A \'Cidade Criativa\' Como um Novo Paradigma nas Políticas Urbano-Culturais

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A ‘CIDADE CRIATIVA’ COMO UM NOVO PARADIGMA NAS POLÍTICAS URBANOCULTURAIS Claudia Seldin1

RESUMO: O conceito de ‘cidade criativa’ vem se tornando cada vez mais rotineiro em se tratando de políticas urbano culturais contemporâneas. No Brasil, o termo ganhou atenção tardiamente, havendo um foco especial em cidades como Rio de Janeiro, onde projetos de renovação de frentes marítimas foram pareados com noções de economia criativa. Neste artigo, defendemos o argumento de que a ‘cidade criativa’ representa uma nova fase de um processo de ‘culturalização’ do espaço urbano iniciado nos anos 1970 para repaginar as imagens de cidades que buscavam inserir-se competitivamente na rede global. Trataremos brevemente do caso de Berlim, onde o status de ‘cidade criativa’ está consolidado e onde as políticas que o enfatizam vêm enfrentando reação negativa. Concluiremos com considerações sobre o Rio de Janeiro e o Distrito Criativo do Porto. PALAVRAS-CHAVE: Berlim; Cidade Criativa; Distrito Criativo; Rio de Janeiro; Zona Portuária

SÉCULO XX: O PROCESSO DE ‘CULTURALIZAÇÃO’ DAS CIDADES O conceito de ‘cidade criativa’ vem se tornando cada vez mais rotineiro em se tratando de políticas urbano culturais contemporâneas. Sabemos, no entanto, que o pareamento das ideias de ‘criatividade’ e planejamento urbano não é nada novo. É fato que a criatividade sempre possuiu um papel essencial na maneira de se pensar o espaço, organizar as formas, os fluxos e propor interações entre pessoas e lugares. Apesar disso, a noção de criatividade parece, hoje, ganhar momentum, sendo introduzida como uma espécie de novidade capaz de repaginar as imagens de cidades que buscam inserir-se competitivamente na rede global. Esta busca por imagens atraentes para as cidades também não é recente, consistindo em uma parte integral daquilo que chamamos de processo de “culturalização” do espaço urbano (VAZ, 2004). Este processo, conflagrado a partir dos anos 1970, vem implicando na utilização da cultura e do entretenimento como instrumentos para a revitalização pontual de áreas tidas como estratégicas para regenerar cidades economicamente abaladas pelo fenômeno de desindustrialização. Segundo Bianchini (1993), a visão da cultura como um possível instrumento de salvação para os problemas das cidades na segunda metade do século XX não aconteceu por acaso. No contexto europeu 1

Claudia Seldin é arquiteta e urbanista, mestre e doutora em Urbanismo pelo PROURB/FAU-UFRJ com período sanduíche na Bauhaus-Universität Weimar (Alemanha). Atualmente é pesquisadora de pós-doutorado com bolsa FAPERJ/CAPES - PAPD no PROURB-FAU-UFRJ. E-mail: [email protected] Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no XVI ENANPUR em 2015.

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ocidental, por exemplo, a ênfase no desenvolvimento de políticas culturais com desdobramentos urbanos se explicou pela diminuição das horas de trabalho nos novos setores dominantes da economia, o que levou a um aumento na proporção de renda e de tempo disponível para gastos com lazer. Porém, mais do que isso, as crises de recessão de 1973 e 1979 impulsionaram a emergência de um contexto político-econômico neoliberal, caracterizado pela diminuição da atuação do Estado e pelo abandono das formas de controle público sobre o espaço. Com isso, as políticas públicas voltadas para o desenvolvimento urbano passaram a refletir tendências de descentralização de funções e de redução de despesas administrativas, levando ao encorajamento de patrocínio de atividades e eventos culturais por parte do setor privado. Nos anos seguintes, as políticas públicas nos EUA e na Europa Ocidental passaram a ser formuladas de modo a atrair investimentos privados para o desenvolvimento dos centros urbanos, utilizando o discurso de que a demanda por serviços seria impulsionada, os gastos aumentariam e novos empregos seriam criados. Dentro desta lógica, houve um incentivo especial a serviços conectados às atividades culturais e de entretenimento, levando à construção de grandes centros culturais e de convenções, novos estádios esportivos e espaços para festivais e feiras. Assim, a necessidade de atenuar problemas socioeconômicos, a união de setores públicos e privados e as “expectativas exageradas em se tratando da capacidade da cultura em compensar a diminuição dos empregos perdidos” (KRÄTKE, 2011, p. 22) tornaram-se fatores complementares para a criação de um “planejamento cultural estratégico” (SELDIN, 2015b), calcado no discurso da regeneração urbana pelo viés cultural. Esta regeneração, também tida como “revitalização, reabilitação, revalorização, reciclagem, requalificação, renascença” (ARANTES, 2002, p. 31), tinha como objeto principal trazer visibilidade às cidades e atrair novos investimentos e turistas culturais, reaquecendo as economias locais. No âmbito do ‘planejamento cultural estratégico’, podemos destacar alguns modelos que ganharam popularidade em nível global nas últimas quatro décadas, dentre eles: a transformação de uso de antigos armazéns industriais em residências e ateliês para jovens e artistas; a requalificação de frentes marítimas e vazios urbanos como complexos de entretenimento, lazer e cultura; a implantação de grandes equipamentos culturais dotados de projeto de arquitetos célebres em centros históricos e áreas degradadas; a promoção de megaeventos internacionais (em especial esportivos); entre outros. Cabe ressaltar que estes modelos não são exclusivos e podem ser aplicados simultaneamente, mesclando-se e incorporando aspectos uns dos outros. Juntos, eles configuram o que argumentamos aqui ser a primeira fase do processo de ‘culturalização’ do espaço urbano – uma

