A Cidade Fluvial em Portugal - Contributos para a integração de Cidade e Rio

July 21, 2017 | Autor: Pedro Pinto | Categoria: Rivers, Urban Waterfronts, Cities, River Restoration, Waterfront City, Waterfront Regeneration
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UNIVERSIDADE TÉCNICA DE LISBOA INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO

A Cidade Fluvial em Portugal -Contributos para a Integração de Cidade e Rio-

Pedro Luís Janela Pinto (Licenciado)

Dissertação para obtenção de Grau de Mestre em Urbanística e Gestão do Território

Orientador: Doutor Jorge Manuel Lopes Baptista e Silva Júri Presidente: Doutor Jorge Manuel Lopes Baptista e Silva Vogais: Doutor Diogo José Brochado de Abreu Doutor João Carlos Vassalo Santos Cabral

Setembro de 2007

UNIVERSIDADE TÉCNICA DE LISBOA INSTITUTO SUPERIOR TÉCNICO

A Cidade Fluvial em Portugal -Contributos para a Integração de Cidade e Rio-

Pedro Luís Janela Pinto (Licenciado)

Dissertação para obtenção de Grau de Mestre em Urbanística e Gestão do Território

Orientador: Doutor Jorge Manuel Lopes Baptista e Silva Júri Presidente: Doutor Jorge Manuel Lopes Baptista e Silva Vogais: Doutor Diogo José Brochado de Abreu Doutor João Carlos Vassalo Santos Cabral

Setembro de 2007

RESUMO

Existe uma estreita associação histórica entre cidade e rio e a rede urbana portuguesa desenvolveu-se sempre em articulação com a rede hidrográfica. Ainda hoje, a vasta maioria dos centros urbanos de primeira importância são banhados por rios. Até recentemente as cidades dependiam dos rios, para abastecimento das actividades agrícolas e transformadoras e para consumo doméstico, ou como via de comunicação para o comércio. A desvalorização do papel dos rios para o regular funcionamento da cidade, associada ao decaimento da sua importância económica, levou ao desequilíbrio de interesses humanos e de salvaguarda ambiental, com a balança a pender para os primeiros. A sempre presente ameaça das cheias urbanas e a ineficácia das infra-estruturas de saneamento levou à adopção de soluções hidráulicas indutoras de fortes perturbações no equilíbrio ambiental dos corredores fluviais. A negligência a que foram votados levou muitas vezes a um progressivo afastamento entre as populações ribeirinhas e os seus rios. Emerge hoje um novo paradigma de relação entre cidades e rios, baseado na procura de soluções que permitam uma relação mais estreita das populações com o rio, na conciliação de interesses entre a necessidade de protecção contra cheias e o desejado incremento da sustentabilidade ambiental urbana. Esta nova forma de intervenção, mais holística e pluridisciplinar, permite um incremento da “integração entre cidade e rio”, ao promover a recuperação ambiental do corredor fluvial, em articulação com o reforço do sistema de espaços livres e estrutura ecológica urbana.

Palavras-Chave: RIO | CIDADE | INTEGRAÇÃO | FRENTE DE ÁGUA | CIDADE FLUVIAL | URBANISMO | SUSTENTABILIDADE

i

ii

ABSTRACT

Cities and rivers have always been closely associated throughout history; Portugal’s urban network developed in close correlation with the river system, the result of cross-influences from very distinct cultures. To this day, the vast majority of Portuguese urban centres are located by rivers. Up until recently, cities depended on rivers as a source of water for domestic use, agriculture and industry. Waterways were crucial for trade between cities. The demise of their role in the regular functioning of the city, linked to the decay of their economic importance, led to a tipping of the balance between human stakes and those for environmental protection, with the prevalence of the first. The ever present menace of urban flooding, as well as the inefficiency in sewage treatment and collection, led on occasion to the adoption of “hard” hydraulic solutions, with grave impact over the natural balance of the river corridors. Neglect often ensued, and led to a progressive estrangement of the riverside populations and “their” rivers. A new paradigm is now beginning to emerge, concerning the association of rivers and cities. It bases itself on the search for new solutions, that allow for an increased closeness between these populations and the river, incorporating both the need for flood prevention and protection and the desired improvement of urban environmental sustainability. This new approach, more holistic and multidisciplinary, may lead to an enhanced integration of city and river, through the improvement of the system of parks and public spaces, and the reestablishment of the urban ecological network.

Keywords: RIVER | CITY | INTEGRATION | FLUVIAL CITY | WATERFRONT | URBANISM | SUSTAINABILITY

iii

iv

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao coordenador da presente dissertação, Prof. Jorge Batista e Silva, o forte apoio e colaboração prestados ao longo de todo o processo de elaboração da tese, começando logo pela excelente oportunidade dada ao propor a sua inserção no âmbito do Projecto RiProCity, pela aprovação e incentivo à utilização comum de dados recolhidos no âmbito do projecto e da tese, e pela disponibilidade demonstrada na estruturação, reestruturação, revisão e correcção das inúmeras versões da dissertação. Um agradecimento colectivo para toda a equipa do projecto RiProCity, pela colaboração prestada na definição do tema da dissertação e o auxílio que todos prestaram sempre que necessário, com particular realce para o enquadramento teórico fornecido pela Prof. Maria da Graça Saraiva. Obrigado ao agregado.

v

vi

ÍNDICES Índice Geral RESUMO ..............................................................................................................................................i Índice Geral.................................................................................................................................... vii Índice de Quadros......................................................................................................................... viii Índice de Figuras .......................................................................................................................... viii PREÂMBULO ..................................................................................................................................... xi I

II

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................1 I.1

Rio e Cidade – Relação Histórica e Paradigmas Recentes ..................................................1

I.2

Definições – Rio e Cidade ..................................................................................................18

I.3

Metodologia e Estrutura......................................................................................................22

O SISTEMA CIDADE-RIO EM PORTUGAL CONTINENTAL .....................................................25 II.1

Rede Hidrográfica...............................................................................................................25

II.2

Sistema de Centros Urbanos..............................................................................................34

II.3

Problemáticas.....................................................................................................................43

II.4

Definição do Universo de Análise e Procedimentos Metodológicos Adoptados na

Medição dos Parâmetros de Análise ..............................................................................................74

III

II.5

Caracterização do Sistema Cidade-Rio ..............................................................................90

II.6

Tipologias de Relação Cidade-Rio .....................................................................................98

A INTEGRAÇÃO CIDADE-RIO ................................................................................................113 III.1

O que é a Integração?......................................................................................................113

III.2

Acções e políticas de intervenção em Portugal ................................................................121

vii

III.3

O Futuro: Medidas de Intervenção Promotoras da Integração Cidade-Rio .......................140

IV

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................153

V

ANEXOS ..................................................................................................................................161

Índice de Quadros Quadro 1 – Cruzamento de vias fluviais e terrestres nas principais cidades do Norte de Portugal [circa Séc. XIV].............................................................................................................................8 Quadro 2 – Agrupamento das bacias hidrográficas por semelhança de comportamento hidrológico..................................................................................................................................26 Quadro 3 – Relação entre capacidade de armazenamento em albufeiras portuguesas e escoamento superficial mediano ................................................................................................28 Quadro 4 – Evolução do número de passageiros transportados por ano e modo de transporte.........30 Quadro 5 – Relação entre o número de cidades e a distância ao mar ...............................................34 Quadro 6 – Número de cidades fluviais por rio ..................................................................................93 Quadro 7 – Número de cidades fluviais por Região Hidrográfica .......................................................93 Quadro 8 – Classificação tipo-morfológica das cidades fluviais portuguesas ...................................106 Quadro 9 – Cidades Polis, avaliadas pela intervenção sobre frentes-de-água.................................127

Índice de Figuras Figura 1 – A região Toledana na época islâmica – A vida económica: infra-estrutura..........................5 Figura 2 – Esquema da hierarquia da rede de mobilidade no período medieval ..................................8 Figura 3 – Centros urbanos medievais e aglomerados ......................................................................10 Figura 4 – Esquema metodológico.....................................................................................................24 Figura 5 – Península Ibérica e Grandes Conjuntos, segundo Jorge Gaspar ......................................36 viii

