A cidade não tem um seu narrador: discursos sobre cidadania na arte urbana de São Paulo

October 6, 2017 | Autor: Bruna Bastos | Categoria: Comunicacion Social, Ciências Sociais, Geografia
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PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2014 (8 a 10 de outubro 2014)

A cidade não tem um seu narrador: discursos sobre a cidadania na arte urbana de São Paulo1 Bruna Freire Bastos2

Resumo Como se relacionam cidade e cidadão? Para Augé (2009, p.11), “hoje, mudar a vida é, em primeiro lugar, mudar a cidade”. A partir desta ideia problematizamos o exercício da cidadania no espaço urbano contemporâneo, explorando as dimensões sociais e políticas do modo de vida nas metrópoles, tendo como referência o pensamento sobre a racionalidade monetária de George Simmel, o conceito de sensorialidade estética de Borges e col., e de práticas do consumo de Garcia Canclini. Em seguida, à luz de Cerquier-Manzini e Eni Orlandi problematizamos as relações entre cidadania e discurso, refletindo sobre a participação do cidadão comum na transformação dos sentidos que circulam na cidade e que dizem respeito à sua vida. Para tanto, faremos uma Análise de Discurso de três grafites da metrópole paulistana buscando entender de que maneira os sentidos que emergem das obras se relacionam às noções sobre “ser cidadão” em uma cidade como São Paulo.

Palavras-chave: comunicação; consumo; cidadania; arte urbana.

1. Introdução “Aristóteles esclarecera que só na polis os humanos alcançam a plenitude da sua natureza” (TAYLOR, 2010 apud PAIVA, 2014, p.59). Contudo, a que plenitude estaria se referindo Aristóteles? Que elementos da polis estariam relacionados a esta natureza humana? A afirmação do filósofo nos estimula a questionar a relação entre homem e cidade, buscando entender quais elementos deste espaço se relacionam à própria noção de humanidade. Neste sentido, procuramos analisar a relação cidadecidadão por uma perspectiva comunicativa, articulando os significados atribuídos pela

Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho 02: COMUNICAÇÃO E CONSUMO: materialidades e representações da cidadania, do 4º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 08, 09 e 10 de outubro de 2014. 2 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM – linha de pesquisa: Processos de recepção e contextos socioculturais articulados ao consumo. 1

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coletividade à cidadania tendo como ponto de vista empírico a arte urbana na cidade de São Paulo. Marginalizada de início e consagrada atualmente, a arte urbana já faz parte do circuito tradicional da arte3, inclusive sendo tema de exposições em museus, galerias e lojas. Interpretamos este segmento artístico, bem como seu consumo, como um discurso sobre a apropriação do espaço urbano, articulando significações sobre o viver nas cidades. Assim, nos propomos a analisar três grafites de um dos principais pontos de consumo de arte da cidade de São Paulo4, utilizando as obras selecionadas como recorte para problematizar o consumo da arte urbana enquanto expressão de cidadania.

Perguntamo-nos, portanto, se este consumo se configura como a

manifestação de uma revindicação do direito à cidade; expressão da busca por liberdade de expressão; desejo de ocupação do espaço público. Longe de responder conclusivamente a estas questões, buscamos refletir sobre os sentidos que disso emergem, as possibilidades de significações das obras analisadas e os imaginários que as circundam na perspectiva da relação consumo e cidadania.

2. A racionalidade da metrópole contemporânea Queremos trabalhar o modus vivendi desta metrópole contemporânea relacionando duas dimensões: a racional e a sensorial. No plano da dimensão racional damos enfoque à mediação intelectual, abordada no aspecto quantitativo e monetário das relações sociais nas cidades (SIMMEL apud FREITAS, 2007). No plano da dimensão sensorial damos enfoque à mediação estética, abordada na relação intuitiva entre cidade e sujeito por meio da arte urbana (BORGES e col., 2014). Com esta

