A ciência da certeza

Share Embed


Descrição do Produto

23/12/2014

A ciência da certeza - Revista de História

A ciência da certeza Estimulada pelos positivistas, entusiastas de censos e estatísticas, a República custou a acertar na complicada tarefa de mensurar o país por meio dos números Nelson de Castro Senra e Alexandre de Paiva Rio Camargo 9/9/2007

Quantos somos, como somos, quem somos, o que produzimos? Para responder a estas perguntas, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) pôs nas ruas, em abril, um exército de mais de 70 mil recenseadores. Eles realizaram o censo agropecuário e a contagem da população nos municípios. O resultado da contagem deverá ser divulgado neste 31 de agosto, um recorde histórico. Pesquisas modernas como estas são caríssimas. Os censos de 2007 custarão nada menos que R$ 560 milhões aos cofres públicos. Tais pesquisas são elaboradas a partir de rigorosos critérios técnico-científicos e ancoradas em ricas metodologias, aplicadas por um corpo estável de técnicos especializados. Desde a criação do IBGE, em 1936, a sociedade brasileira se organiza cada vez mais pelo “governo dos números”. Mas as primeiras tentativas de se conhecer melhor o Brasil pela pesquisa censitária começaram bem antes. Foi o Império que realizou, em 1872, o primeiro censo do país. Proclamada a República em 1889, o interesse pelas estatísticas aumentou consideravelmente. O momento era outro, o regime também. Tornar cidadãos os outrora súditos e ex-escravos era uma tarefa que requeria novos critérios de hierarquização social. Por outro lado, na República Velha (1889-1930), as estatísticas passaram a servir à ânsia dos novos governantes pela legitimação. Estes tentariam, com todas as forças, provar que o Brasil ia melhor no novo regime do que no tempo do Império. Com esse propósito, a estatística emergiu como um importante instrumento de construção da República. Seus números contribuíam para elaborar a imagem de um novo começo e de uma nova identidade, com um projeto próprio e promissor – um projeto civilizador, pelo qual o país debutaria no concerto das nações. Exibir o controle numérico sobre uma vasta população de cidadãos, computando sua exuberância, sua composição e seus movimentos, era atributo reservado, na época, apenas ao seleto círculo das potências, em especial França, Alemanha e Estados Unidos. No tempo da República Velha, exemplos da grandeza nacional eram os pavilhões de estatística, montados nas exposições nacionais e universais. Pareciam feitos para apresentar uma promessa de nação, o Brasil, diante do mundo civilizado. Um destaque nesse campo foi a exposição comemorativa do centenário da Independência, realizada em 1922. Na ocasião, foi construído um edifício inteiro para representar a nação em números e divulgar com ênfase os resultados do censo geral de 1920. O nome de batismo do prédio não poderia ser mais emblemático: Pavilhão da Ciência da Certeza. A estatística era, sem dúvida, uma ciência “mais certa” que as outras, por ser mais fiel ao paradigma das ciências naturais. Por meio da matemática, o país acreditava reencontrar os trilhos do progresso. As incinações positivistas de certos governantes republicanos favoreceram o desenvolvimento da atividade estatística no Brasil. No ideário positivista, ela consagrava a mensuração do mundo social, no que tornavam próximas e presentes realidades distantes e até então desconhecidas do Estado. As estatísticas colocam toda a população, a sociedade, a economia e o território – na forma de tabelas, gráficos e cartogramas – sobre as mesas daqueles a quem cabe tomar as decisões mais importantes. Este enlace entre as estatísticas e o “governo científico” do positivismo aparece, por exemplo, nas resoluções do plano urbanístico e do reordenamento espacial empreendidas pela reforma do prefeito Pereira Passos na capital federal, como também nas categorias de classificação “defeitos físicos” e “raça”, que informavam os estudos higienistas sobre a localização, prevenção e erradicação das moléstias nas principais capitais do país. A Constituição de 1891 determinou a realização de censos regulares, em intervalos de dez anos. Era ainda viva a lembrança o primeiro recenseamento da República, ocorrido em janeiro de 1890, tão próximo da proclamação. O responsável pela iniciativa foi um positivista de estirpe, o ministro dos Negócios do Interior, Aristides Lobo (1838-1896). Para estar à frente do empreendimento, Lobo nomeou Timóteo da Costa (1855-1934), também adepto do positivismo, engenheiro e professor da famosa Escola Politécnica da Praia Vermelha, bastião intelectual dos militantes daquela doutrina. O censo apresentou alguns problemas sérios, http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/a-ciencia-da-certeza