Figura 6 – Sistema Urbano (PNPOT).................................................................................................37 Figura 7 - Edifícios recentes e Piscinas Municipais durante as inundações de 24 e 25 de Outubro de 2006, em Pombal ....................................................................................................49 Figura 8 – Rios “rectificados”. À esquerda o Rio Los Angeles, à direita o Lizandro, em Torres Vedras........................................................................................................................................55 Figura 9 – Intervenções no Rio Isar, Munique....................................................................................60 Figura 10 – Perfil esquemático da secção do Isar no centro de Munique, antes e após a intervenção ................................................................................................................................60 Figura 11 – Leito com capacidade incrementada após intervenção, no Verão e durante as cheias de 1999...........................................................................................................................61 Figura 12 – Esquema de uma Estrutura Ecológica para o Território ..................................................62 Figura 13 - Variação do coeficiente de escoamento superficial (c) com o uso de solo e impermeabilização .....................................................................................................................68 Figura 14 - Diminuição do tempo de concentração (lag time) e aumento do caudal de ponta (peak discharge) em consequência da urbanização de uma bacia de pequena dimensão.........69 Figura 15 – Densidades Populacionais por BGRI na zona oriental de Aveiro ....................................77 Figura 16 – Delimitação do curso urbano do Rio Ave em Santo Tirso................................................78 Figura 17 - Definição dos núcleos urbanos da Cidade de Leiria.........................................................79 Figura 18 – Rios em situação tangencial a núcleos urbanos..............................................................81 Figura 19 - Plano de Água e Eixo do Rio do Rio Gilão em Tavira ......................................................82 Figura 20 - Sinuosidade do curso urbano ..........................................................................................83 Figura 21 – Delimitação da bacia hidrográfica da Ribeira da Lixosa, em Portalegre ..........................84 Figura 22 – Delimitação da bacia hidrográfica do Mondego a montante de Coimbra .........................85 Figura 23 – Aplicação do método de delimitação da extensão de contacto entre rio e cidade (frente ribeirinha) na área central da Cidade de Tavira...............................................................89

ix

Figura 24 - Sistema Cidade-Rio em Portugal Continental. .................................................................92 Figura 25 – Sistema Cidade-Rio – Detalhes do Noroeste e Área Metropolitana de Lisboa ................96 Figura 26 – Tipologias de cidades fluviais........................................................................................101 Figura 27 – Tipos de relação cidade-rio ...........................................................................................102 Figura 28 – Tipos de relação cidade-rio (cont.) ................................................................................103 Figura 29 – Posição do atravessamento da cidade pelo rio .............................................................104 Figura 30 – Número de cidades fluviais por classe de posição da cidade no rio ..............................107 Figura 31 – Número de cidades fluviais por tipo de relação rio-cidade.............................................108 Figura 32 – Número de cidades fluviais por classses de posição do rio relativamente à cidade ......110 Figura 33 – Evolução de uma cidade fluvial .....................................................................................112 Figura 34 – Cidades-Polis com frente ribeirinha...............................................................................128 Figura 35 – Aveiro: Ponte pedonal sobre os canais de S. Roque e Botirões....................................129 Figura 36 – Leiria: Pontes pedonais sobre o Rio Lis e esquema geral do “Sistema Rio”..................130 Figura 37 – Vila Real: Zonas naturais do Parque do Corgo .............................................................131 Figura 38 – Vila Real: Planta de implantação do Parque Urbano do Corgo .....................................131 Figura 39 – Viana: “Skyline” actual ..................................................................................................134 Figura 40 – Viana: do modernismo asceta de Távora ao verde do Parque Urbano..........................135 Figura 41 – Abrantes: Aquapolis – Açude Insuflável e Parque Urbano Ribeirinho............................138 Figura 42 – Princípio da Permeabilidade .........................................................................................140 Figura 43 – Princípio da Variedade..................................................................................................141 Figura 44 – Custos de investimento e manutenção..........................................................................143 Figura 45 – Cidade Fluvial: intersecção de corredor ecológico fluvial e “corredor” urbano funcional...................................................................................................................................145

x

PREÂMBULO O presente trabalho foi realizado no âmbito do projecto RiProCity – Rio e Cidade: Oportunidades para a Sustentabilidade Urbana. Trata-se de um projecto de investigação financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, e elaborado por uma equipa mista de elementos do CESUR – Centro de Sistemas Urbanos e Regionais, do Departamento de Engenharia Civil do Instituto Superior Técnico, e da Universidade de Évora. Este projecto tem a duração prevista de 3 anos, tendo recentemente entrado no segundo ano de actividade. Está dividido em três fases, ou Tasks, tendo a presente investigação integrado a Task 1, que deverá estar concluída no primeiro semestre de 2007. O candidato é bolseiro de investigação científica do CESUR. Por sugestão, e sob orientação, do Prof. Jorge Batista e Silva, enquanto coordenador do projecto RiProCity e orientador da presente dissertação, foi possível conciliar as tarefas de recolha de dados para o projecto com a investigação do tema da tese, com economias de escala que apenas neste formato seriam possíveis. Para além do coordenador (e orientador), fazem parte da equipa do projecto a Prof. Maria da Graça Saraiva, que contribuiu com o seu profundo conhecimento das problemáticas que se colocam actualmente na análise da relação entre o meio humano e os rios, ou a Prof. Clara Landeiro, cujo conhecimento em técnicas de participação e enquadramento institucional se revelará fundamental para as fases seguintes do projecto. O Prof. Francisco Serdoura veio trazer ao projecto o seu domínio das técnicas de Space Synthax, essencial para a conclusão da comunicação apresentada no 42º Congresso da International Society of City and Regional Planners (IsoCaRP), elaborada pelo Prof. Jorge Silva, o Prof. Francisco Serdoura e o candidato. O trabalho então realizado de sistematização dos dados coligidos no âmbito do projecto acabou por ser fundamental para clarificar algumas das temáticas agora aprofundadas. A equipa RiProCity integra ainda muitos outros elementos, todos eles fulcrais para o funcionamento do projecto, para os quais se repete um agradecimento colectivo. Mas faça-se só uma rápida apresentação da motivação para a investigação do tema, quer do projecto, quer da presente dissertação.

xi

Sendo clara a relação histórica entre o nascimento das cidades e a presença dos rios, a verdade é que a evolução dos paradigmas de relação com os cursos de água, principalmente no século passado, provocou uma progressiva degradação da qualidade ambiental dos rios. Esta situação, aliada à adopção de técnicas de controlo de cheias fortemente penalizadoras da relação dos rios com as cidades, levou a um progressivo afastamento, físico e cultural, entre as populações ribeirinhas e os seus rios. Tal não poderá ser dissociado da progressiva perda de importância económica dos rios, para actividades urbanas como o comércio ou a indústria. Recentemente, porém, começa a emergir o paradigma da sustentabilidade, que procura compatibilizar a actividade humana com o meio natural, procurando um ponto de equilíbrio entre interesses económicos e de protecção. Substitui-se uma relação de dependência económica por uma relação de dependência ambiental, onde se compreende o verdadeiro benefício para o ambiente urbano, entendido não apenas como uma medida da qualidade da água ou do ar, mas também pela influência positiva que a presença do rio pode trazer para a qualidade de vida dos habitantes das cidades fluviais. Sendo este tema uma ainda uma quase novidade no nosso país, que apenas agora desperta para uma consciencialização colectiva da relevância de conceitos tão ambíguos como sustentabilidade ou ambiente, pareceu, ao orientador e ao candidato, que o estudo do satus quo da relação das cidades portuguesas com os seus rios seria importante para a avaliação da qualidade da relação estabelecida entre estes. A pesquisa efectuada para a presente tese revelou a existência de lacunas de informação na área específica da relação entre cidades e rios, sendo frequentemente necessário recorrer a um improvisado cruzamento de informações provenientes de dois campos, esses sim, apetrechados de um bom volume de informação e investigação: o urbanismo e geografia humana, por um lado, e a hidrologia e geografia física, por outro. Naturalmente que, quando se selecciona um tema tão complexo como o presente, não se tem a pretensão de esgotar o tema, nem muito menos se considera a presente tese imune à falha. Mesmo reconhecendo as suas limitações, e tendo plena consciência da dificuldade que se coloca ao estudo de um tema tão relevante – mas, ao mesmo tempo, ainda tão pouco explorado – para a sustentabilidade ambiental urbana, não deixa porém de se afigurar como pertinente a presente investigação.

xii

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

I

INTRODUÇÃO

I.1

Rio e Cidade – Relação Histórica e Paradigmas Recentes I do not know much about gods; but I think that the river Is a strong brown god—sullen, untamed and intractable, Patient to some degree, at first recognised as a frontier; Useful, untrustworthy, as a conveyor of commerce; Then only a problem confronting the builder of bridges. The problem once solved, the brown god is almost forgotten By the dwellers in cities—ever, however, implacable. Keeping his seasons and rages, destroyer, reminder Of what men choose to forget. Unhonoured, unpropitiated By worshippers of the machine, but waiting, watching and waiting. T.S. Elliot, The Dry Salvages, Nº3 de Four Quartets1

