A Circulação de Condiçõens, Riscos e Contratos de Arrematações na Mariana Setecentista (1745-1800)

July 25, 2017 | Autor: Monica Lage | Categoria: História Da Arquitetura E Do Urbanismo
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A circulação de Condiçõens, Riscos e Contratos de Arrematações na Mariana Setecentista - (1745 – 1800) Mônica Maria Lopes Lage1

O ano de 1745 foi um marco para a cidade de Mariana. A historiografia mineira revela que importantes acontecimentos contribuíram para que mudanças político- administrativas, econômicas, sociais e territoriais acontecessem. A escolha para sediar o Bispado e em consequência disso a elevação da Vila de Ribeirão do Carmo na primeira cidade da capitania do ouro, posicionou Mariana como o centro religioso das Minas e fomentou uma série de obras voltadas ao melhoramento da malha urbana. A recente cidade ainda se configurava em um espaço histórico em formação quando essas mudanças ocorreram, fato que levou a Coroa Portuguesa a solicitar a delineação de um plano urbanístico para Mariana, o qual foi atribuído ao engenheiro militar José Fernandes Pinto Alpoim. Este engenheiro contribuiu de modo expressivo com a história da arquitetura no Brasil Colonial. Participou da construção de vários monumentos espalhados pelo país, atuou nas obras da Catedral da Sé de Salvador, na Casa dos Governadores em Ouro Preto, no Convento de São Bento e na construção do Palácio dos Governadores, estes últimos no Rio de Janeiro, além de ter sido professor na Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, inaugurada em 1792 na mesma cidade. Mariana, como sede do Bispado, precisava passar por um processo de reestruturação urbana. Por esse motivo, no plano urbanístico de Alpoim deveriam constar ruas alargadas de forma que resolvessem os problemas das constantes enchentes que a cidade sofria, prédios administrativos que atendessem à complexa estrutura de controle e fiscalização da Coroa, além de uma catedral e de espaço para a construção de templos religiosos onde a população pudesse exercer sua fé, em um tempo no qual as incertezas relativas à vida e à morte perpassavam a todos. Desse modo, a arquitetura obteve um grande destaque em nome de uma organização espacial. Houve demanda por trabalhadores dos mais variados ofícios, como pedreiros, carpinteiros, entalhadores, escultores e pintores. De suma importância foi a participação dos mestres portugueses que trabalharam na cidade. Esses homens tornaram-se importantes

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Doutoranda no programa de pós-graduação em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais.

agentes produtivos de um período em que a arte mineira alcançou seu maior estágio de expressividade. Boa parte dos oficiais mecânicos portugueses que vieram para Mariana tornou-se responsável pela arrematação das obras de maior vulto da cidade, e, atrelada a eles, estava uma quantidade expressiva de trabalhadores. A historiadora Denise Maria Ribeiro Tedeschi fez um levantamento de todas as obras públicas realizadas em Mariana, no período de 1745 a 1800. A autora baseou-se nos processos de arrematações que se encontram nos arquivos da Câmara da cidade. Tedeschi mostrou que foram realizadas em torno de duzentas e quarenta obras públicas em Mariana e, para cada obra a ser construída, exigiam-se as Condiçõens, o Risco e o Contrato estabelecido entre o comitente e o arrematante. [...] nas duzentas e quarenta obras públicas arrematadas (canos, chafarizes, calçadas, prédios, pontes, caminhos, entre outras, atuaram 85 oficiais diferentes. Entretanto, um conjunto de 95 obras (35%) se concentrou nas mãos de um grupo restrito de sete oficiais mecânicos construtores reinóis2.