1/4

23/12/2014

A ciência da certeza - Revista de História

como a demora na tabulação dos resultados e sua precária divulgação. Para se ter uma idéia, até 1895 só eram conhecidos os dados relativos ao Distrito Federal e à comarca de Palmas, no Paraná, região envolvida em conflito de divisas com a Argentina, cuja solução dependia dos números do censo. Para cumprir a lei, o governo Campos Salles faz executar um novo censo em 31 de dezembro de 1900. Convenhamos que visita de recenseador e festas de fim de ano são duas coisas que não combinam. Talvez o seu coordenador, Francisco Mendes da Rocha (1861-1949), apostasse na idéia de associar a virada do século à nova era em que o país ingressaria, a partir de um diagnóstico matematicamente preciso. No entanto, os resultados relativos ao Distrito Federal frustraram as mais modestas expectativas. Os números referentes ao tamanho da população, por exemplo, foram considerados “muito baixos”. Mendes da Rocha defendeu sua obra da única maneira que lhe convinha: desqualificando o censo precedente – marco fundador da estatística republicana. Alegou que nele se praticara “um desordenado acréscimo” da população, por terem somado a esta os imigrantes que aportaram à cidade na época. Este fluxo, segundo ele, era circunstancial, motivado pelo “encilhamento” – a fracassada tentativa de estimular o crescimento econômico feita pelo ministro da Fazenda, Rui Barbosa, em 1890, durante o governo de Deodoro da Fonseca, e que provocou inflação, falências e uma especulação financeira sem precedentes. Na opinião de Mendes da Rocha, a população da capital diminuíra porque os imigrantes haviam partido da capital federal assim que o “brilho ilusório do papel-moeda começou a empanar-se”. Tal argumento fazia pasmar qualquer cidadão médio, familiarizado com a copiosa população de imigrantes residentes nos infernos sociais das casas de cômodos e das grandes habitações coletivas do Rio de Janeiro. Mendes da Rocha agravava ainda mais, assim, sua já delicada situação de descrédito, pois seu censo enfocava uma década em que a cidade mais acolhera imigrantes. Os resultados do censo de 1900 não só contrariavam a tão propalada imagem de civilização e progresso, como expunham uma grave ferida republicana. Eles eram a prova cabal das dificuldades encontradas pelos novos governantes para instituir o registro civil, que fora laicizado com a queda do Império. Parte da população ainda se recusava abertamente – às vezes em levantes explosivos, como o da Revolta de Canudos (1896-1897) – a aceitar a separação entre Igreja e Estado, demonizando as obrigações de registro cartorial e ainda insistindo em registrar-se nas paróquias. Por isso, para o governo seria difícil, por muito tempo, saber com exatidão os números dos nascimentos, falecimentos e casamentos. Atendendo às críticas, o governo federal nomeou uma comissão de avaliação, que decidiu pela “insuficiência do algarismo obtido” e julgou oportuno desconsiderar os resultados do censo. Admitir e oficializar o insucesso dos números de 1900 parecia ser a única maneira de salvar a credibilidade da “ciência da certeza”, que àquela altura, por sinal, não gozava de nenhuma simpatia por parte do povo. Os primeiros governos da República viveram em permanente crise. De Deodoro da Fonseca a Rodrigues Alves, viram-se envolvidos em sucessivas revoltas e manifestações de massa. A tendência do povo era ver a coleta de informações, fundamental ao recenseamento, como uma violação autoritária do espaço privado, tal qual a campanha da vacina obrigatória e o “bota-abaixo” de Pereira Passos. Desde o Império, as camadas mais pobres da sociedade associavam as tentativas de recenseamento ao reforço do controle arbitrário do Estado sobre elas. Equiparavam o censo ao aumento de impostos, ao recrutamento militar obrigatório e até mesmo à ameaça de reescravização dos libertos. O censo de 1900 escancarou o que se pretendia por bem ocultar: o uso político das estatísticas. A imprensa da época nos mostra um momento em que isso se evidenciou de forma flagrante. Trata-se da famosa polêmica entre o médico demografista Aureliano Gonçalves Portugal (1851-1924), republicano, diretor da Inspetoria Geral de Higiene, e o também médico Hilário de Gouveia (1843-1923), oftalmologista de renome mundial, catedrático da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e cunhado de Joaquim Nabuco. Membros da Academia Nacional de Medicina, os dois digladiaram nas páginas do Jornal do Commercio sobre os índices de mortalidade por tuberculose, cuja redução Portugal advogava e Hilário contestava. Atacado em seus domínios, Portugal passou a destilar ácida ironia contra o, segundo ele, “monarquista sedicioso” que lhe fazia oposição. Ele reconhecia que o censo anterior, de 1890, apresentava problemas técnicos, mas não hesitou em atribuí-los aos “boatos terroristas que se espalharam” na ocasião, inflados “pela surda aversão de alguns correligionários do Dr. Hilário de Gouveia ao regime dominante”. O discurso anti-republicano teria contribuído, na sua opinião, para que “parte considerável da população se furtasse ao recenseamento”, daí os maus resultados. Outros polemistas entraram na querela, valendo-se de cálculos, diagramas e tabelas que reforçavam ou enfraqueciam os pontos de vista mais diversos. As controvérsias acabaram por exercer uma função pedagógica junto à população. Deram vida aos números http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/a-ciencia-da-certeza