Os rios desempenharam um papel primordial na emergência da Sociedade Humana, marcando presença em praticamente todas as etapas da sua evolução e, em particular, no processo de sedentarização. A cidade surgiu de forma aparentemente espontânea e autónoma em diferentes civilizações e épocas, sendo um dos poucos factores comuns a todos estes processos a presença física de rios2. Em Rivières et Paysages3 afirma-se: “L’histoire de l’humanité a été, pour une immense partie, determinée par la quête et la conquête de l’eau. Les grandes civilisations sont nées de l’eau et près de l’eau; de sa maîtrise ont dependú leur grandeur et leur puisance. Dès l’origine de la civilisation, l’homme c’est établi dans les grandes vallés fluviales où l’eau était disponible”. A produção de excedente decorrente da actividade agrícola apenas terá ocorrido com a revolução do Neolítico, com a criação de comunidades agrícolas sedentárias. A produção

1

Outro trecho do mesmo poema é referido por CANO, I.R. (1985). Texto de T.S. Elliot disponível online no endereço: http://www.tristan.icom43.net/quartets/salvages.html 2

As civilizações mesopotâmicas, do Vale do Nilo, Vale do Indo, Vale do Rio Amarelo…

3

DUPUIS-TATE, M., FISHESSER, B. (2003), pp. 42. 1

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

agrícola em quantidade e regularidade que permitisse o armazenamento desse excedente de produção dependia grandemente da existência de uma fonte fiável de água doce. Em quase todos os ambientes temperados, onde surgiram as primeiras civilizações urbanas, a única fonte de água doce fiável eram os rios. Ou seja, os primeiros povoamentos permanentes surgiam normalmente associados a actividade agrícola que, por sua vez, dependia da proximidade de rios. A troca dos excedentes de produção, o comércio, surgiu em simultâneo, ou pouco depois. Também esta actividade dependeria durante grande parte da história subsequente de uma estreita associação com os rios, neste caso como via de comunicação. Defende-se que é devido a estas fortes relações de dependência que grande parte das cidades estava (e está…) normalmente situada junto, ou perto, de rios. Nas palavras de Spiro Kostof: “a great many cities are built on water – along rivers or in their delta, or at the meeting of two or more rivers, or on the edge of lakes and seas.” 4 O processo parece natural: os povoados associados a uma ampla actividade agrícola, situados junto a rios, desenvolvem com alguma agilidade uma indústria transformadora e um comércio (de produtos agrícolas ou de produtos transformados) fortes. A diversificação da economia atrai, ou permite sustentar, uma população urbana cada vez mais numerosa e diversificada, acompanhada do estabelecimento de relações sociais crescentemente complexas; pode argumentar-se que é a partir deste momento que a sociedade humana atinge o ponto de diversidade crítica que permite a sua “emergência”5 enquanto admirável construtora de ideias e obras. Numa análise objectiva, não sucederam grandes alterações a esta situação em épocas posteriores. Tome-se um exemplo da nossa matriz civilizacional, os Romanos, a quem geralmente se associa a criação de redes rodoviárias extensas e abrangentes. Mesmo esta civilização, nunca secundarizou a importância dos cursos de água, que serviam de base à sua forte e organizada actividade agrícola e de via de transporte de cargas. Mesmo os acampamentos militares que frequentemente originavam novas cidades eram localizados junto a rios ou, pelo menos, ribeiras, de forma a garantir um abastecimento constante de água potável às legiões.

4

KOSTOF, S. (1999), pp. 39

5

Ver Capítulo III.1, pp.119 2

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

No apogeu do Império Romano era possível, no entanto, contornar os limiares máximos de caudal necessário ao abastecimento público, pela construção de aquedutos6. Da mesma forma, as limitações, de capacidade de carga ou de abrangência, da rede fluvial, eram minoradas pela criação de canais e de estradas que a complementassem. A fragmentação administrativa que sucedeu à desagregação do Império Romano apenas veio reforçar o papel dos rios na sociedade medieval. Especula-se que, de certa forma, ocorreu um “regresso às raízes”, que levou a que a proximidade física aos rios adquirisse novamente uma importância primordial. A queda do Império tornou todas as grandes estruturas inoperacionais. Os aquedutos, os canais, ou a rede viária, foram rapidamente deixados ao abandono, na ausência de uma administração forte capaz de financiar a sua manutenção. As estruturas que permitiam de alguma forma contornar limitações relativas à capacidade dos recursos hídricos, para abastecimento público e transporte, foram retiradas da equação, deixando a sociedade medieval

dependente,

novamente,

do

acesso

directo

aos

recursos

naturais

indispensáveis. Cada cidade tornou-se, de certa forma, numa ilha auto-suficiente. A sua dimensão foi ajustada a uma nova realidade, onde o comércio de longa distância ou a existência de fortes especializações na actividade industrial ou agrícola não tinham lugar. A transição da Alta para a Baixa Idade Média comportou, no entanto, uma verdadeira explosão do urbano, com um processo muito forte de recrudescimento das actividades mais frequentemente associadas às cidades. Ou seja, a indústria transformadora, particularmente a produção artesanal, e o comércio entre centros urbanos. Nestas circunstâncias as cidades, que haviam reduzido, no período anterior, o seu papel a pouco mais que aldeias grandes, readquiriram a sua importância como verdadeiros pólos de desenvolvimento e de geração de riqueza. Pirenne descreve o fenómeno: “the century which came at that date [ano 1000] is characterized (…) by a recrudescence of activity so marked that it could pass for the vigourous and joyful awakening of a society long oppressed by a nightmare of anguish.”7

6

Roma, no seu apogeu enquanto Caput Mundi, chegou a ter ao seu serviço 11 aquedutos, com uma extensão total superior a 350 km. Neste caso, no entanto, mais do que o caudal do Tibre, eram as condições deficientes da qualidade da água do rio que determinavam a necessidade de a captar a montante da cidade. Veja-se http://en.wikipedia.org/wiki/Ancient_Rome e fontes citadas no artigo.

7

PIRENNE, H. (1952), pp.79. 3

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

As características desta nova sociedade urbana eram, no entanto, bem diferentes da anterior. No Império Romano existia de certa forma a noção de identidade enquanto parte de um todo, que se estendia do Atlântico ao Mar Negro, ou seja, uma escala continental. Já a nova rede urbana, saída deste surto de recrudescimento do urbano, era uma rede com funcionamento a uma escala muito mais regional, gerida como pequenos conjuntos de centros urbanos em interacção. A esta escala, as bacias hidrográficas, pela própria configuração orográfica, e pela natural ligação que o rio estabelece ao longo do seu curso, tornaram-se numa das principais características da organização do território. No caso particular da Península Ibérica, este fenómeno de urbanização obedeceu, no entanto a duas matrizes bem distintas, a Cristã e a Muçulmana. Apesar de algumas diferenças radicais na morfologia das cidades andaluzas e na estrutura do seu hinterland, ambas as civilizações partilhavam formas de ocupação do território intrinsecamente ligadas à rede hidrográfica. No Sul, o estabelecimento de uma nova estrutura administrativa, durante as diversas fases da dominação muçulmana, parece ter contribuído para o reforço desta ligação. A importância que esta civilização teve na consolidação do sistema urbano é particularmente evidente na metade sul do que é hoje Portugal. Tratava-se de uma civilização urbana, e os povoados estavam dotados de uma estrutura, morfológica e funcional, de uma complexidade e importância muito superiores às dos aglomerados contemporâneos situados em áreas menos islamizadas. Os principais povoados do al-Andaluz eram, quase sem excepção, cidades fluviais. A organização territorial dos distritos, que dependiam de cidades-sede, baseava-se fundamentalmente na rede hidrográfica da região. Esta situação, válida também para os cursos baixos dos principais rios ibéricos, torna-se particularmente evidente para o caso de distritos situados no interior da Península, como os das cidades de Toledo ou Saragoça, actualmente situados em território espanhol8. A cidade-sede, localizada num ponto importante do curso do rio principal da região, era abastecida por um conjunto de aglomerados urbanos de menor dimensão, situados ao longo do mesmo rio ou seus afluentes. Na Figura 1 Mazzoli-Guintard mapeia a rede económica na região toledana, apoiada na rede hidrográfica do Tejo.

8

MAZZOLI-GUINTARD, C. (2000), pp.474, 476. 4

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

Figura 1 – A região Toledana na época islâmica – A vida económica: infra-estrutura. Fonte: MAZZOLIGUINTARD, C. (2000), pp.465.