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fase em que predomina a busca incessante pelo status de ‘cidade de cultura’ ou de ‘capital de cultura’2. Foi nos EUA, durante a década de 1980, que primeiro se observou uma intensificação da exploração imobiliária das fábricas desativadas, com ênfase especial na revitalização de frentes marítimas e zonas portuárias degradadas. Antigos armazéns ao longo de orlas ganhavam novos usos através de projetos urbanos e arquitetônicos pontuais, criando faixas de complexos comerciais e de lazer, como demonstram os casos de Nova York, Boston e São Francisco. Já na Europa Ocidental, apesar da regeneração de frentes marítimas ter se tornado uma forte tendência – vide os exemplos de Docklands e Southbank em Londres (Inglaterra) e do Diagonal Mar e Poblenou em Barcelona (Espanha) –, o foco principal das políticas públicas recaiu sobre a implementação de grandes equipamentos culturais em centros históricos degradados. Isso porque os museus e centros culturais passaram a ser vistos como elementos relacionados à qualidade de vida da cidade, assim como os festivais artísticos, as grandes competições esportivas e outros eventos highprofile de cultura. Nestes casos, mostrou-se crucial o papel do design e do renome dos profissionais da arquitetura, que acabariam por contribuir para um fortalecimento de verdadeiras grifes de projeto, bem como da prática de branding urbano. Esta lógica de venda da imagem cultural de uma cidade e sua consequente transformação em vitrine urbana fez surgir exemplos emblemáticos no cenário europeu, dentre os quais destacamos a Paris do governo de François Mitterrand (1981-1995), a Barcelona olímpica de 1992 e Bilbao pós1997 – lar da arquitetura espetacular da filial do Museu Guggenheim projetada por Frank Gehry. Embora alguns gestores urbanos considerem estes casos como bem-sucedidos devido ao aumento da atividade turística e ao fortalecimento/inserção destas cidades no ‘mapa cultural global’, uma parte significativa das populações locais sofreu com os efeitos negativos da aplicação prática da busca do status de ‘capital de cultura’. A partir do momento em que esta fórmula passou a adentrar as políticas públicas das mais diversas cidades – incluindo o Rio de Janeiro –, as consequências negativas da busca pelo status de ‘capital de cultura’ passaram a ser percebidas e sentidas em escala global. Em todo o mundo, as estratégias de revitalização urbana de fundo cultural começaram a enfrentar duras críticas por parte de acadêmicos, lideranças locais e movimentos sociais, que apontavam para uma multiplicação de ‘elefantes brancos’ nas cidades e para uma desigualdade no acesso aos espaços renovados, indagando

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Esclarecemos que este termo faz uma alusão ao título homônimo, concedido pela Comissão Europeia às suas cidades a partir de meados dos anos 1980. Apesar do título propriamente dito se limitar àquele continente, consideramos que a ideia por traz dele reproduz uma tendência global – da busca de uma imagem de cidade repleta de opções culturais mundialmente reconhecidas.