3 Consideramos a arte urbana como parte do circuito tradicional de arte, na medida em que faz parte do material turístico oficial desenvolvido pela Secretaria Municipal da Cidade de São Paulo. Nele há mais de 25 atrativos relacionados à Arte Urbana, entre outras sugestões relacionadas. Disponível em http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/images/pdf/roteirostematicos/roteiro_arte_urbana_ld.pdf. Último acesso em 04/08/2014 4 Consideramos como “um dos principais pontos de grafite da cidade”, pois foi assim descrito no material turístico desenvolvido pela Secretaria Municipal da cidade de São Paulo. Disponível em http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/images/pdf/roteirostematicos/roteiro_arte_urbana_ld.pdf. Último acesso em 04/08/2014

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exposição, queremos argumentar que o consumo, em especial o da arte urbana, coloca em diálogo a dimensão racional e sensorial, ampliando o potencial de construção de sentido entre cidade e cidadão, sendo um caminho de exercício da cidadania. Assim, a configuração da metrópole contemporânea se dá sobre fluxos acelerados de mercadorias, pessoas e capital, que ininterruptamente transitam por diferentes dimensões midiáticas, materiais e eletrônicas, desencadeando nos cidadãos o que Simmel (apus FREITAS, 2007) nomeia de “racionalidade monetária”: o intelecto do homem nas metrópoles é infinitamente mais estimulado que nas pequenas cidades ou no campo, constituindo-se como um dos efeitos marcantes da intensificação da vida nervosa no cotidiano. Para lidar com o bombardeio aos estímulos visuais e auditivos, o homem da cidade não reage de forma direta e emocional, como faz o homem da pequena cidade, mas, sim, de forma indireta e intelectual. (FREITAS, 2007, p.43)

O autor nos apresenta a mediação intelectual como uma proteção frente ao hiperestímulo das cidades modernas e explica a nova lógica racional que se instaura: o privilégio do aspecto quantitativo e objetivo em detrimento da lógica afetiva, que favorece o qualitativo e o subjetivo. O autor nos explica que este viver dialoga com a racionalidade monetária que, articulada por números, sugere uma relação indireta, indiferente e calculável. E completa “Para Simmel, essa calculabilidade passou a fazer parte da vida cotidiana, levando as pessoas a passarem os dias inteiros a avaliar, a calcular e a reduzir os valores qualitativos em valores quantitativos” (idem, p.44). Nosso argumento é que os valores qualitativos estão presentes no plano da sensorialidade estética, que enfocamos por meio da arte urbana. Dessa forma, entendemos a estética como nos mostra BORGES e col. (2014): a noção de estética corresponde ao conjunto de definições de um objeto que não depende de conhecimento prévio para ser reconhecido, mas sim da pura sensação e intuição sobre algo. Não sendo uma teoria de captação e conformação do belo, mas sim um modo de orientação das sensibilidades, a estética/estesia é vislumbrada como ferramenta importante para os processos de reconfiguração da atividade humana. (BORGES e col., 2014, p.239).

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Entendemos a relação entre cidade, sujeito e arte urbana como esta “ferramenta para a reconfiguração da atividade humana”, abrindo portas para novas práticas e significações. O consumo da arte urbana participa deste processo ao fortalecer a teia de significações que vinculam os objetos, lugares e pessoas que fazem parte da cena urbana, como discorremos adiante nas análises sobre as artes selecionadas. O consumo funciona como articulador entre esta racionalidade monetária e a sensorialidade estética, já que é dinamizado por signos complexos, com significações em níveis sociais, políticos e simbólicos, permitindo trabalhar qualitativamente e, assim, atribuir sentido ao mundo em que se vive, forjando hábitos, identidade, pertencimento e posicionando-se no mundo (TONDATO, 2014).

3. Consumo e cidadania nas cidades Adotamos a concepção de consumo de García-Canclini (2010) “um conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos [...] é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e os modos de usá-lo”. Neste sentido, consumir se configura como um exercício de cidadania, já que coloca o sujeito como construtor de sentidos para si e para o mundo que o cerca. Contudo, quando falamos sobre o consumo de arte urbana estamos falando do consumo de uma tradição artística que trata da apropriação do espaço público e da liberdade de expressão, nos direcionando ao questionamento de aspectos políticos ligados à democracia e à própria noção de cidadania na modernidade. Para refletir sobre o consumo de arte urbana temos que entender seu significado em relação à concepção de cidadania da sociedade moderna. Por isso, ressaltamos o desenvolvimento da concepção sobre cidadania em paralelo ao desenvolvimento do capitalismo. Quero assinalar o duplo recorte da ascensão do capitalismo, que identifica o seu aspecto contraditório. De um lado, trata-se do processo – o mais avançado que a humanidade já conheceu – de saída do imobilismo da sociedade feudal. Nessa evolução, despontou a cidadania, em sua proposta de

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igualdade formal para todos, De outro lado, delineia-se o processo de exploração e dominação pelo capital (CERQUIER-MANZINI, 2010, p.28).