A localização das cidades do al-Andaluz respondia, segundo, Mazzoli-Guintard, a duas necessidades contraditórias: “La primera necesidad [a de protecção] es resuleta en un lugar elevado o encumbrado. La segunda [situar-se num local de passagem] lo es com un emplazamiento sobre un eje frecuentado o en una encrucijada, si es posible, en un lugar de paso obligado, por ejemplo, el lugar donde el río es más estrecho.”9 A mesma autora sistematiza 5 tipos principais de configuração dos espaços urbanos10. São eles: A cidade-esporão, situada no topo de um esporão, dominando o interior de um meandro de rio (Toledo) ou a confluência de dois rios (Mértola, Ronda); A cidade-acrópole, seguindo o modelo da cidade da antiguidade clássica, com uma cidade funcional no sopé de uma colina e uma cidade administrativa no seu topo. Este modelo era característico de cidades situadas na costa, como Málaga ou Lisboa; A cidade de colina, localizava-se no topo de colinas situadas sobre cursos de água mais modestos (Huesca, Madrid). Mais raramente, podiam mesmo situar-se a alguma distância de cursos de água (Úbeda);

9

MAZZOLI-GUINTARD, C. (2000), pp.67.

10

Idem, pp. 68-72. 5

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

A cidade em planície com “cintura” de água, situava-se no interior de um meandro (Múrcia), ou até ilha (Tarifa), numa área plana do vale do rio, servindo este como principal elemento de defesa; A cidade-ponte, estava implantada em áreas planas, em secções mais rectilíneas do curso de um rio (Saragoça), ou na parte exterior de um meandro (Talamanca). Neste tipo de cidade, as componentes principais da defesa da cidade centravamse na protecção ao atravessamento do rio. Os desenhos apresentados pela autora, exemplificando cada um dos tipos, são reproduzidos no Anexo 1. Considera-se importante a referência a todos estes tipos porque, quando se passar à caracterização das tipologias das cidades fluviais portuguesas (Capítulo II.6.2), verificar-se-á que, de um modo geral, são ainda hoje estes os tipos dominantes de relação morfológica entre cidade-rio, ainda que com naturais alterações ao nível das funções associadas ao rio. O mapa reproduzido no Anexo 2 indica as cidades sede de distrito do al-Andaluz, no séc. X, sendo visível a organização apoiada nas bacias dos grandes rios ibéricos. Permanecem em parte obscuros os ritmos e detalhes do processo que levou à evolução da estrutura urbana original, datada essencialmente da época romana, até à rede de centros urbanos da Baixa Idade Média, que conforma, em grande medida, o actual sistema urbano português. Certo é que, desde o processo de desagregação do império e decadência da cidade, durante as dominações germânicas, até à reorganização segundo a peculiar estrutura urbana muçulmana, particularmente no sul do País, foram muito diversas as influências sobre a organização da rede urbana de Portugal, consolidada ao longo dos primeiros séculos da nacionalidade. Note-se que, apesar da sua diversidade, estas culturas tinham, como anteriormente referido, pelo menos uma característica em comum, pois todas elas fomentavam uma forte sinergia entre rios e centros urbanos. Na dominação muçulmana, em particular, os rios desempenharam um papel fundamental na articulação da rede urbana, que dependia deles como principais vias de comunicação. Defende-se, portanto, que a estrutura urbana consolidada na Baixa Idade Média foi o resultado da evolução de uma rede de centros urbanos desenvolvida sempre em forte harmonia com a rede hidrográfica. Esta característica manteve-se, ou até se reforçou, durante os primeiros séculos da nacionalidade. O Norte, fundamentalmente cristão, já se organizava territorialmente na base das bacias hidrográficas dos rios do Noroeste do

6

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

país, como o Minho, Lima, Ave ou Douro, enquanto nas regiões a sul do Mondego, mais influenciadas pela civilização islâmica, a rede urbana principal era composta de povoações situadas ao longo dos principais rios, como o Tejo, Sado ou Guadiana. Não será fácil determinar o estado em que a rede de estradas, baseada ainda na rede romana, se encontraria, pelos primeiros séculos da nacionalidade. Sabe-se, no entanto que ela complementava, mas não substituía, a rede hidrográfica como principal via de comunicação. Para o comércio de média e longa distância (à escala regional e nacional), a via fluvial era quase sempre a escolhida. A referência a uma rede de vias fluviais não parece abusiva; Maria Helena Coelho, referindo-se à região de Coimbra, indica que “se pelo Mondego se fazia a maioria dos transportes, a actividade de todos os seus afluentes,

principais

ou

secundários,

desde

que

navegáveis,

era

igualmente

11

assinalável.” . A mesma autora argumenta a favor da forte complementaridade das duas redes de comunicação: “Através de pontes se transporiam, porém, de forma mais eficaz e duradoura os cursos de água e se estabeleceria a ligação entre a rede fluvial e terrestre.” Estes atravessamentos surgiam, normalmente, junto aos centros urbanos de maior importância e, vulgarmente, em estreita associação a chãos-de-feira, onde se processava grande parte da actividade comercial de cada região. Pode falar-se de uma rede de comunicação binária onde, no cruzamento dos eixos de comunicação fluvial com os eixos viários, surgiam os centros urbanos. O transporte por via marítima, pela navegação costeira, estabelecia a ligação mais eficiente entre as diferentes bacias. No fundo, tratava-se de uma rede de mobilidade bem hierarquizada (Figura 2): O transporte de curta distância, ou entre bacias contíguas, fazia-se por via terrestre, através de uma rede rudimentar de estradas, quase caminhos (Nível 1); Os principais afluentes ligavam os aglomerados menores ao principal curso de água (Nível 2); O principal rio da bacia estabelecia a ligação ao maior centro urbano, e entre este e a foz (Nível 3); As ligações de longa distância, com a capital ou outros centros urbanos principais, eram feitas pela via marítima, por cabotagem (Nível 4).

11

CRUZ COELHO, M.H. (1989), pp. 402. 7

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

Figura 2 – Esquema da hierarquia da rede de mobilidade no período medieval.

No Capítulo II.5 defender-se-á que existe igualmente, na actual organização territorial do País, um funcionamento sistémico no que se designará por Sistema Cidade-Rio; enquanto este conceito, aplicado à situação actual, poderá suscitar algumas reservas, não parecerá abusivo considerar que ele se tratava de uma realidade inquestionável na Baixa Idade Média portuguesa. No Quadro 1 reproduz-se um quadro patente na História de Portugal12 de Mattoso, onde se torna clara a importância que a complementaridade entre vias fluviais e vias terrestres tinha, à época, na organização do território no Norte de Portugal. Povoações

Vias Fluviais

Porto Guimarães Braga Ponte de Lima Ponte do Porto Penafiel Valença Monção Ponte da Barca Barcelos Entre-os-Rios São João da Madeira Caminha Amarante Marco de Canaveses

2 2 2 2 2 2 2 2 2 2 3 2 2 2

Vias Terrestres Principais Secundárias 6 2 3 5 5 2 3 4 3 3 3 1 2 2 2 2 2 2 2 2 1 2 2 3 2 2 1 1

Total 10 10 9 9 8 6 6 6 6 6 6 5 4 4 4

Quadro 1 – Cruzamento de vias fluviais e terrestres nas principais cidades do Norte de Portugal [circa Séc. XIV] in MATTOSO, J.; SOUSA A. (1993a), pp. 169.

12

MATTOSO, J.; SOUSA, A. (1993a). 8

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

Analisando os dados constantes na tabela, verifica-se que, dos centros urbanos principais do Norte de Portugal, por volta do Séc. XIV, apenas São João da Madeira não se situava no cruzamento de uma via terrestre com uma via fluvial. Também digno de nota é que, aqueles que são hoje os principais centros urbanos da região (Porto, Braga e Guimarães) eram, já à época, aqueles onde se cruzava o maior número de vias. Foi esta rede de centros urbanos, consolidada nos últimos séculos do medievo português, que determinou a matriz que compõe o actual sistema urbano português. Em processo análogo ao verificado um pouco por todo o ocidente europeu, foi nesta época que foi fundada grande parte dos povoados que vieram a evoluir para cidades nos séculos posteriores. Nas palavras de Benevolo: “A urbanização da Europa, entre 1050 e 1350 (…) forma um tear de centros muito numerosos e diversificados, onde foi tecida uma grande parte da rede dos aglomerados onde vivemos.” 13 No caso das Penínsulas Ibérica e Itálica, esta estrutura articulou-se em torno de um conjunto pré-existente de centros urbanos de primeira importância, herdados da civilização latina e da civilização islâmica. A Figura 3 mostra a rede de centros urbanos em finais do séc. XIII. Nesta época os centros urbanos próximos da raia, como Bragança ou Guarda, ainda retinham uma importância comparável ao dos principais centros urbanos do litoral, graças à forte importância estratégica que tinham para a demarcação da nacionalidade e primeira defesa contra Castela. O Porto ainda não se havia destacado como centro mais importante do noroeste, honra que cabia então a Braga. No centro, Coimbra continuava a ser, de longe, o centro urbano de maior dimensão, sobressaindo Santarém e Évora mais a sul. Já então Lisboa se posicionava destacadamente como o principal centro urbano do país. Mais relevante para o presente fim, é a análise da dispersão dos centros urbanos de menor importância. Por um lado, é visível a forte dominância do povoamento litoral, caracterizado por duas tipologias de povoamento já então bem distintas: o noroeste ocupado por um conjunto muito numeroso de pequenos centros urbanos, no centro, no sul, e no interior, a ocupação caracterizava-se por uma maior concentração urbana num número comparativamente menor de centros urbanos. Curiosamente, ou talvez não, é ainda hoje esta a imagem geral do povoamento do território de Portugal.