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para quem eram efetivamente construídos. Mais do que isso, os críticos apontavam para a desconsideração das singularidades locais em meio à adoção de projetos urbanísticos genéricos e importados, que levavam à produção de espaços simulados, onde a criação de disfarces urbanos é favorecida em detrimento de espaços contextualizados. Simultaneamente, outra consequência polêmica era observada em relação ao ‘planejamento cultural estratégico’: o fenômeno da gentrificação, em especial o tipo referido pelo sociólogo Andrej Holm como “fase pioneira” (2013, p. 174). Em outras palavras, a área renovada – transformada em descolada pela presença de espaços culturais e de artistas – passa por um processo de valorização tão profundo que as pessoas que ali habitavam não conseguem mais arcar com os seus elevados custos. São, assim, obrigadas a deixar a região – agora habitada pela classe média. Argumentamos aqui que estas consequências negativas da busca pelo status de ‘capital de cultura’, pareadas com transformações significativas na esfera econômica, vêm contribuindo para o que percebemos como uma transição de paradigmas urbanos inseridos nas políticas públicas contemporâneas. Se até o início dos anos 2000, observávamos um foco na busca pelo status de ‘capital de cultura’, agora podemos perceber uma clara repaginação e uma segunda fase dos processos de ‘culturalização’ do espaço urbano, culminando na busca do status de ‘cidade criativa’ – um paradigma no qual predomina a imagem de conhecimento e inovação. CRÍTICA À ‘CIDADE CRIATIVA’ A passagem do século XX para o século XXI serviu para reforçar imensamente a chamada economia simbólica, bem como seus efeitos nas cidades pós-industriais. Durante a década de 1990, ampliou-se pelo mundo o consumo de serviços e de bens culturais em massa, levando à glorificação do capital cultural como motor econômico. Em pouco tempo, as cidades foram ficando cada vez mais interconectadas em função da internacionalização da economia e do avanço das tecnologias de ponta, que permitiram a integração e a ampla difusão dos meios de comunicação. Simultaneamente, intensificava-se a competição entre as cidades por atenção e investimentos na rede global. A crescente homogeneização das ‘capitais de cultura’, já nos anos 1990-2000, fez com que a multiplicação de equipamentos culturais, de entretenimento e lazer se tornasse não mais um fator diferenciador e de destaque, mas ‘lugar comum’ em termos de políticas públicas. A falta de autenticidade e singularidade na experimentação da vida urbana começava a apontar para a necessidade de novas formas de se vender a imagem da cidade. Foi neste contexto que a noção de ‘criatividade’ começou a ganhar espaço nos discursos das políticas públicas.

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A ‘criatividade’, como conceito aplicado ao planejamento urbano, remete a meados da década de 1990 através de obras como “The Creative City” de Landry & Bianchini (1995). Porém, a instrumentalização do termo e a sua expansão mundial, se intensificaram apenas a partir dos anos 2000, quando o conceito foi moldado em uma vertente econômica passível de utilização por gestores urbanos à procura de uma ‘atualização’ de suas plataformas eleitorais. Esta atualização deveria implicar em custos baixos de investimentos públicos sem transformar significativamente as relações de mercado surgidas nas décadas anteriores, sem danificar as parcerias consolidadas entre setores públicos e privados e sem invalidar os programas já concretizados de ‘culturalização’ das cidades. Foi exatamente isso que a polêmica “teoria de classe” do economista estadunidense Richard Florida (2002) propiciou. Com obras como “The Rise of the Creative Class” (2002) e “Cities and the Creative Class” (2005), Florida contextualizava o início do século XXI como um momento de declínio das restrições físicas das cidades e comunidades, no qual a criatividade se tornava a principal força motriz do crescimento e desenvolvimento urbano regional. O autor apontava que o elemento chave para a competição de uma cidade na rede global não era mais o fluxo de capital e a troca de bens, de mercadorias e de serviços, mas sim a capacidade em desenvolver e reter a energia criativa de sua própria população, bem como de atrair as pessoas criativas de outras partes do mundo. Em outras palavras, tratava-se do advento do “capital humano” como “segredo da produtividade” (2002). Sua teoria pregava o novo papel das cidades como ‘potencializadoras’ e incentivadoras deste capital humano. Ou seja, a nova chave para a competição urbana estaria na habilidade em atrair para uma cidade as pessoas altamente qualificadas, produtoras de ideias. A controversa pesquisa de Florida propunha, então, a ascensão de uma nova classe social, essencial para o crescimento econômico das cidades contemporâneas. Caracterizada como jovem, boêmia, cool, diversificada e tolerante, esta nova classe combinaria profissionais muito diferentes entre si – artistas, cientistas, pequenos empresários, técnicos de tecnologia da informação, líderes políticos, entre outros – todos reunidos no mesmo grupo de produtores do capital cognitivo e pioneiros urbanos. Ainda de acordo com ele, porque a “classe criativa” é móvel e cosmopolita, pode escolher onde viver no mundo – um fato que leva à busca constante pela melhor cidade onde habitar (SELDIN, 2015a). Esta escolha seria feita com base no potencial para uma ótima qualidade de vida e na disponibilidade de um conjunto específico de amenidades. Sobre estas amenidades, sua pesquisa destaca que a presença de grandes e espetaculares equipamentos culturais, esportivos e de entretenimento já não é tão desejável como em décadas anteriores, sendo inclusive repudiada, havendo uma preferência por lugares originais e autênticos. Entre os itens almejados estão: uma cena