Apesar de reconhecermos a contradição contida no capitalismo, concordamos mais com seu aspecto libertador, que encerra o imobilismo da sociedade feudal e que possibilita aos indivíduos novas formas de dar sentido ao próprio destino. Contudo, queremos relacionar a contradição contida no capitalismo com a dupla concepção de cidadania que queremos contrapor: a cidadania plena e a cidadania esvaziada, e colocá-las em diálogo por meio das análises do corpus construído, mostrando de que forma estas noções de cidadania dialogam nas obras. Entendemos a noção de cidadania plena como a conexão da cidadania em três instâncias: a civil, que trata do direito sobre o próprio corpo; a social, relacionada com as necessidades humanas básicas para uma vida digna (saúde, educação, moradia, locomoção, etc.); e a política, que diz respeito ao direito de representação direta ou indireta, possibilitando o cumprimento das outras duas instâncias. A ligação das três instâncias concederia o poder necessário para os indivíduos participarem efetivamente das deliberações que dizem respeito à sua vida. Já a cidadania esvaziada é entendida pela desconexão entre as três instâncias, reduzindo a noção de cidadania principalmente à esfera dos direitos sociais (educação, saúde, moradia, etc.), concebendo-os por meio de uma perspectiva “passiva”, visto que se configuram como direitos a serem garantidos, mas dos quais os sujeitos não possuem poder de decisão ou participação da concepção (CERQUIER-MANZINI, 2010). Como dissemos, nosso argumento é que as noções de cidadania plena e cidadania esvaziada dialogam no cotidiano da cidade. Portanto, pretendemos encontrar as marcas das negociações sociais que ora corroboram, ora subvertem estas noções de cidadania ao analisar a narratividade da cidade.

4. Diálogos entre cidadania e Arte Urbana: consumindo a cidade Vamos trabalhar a cidade por meio de seus discursos, como nos sugere Orlandi (2004). Entendemos que a perspectiva da Análise do Discurso nos filia a um

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tipo de investigação que coloca em foco a materialidade histórica e ideológica que constituem os textos verbais e não verbais da cidade, lançando luz sobre os gestos que os sustentam e permitem seu funcionamento (ORLANDI, 2004). A construção do corpus de análise privilegiou a localidade do Bairro Vila Madalena, situado na Zona Oeste de São Paulo, quadrilátero formado pelas ruas Heitor Penteado, Cardeal Arcoverde, Natingui e Pedroso de Moraes. O recorde se deu devido ao tradicional reconhecimento 5 da vitalidade de seu consumo cultural e artístico. Neste bairro os espaços culturais convencionais se misturam aos muros grafitados, que funcionam como galerias a céu aberto. A fim de favorecer os textos dos espaços públicos foram selecionadas três obras de um dos pontos públicos de grafite mais famosos da cidade 6 : o “Beco do Batman”, próximo às ruas Gonçalo Afonso e Medeiros de Albuquerque. Como dissemos, vamos analisar a cidade a partir de seu discurso, de sua montagem textual, que entendemos conforme nos explica Orlandi (2004) “uma realidade que é estruturada de tal modo que nos vai dar, enquanto analistas, uma imagem de texto, do acontecimento urbano que é histórico e que se apresenta em seus vestígios”. A autora nos mostra que fazem parte dessa imagem de texto o concreto e o imaginário, o verbal e o não verbal, a ordem e a desordem, o acerto e o equívoco (idem). O equívoco é especialmente importante para nós, visto que é a partir dele que acessamos o que Orlandi (2004) chama de “espessura semântica”, as camadas de sentido que se encontram entre o que é dito o que poderia ter sido dito. Para atingir a espessura semântica devemos romper com o efeito de transparência, obviedade do texto, e trabalhar a sua opacidade, contraversão, fazendo emergir as diversas redes de

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Assim considerado pela Secretaria Municipal da Cidade de São Paulo. Disponível em http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/o-que-visitar/pontos-turisticos/231-vila-madalena. Último acesso em 11/08/2014. 6 Assim considerado pela Secretaria Municipal da Cidade de São Paulo. Disponível em http://www.cidadedesaopaulo.com/sp/br/o-que-visitar/atrativos/pontos-turisticos/3924-beco-dobatman. Último acesso em 11/08/2014.