Os dados apresentados por Tedeschi são relevantes. Sobretudo, vale ressaltar que para o esclarecimento a que se propõe este texto, que é o de discorrer sobre a circulação de Condiçõens, Riscos e Contratos de Arrematações na Mariana setecentista, algumas considerações baseadas nesses dados serão pertinentes. É preciso lembrar que os principais comitentes das construções religiosas eram as associações religiosas de leigos, e não o Senado da Câmara. E que para cada igreja, capela, casa episcopal ou seminário construído também se exigiam os mesmos documentos das obras públicas, ou seja, as Condiçõens, o Risco e o Contrato de Arrematação. Portanto, podemos inferir que o número desses documentos que circularam por Mariana foi superior aos números que constam nos arquivos da Câmara, pois neles não estão contabilizados os documentos que circulavam via obras religiosas. Vale ressaltar ainda que nem todos os documentos relativos às obras construídas em Mariana na segunda metade do século XVIII foram preservados, o que inviabiliza a precisão sobre a quantidade desses documentos que circularam pela cidade. Os procedimentos que conduziam as obras contratadas pelo Senado da Câmara só se diferenciavam do processo de encomenda de obras das Associações Religiosas na medida em que as decisões via Câmara eram tomadas pelos vereadores em audiência. Já as decisões por meio de irmandades eram tomadas pelas respectivas mesas administrativas. A Câmara anunciava a obra em praça pública e as irmandades não procediam dessa maneira. 2

TEDESCHI, Denise Maria Ribeiro. Águas urbanas: as formas de apropriação das águas em Mariana/MG (1745-1798) Campinas, São Paulo. 2011. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. p. 105.

Segundo as Ordenações do Reino, toda obra realizada na Colônia deveria obedecer aos trâmites da arrematação, por meio dos quais eram estabelecidas as Condiçõens para a execução da obra, a delineação do Risco e o Contrato firmado entre o comitente e o arrematante, chamado de Auto de Arrematação. O procedimento era realizado da seguinte forma: primeiramente era estabelecido o “acórdão”. Os acórdãos tratavam dos mais variados temas concernentes à vida da localidade, tramitação de pessoas nas ruas, regulamentação do comércio, higienização urbana, como também a necessidade de obras públicas ou reparo das existentes. Em audiência, que geralmente acontecia na sala principal da Câmara e que era presidida por um juiz (ordinário ou de fora), os vereadores reunidos acordavam sobre as Condiçõens ou os Apontamentos em que a obra deveria ser executada, e essas conclusões deveriam ser registradas nos livros da Câmara. Pela precisão técnica desse documento, acreditamos que participavam destas reuniões mestres de obras, arquitetos ou até mesmo engenheiros. As Condiçõens ou Apontamentos, como também eram chamados, representam um documento de extrema relevância ao estudo da arquitetura colonial, principalmente porque leva-nos a compreender o gosto do comitente e ajuda-nos a relaciona-lo com as tendências artísticas que infiltravam em Minas Gerais. Nesse documento, como já dito, os vereadores, ou os membros das mesas das irmandades, especificavam minuciosamente todos os detalhes relativos à obra. Em um artigo publicado na revista do Iphan do ano de 1945, o Cônego Raimundo Trindade apresenta-nos as Condiçõens que foram acordadas pelo Cabido Diocesano para a execução da obra da Casa Capitular Aljube, atual Museu Arquidiocesano de Mariana. O documento é composto por trinta cláusulas e oferece informações sobre como deveriam ser lançadas as bases do edifício, trata acerca dos detalhes sobre o levantamento das paredes, do assentamento das portas e janelas, especifica todos os materiais utilizados na obra, oferece informações sobre acabamento de escadas, óculos, sacadas, pilares e cimalhas. Discorre sobre o modelo do telhado e o tipo do madeiramento empregado. Especifica o assentamento do forro e segue tratando das formas de pagamento do arrematante e suas obrigações frente ao empreendimento. O documento conclui determinando prazos de entrega e data para a louvação ou vistoria. De acordo com esse documento, deveria ser assentado na fachada do prédio um óculo. “Fará mais o óculo para dar luz com grades de ferro na forma do risco e este será assentado