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cultural alternativa ao invés de grandes museus e centros culturais espetaculares; áreas verdes e pequenos parques locais no lugar de estádios esportivos de grandes clubes; pequenos cafés e bares ao invés de restaurantes de rede e assim por diante. Com base nessa lógica, os gestores urbanos contemporâneos deveriam se concentrar menos na simples atração de turistas culturais através da repetitiva fórmula de projetos urbanos grandiosos, e mais na captação e manutenção desta classe criativa através da valorização da autenticidade local. O impacto deste conceito de criatividade para o planejamento urbano foi tal que, em 2004, pouco após a publicação de “The Rise of the Creative Class”, a UNESCO anunciou a implantação de sua Rede de Cidades Criativas, com os objetivos de promover o desenvolvimento socioeconômico e cultural de suas cidades através das indústrias criativas e de conectar social e culturalmente comunidades diversas. Esta ação contribuiu imensamente para despertar o potencial econômico do binômio ‘cidade-criatividade’, que seria fortalecido ainda mais em função da crise financeira conflagrada em 2008. Como consequência da popularidade deste conceito lucrativo, até o ano de 2014, 69 cidades passaram a configurar oficialmente a rede da UNESCO. O que podemos perceber, no entanto, é que, com poucas exceções, a maioria destas cidades é desconhecida no cenário internacional. A esperança de seus gestores é que o novo status de ‘cidade criativa’ contribua para alavancar sua visibilidade e crescimento econômico. Cabe ressaltar aqui que, apesar da grande popularidade entre os gestores urbanos, a polêmica em torno da "teoria de classe" de Florida também tem sido significativa, havendo inúmeras críticas à distinção congelante entre os vencedores e perdedores da economia urbana, à combinação de pessoas muito diferentes e com objetivos pessoais e profissionais diversos em uma única classe social homogênea e à glorificação de um grupo de gentrificadores como bravos exploradores urbanos (SELDIN, 2015a). Krätke (2011) salienta inclusive que, apesar de geralmente possuir uma conotação positiva, a ‘criatividade’ como conceito é algo vago e passível de diversas interpretações. Isso porque se trata de uma atividade essencialmente humana, e, portanto, subjetiva. O autor afirma que é o ator humano, e não as coisas ou territórios, que são criativos, levando-o a crer que a noção de ‘cidade criativa’ não passaria de uma ficção (p. 03). Para Krätke (2011), a busca pelo status de ‘cidade criativa’ surgiu, portanto, como uma nova etapa do marketing urbano e do processo de venda das imagens urbanas – um novo slogan a ser explorado na competição entre cidades. Essa nova ideologia teria impulsionado, na última década, a criação de estratégias de desenvolvimento espacial baseados na expansão de setores industriais especializados, mais especificamente os serviços financeiros e corporativos do tipo FIRE – “finance, insurance & real estate” (p. 20). Dentre estas estratégias estariam os projetos de extensão de centros

