não intencionalmente, a própria política de gênero heterossexista pode ser questionada. Como afirma ainda Preciado, é fundamental para as regras de gênero tradicionais a distinção e hierarquização dos corpos pensados em termos de pênis e vaginas. Ora, uma política sexual e de gênero que se focasse no ânus não encontraria apoio conceitual para o privilégio de um tipo de corpo em detrimento de outro, pois o ânus todos possuem igualmente. Da mesma forma, Javeir Sáez e Sejo Carrascosa (2011), seguindo e aprofundando a reflexão de Preciado, propõem levar o ânus a sério em termos políticos. E para começar, é fundamental usar o termo com que este órgão é popularmente conhecido, sendo sinônimo de ofensa, sujeira e abjeção: o cu. Ânus é um termo clínico associado à ciência, e cu é um termo popular associado à injúria e, por isso mesmo,

potencialmente político. E os autores lembram algo extremamente importante: o cu possui gênero sim: En realidade, tal y como se ejerce ala politica anal hoy em día, dentro de um régimen heterocentrado y machista, el culo sí tiene género: si es penetrable , es feminino, si es impenetrable, es masculino. (...) El culo es fundamental em la constitición del actual sistema sexo-gênero, y es quein organiza y define las diferentes sexualidades (Sáez e Carrascosa, 2011: 172). Desta forma, uma nova política de gênero e uma nova política sexual obrigatoriamente terá que repensar o cu com seus prazeres, medos e associações abjetas. Neste sentido sua imagem na pornografia atual, ao substituir a importância do rosto, pode ajudar a criar uma nova face para nós mesmos, menos machista, agressiva e misógina. Os prolapsos anais, podem nos fazer repensar os contornos de nosso conceito de humano, cada vez mais limitado na política e nas práticas do cotidiano. el género também se produce por médio de la regulación del culo, y que, de hecho, el acceso a “lo humano” también tiene que ver com esta cuestión em la medida em que el sexo anal puede acarrear ni más ni menos que la muerte em 8 países del mundo, y la cárcel em más de 80 (Sáez e Carrascosa, 2011: 63). Mesmo que não intencionalmente, o que as imagens extremas de prolapsos e prazeres anais nos convidam a pensar é justamente a proposta de Saéz e Carrascosa (2011: 14): abre tu culo y se abrirá tu mente.

Referências: AGAMBEN, Girgio, Il volto. In: Mezzi senza fine. Note sulla politica. Bollati Boringhieri: Torino, 1996 ALTUNA, Belén, Uma historia moral del rostro, Valencia, Pré-Textos, 2010 BAKHTIN, Mikhail, A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, São Paulo, Hucitec/ UNB, 1987

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