13

BENEVOLO, L. (1995), pp.90. 9

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

“Utilizando simultaneamente dois indicadores – o número de tabeliães previstos no tabelamento do fim do século XIII e o número de conventos urbanos (mosteiros e conventos mendicantes) fundados até ao fim do mesmo século – podemos ter uma ideia da grandeza relativa dos centros «urbanos» na mesma época. Pode ver-se também onde predomina o habitat disperso e o habitat concentrado.”

Figura 3 – Centros urbanos medievais e aglomerados. Extraído de MATOSO, J. (1993a), pp. 206.

O processo de consolidação do sistema urbano português prosseguiu durante os séculos seguintes, mas com uma progressiva especialização espacial das funções dos centros urbanos. Nota-se, da observação dos dados constantes do quadro apresentado no Anexo 3, duas tendências divergentes na forma de povoamento do território. Analisando os dados relativos ao número de “Moradores”14 arrolados no Numeramento de 1527, para cada centro urbano, verifica-se uma presença hegemónica de centros urbanos fluviais nas comarcas de Entre Douro e Minho, Estremadura e Algarve: todas as principais cidades destas três regiões possuiam rio. Fala-se dos 10 maiores centros

14

Uma estimativa grosseira da população residente pode ser obtida da multiplicação por 4 a 5 do número de “moradores”: Lisboa teria entre 50 a 60 mil habitantes, o Porto, cerca de 15 mil. 10

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

urbanos de Entre Douro e Minho, incluindo cidades como Porto, Guimarães ou Viana, das 10 maiores cidades da Estremadura, onde se destacam Lisboa, de longe a maior cidade do Reino, Santarém, Coimbra ou Aveiro. O Algarve, já plenamente integrado no território nacional, incluia igualmente cidades de primeira importância, como Tavira ou Lagos. Das 6 maiores sedes desta comarca, apenas uma, Loulé, não era banhada por rio. Bem diversa era a situação nas 3 outras comarcas. Em Trás-os-Montes, apesar de 4 das 5 maiores cidades (Bragança, Vila Real, Chaves e Miranda do Douro) serem fluviais, a maior parte dos centros urbanos de segunda importância eram vilas fortificadas, situadas em locais elevados, sem relação directa com rios. Esta predominância de localidades com forte peso da função defensiva era particularmente evidente na raia, onde foi reforçada a rede de fortificações que protegiam a fronteira com Castela e Leão. Na Beira, dos principais centros urbanos, apenas Lamego, uma das localidades mais afastadas da fronteira, possuia rio. Outras, como Viseu, Guarda ou Covilhã, situavam-se na proximidade de ribeiras, mas nota-se uma preferência por locais elevados, de fácil protecção, mas difícil relação com cursos de água... Também no Alentejo se verificava situação comparável pois, dos 10 maiores centros urbanos, apenas 3, Setúbal, Montemor-o-Novo e Moura, se poderão considerar fluviais. Uma vez mais, as maiores cidades situavam-se na proximidade de um curso de água menor, como nos casos de Évora, Elvas ou Portalegre, mas predominavam as localidades de topo de colina, próximo das cabeceiras de linhas de água. Parece existir, à época, uma dupla personalidade no território português: uma faixa litoral, agora alargada para incluir a frente algarvia, produtora e estável, com agricultura, indústria e comércio fortemente entrosados com a rede hidrográfica. E uma outra faixa, interior, onde prevalecia na rede urbana a preocupação com a defesa, não só dos próprios centros urbanos, mas das próprias fronteiras do território nacional. Enquanto no primeiro caso, as fortes sinergias económicas15 permitidas pela relação estreita com os rios era plenamente assumida e potenciada, nas cidades raianas esse potencial benefício era suplantado pela necessidade imperativa de assegurar uma posição defensiva dominante.

15

Não esquecendo, naturalmente, a herança histórica de uma rede urbana consolidada sobre a rede hidrográfica. 11

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

A importância do transporte fluvial foi decaindo ao longo dos séculos XVI e XVII, como consequência provável da densificação e modernização da rede de estradas e caminhos. Dir-se-ia que, pela primeira vez desde a dominação romana, era mais vantajoso transportar produtos por via terrestre, pelo menos para percursos efectuados no interior do país. Exemplo desta tendência é a diminuição do número de barcos e batéis dos portos do Tejo que desceu, entre 1552 e 1620, de 100 para 20, em Tancos, de 180 para 83, em Abrantes, ou de 100 para 70, em Santarém16. Nos séculos seguintes não se assistiu a grandes revoluções na rede urbana nacional. À excepção do incremento da população dos principais centros urbanos e, em particular das sedes de comarca, destaca-se apenas a explosão demográfica de Lisboa que, se já era historicamente a maior cidade do Reino, reforçou grandemente a sua dominância. Transformou-se, durante a Era das Descobertas, numa das principais metrópoles europeias, passando dos cerca de 60 mil habitantes que teria em 1527 (mesmo assim, cerca de 5 vezes maior que o segundo centro urbano, o Porto) para cerca de 100 mil habitantes na segunda metade do séc. XVI, e perto de 165 mil, no início do séc. XVIII.17 Note-se que a ausência de grandes convulsões na evolução da rede urbana, após a já referida multiplicação de centros na baixa idade média, não é exclusiva de Portugal, verificando-se tendência análoga em quase toda a Europa. Como refere Gianfranco Cannigia: «Los centros históricos de las ciudades que habitamos hoy son, en general, así como nos han llegado y salvo las modificaciones de los últimos cien años, fruto del desarrollo civil, económico y demográfico de los siglos que van del XI al XIV incluído; por lo tanto, grosso modo, fueron construídos en el curso de cuatro siglos. Las épocas siguientes han llevado a cabo la tarea de reordenar y modificar, pero no demasiado, las estructuraciones medievales y a veces, pero no siempre, la de expandirlas.»18 Os séculos XVIII e XIX são tipicamente conotados com a revolução industrial. O certo é que, em termos urbanísticos, essa revolução não ocorreu em Portugal. Houve, antes, uma progressiva adaptação do País a uma nova realidade, com novas tecnologias, novos

16

Dados compilados por Jorge Gaspar, citado em MATTOSO, J. (1993b), pp. 334 e 335.

17

DE VRIES, J. (1984).

18

CANNIGIA, G. (1997), pp. 28. 12

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

processos de trabalho, novos paradigmas de relação social. Como refere Teresa Sá Marques: “Em 1800 Portugal tinha um índice razoável de população urbana. No entanto, um século depois, em 1910, já são evidentes os atrasos de urbanização do nosso país relativamente à Europa industrializada. Entre 1800 e 1910, enquanto parte da Europa está a viver um processo acelerado de urbanização, Portugal mantém a percentagem de população urbana à volta dos 16%.No mesmo período, a taxa de urbanização em Inglaterra sobe de 23% para 75%, reflectindo os fortes impactes do processo de industrialização.”19 Para o lento, mas progressivo, afastamento de Portugal do grupo de países mais “desenvolvidos” contribuíram diversos factores, sendo frequentemente apontadas como causas a independência do Brasil, as Invasões Francesas, a instabilidade política, ou até a filoxera… Não cabe a este trabalho aprofundar o tema, mas as consequências desta crise (que se prolongou pelo séc. XX) são fáceis de constatar: Portugal atingiu o séc. XX com uma estrutura urbana que em pouco diferia daquela que herdou do final da Idade Média. Naturalmente, assistiu-se à decadência de alguns centros urbanos (casos de Pinhel ou Idanha) e o fortalecimento de outros (consolidação do Porto como 2ª cidade do País, Marinha Grande). Mas, na essência, os centros urbanos principais mantiveram-se os mesmos. Não se deu a explosão dramática verificada na Inglaterra ou Alemanha. Manchester passou de uma vila de 12.000 habitantes, em 1760, a uma das maiores metrópoles do mundo, com 400.000 habitantes, em meados do séc. XIX20. Ou seja, aumentou em 33 vezes a sua população em menos de um século! Em Portugal, mesmo tomando como referência o desenvolvimento da cidade do Porto, a cidade que mais evoluiu em consequência da industrialização e concentração da produção, o aumento demográfico segue ritmos bem menos impetuosos. Carlos Alberto Medeiros resume duas visões acerca deste assunto: «Para Armando Castro e M. Villaverde Cabral (…) Portugal terá conhecido a sua revolução industrial no século XIX [cerca de um século depois da “primeira vaga”]

19

in BARATA SALGUEIRO, T. et al (2005), pp.190.