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de negócios e a reconversão de sítios industriais abandonados, não mais apenas em espaços de cultura e entretenimento, mas em clusters ligados às indústrias criativas e tecnológicas. Apesar das muitas críticas, a criação de políticas e projetos específicos para atrair a “classe criativa”, conforme o proposto por Richard Florida, tem sido adotada por gestores urbanos de diferentes cidades. Aqui, abordaremos mais especificamente o caso de Berlim, onde o status de ‘cidade criativa’ encontra-se mais consolidado e onde a ênfase recente em políticas voltadas para a indústria criativa tem gerado uma forte reação por parte da população local; bem como o caso do Rio de Janeiro, onde o status começa a ganhar atenção, mesmo que ainda pareado com um quadro de megaeventos e arquiteturas espetaculares. BERLIM: CIDADE MODELO PARA O PARADIGMA DA CRIATIVIDADE? A cidade de Berlim assistiu a uma intensificação considerável de seus processos de ‘culturalização’ e branding urbano após a queda do muro e a reunificação da Alemanha em 1989 e 1990, respectivamente, como propõe Colomb (2012). No início dos anos 1990, a necessidade de reformular a imagem desta cidade, posicionando-a como uma potência econômica e política europeia era urgente, o que culminou em um processo de “ocidentalização”, norteado, em grande parte, pelas mesmas estratégias de ‘planejamento cultural estratégico’ vistas em outras cidades, porém de forma muito mais intensa e rápida. Dentre os projetos urbanos e arquitetônicos mais emblemáticos calcados na instrumentalização da cultura, destacamos a regeneração da Potsdamer Platz – uma antiga área adjacente ao muro de Berlim, onde agora situam-se edifícios de escritórios e o complexo de entretenimento Sony Center, e as caras renovações da Ilha de Museus (Museumsinsel) e do edifício do Parlamento (Reichstag) – este último dotado de uma nova cúpula de vidro projetada pelo arquiteto britânico Norman Foster. Até o início da década de 2000, Berlim já havia se reestabelecido como uma ‘capital de cultura’ atraente e um disputado destino turístico, porém isso não foi suficiente para evitar que a cidade enfrentasse uma grave crise financeira em decorrência de um escandaloso colapso bancário, envolvendo partidos políticos e o setor imobiliário. Assim, a partir de 2001, com a ascensão de outra coalizão partidária ao poder, novas políticas foram criadas a fim repaginar a imagem da cidade, atrair capitais de outros setores e enfatizar o papel de Berlim como uma proeminente ‘cidade criativa’. Sob a liderança do então prefeito Klaus Wowereit (2001-2014), foi adotada uma postura de benefício às indústrias criativas e de publicidade da capital alemão como uma ‘metrópole cosmopolita’ – excitante, socialmente liberal e dotada de uma cena cultural dinâmica, distribuída em espaços autênticos. Tratava-se de uma clara transição das políticas aplicadas nos anos 1990 pelos partidos

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mais conservadores, que pregavam uma imagem de cidade ordenada, fechada à imigração e oposta às ocupações e formas alternativas de apropriação do espaço. A influência da teoria de Richard Florida em Berlim tornou-se clara através dos discursos de Wowereit, incluindo sua famosa frase proferida durante uma entrevista de TV em 2004 sobre a cidade ser "pobre, mas sexy”. Em outras palavras, Berlim estava economicamente falida, porém possuía uma imagem atraente – e que poderia ser explorada criativamente em nome do lucro. Cabe ressaltar que a insuficiência de recursos financeiros constituía uma realidade com a qual a cidade e seus habitantes vinham lidando há décadas. No contexto europeu, Berlim sempre foi famosa pelo estilo de vida barato, atraindo muitos jovens, boêmios e artistas, seduzidos pelos relativamente baixos aluguéis e custos de vida (principalmente em comparação com outras cidades europeias e alemães). Por isso, as medidas inicialmente adotadas pelo prefeito para a exploração da faceta sexy de Berlim iam de encontro com a consolidação desta imagem. Dentre estas medidas, destacamos: a facilitação da entrada e concessão de vistos para artistas estrangeiros; a bem sucedida candidatura de Berlim para adentrar a Rede de Cidades Criativas da UNESCO (sob a especialidade do Design); a criação de um novo slogan para a cidade – "be Berlin"; e o encorajamento da formação de clusters de empresas criativas em espaços degradados. Em consonância com a teoria de Florida, as agências de marketing urbano locais passaram a concentrar seus esforços na promoção da subcultura como ponto atrativo da cidade, dando atenção especial aos espaços dotados de ‘uso temporário’ (Zwischennutzung) – vistos como autênticos e como centros da cultura alternativa berlinense. Atenção especial foi dada às ‘praias urbanas’ montadas na margem do Rio Spree (que corta a cidade) durante o verão, aos cafés e bares de aparência mais decadente, aos mercados de pulgas e aos squats culturais. A

apropriação,

pelo

marketing

urbano

berlinense,

de

espaços

culturais

criados

espontaneamente é um ponto que merece atenção especial aqui. Esclarecemos que, em Berlim, a prática do uso temporário foi possibilitada pela presença abundante de vazios intersticiais, lacunas e brechas espaciais – em sua maioria resultantes de processos de desindustrialização ou da queda do muro. Tratava-se de antigas áreas industriais, de companhias de transporte e serviços urbanos, terrenos de edifícios demolidos, entre outros espaços, onde os custos de revitalização mostravam-se muito altos. Por isso, foram deixados de lado, tanto pelo Estado quanto por seus proprietários, que o alugavam por preços muito baixos ou simplesmente permitiam sua ocupação em troca da proteção contra o vandalismo ou contra a degradação. O resultado deste relativo descaso implicou em uma demonstração de real criatividade por parte dos ocupantes e usuários temporários, que, com pouco capital e muita força de vontade, conseguiram revitalizar os espaços através de suas atividades,