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sentido que a atravessam e que a habitam. Não buscamos, portanto, a “verdade do sentido, mas permanecer atento a suas diferenças e movimentos” (ORLANDI, 2004). Ao analisar a narratividade urbana, a diversidade de significações reside principalmente na questão da quantidade, ou seja, na questão da multiplicidade de discursos e ideologias que convivem e se hierarquizam no espaço comum. Portanto, o “lugar-comum”, termo que aqui não entendemos como o banal, mas como o lugar das múltiplas vozes que compõem o espaço público, é o tema por excelência das narratividades que vamos analisar (idem). A seguir trazemos as obras analisadas, sendo a primeira por nós denominada “1+1=3” (figura 1).

Figura 1: 1+1=3 Fonte: fotografia de grafite no “Beco do Batman” – Vila Madalena – SP, elaborada pela autora

O grafite “1+1=3” trata sobre uma cena “comum” das grandes cidades: carros e ônibus transitando nas ruas, passantes olhando as vitrines, abordagem policial, etc. Acompanhando cada personagem estão balões de diálogo, típicos da linguagem de história em quadrinhos, que carregam os dizeres “1+1=3”, com exceção do personagem abordado pela polícia, em que está escrito “1+1=2”. Este procedimento

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discursivo, que aborda o “lugar comum” do cotidiano da cidade, abre a polissemia da cena justamente por escancarar o estereótipo através do exagero, dando lugar à divergência e ao “trocadilho” (ORLANDI, 2004). Para a autora, o trocadilho da narratividade urbana se desdobra pela “metáfora da quantidade”, assim, o trocadilho faz uma crítica à crítica da quantidade, que repousa sobre a visão romântica de que nas cidades há espaço para a singularidade incondicional e para a harmonia consensual, visão esta se relaciona somente ao nível da aparência, mas não ao nível material e histórico, instância em que a hierarquia dos sentidos se revela e o conflito se configura. (ORLANDI, 2004) Assim, a obra “1+1=3” revela a hierarquia dos discursos que circulam na metrópole, a saber, a dominância do “1+1=3” em oposição ao elemento divergente e minoritário do “1+1=2”. Esta dominância se sustenta tanto no plano individual, representado pelos balões de diálogo dos passantes, como no plano estrutural, representado pelos balões de diálogo das revistas expostas na vitrine (mídia) e dos policiais (polícia civil). Esta narratividade mostra, portanto, a dinâmica entre repetição e fixação de sentidos (monofonia) em relação à divergência e à diferença (polifonia) (idem). A argumentação da obra, em que o único personagem a ter a mensagem “1+1=2” em seu balão de diálogo é representado como suspeito da polícia, pode ser contraposta ao lema da cidadania “a liberdade de expressão é um direito de todos”. No lema o sentido de “todos” silencia o real da cidade em favor de uma suposta igualdade, não transferindo os sentidos que existem na quantidade de sujeitos vivendo juntos, ou seja, não explicitando a divergência e a hierarquia desta quantidade, que se relacionam à materialidade histórica que constitui a pluralidade deste “todos”. A obra interpela a noção sobre cidadania esvaziada, uma vez que denuncia o silenciamento da voz da minoria, revelando a exclusão destes sujeitos da instância da fiscalização e concepção dos direitos que organizam suas vidas. Contudo também realiza uma crítica em relação à noção de cidadania plena, na medida em que revela o exercício da cidadania como uma necessidade real concreta do cotidiano da cidade,

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constantemente em construção e não garantida pelo discurso jurídico. Também é possível relacionar a obra à mediação intelectual de Simmel, uma vez que estrutura a fala dos personagens pela linguagem numérica-matemática, o que simboliza a valorização da “calculabilidade” e do quantitativo sobre o qualitativo de que fala o autor. A figura 2 traz a segunda obra analisada e que chamamos de “Não alimente o artista”.