20

BENEVOLO, L. (1995), pp.175. 13

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

(…) mas, em relação à Inglaterra, por exemplo, com transformações menos acentuadas na “passagem do capitalismo mercantil para o capitalismo industrial”. (…) [Miriam Halpern Pereira] assume uma posição que diverge da anterior. (…) Pouco depois da vitória dos liberais sobre os absolutistas, houve, na passagem entre os anos 30 e 40 do século XIX, no período do Setembrismo, uma tentativa de garantir a independência económica. (…) Mas esta política teve duração efémera e, com a Regeneração (…) a nova orientação terá conduzido a um “crescimento agrícola sem industrialização”.»21 Resumindo, a lógica de desenvolvimento económico dependia de um sector produtivo forte, inclusivamente exportador (vinho, azeite, cortiça…). Trata-se de actividades extensivas que, já de si, não parecem indutoras de um processo de concentração urbana, ou de um êxodo rural semelhante ao observado em Inglaterra. Apesar de Miriam Halpern Pereira indicar que a “expansão das relações de produção capitalistas na agricultura é acompanhada de um lento desenvolvimento industrial”22, nunca existiu uma aposta na indústria transformadora, que foi o grande motor da revolução industrial no norte e centro da Europa. Assim, Portugal passou um pouco ao lado da revolução urbana que acompanhou a revolução industrial. Em contrapartida, evitaram-se igualmente as consequências, por vezes desastrosas, das primeiras fases da industrialização do Norte e Centro da Europa, que incluiram um fortíssimo êxodo rural e a concentração urbana em enormes bairros operários, totalmente insalubres, com resultados trágicos sobre a desagregação do tecido social e forte impacto sobre o ambiente natural e urbano. Em Portugal, a sociedade predominantemente agrícola ou, melhor dizendo, agroindustrial, manteve uma relação mais “saudável” com os recursos hídricos, tendo inclusivamente recuperado, em algumas situações, o papel de via de comunicação privilegiada, que se havia esbatido em parte em séculos anteriores. É disto exemplo a utilização dos barcos rabelos, no transporte de pipas, da Região Demarcada do Douro até às adegas de Vila Nova de Gaia, constituindo aqui o transporte fluvial um elemento fundamental ao funcionamento de uma das principais actividades económicas do país.

21

MEDEIROS, C.A. (2005), pp.35-40.

22

A autora é citada igualmente em MEDEIROS, C.A. (2005), pp.39. 14

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

Dito isto, a influência desta industrialização baseada no sector agro-industrial não produziu nenhuma forte dinâmica de alteração das frentes ribeirinhas urbanas, se bem que se tenha assistido a uma progressiva modernização das mesmas com a adopção de medidas “higienizadoras” ao longo dos séculos XVIII e XIX. Foram construídos alguns aterros, por vezes consolidados com muros de alvenaria, no Porto, Coimbra ou Lisboa, quebrando a relação de acesso directo ao plano de água que, de forma informal, se vinha mantendo em quase todas as cidades. No caso de Lisboa, a progressiva ampliação do porto levou à concretização de extensas obras de aterro, durante o final do séc. XIX e primeira metade do séc. XX, que vieram produzir um muito superior afastamento entre rio e cidade. O número de centros urbanos registou um crescimento lento, na segunda metade do séc. XIX e séc. XX, mas a sua população mais do que quadruplicou. «Em consequência, a dimensão média das cidades aumenta de 8829 habitantes em 1864, para 29087, em 1991»23. A alteração da escala de grande parte das cidades, colocou novas questões de conflito com o sistema hidrográfico, na directa medida em que a sua expansão foi ocupando áreas ribeirinhas. Será este o principal factor a contribuir para a emergência do novo paradigma do controlo.24 Ao longo de todo o século XX assistiu-se a diversas acções destinadas a controlar os rios. A regularização dos caudais de alguns rios historicamente conhecidos pela ferocidade das suas cheias, através da construção de canais artificiais, regularização do seu curso ou construção de barragens a montante das cidades, permitiu uma utilização menos condicionada das margens, mesmo que com alguns prejuízos claros para a diversidade e sustentabilidade dos ecossistemas fluviais25. O rio Mondego apresenta hoje intervenções destes três tipos: represamento no seu curso médio e superior, com barragens como a da Aguieira (1981) a serem construídas até ao final do séc. XX, controlo de caudais urbanos e criação de um espelho de água constante ao longo do ano, com a construção do Açude-ponte de Coimbra (igualmente de 1981) a complementarem todo o sistema de canais de regularização e de rega do Baixo Mondego que, partindo de acções concretizdas no início do séc. XX, se prolongou até ao Projecto Hidro-agrícola do Baixo Mondego, cujos estudos apenas se iniciaram em 1979.

23

DELGADO, A.P.; GODINHO, I.M. (2006), pp.100.

24

Ver igualmente Capítulo II.3.

25

Ver capítulos II.1 e II.3. 15

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

Muitos outros rios foram igualmente objecto de acções de regularização e controlo de cheias26, como o Cavado (8 barragens, construídas entre 1951 e 1972) ou o Douro e seus afluentes (perto de 50 barragens e açudes, construídos entre 1965 e 2005). Este controlo, pelo menos parcial, dos caudais dos rios não correspondeu, infelizmente, a uma idêntica preocupação com a conservação de níveis de qualidade de água aceitáveis, o que redundou em níveis inaceitáveis de contaminação da água nas bacias inferiores da maior parte dos rios portugueses. A entrada de Portugal na União Europeia (então CEE), em 1985, veio introduzir novas exigências relativas à qualidade da água e controlo da urbanização. A obrigatoriedade de tratamento primário (depois também secundário) de todos os efluentes domésticos e industriais veio gerar uma dinâmica de investimento, em grande parte suportada pelos sucessivos quadros-comunitários de apoio (fundos de coesão), inédita e, especula-se, dificilmente suportável com fundos exclusivamente nacionais; só no período de 2000 a 2006, o investimento em saneamento básico terá superado os 3.500M€. De uma situação de falhas no abastecimento de água doméstico e tratamento de efluentes quase inexistente, passou-se para uma situação onde, apesar de ainda se estar longe de atingir uma cobertura de 100% da população, já é possível delimitar vastas áreas onde, não isenta de algumas falhas pontuais, a recolha e tratamento das águas residuais é feita com algum grau de eficácia.27 O resultado é uma progressiva melhoria da qualidade da água em algumas bacias hidrográficas e um muito superior conhecimento sobre o que ainda faltará fazer para solucionar os problemas que persistem. Do lado do planeamento urbano, a entrada na União veio introduzir a obrigatoriedade da existência de planos de ordenamento que enquadrem a ocupação do solo. Com as falhas que todos reconhecemos existirem no sistema de planeamento urbano e rural, no país, a verdade é que existe hoje o efectivo reconhecimento de que há localizações boas e más para os diversos usos e funções no território.

26

Fomentada, igualmente, por uma componente forte de produção eléctrica, estimulada na sequência da Lei de Electrificação Nacional (Lei 2002, de 1944). 27

Ver Capítulo II.1. 16

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

Salvaguardando as acções que, por má-fé ou incapacidade técnica, ainda continuam a produzir fortes incompatibilidades entre rios e urbanização, a verdade é que Portugal está finalmente dotado de uma legislação e instrumentos de gestão territorial capazes de enquadrar a acção urbanizadora, caso a sua produção, revisão e implementação seja correctamente assumida, por parte dos poderes Central e Local e dos privados. Também será óbvia, para os mais atentos, a forte dinâmica verificada recentemente em intervenções de requalificação urbanística e ambiental de frentes ribeirinhas de múltiplas cidades do país, a começar pela mais óbvia, a Exposição Mundial de Lisboa, em 1998, a que se sucederam todos os projectos Polis, muitos deles centrados na requalificação de cursos de água e suas margens, e algumas ainda escassas, mas cada vez mais frequentes, intervenções lançadas por iniciativa municipal e geridas pelas autarquias. Tratar-se-á da adaptação progressiva ao novo paradigma da sustentabilidade, com a emergência de uma consciência ecológica, onde a relação das cidades com os rios que as atravessam parecem readquirir uma importância fulcral… A referida aplicação de fundos comunitários em estações de tratamento de águas residuais permitiu uma melhoria substancial da qualidade da água de, pelo menos, parte dos rios o que, por sua vez, terá eliminado o efeito de repulsa que a poluição dos rios provocou durante séculos nas populações ribeirinhas. O óbvio potencial das promoções imobiliárias em frentes ribeirinhas (Waterfront redevelopment) veio trazer capital às intervenções nestes espaços. Caberá aos municípios fazer a gestão ponderada e eficiente das oportunidades e perigos associados a estes projectos, salvaguardando o interesse público e garantindo a sustentabilidade ambiental e urbanística dos projectos, mas não ignorando as potenciais mais-valias associadas a estas acções de requalificação e transformação urbana, apenas amplificadas pela emergência de novas potencialidades económicas, relacionadas com o lazer, valorização imobiliária, ou turismo. A aposta em projectos de qualidade apenas terá a lucrar com a aposta em frentes de água apelativas do ponto de vista paisagístico, pelo que as políticas de renaturalização dos rios urbanos, com substituição progressiva de soluções de contenção artificializantes por outras mais compatíveis com a preservação do contínuo fluvial, com conservação plena das funções ecológicas de primeira importância que o corredor ribeirinho alberga. Surge assim, pela primeira vez em muitos séculos, uma oportunidade óbvia para a conciliação e valorização das propriedades ecológicas, sociais e estéticas da presença dos rios nas cidades. 17