em altura suficiente e será fingido e metido em cal.”3 Entretanto, esse óculo não consta na fachada do edifício, o que comprova que nem sempre se obedecia às especificações estabelecidas pelos documentos. Ainda nessas Condiçõens, especifica-se que o modelo das janelas empregadas na parte superior do prédio deveria aproximar-se do modelo que, mais tarde, Afonso Ávila chamou de janela rasgada por inteiro,4 que corresponde àquela que se abre até o nível do pavimento, dando frente a uma sacada ou um guarda corpo entalado. Já o modelo das janelas da parte inferior do prédio aproxima-se do modelo almofadado que também foi empregado nas portas. A determinação explícita no documento pelo uso da cantaria nos cunhais, molduras, ombreiras e vergas que estavam em alta no período colonial comprova que os comitentes estavam familiarizados com as tendências arquitetônicas do período. Na ornamentação empregada, podemos identificar os elementos do barroco e do rococó. Sabemos que era nos tratados de arquitetura que modelos de portas, janelas, óculo e sacadas eram especificados. Esse fato sugere a circulação desses documentos por Mariana.

Casa Capitular Aljube. Atual Museu Arquidiocesano de Mariana – Fonte: Arquivo Pessoal

Uma leitura apurada das Condiçõens que eram acordadas para a execução das obras permite uma análise crítica dos edifícios e conduz ao conhecimento dos princípios que vigoravam na cultura arquitetônica da época. Nas palavras de André Guilherme Dornelles

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TRINDADE, Conego Raimundo. A Casa Capitular de Mariana. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN - Rio de Janeiro 1945. 4 ÁVILA. Afonso. Barroco Mineiro: Glossário de arquitetura e ornamentação. 3 ed. Belo Horizonte: FJP, CEHC, Mineiriana , 1996.p. 56.

Dangelo “essa fonte é primordial para se compreender a qualidade da produção da arquitetura setecentista mineira na segunda metade do século XVIII”.5 Decididas as Condiçõens, a próxima etapa consistia na contratação do responsável pelo risco e, nas minas de ouro, desenvolveu-se uma cultura na qual qualquer pessoa que demonstrasse habilidade com os desenhos podia traçá-lo. Conforme corroboram as palavras de Germain Bazin: [...] os riscos eram propostos por qualquer pessoa que tivesse adquirido conhecimento de arquitetura, quer pela prática, ou com o exercício de uma atividade ligada a construção, quer intelectualmente, quer tecnicamente pela competência de engenheiro. Em Minas Gerais, vemos os riscos de arquitetura ou de talha em madeira serem fornecidos por pedreiros, carpinteiros, entalhadores, pintores, padres e às vezes, elaborados por uma comissão.6

A palavra “risco”, de acordo com o dicionário português e latino do Padre Raphael Bluteau publicado em 1712 e 1721, designa: Termo de pintor, o primeiro risco que faz o pintor com o barro sobre o pano, cõsta de perfis e linhas e serve para ver a forma da ideia, os pintores lhe chamam de delineação. [...] Hum princípio de pintura só com perfis e linhas, sem cores, sem sombras.7

Esse conceito era utilizado tanto para demonstrar o que faz o pintor, quanto o que executa o arquiteto. Porém, foi no Renascimento que as coisas mudaram. A introdução do conceito de lineamenta por Alberti ultrapassou os limites de uma tradução mecânica de desenho como simples representação gráfica. Lineamenta é uma palavra de origem latina que significa “linhas geométricas”. “O conceito de lineamenta de Alberti diz respeito a um tipo de desenho prévio, composto somente por linhas geométricas, construídas com régua e compasso, sem o emprego de cores, luzes e sombras.8” A introdução desse conceito trouxe ao risco do arquiteto o status de intelectualidade, materializado em modelos específicos que dignificavam a arquitetura.

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DANGELO, André Guilherme Dornelas. A cultura Arquitetônica em Minas Gerais e seus antecedentes em Portugal e na Europa: Arquitetos, mestres-de-obras e construtores e o trânsito de cultura na produção da arquitetura religiosa nas Minas Gerais setecentistas. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2006. p. 331. 6 BAZIN, Germain. A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Record. 1983. p. 43. 7 BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Português e latino: áulico, anatômico, architectonico. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. 8v. 8 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnios: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011. p. 40.