Figura 2: “Não alimente o artista”. Fonte: fotografia de grafite no “Beco do Batman” – Vila Madalena - SP elaborada pela autora

Em “Não alimente o artista” temos a cena de um grafiteiro estampando sua arte em um muro enquanto quatro personagens o observam. O grafite que está sendo construído é colorido, um dos espectadores tira foto, outro tenta interagir com o artista, os outros dois apenas contemplam. Acima de todos há uma placa com o dizer “não alimente o artista”. Aqui, temos novamente a narratividade urbana sobre o “lugar comum”, escancarando estereótipos pelo excesso e expondo a divergência. A frase “Não alimente o artista” dialoga com frase “não alimente o animal”, que é uma mensagem já estabelecida nos zoológicos, e que funciona como um lembrete à ordem

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e administração do local. Assim, o discurso que é tradicionalmente utilizado como palavra de ordem, neste caso denuncia a desordem e o conflito contido na organização da cena narrada, visto que no lugar do animal há uma pessoa, o artista. O mecanismo que está em jogo nesta obra é o que Orlandi (2004) chama de “antecipação”, nela os sujeitos antecipam o seu ouvinte e experimentam seu lugar de sentido através de formações imaginárias que são preenchidas pela ideologia social. A autora nos mostra que o imaginário urbano funciona sob esta dinâmica e é saturado de imagens já significadas, silenciando os sentidos do real da cidade, do cidadão concreto (ibidem). Na cena narrada pelo grafite, os turistas que fotografam o artista interpretam a mensagem “não alimente o artista” de modo habitual, automático, preenchendo o sentido da cena dentro do contexto da normatividade, deixando de ouvir/ver a desordem contida no real da cena, do cidadão concreto, do artista que está a sua frente. Dessa forma, a crítica está no fato de o discurso da ordem, contido na frase, ter silenciado a desordem que reside na substituição do animal pelo artista sem prejuízo de interpretação pelos que participam da cena. É possível relacionar as significações deste grafite à noção de cidadania esvaziada, já que o abafamento do real da cidade impediu a negociação de sentido e, por conseguinte, o exercício da cidadania. Porém, também podemos relacionar este mecanismo de “antecipação” de que fala Orlandi (2004) à mediação intelectual de Simmel, uma vez que esta se relaciona à indiferença, dinâmica que contribui para o silenciamento do real da cidade. O terceiro grafite abordado chamamos de “Não consumir é o mais poderoso protesto” (figura 3).

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Figura 3: “Não consumir é o mais poderoso protesto”. Fonte: fotografia de grafite no “Beco do Batman” – Vila Madalena – SP elaborada pela autora

Nesta obra observamos o dizer “não consumir é o mais poderoso protesto” escrito em amarelo sobre um fundo marrom. O contraste entre as cores mantém o olhar atento para a grafia, que dialoga apenas com o fundo escuro e sóbrio do qual faz parte, mas sem dialogar com o colorido e as figuras que estão em outras partes do muro. A frase se relaciona a uma rede de sentidos que repousam sobre o aspecto negativo da ambiguidade do capitalismo. Como vimos anteriormente, esta ambiguidade levanta a questão do capitalismo como apoio de uma lógica da exploração social por meio do dinheiro e do trabalho. Contudo, como reforçamos naquele momento, entendemos o consumo como uma prática social inexoravelmente humana e, portanto, lugar de negociação entre sujeito e o mundo. Esta negociação é exemplificada pelo próprio grafite que agora analisamos, visto que ele foi concretizado mediante o consumo de tinta, muro e discurso. Consumo, contudo, que não é reconhecido em seu discurso. É coerente ressaltar que a formação discursiva da obra interpela a ideologia socialista que se posiciona em oposição ao capitalismo, enxergando o consumo como

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um inimigo que se deve combater e que, uma vez vencido, livra os indivíduos da condição de exploração. Sabemos que este discurso sofreu alteração ao longo da história, principalmente após a experiência soviética, o que esvaziou grande parte de sua conotação revolucionária, contudo, ele faz parte da memória e do imaginário que estão presentes no interdiscurso dos indivíduos e que tem efeito em suas significações. A obra, ao controlar a polissemia do termo “consumo”, não abre espaço para a negociação de seu sentido em relação aos leitores, mantendo o termo rigorosamente dentro do funcionamento da ideologia socialista ao qual se relaciona. A noção de cidadania aqui se relaciona a uma visão idealizada e romântica, a ser conquistada mediante a negação do consumo, o que para nós é impossível, já que não há como não vestir-se, alimentar-se, apropriar-se da linguagem, etc. Para nós, e com base em García Canclini (2010), consumir significa participar da vida social, disputar pelo uso e apropriação do que a sociedade produziu coletivamente ao longo da história.