A Cidade Fluvial em Portugal

I.2

I. Introdução

Definições – Rio e Cidade

Antes de mais, afigura-se útil clarificar os conceitos básicos, particularmente o de rio e de cidade, que são fundamentais para a compreensão da presente tese. Ir-se-á assumir neste trabalho uma definição bastante objectiva do que é uma cidade. Isto porque o termo pode ter as definições mais díspares, de país para país, ou mesmo entre regiões do mesmo país. Como se refere na entrada relativa a Cidade na Wikipedia28: «Na Dinamarca, por exemplo, bastam 250 habitantes para uma comunidade urbana ser considerada uma cidade, e na Islândia, apenas 300 habitantes. Na França, um mínimo de dois mil habitantes é necessário, e na Espanha, dez mil habitantes. (…) A Organização das Nações Unidas, por exemplo, considera uma cidade somente áreas urbanizadas que possuam mais de 20 mil habitantes.» Dentro do território português, a freguesia urbana de Algueirão-Mem Martins (Concelho de Sintra) tinha uma população de 63.546 em 2001 (não sendo considerada cidade), enquanto Miranda do Douro, cidade desde 1545 tinha, no mesmo ano, apenas 1.960 habitantes. Qualquer tentativa de definir cidades por meios próprios (a partir dos dados de população do Instituto Nacional de Estatística, disponíveis à sub-secção estatística) esbarraria inevitavelmente nas, nem sempre naturais, divisões administrativas entre concelhos ou freguesias. Por outro lado, “redefinir” a rede de cidades portuguesa seria um propósito excessivamente ambicioso e desenquadrado do âmbito do trabalho.29 Assim optou-se, de forma pragmática, pela solução mais simples e óbvia, ou seja, considerar o universo das cidades “oficiais” de Portugal Continental. São todas aquelas com estatuto de cidade reconhecido por motivos históricos ou elevadas a cidade por Decreto-Lei30. Por não existirem ainda dados estatísticos relativos aos seus

28

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade (12-11-2006)

29

Leia-se, para um debate mais aprofundado sobre a questão, BARATA SALGUEIRO, T. et al (2005), pp.176-189 30

Tipicamente, os critérios para elevação de uma vila a cidade são a existência de pelo menos 8.000 eleitores a viver em contínuo urbano dotado de pelo menos metade de uma lista de equipamentos 18

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

perímetros urbanos, foram excluídos os aglomerados elevados a cidade em 9 de Dezembro de 200431. Assim, ao conjunto das actuais 150 cidades “oficiais” portuguesas foram retiradas as 11 cidades das Regiões Autónomas de Açores e Madeira e as 9 localidades elevadas a cidade há cerca de dois anos. Significa isto que, para efeitos do estudo, foram analisadas as 130 cidades de Portugal Continental decretadas por foral ou decreto-lei anterior a 2004. Da mesma forma que para as cidades, não existem critérios oficiais no nosso país que permitam distinguir claramente a partir de que dimensão um curso de água pode ser considerado Rio, por oposição a termos como Regato, Riacho, Arroio, Barranco ou Ribeiro(a), normalmente utilizados para descrever cursos de água de menor dimensão. Até mesmo o que se entende por dimensão de um curso de água é terreno nebuloso, podendo o critério de dimensionamento estar relacionado com aspectos quantitativos, como o caudal (médio ou de ponta, com períodos de retorno que vão de um dia a dezenas de anos), área da bacia hidrográfica, largura, comprimento ou critérios qualitativos, como o número de ordem numa classificação hierárquica (no caso de Portugal, baseada na Classificação Decimal dos Cursos de Água). Esta indefinição não é, aliás, exclusiva de Portugal, como refere K.W. Cummins32: «There is considerable confusion and ambiguity concerning the terms ‘stream’ and ‘river’ on both sides of the Atlantic and elsewhere. The size of a body of water is often described by stream order (e.g. Strahler, 1957) or drainage (catchment) area.» A dificuldade que resulta da aplicação da Classificação Decimal (Stream Order, ou de Strahler) para isolar o conjunto de cursos de água que podem ser considerados rios prende-se com a natureza pouco discriminatória do número de ordem dos rios e bacias. Por exemplo, uma ribeira litoral da Estremadura, como a Ribeira do Cuco, com uma área de bacia inferior a 30 km2, pode ter uma classificação de “1ª Ordem”, porque corre directamente para o Mar, ao passo que o Rio Ferreira, com uma bacia de 184 km2, é um rio de 3ª Ordem, por ser afluente do Rio Sousa, por sua vez afluente do Douro.

colectivos. Os critérios estão definidos nos artigos 13º e 14º da Lei nº11/82, de 2 de Junho. No entanto, como referido em IGP (2005), pp.107, “A imprecisão e a subjectividade das condições consentidas pelo artigo 14º está na origem do aparecimento de muitas povoações classificadas como cidades nas últimas décadas, mas que efectivamente possuem diminuto número de atributos urbanos.” 31

Anadia, Costa da Caparica, Estarreja, Meda, Reguengos de Monsaraz, Sabugal, Tarouca, Trancoso e os Valbom, elevadas a cidade pelas Leis n 3 a 11 de 2005, de 26 de Janeiro 32

BOON, P.J. et al (1992), pp.127 19

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

Optou-se, portanto, por assumir uma restrição relacionada com a dimensão, por permitir uma superior objectividade. Os critérios adoptados são o caudal e a área da bacia situada a montante de cada cidade. Os cursos de água que os cumpram são considerados rios, para efeitos do presente trabalho. Foi utilizada uma metodologia empírica, descrita no Capítulo II.4.3, de estimativa de caudal com base na área da bacia e região hidrológica, com critério de corte num caudal mínimo de 500 m3/s para um período de retorno de 5 anos, 1000 m3/s para um período de retorno de 50 anos e/ou uma área de bacia hidrográfica a montante da cidade superior a 50 km2. Analisa-se apenas a área de bacia situada a montante de cada cidade porque, sendo o interesse do trabalho a análise da relação entre rio e cidade, não parece fazer sentido considerar que, por exemplo, o rio Côa tenha características idênticas ao passar pelo Sabugal ou perto de Vila Nova de Foz Côa33. No primeiro caso, trata-se de um pequeno rio próximo da sua nascente, enquanto ao desaguar no Douro, perto de V.N. de Foz Côa, o Côa já é um dos rios secundários mais importantes e caudalosos do País. O tipo de relação que se poderá estabelecer com o rio em cada caso será diferente e, logo, parece lógico fazer a caracterização do rio baseada no caudal gerado a montante de cada cidade. Cidade Fluvial é a designação adoptada no estudo para identificar toda a cidade de Portugal Continental atravessada ou adjacente a um curso de água com dimensão suficiente para receber a designação de rio. Resulta daqui a exclusão de todas as cidades que não têm nenhum curso de água, ou cujo curso de água, ao passar na cidade, não apresente o caudal e/ou área de bacia suficientes para ser considerado rio. A proximidade mínima entre rio e cidade para que se possa considerar que o rio é “urbano” também foi alvo de uma restrição de afastamento, testada de forma recursiva. Tal como os restantes critérios, este será descrito em maior detalhe no Capítulo II.4. O Sistema Cidade-Rio é o que resulta da intersecção do sub-sistema urbano de cidades com rio e do sub-sistema hidrográfico de rios com cidade. Nos capítulos II.1 e III.1 justificar-se-á porque motivos o conjunto de cidades fluviais, enquanto nós de intersecção entre sistema hidrográfico e rede de centros urbanos, pode ser considerado ele próprio um sistema.