Os vocábulos debuxo, pimtura, risco e traça sofreram, ao logo do tempo, algumas alterações semânticas, porém, Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno9 assegura que em Portugal, a partir do XV e XVI, esses termos já eram usados para designar o que hoje chamamos de representação gráfica, a autora ainda afirma que o vocábulo “projeto” só aparece mais tarde, em fins do século XVII. Durante os séculos XVI, XVII e meados do XVIII foram os engenheiros militares os responsáveis pelos riscos arquitetônicos e pelos planos urbanísticos das cidades coloniais. Cabia a eles a delineação das praças, palácios, prédios públicos e arruamentos. Além de levantarem os orçamentos das obras, faziam as discriminações, as listagens e calculavam a quantidade e o preço dos materiais empregados. A maioria desses profissionais era composta por oficiais do exército português e estudavam na escola de Moços Fidalgos do Paço da Ribeira, instituição voltada ao ensino de fortificação, desenho e artilharia. Esses homens eram o braço direito da Coroa na América. Porém, na segunda metade do século XVIII, houve grande desenvolvimento urbanístico e arquitetônico das vilas e cidades coloniais e, por sua vez, o reduzido número desses profissionais na América Portuguesa acabou contribuindo para que artífices e oficiais mecânicos passassem a delinear os riscos das obras. Os riscos tinham importância primordial e serviam como uma espécie de guia ao construtor e também aos louvados que, após a obra concluída, confrontavam-na com os elementos contidos no risco. Germain Bazin, em seu estudo sobre A Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, apresenta um levantamento dos preços cobrados por alguns artífices para a delineação de riscos. As informações oferecidas por Bazin fundamentam-se nos livros de despesa e receita das Ordens Terceiras para as quais os artífices trabalharam. Para o autor, os honorários pagos aos mestres de riscos eram bem pequenos, uma vez que a sociedade valorizava mais o trabalho manual que o intelectual.

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BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnios: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011

Risco Um templo inteiro

Valor

Serviço

De 30 a 60 oitavas de ouro em

32 oitavas. Quantia paga a José



Pereira dos Santos pelo risco da Igreja de São Francisco de Assis em Mariana em 1762

Uma Capela Mor

15 oitavas de ouro em pó

Quantia paga a Aleijadinho pelo risco da Capela Mor de São José de Ouro Preto em 1772

Uma porta

14 mil reis

Quantia paga a Aleijadinho pelo risco da nova portada de São Francisco de Ouro Preto em 1771

Um altar

24 mil reis

Quantia paga a Aleijadinho pelo risco da tribuna do altar mor de São Francisco de Ouro Preto em 1778-1779

Um frontispício

10 oitavas de ouro em pó

Quantia paga a Francisco de Araújo pelo risco do frontispício do Rosário de Ouro Preto em 1784

Um altar mor

06 mil reis

Quantia paga a Manuel da Costa Ataíde pelo risco do altar mor do Carmo de Ouro Preto em 1813

Fonte: BAZIN, Germain. Arquitetura Religiosa Barroca no Brasil, p. 46.

Mapear os riscos que circularam por Mariana no período de 1745 a 1800 é uma tarefa demasiadamente árdua, pois esbarra em uma sequência de dificuldades. A primeira deve-se ao desaparecimento desses documentos. Acredita-se que os riscos eram entregues aos arrematantes logo após a assinatura do contrato, permanecendo com estes até o final da obra, pois dentre as exigências firmadas estava a recomendação de executarem a obra conforme as Condiçõens e o Risco. Outra dificuldade consiste no fato de que nem sempre esses documentos eram precedidos de assinatura. As autorias têm sido reveladas por meio do cruzamento de fontes como testamentos, inventários, livros de receitas e despesas da Câmara, ou utilizando-se de documentos pessoais dos artífices e oficiais mecânicos. A terceira e última dificuldade é que os riscos podiam sofrer alterações ao longo das construções, e, nesse caso, eliminava-se o primeiro em detrimento dos outros. As obras tanto civis como religiosas do