2/4

23/12/2014

A ciência da certeza - Revista de História

abstratos e complicados dos censos e formaram um público que, instigado pelas trocas de acusações e afrontas pessoais, ficava um pouco mais íntimo da áspera linguagem estatística. O censo do Distrito Federal, de 1906, foi realizado para marcar a gestão modernizadora do prefeito Pereira Passos na capital da República. Encomendado já nos primeiros meses de seu mandato, em 1903, deveria inspirar a remodelagem do espaço urbano carioca, constituindo assim um marco na utilização administrativa das estatísticas entre nós. Tão zeloso que era do projeto, Pereira Passos fez questão de supervisioná-lo pessoalmente, instalando o organizador do censo, Aureliano Portugal, na ante-sala do seu gabinete. Queria ter conhecimento de tudo, desde as nomeações dos recenseadores até a divulgação final dos resultados. No entanto, o estado de sítio decretado por causa da Revolta da Vacina, em 1904, terminou por adiar os planos do prefeito. Na dimensão federal, a fragilidade técnica dos censos iniciais da República refletia a instabilidade do regime. Como um instrumento de governo, a atividade estatística se ressentia da debilidade da federação para se impor aos estados. O que não funcionava a contento no censo tinha razões estruturais profundas e não podia resolver-se à força dos decretos e outras resoluções, mesmo que proviessem do mais alto escalão da República. Enquanto o governo federal não fizesse cumprir a obrigação dos estados de facilitar o acesso aos seus registros administrativos (alfândegas, hospitais, escolas, delegacias, tribunais) nos prazos estipulados para as operações censitárias, o país não conheceria estatísticas de qualidade. Novos ventos não soprariam antes de 1920, quando se fez a terceira contagem da República. As comemorações do centenário da Independência, em 1922, exigiam a sua perfeita execução. Sociedade, imprensa, escolas superiores, intelectuais, políticos e até religiosos vieram a público esclarecer a importância da pesquisa, e a população abriu suas portas aos recenseadores. Além do sucesso, pioneirismo, pois foi este censo o primeiro a fazer um levantamento econômico e um agropecuário do Brasil, ao lado do demográfico. Não há como deixar de lembrar a figura de seu idealizador, José Luiz Sayão de Bulhões Carvalho (18661940) – o fundador da estatística brasileira. Aproveitando o momento favorável, ele conseguiu quebrar as resistências regionais, instalando em cada estado um delegado do censo, que era o responsável direto pela recuperação dos registros administrativos nos órgãos estaduais. A coroação dos esforços de Bulhões Carvalho não tardaria: o “censo do centenário” foi o carro-chefe do exuberante Pavilhão da Ciência da Certeza na exposição de 1922. Coube a ele também a reapuração quase integral do polêmico censo de 1900 (desconhecida da absoluta maioria dos pesquisadores e já digitalizada pelo IBGE). Uma surpresa: os números de 1906 colhidos pelo censo municipal de Pereira Passos apontaram uma população de 811.443 habitantes na capital federal, contra a estimativa de 746.749 habitantes na antiga sinopse de 1900. Tais índices revelam que, pelo menos para o Rio de Janeiro, não houve grande erro no censo de 1900 – e nem que ele tenha sido especialmente desastroso. De qualquer modo, tudo ainda era muito frágil no quadro administrativo da República Velha. A realização dos censos ficava sempre dependendo de um estado de pacificação social e de acordos políticos entre as esferas de governo. Não fomos recenseados em 1910, quando a verba censitária se esgotou com a contratação de um enorme quadro (8.433 pessoas!) sem qualquer cronograma de trabalho, num deslavado caso de empreguismo. O censo foi suspenso por decreto do presidente Hermes da Fonseca, que feriu assim preceito da Constituição de 1891. Também não seríamos contados em 1930, por força das “agitações” da revolução que levou Getulio Vargas ao poder. Sem institucionalização, sem autonomia de ação, a estatística não vingaria como verdadeiro instrumento de planejamento e de formulação das políticas públicas até a criação do IBGE. A partir daí é que começou a funcionar a prometida regularidade censitária no Brasil. Só com o surgimento dessa instituição passaria a haver uma produção contínua e sistemática de estatísticas capazes de apontar, com o respaldo das ciências, as realidades complexas do país. Só assim os governos podem, pela ação política, transformá-las. NELSON DE CASTRO SENRA É PROFESSOR DA ESCOLA NACIONAL DE CIÊNCIAS ESTATÍSTICAS, PESQUISADOR DO IBGE E COORDENADOR DA COLEÇÃO HISTÓRIA DAS ESTATÍSTICAS BRASILEIRAS: 1822-2002 (IBGE, 2006 E 2007). ALEXANDRE DE PAIVA RIO CAMARGO É MESTRANDO EM HISTÓRIA SOCIAL PELA UFF E CO-AUTOR DE HISTÓRIA DAS ESTATÍSTICAS BRASILEIRAS: 1822-2002 (IBGE,2006 E 2007).

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/a-ciencia-da-certeza

3/4

23/12/2014

A ciência da certeza - Revista de História

http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/a-ciencia-da-certeza

4/4

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.