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remodelando sua imagem e contribuindo para aumentar seu valor imobiliário. Apropriações alternativas do espaço somadas à riqueza cultural da cidade eventualmente fariam com que, até o fim da década de 2000, Berlim alcançasse o novo status almejado de ‘cidade criativa’, atraindo novos habitantes e sendo mundialmente celebrada como um lugar jovem e autêntico. A ascensão da Berlim Criativa, no entanto, não veio sem custos. O início da década de 2010 marcou a constatação de enormes gastos em obras públicas, de uma nova estagnação econômica e de um fortalecimento das medidas de austeridade do governo, implicando na diminuição de serviços providos pelo Estado e em um aumento do número de berlinenses dependentes de assistência social. A cidade, antes conhecida pelos baratos alugueis, viu subir consideravelmente os preços e o custo de vida, principalmente nos distritos situados na antiga Berlim Oriental e cujas imagens eram altamente ligadas à subcultura. A nova atenção recebida pelos espaços tidos como alternativos implicou em processos de valorização e especulação imobiliária, gerando diversos despejos dos terrenos tomados por usos temporários, squats e comunas, cujos contratos de permanência fixados durante as décadas de 1980-1990 chegavam ao fim. A partir de 2010, inúmeras ocupações residenciais e culturais que figuravam nas brochuras promocionais oficiais foram despejadas ou ameaçadas de despejo pelos proprietários – em sua maior parte instituições financeiras e incorporadoras interessadas em transformar os terrenos em clusters criativos. Em pouco tempo, a população local começou a perceber que as políticas adotadas contribuíam para o acúmulo de riquezas de apenas uma pequena parcela da população e que a visão de crescimento criativo da cidade contribuía para a segregação, a exclusão e a marginalização de certos grupos e comunidades com interesses desconsiderados no processo de branding urbano. A percepção do fortalecimento da gentrificação e das crescentes desigualdades socioeconômicas como resultados diretos das políticas públicas de desenvolvimento urbano-cultural vem gerando um forte movimento de reação por parte da população berlinense, historicamente acostumada a reivindicar sua participação no processo de construção da cidade. Ironicamente, esta reação tem sido encabeçada por uma parte considerável daquela que constituiria a “classe criativa” local: artistas autônomos, pequenos empreendedores, ativistas ambientais e lideranças locais. Nos últimos anos, campanhas, passeatas, panfletagens e protestos vêm sendo realizados contra os novos grandes projetos urbanos, deflagrando uma onda de movimentos sociais que lutam contra o chamado ‘desenvolvimento criativo’ da cidade. Um dos exemplos desta luta consiste no movimento social MediaSpree Versenken (afundem o MediaSpree), iniciado em 2006, para protestar contra a operação urbana MediaSpree. Esta previa o desenvolvimento de projetos de empresas ligadas ao setor criativo, bem como a implantação de

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arenas de eventos, edifícios de escritórios, hotéis e apartamentos de luxo em uma faixa de 3,7 quilômetros em ambos lados do Rio Spree. O movimento social deflagrava a aversão da população local ao plano, que propunha a venda de grandes parcelas de terras públicas para investidores privados, bem como a elaboração de contratos imobiliários que negligenciavam a legislação urbana vigente. Ademais, o MediaSpree previa a retomada e a renovação de antigos armazéns e edifícios industriais em ambos os lados do rio – muitos dos quais eram ocupados por squats, bares e clubes alternativos há décadas, possuindo extrema popularidade. Dentre os slogans do movimento destacavam-se “salve sua cidade”, “lute por sua cidade” e “parem a privatização”. Em 2008, o movimento conseguiu que fosse realizado um referendo público acerca do plano, levando aproximadamente 300 mil habitantes a votarem por sua revisão (SELDIN, 2015). O movimento MediaSpree Versenken abriu espaço para outros protestos contra as políticas de incentivo ao desenvolvimento criativo berlinense. Em maio de 2014, outro referendo foi realizado na cidade, desta vez em função de um projeto para o antigo aeroporto de Berlim Oriental, o Tempelhof – uma área de cerca de 356 hectares, transformada em parque público em 2010. Mais de 700 mil eleitores votaram contra a construção de apartamentos de luxo e uma grande biblioteca central no terreno, provando que a população local não aceita mais os projetos que privatizam indiscriminadamente o espaço público. No caso de Berlim, a crítica feita pela própria população é de que as políticas urbano-culturais recentes vêm intensificando fronteiras invisíveis, que não se limitam mais à tradicional divisão física entre leste e oeste. As novas linhas de fragmentação desta cidade são diversas e representam ilhas: ilhas de criatividade, ilhas de riqueza, ilhas de qualificação profissional, ilhas de migração...