período colonial se arrastavam por longos anos, e nesse percurso muitas mudanças ocorriam. A morte do arrematante e/ou o não cumprimento dos acordos, são fatores que levavam a uma segunda arrematação e nem sempre os riscos originais eram obedecidos na íntegra, sendo alterados na maioria das vezes pelos novos artífices. Ao estudar sobre a atuação do artífice José Coelho de Noronha na cidade de Mariana, Aziz José de Oliveira Pedrosa analisa uma ação civil que foi impetrada pela irmandade de São Miguel e Almas da Sé de Mariana contra o arrematante Felix Ferreira Jardim, responsável pela execução do retábulo da referida irmandade. Ao ser questionado pelo não cumprimento dos prazos e acordos contratuais, Feliz Jardim se defende alegando que o atraso na entrega da obra foi devido às modificações no risco do retábulo. O artífice explica que: Tais melhorias teriam sido propostas por novo risco feito pelo entalhador José Coelho de Noronha, neste caso, o embargante se julgava não obrigado a cumprir os prazos determinados pelo contrato, porque os acrescimentos e inovações causariam prejuízos de tempo e dinheiro.10

Como este, muitos outros exemplos sucederam em Minas Gerais. Vale lembrar a história do risco do frontispício da Igreja de São Francisco de Assis da cidade de São João del-Rei, já analisada pelos pesquisadores John Bury e Myrian Ribeiro. Os autores revelam que o risco foi traçado por Antônio Francisco Lisboa e alterado mais tarde por Lima Cerqueira. Myriam Ribeiro assegura que: O projeto elaborado por Aleijadinho em 1774 para a fachada da igreja de São Francisco de Assis de São João Del Rey, que se situa na mesma linha da evolutiva do Carmo de Ouro Preto, teria vindo a caracterizar, se executado a mais genuinamente rococó das fachadas religiosas mineiras. 11

Alguns estudos vêm revelando a presença de copistas nas Minas setecentistas. Os copistas eram homens que faziam cópias dos riscos originais. Tania Maria Teixeira Melo Freitas apresentou em sua pesquisa sobre “Joao se Souza Benavides: um benemérito na irmandade de Santo Antônio da Igreja matriz de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto” um documento que se encontra no livro I da Ordem Terceira dessa irmandade, no qual consta um pagamento feito a um desenhista que copiou o risco da referida capela. “Se despendeo com André de Souza Benavides de trasladar o risco da capela a quantia de 7$200 - sete mil cruzados e duzentos reis”.

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PEDROZA, Azis José de Oliveira. José Coelho de Noronha: artes e oficio nas Minas Gerais do século XVIII. 2012. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) - Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais – Programa de pós-graduação. Belo Horizonte. p. 36. 11 OLIVEIRA, Myriam Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil e seus antecedentes europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 221.

O perscrutamento dos riscos das obras construídas no Brasil no período colonial tem sido feito por meio de pesquisas realizadas nos arquivos do Exército Brasileiro, na Biblioteca Nacional, no Arquivo do Tombo, no Arquivo Ultramarino e no Iphan, órgão que projetou, a posteriori, várias plantas dos principais monumentos que hoje compõem o patrimônio cultural das cidades históricas brasileiras. Tais plantas têm elucidado as pesquisas sobre a arquitetura colonial brasileira. Após a descrição das Condiçõens e da elaboração do Risco, publicava-se o edital. Em um lugar de destaque da cidade, como em uma praça, ou no pelourinho, um funcionário da Câmara anunciava o pregão e convocava a todos que manifestavam interesse para ver as Condiçõens e o Risco, que ficavam em poder do escrivão do Senado. Aquele que oferecesse os melhores preços, prazos e serviços à execução da obra a arrematava, sendo entregue a este um ramo verde como confirmação do arremate. Os oficiais mecânicos que mais arremataram obras na cidade de Mariana geralmente estavam envolvidos na teia do poder local. José Pereira Arouca, por exemplo, que é considerado o oficial mecânico que mais arrematou obras no período em tela, foi tesoureiro da Câmara e Ministro da Ordem Terceira de São Francisco de Assis. A ocupação de altos cargos sociais permitia a ele monopolizar as obras e o enquadrava numa cultura política de clientelismo. Conforme corroboram as palavras de Daniele Tedeschi. Quando atravessamos o Atlântico, constatamos na cidade de Mariana um cenário aproximado, no qual um grupo de indivíduos tratou de tecer dentro e fora de seu círculo um conjunto de estratégias e artifícios que os levou a monopolização, tanto dos contratos lícitos quanto dos contratos ilícitos.12