Considerações finais Pudemos observar que os grafites analisados sugerem sentidos de um viver urbano controverso, permeado por diferentes discursos que, como nos mostrou Orlandi (2004), atestam a divergência do comum. Contudo, percebemos que as formações discursivas das obras falam de violência e segregação, como é o caso da apreensão policial em “1+1=3” e a do distanciamento/indiferença em “não alimente o artista”, mas falam também sobre resistência e transformação, como é o caso em “não consumir é o maior protesto”. A relação que fazemos entre o que foi analisado nos grafites e “ser cidadão” se dá na medida em que entendemos o discurso sobre o consenso como um discurso ilusório, que silencia o conflito e gera violência, reduzindo as possibilidades de historicização e de novos sentidos. Concluímos, portanto, que as noções de cidadania plena e cidadania esvaziada (CERQUIER-MANZINI, 2010) são polarizações que

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pouco contribuem para a mudança, visto que estão orientadas por um discurso de ordem e concordância como é o discurso jurídico. Concluímos também que as obras analisadas reclamam o lugar da cidadania, em uma grande metrópole como é a cidade de São Paulo, sobre as contradições. Entendendo que ter liberdade de expressão é se integrar a um cenário de disputas sobre a produção e circulação de discursos; que ser igual perante a lei é participar de uma cena composta por diferentes elementos relacionados à identidade e ao pertencimento; que reivindicar o direito à cidade é se inscrever nos jogos que sustentam a memória e o imaginário de um mundo possível. Enxergamos o consumo como uma porta de entrada para a aceitação desta realidade divergente, um caminho para a apropriação e uso dos objetos materiais e simbólicos que podemos utilizar em nosso viver social cotidiano (GARCIA CANCLINI, 2010). A arte urbana, por sua vez, funciona a partir de uma formação discursiva que trabalha o “lugar-comum” pelo exagero, gerando o trocadilho necessário para romper com a ordem e irromper novos sentidos. Ao fazê-lo atravessa o efeito de objetividade, interrompe a “racionalidade monetária” (SIMMEL apud FREITAS, 2007), reclama sentidos, novos sentidos, novas formas de cidadania, reais na língua e reais na cidade (ORLANDI, 2004).

Referências BORGES, P. et al. Formas sensíveis e mobilidade nas cidades divididas. In: PAIVA, Raquel e TUZZO, Antoniaci Simone. Comunidade, mídia e cidade: possibilidades comunitárias na cidade hoje. Goiânia: Cirgráfica, 2014, p.219- 252. TONDATO, M. Práticas cidadãs: entre o consumo e o pertencimento social e geográfico. In: PAIVA, Raquel e TUZZO, Antoniaci Simone. Comunidade, mídia e cidade: possibilidades comunitárias na cidade hoje. Goiânia: Cirgráfica, 2014, p.195-215. PAIVA, R. Expressões do comum na cidade: a ocupação pela mobilidade. In: PAIVA, Raquel e TUZZO, Antoniaci Simone. Comunidade, mídia e cidade: possibilidades comunitárias na cidade hoje. Goiânia: Cirgráfica, 2014, p.59-69. CERQUIER-MANZINI, Lourdes Maria. O que é cidadania? São Paulo: Brasiliense, 2010.

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FREITAS, Ricardo Ferreira. Simmel e a cidade moderna: uma contribuição aos estudos da comunicação e do consumo. Comunicação Mídia e Consumo.Vol. 4, no. 10, pp. 41-53. Jul/2007. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e Cidadãos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. ORLANDI, Eni P. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004. __________ Análise de Discurso: Princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003. AUGÉ, Marc. Elogio de la bicicleta. Barcelona: Gedisa, 2009.

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