DISTRITO CRIATIVO DO PORTO NO RIO DE JANEIRO: PARA QUEM? Enquanto assistimos às inúmeras críticas às políticas que incentivam indiscriminadamente a economia criativa, trazendo gentrificação e desigualdade em cidades como Berlim, no Brasil, continuamos a perseguir o novo paradigma, como o observado recentemente na capital carioca. Porém, é necessário destacar que, no caso do Rio de Janeiro, os planos de renovação urbana vêm incentivando um modelo de planejamento estratégico de fundo cultural mais condizente com a primeira fase do processo de ‘culturalização’ das cidades (observado nos EUA e na Europa na década de 1990) e que pouco se relaciona com o que já foi teorizado sobre economia e criatividade no século XXI. A construção de grandes equipamentos culturais, a abertura para os megaeventos (Copa do Mundo, Olimpíadas) e a produção de espaços espetaculares em meio à pobre infraestrutura urbana, altos preços e pouca tolerância social chocam-se com a ideia de uma cidade que deveria

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investir em profissionais do conhecimento e em amenidades de caráter cultural autêntico e alternativo, pouco espetacular. Essa mistura de discursos contribui para o desenvolvimento de políticas urbano-culturais disparates, confusas e pouco eficientes. Um bom exemplo do choque provocado pela confusão de discursos político-culturais no Rio de Janeiro consiste no caso da zona portuária, em especial no âmbito da operação urbana Porto Maravilha. Ressaltamos que o quadro de esvaziamento da região portuária carioca já despertava o interesse da prefeitura local e da iniciativa privada para a sua revitalização desde os anos 1980. Com a escolha da cidade como sede dos Jogos Olímpicos de 2016, foi finalmente concretizada a operação Porto Maravilha, com a intenção admitida de promover o desenvolvimento econômico da região em função de sua localização estratégica. Para tal, buscou-se apoio em um forte discurso de revitalização cultural do espaço urbano através da introdução de um programa de valorização dos pontos turísticos locais, como um mirante no topo do Morro da Providência, acompanhado de teleférico e plano inclinado com custo superior a R$ 75 milhões (FAULHABER & AZEVEDO, 2015), o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) e o Museu do Amanhã (projeto do arquiteto espanhol Santiago Calatrava). Em meio à implantação de grandes equipamentos culturais dotados de arquitetura de grife, em 2015, foi anunciada na área a criação do Distrito Criativo do Porto. O evento de lançamento do mesmo ocorrido no auditório do MAR trouxe representantes da Prefeitura, da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp), da Firjan, do Sebrae, do Instituto Light e dos coletivos locais, que se apresentaram para uma plateia composta predominantemente de membros de empresas convidadas. A ideia do evento era claramente a “venda” da ideia da região como um cluster criativo em potencial, um local cuja imagem será repaginada e futuramente capaz de se transformar em referência da economia criativa brasileira, passível de “internacionalização e competitividade” em meio à um quadro de “efervescência carioca”3. Neste contexto, a região é apresentada como se fosse anteriormente vazia – de pessoas, de identidade cultural, desconsiderando a sua enorme importância para a consolidação da cultura local (na região, localiza-se, por exemplo, a Pedra do Sal – área tombada e referência para a cultura negra, para as comunidades quilombolas, para o samba e choro). Mais do que isso, o compromisso social e a contrapartida do Distrito à população ali residente, até então, são quase nulos, relegados a pequenas ações, como um projeto de qualificação profissional dos alunos de uma escola local – algo que não seria capaz de anular o imenso processo de gentrificação que ocorreria caso o Distrito obtivesse o sucesso atentado. 3

Frases proferidas durante o evento de lançamento do Distrito Criativo do Porto no MAR em 11 ago. 2015.