Definido o arrematante, firmava-se o contrato. O Auto de Arrematação era um documento jurídico e nele deveriam constar informações relativas a valores, prazos de pagamento, prazo para a execução da obra, os materiais usados, as técnicas construtivas empregadas e a forma como o arrematante deveria proceder durante a edificação da obra, além de constar o nome do fiador. O fiador era uma espécie de avalista que se comprometia a conduzir a obra na ausência do arrematante. “O fiador obrigava-se a arcar com os custos e os danos financeiros envolvidos no contrato em caso de ausência ou impedimento do arrematante, comprometendo sua pessoa e seus bens”.13 As relações estabelecidas entre 12

TEDESCHI, Denise Maria Ribeiro. Águas urbanas: as formas de apropriação das águas em Mariana/MG (1745 -1798). 2011. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas. p. 117. 13 GOMES, Fabiano da Silva. Pedra e Cal: os construtores de Vila Rica no século XVIII (1730-1800). 2007. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Belo Horizonte. p. 99.

arrematantes e fiadores expandiam-se, muitas vezes, para além do mundo dos negócios, “estendendo os vínculos para o campo do parentesco, da amizade e da solidariedade”.14 Os contratos eram registrados nos livros de arrematações e, ao contrário dos riscos originais das construções, que são documentos dificilmente encontrados, os contratos de arrematações de obras públicas da cidade de Mariana dos séculos XVIII e XIX encontram-se perfeitamente preservados nos arquivos da Câmara da cidade, localizados no ICHS (Instituo de Ciências Humanas e Sociais). Já os contratos de arrematações das obras religiosas podem ser encontrados nos livros das irmandades. Esses documentos representam importantes fontes ao estudo das negociações estabelecidas entre comitente e arrematante. Firmado o contrato, iniciava-se a obra que se arrastava, muitas vezes, por longos anos. Ao final, o arrematante solicitava a louvação, uma espécie de vistoria que servia para avaliar se a obra havia ocorrido conforme o estabelecido pelas Condiçõens e pelo Risco. O pagamento do artífice era efetuado ao longo da construção. Cada parcela paga era registrada no livro de despesas e o pagamento era em ouro em pó, cruzados e réis. Uma questão que nos chama a atenção com relação à circulação dos documentos (Condiçõens e Riscos) necessários à construção de prédios públicos, chafarizes, pontes, templos religiosos, casas episcopais, seminários e outros na cidade de Mariana, é que tais documentos possuem uma precisão técnica que somente quem possuía conhecimento específico em arquitetura poderia elaborá-los. E ainda não sabemos como esses conhecimentos eram transmitidos aos aprendizes nas Minas. O que sabemos é que esse tipo de conhecimento era ensinado por militares nas Aulas de Fortificação, Desenho e Artilharia. Ivo Porto de Menezes sugere, em seu artigo “O palácio dos Governadores de Cachoeira do Campo”, publicado na revista do Iphan do ano de 1961, a existência de um quartel nessa cidade, localizado aproximadamente a cinquenta quilômetros de Mariana. Entretanto, ainda carecemos de informações que possam elucidar o funcionamento de uma escola nesse local. A historiografia brasileira aponta que as Aulas de Fortificação, Desenho e Artilharia, nas quais se ensinava a fazer as plantas das obras, ocorreram nas cidades de Salvador (1696), Rio de Janeiro (1698-1699), São Luís do Maranhão (1699), Recife (1701) e Belém (1758). Nessas aulas, as lições teóricas e práticas eram ensinadas por um engenheiro-mor do Reino, acompanhado por um professor assistente. Nessas aulas os alunos aprendiam sobre

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Op. Cit., p. 100.