33

Curiosamente, nem uma nem outra cidade integrarão o conjunto final de cidades fluviais. O Sabugal porque foi elevada a cidade apenas em 2004, Vila Nova de Foz Côa porque o afastamento da cidade, quer ao Douro, quer ao Côa, não cumpre os critérios de proximidade para que se considere existir relação directa da cidade com o rio. 20

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

Por relação rio-cidade entende-se todo o conjunto de interrelações que se estabelecem entre os dois elementos, à escala local e regional. Trata-se, não apenas, de relações fisiográficas, ou morfológicas, mas também inclui as funções ou usos humanos e ecológicos que se estabelecem neste tipo de interface. Mais adiante, no Capítulo II.6, a mesma designação será utilizada para caracterizar um dos critérios de classificação tipo-morfológica das cidades fluviais.

21

A Cidade Fluvial em Portugal

I.3

I. Introdução

Metodologia e Estrutura

Procurou-se, neste trabalho, descrever a forma como cidade e rio se relacionam no território de Portugal Continental. Para isso, procedeu-se primeiro a uma descrição do Sistema Cidade-Rio, com recurso a parâmetros mensuráveis e que permitissem uma aplicação generalizada a todo o universo de análise. Por “aplicação generalizada” entenda-se que, como premissa de base na selecção dos parâmetros, se assumiu que teria de ser viável, no tempo disponível para a elaboração da tese, aplicar cada um deles a todo o conjunto de cidades fluviais, sem excepção. Foram assim eliminados alguns parâmetros que, por se debruçarem sobre uma temática muito específica, requeressem um trabalho exaustivo de recolha de informação. Foi o caso de parâmetros de medição necessários à análise das características tipo-morfológicas das cidades fluviais (ver Capítulo II.6), que implicavam aprofundados trabalhos de campo para cada um dos casos de estudo, ou seja, 75 cidades com rio. Da mesma forma, a dificuldade encontrada na aquisição de alguma informação, nomeadamente fotografia aérea34, inviabilizou a recolha de dados detalhados relacionados com os usos de solo actuais nas frentes ribeirinhas e, em particular, a avaliação das extensões destas frentes ribeirinhas actualmente conservadas em estado semi-natural ou, pelo contrário, fortemente artificializadas. Muito longe de se tratar de parâmetros menos importantes, apenas a oportunidade da sua integração na tese não surgiu em tempo útil; a análise destes parâmetros será, no entanto abordada nas fases seguintes do projecto RiProCity, particularmente quando este avançar para uma fase de caracterização detalhada dos três casos de estudo seleccionados para posterior análise (Viana do Castelo, Coimbra e Tavira). Também pela impossibilidade de encontrar algum tipo de informação disponível a uma escala (local) que permitisse recolher valores específicos para cada caso de estudo, foram eliminados alguns parâmetros, tais como os relacionados com a medição da qualidade da água, dado que apenas estão disponíveis séries de dados para uma rede limitada de postos de medição (para os rios que passam por cidades, menos de 50 postos, em 26 rios). A análise à escala local implicaria a disponibilidade de dados de

34

Apenas recentemente foi possível adquirir, no âmbito do projecto RiProCity, as ortofotos de 45 das 75 cidades, numa fase já muito adiantada da elaboração da tese. 22

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

medição da qualidade da água a montante, a jusante, e no próprio curso urbano do rio, para cada uma das cidades. Por forma a evitar a distorção dos resultados daquelas medições com extrapolações abusivas de valores, optou-se por proceder a uma análise mais geral (escala regional ou de bacia hidrográfica) do tema da qualidade da água, patente nos capítulos II.1 e II.3. Identificadas as limitações relativas à informação que foi possível recolher, convém salvaguardar que foi, ainda assim, coligido um volume de informação muito considerável.35 Para além de diversificada, a sua integração numa base alfanumérica associada

a

shapefiles,

compiladas

num

sistema

de

informação

geográfica,

implementado em ambiente ArcView, permitiu a medição e comparação de valores de diversos parâmetros relacionados com as características de rio, cidade e da relação entre ambos, quer quanto a aspectos de geografia física, quer relativamente a aspectos demográficos ou de morfologia urbana. Refira-se que a recolha de informação se processou de forma iterativa. Esta passou pela identificação inicial de um conjunto de dados, mais ou menos alargado, que se considerou, desde logo, de primeira importância para a descrição do conjunto das cidades fluviais. A própria compilação desses dados sugeriu, por vezes, a necessidade de obtenção de outros. Não se tratou, portanto, de um processo linear e directo, mas sim de um processo evolutivo, que se foi também adaptando à dificuldade na obtenção de certos dados ou pela descoberta de novas fontes de informação. O conjunto de parâmetros medidos (anexos 8 a 12) para cada cidade fluvial permitiu a caracterização do Sistema Cidade-Rio, abordada no Capítulo II. Esta caracterização dependeu fortemente da análise comparativa dos valores obtidos para conjuntos de parâmetros, para cada cidade ou conjuntos de cidades, recorrendo a análise estatística multi-variada, com o objectivo de detectar situações comuns a diversas cidades fluviais ou, pelo contrário, apontar casos singulares, ou excepções à regra. Numa primeira fase (Capítulo II.5), a análise foi feita a uma escala nacional ou regional, debruçando-se principalmente sobre as questões do funcionamento em rede dos sistemas hidrográficos, de centros urbanos e de cidades fluviais, transitando-se depois para uma escala local, com análise mais detalhada das características da morfologia urbana, do rio no seu curso urbano ou da relação física entre cidade e rio, para cada uma das cidades fluviais. A impossibilidade de estabelecer um critério único de caracterização

35

Consultem-se os anexos 8 a 25. 23

A Cidade Fluvial em Portugal

I. Introdução

tipo-morfológica das cidades fluviais recomendou a adopção de um conjunto de 3 critérios de classificação, que serão descritos no Capítulo II.6. Procedeu-se de seguida a uma reflexão sobre a questão da integração entre rio e cidade (Capítulo III.1) e passou-se à descrição das principais políticas e acções de intervenção sobre frentes ribeirinhas em cidades fluviais portuguesas, no passado recente e no presente, com apreciação crítica de boas e más práticas (CapítuloIII.2). Com base na recolha bibliográfica feita, na caracterização das cidades fluviais portuguesas e na análise das intervenções recentes e paradigmas subjacentes, passou-se ao capítulo final, onde se propõe um conjunto de medidas e acções promotoras de uma maior integração entre cidade e rio (Capítulo III.3), que constitui o produto final do presente trabalho. A Figura 4 sintetiza a metodologia adoptada no presente estudo.

Figura 4 – Esquema metodológico

24

A Cidade Fluvial em Portugal

II. O Sistema Cidade-Rio em Portugal

II

O SISTEMA CIDADE-RIO EM PORTUGAL CONTINENTAL

II.1

Rede Hidrográfica

A rede hidrográfica portuguesa apresenta características bem diferenciadas de região para região do País. A variação da pluviosidade, entre o Norte atlântico e as regiões mais secas de Trás-osMontes, Beira Interior e Alentejo, é a principal causa para as assimetrias a nível de escoamento superficial36. A orografia do Norte do País provoca a precipitação de grande parte da água contida nas massas de ar atlânticas numa faixa costeira, levando a que o interior receba volumes muito inferiores de precipitação. No sul do País, é principalmente pela influência de altas pressões sub-tropicais que a chuva é afastada37. A rede hidrográfica portuguesa varia, assim, entre um conjunto de bacias com escoamentos por área (produtividade) muito elevados, localizados no Noroeste do País, como as bacias do Minho, Lima ou Cavado, e outras com muito baixa produtividade, como as do Sado, Mira e Guadiana38. As referidas assimetrias de comportamento das bacias hidrografias estão bem espelhadas nos valores indicados no Quadro 2. As bacias do Noroeste apresentam produtividades até 5 vezes superiores às do Sul do País. A irregularidade de certas bacias do Sul do País pode ser superior a 100 (significa isto que o escoamento do ano mais húmido da série analisada é mais de 100 vezes superior ao do ano mais seco!), enquanto no Noroeste este coeficiente de flutuação não ultrapassa as 5 vezes. A estiagem (número de meses “secos”) é, igualmente, mais longa no Sul do País, prolongando-se por até 6 meses, na bacia do Sado. No outro extremo, está a bacia do Ave, onde esse período não ultrapassa os dois meses. Naturalmente, esta variedade de comportamentos reflectir-se-á em igual diversidade nas características das relações que se poderão estabelecer em áreas de interface entre cidade e rio, com reflexos sobre o próprio sistema urbano, como se verá no Capítulo II.5.

36

INAG (2001), pp.1, Cap. II-1.

37

IGP (2005), pp.61.

38

RAMOS, C. (2005), pp. 400. 25

A Cidade Fluvial em Portugal

II. O Sistema Cidade-Rio em Portugal

Coeficientes mensais dos Meses de maior Nº de meses caudais do mês escoamento de estiagem de maior escoamento

Bacias Hidrográficas

Produtividade 2 (l/m )

Irregularidade (coeficiente de flutuação)

Minho

>1000

1000

1000

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