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O caráter excessivamente econômico desta iniciativa vai de encontro com as intenções da própria operação Porto Maravilha, polêmica e criticada pelas inúmeras remoções provocadas – especialmente no Morro da Providência, como citam Faulhaber e Azevedo (2015), pelo excessivo foco nos empreendimentos imobiliários, pela pouca preocupação com habitação social e pelo até então não cumprimento do legado prometido, como enfatizam Galiza, Vaz e da Silva (2014). Até este momento, o sucesso do Distrito em atrair novos negócios criativos para a região e criar o ‘ar de efervescência’ necessário para sua total requalificação parece ameaçado em virtude do esvaziamento e da falta de sucesso dos empreendimentos imobiliários locais. Em outubro de 2015, a Folha de São Paulo mencionava os milhares de metros quadrados desertos de edifícios corporativos construídos na região, atentando para a pouca probabilidade de ocupação dos mesmos em função da atual crise econômica. De acordo com a reportagem, a zona portuária carioca conta atualmente com uma taxa de 22,05% de edifícios vazios 4, o que nos leva a crer na falta de articulação entre políticas urbanas e culturais para compreender o que seria necessário para a consolidação de um Distrito que funcionasse efetivamente como polo criativo da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O que observamos, de forma geral, é que a ‘cidade criativa’ de hoje não se mostra necessariamente aberta para acolher as ideias inovadoras e capazes de romper com padrões urbanos estabelecidos, mas sim para processos que se mostrem economicamente criativos. Neste sentido, a criatividade, ao invés de espontânea, acaba pré-determinada, através de categorias rentáveis em um esquema de perversão do seu conceito primário de originalidade e autenticidade. No âmbito do planejamento, observamos que este novo paradigma acaba surgindo como mais um jargão urbano, como ‘sustentabilidade’ e ‘diversidade’, sendo utilizado para justificar projetos e políticas que atendem a interesses específicos dos detentores do capital. Ao analisarmos Berlim e Rio de Janeiro como vitrines para a transição de paradigmas urbanos – da ‘capital de cultura’ à ‘cidade criativa’ – percebemos que seu mais recente título consiste apenas em uma repaginação de processos de culturalização urbana percebidos há mais de quatro décadas. Mais do que isso, os casos provam que a ‘cidade criativa’ é uma cidade contraditória, pois não é necessariamente pensada em benefício daqueles que alega promover – uma “classe criativa” que acaba expulsa das áreas que ajuda a qualificar. Em função de sua dependência da autenticidade e inovação, há de se considerar também que a ‘cidade criativa’ em voga em cada momento esteja 4

VILLAS BÔAS, Bruno. Desertos, prédios esperam empresas no Rio. Folha de São Paulo, 25 out. 2015. Disponível em: . Acesso em: 23 jan. 2016.

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sempre em transição. Neste sentido, nos cabe indagar: o que será, no futuro próximo, das cidades que hoje apostam todas as suas cartas em um modelo fadado a ser constantemente superado? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, Otília. B. Uma Estratégia Fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: Arantes, O.B., Vainer, C.; Maricato, E. (Eds.). A Cidade do Pensamento Único. Petrópolis: Vozes, 2002. BIANCHINI, Franco. Remaking European Cities: the role of cultural policies. In: Bianchini, F.; Parkinson, M. (Eds.). Cultural Policy and Urban Regeneration. Nova York: Manchester University Press, 1993. COLOMB, Claire. Staging The New Berlin: place marketing and the politics of urban reinvention post -1989. Londres: Routledge, 2012. FAULHABER, Lucas.; AZEVEDO, Lena. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro olímpico. Rio de Janeiro: Mórula, 2015. FLORIDA, Richard. The Rise of the Creative Class. Nova York: Basic Books, 2002. FLORIDA, Richard. Cities and the Creative Class. Nova York: Routledge, 2005. GALIZA, Helena.; VAZ, Lilian Fessler.; DA SILVA, Maria Laís. Grandes Eventos, Obras e Remoções na Cidade do Rio de Janeiro, do Século XIX ao XXI. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON MEGAEVENTS AND THE CITY, II, Rio de Janeiro, 2014. Anais... Rio de Janeiro: Ippur, 2014. HOLM, Andrej. Berlin’s Gentrification mainstream. In: Bernt, M., Grell, B.; Holm, A. (Orgs.). The Berlin Reader. Berlim: Transcript, p. 171-187, 2013. KRÄTKE, Stephan. The Creative Capital of Cities. Oxford: Wiley-Blackwell, 2011. LANDRY, Charles. & BIANCHINI, Franco. The Creative City. Londres: Demos, 1995. SELDIN, Claudia. O Discurso da Criatividade na Cidade: Possibilidades de Resistência sob a Inspiração de Berlim. In: ENANPUR, XVI, Belo Horizonte, 2015. Anais… Belo Horizonte: Anpur, 2015a. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2016. SELDIN, Claudia. Práticas Culturais Como Insurgências Urbanas: o Caso do Squat Kunsthaus Tacheles em Berlim. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, Recife: ANPUR, v.18, dez. 2015b. VAZ, Lilian Fessler. A “Culturalização” do Planejamento e da Cidade: Novos Modelos? Cadernos PPGAU/FAUFBA, ano 2, n. especial, p. 31-42, 2004.

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