[...] aritmética, os elementos de Euclides, geometria pratica, trigonometria, fortificação, ataque e defesa das praças, uso dos instrumentos da pratica pertencentes a profissão, método de tirar as plantas e cartas topográficas com seus perfis, elevações e fachadas e modo de as desenhar, artilharia. 15

Em Minas Gerais, o ensino voltado ao exercício dos ofícios mecânicos era regulamentado pelo Senado da Câmara, que nomeava um juiz para cada ofício. Estes se encarregavam de julgar se o aprendiz estava apto ou não ao exercício da profissão. A relação entre ensino, Câmara e ofício suscitou estudos, como os de José Newton Coelho de Menezes, Fabiano Gomes da Silva, Janethe Xavier e outros. Esses estudos contribuíram para desvelar o funcionamento das oficinas e a relação dos oficiais mecânicos com as Câmaras no espaço histórico de Minas Gerais. Tais pesquisas focaram no modelo que serviu de inspiração a todas as urbes do império português, que foi a organização do trabalho artesão em Lisboa. Sobretudo, algumas indagações relacionadas ao ensino e aprendizagem dos oficiais mecânicos nas Minas Gerais se fazem necessárias. Quais disciplinas eram lecionadas nos canteiros das obras onde eram instaladas as oficinas? Qual a relação entre o aprendizado dos artífices e dos oficiais mecânicos com os tratados de arquitetura, pintura e outros que circulavam por Minas Gerais? Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno16 atesta a existência de uma Aula Prática de Arquitetura no canteiro das obras da Casa dos Governadores em Vila Rica, atual Ouro Preto. O edifício foi projetado por José Fernandes Pinto Alpoim e arrematado por Manuel Francisco Lisboa. A fonte documental utilizada pela autora é o Registro dos Fatos Notáveis, estabelecido pela Ordem Régia de vinte de julho de 1782, e realizado pelo Segundo Vereador do Senado da Câmara de Mariana, o Capitão Joaquim José da Silva, datado de 1790, no qual se registra: “Esse mestre lisboeta, pai de Aleijadinho, foi responsável pela obra e pelas lições práticas de arquitetura que interessavam a muita gente”.17 O documento comprova a existência das aulas voltadas às lições práticas de arquitetura, porém não deixa vestígios sobre quais lições eram essas. Eram os mestres que ensinavam os aprendizes a traçarem os riscos? Bastava ter habilidade com desenhos para fazêlos? Ou ainda podemos inferir que os aprendizes se deslocavam a outras regiões em busca

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BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnios: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011. p. 143. 16 BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e Desígnios: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fapesp, 2011. 17 Op. Cit 249.

desse conhecimento? Essas são questões fundamentais à compreensão do ensino e aprendizado de arquitetura e engenharia na capitania do ouro. Concluindo, inferimos que a análise dos trâmites das arrematações e da elaboração dos principais documentos que estiveram por trás das construções dos templos, prédios, chafarizes, pontes e outros monumentos históricos que hoje compõem o cenário urbano de Mariana, é, talvez, a etapa mais importante ao estudo da arquitetura colonial da cidade. Por trás da elaboração de cada documento Condiçõens, Riscos e Contratos de Arrematações está intrínseca a cultura, o modo de se fazer e pensar do homem colonial. O estudo dos procedimentos burocráticos que antecederam as construções abre possibilidades à compreensão da organização administrativa do poder local, permitindo compreender as influências artísticas que infiltraram na cidade, além de possibilitar o esclarecimento das redes de sociabilidade e o clientelismo que envolvia as obras públicas e religiosas na Mariana setecentista.

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