A coita nas cantigas de amor de Dom Dinis

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I Seminário Paranaense de Pós-Graduandos em História - i

ANAIS DO I SEMINÁRIO PARANAENSE DE PÓS-GRADUANDOS EM HISTÓRIA

Curitiba, 2015

I Seminário Paranaense de Pós-Graduandos em História - ii

ISBN: 978-85-99229-30-9

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I Seminário Paranaense de Pós-Graduandos em História Curitiba, 05 a 07 de novembro de 2014

Promoção PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA: Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Estadual de Maringá (UEM), Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Comissão científica Andréa Doré (UFPR) Cláudio Luiz Denipoti (UEPG) Davi Felix Schreiner (Unioeste) Fábio Bertonha (UEM) Francisco Cesar Ferraz (UEL) Hélio Sochodolak (Unicentro) Rosane Kaminski (UFPR) Comissão organizadora Ana Luiza Mendes Andréa Doré Carmem Lúcia Druciak Daniela Casoni Moscato Néli Teleginski Ozias Paese Neves Ernesto Sobocinski Marczal Everton Moraes Fabio Luciano Iachtechen Liz Andréa Dalfré Marcos Eduardo Meinerz Reginaldo Cerqueira Rosane Kaminski Yuri Sócrates Saleh Hichmeh Editoração Cláudio DeNipoti Daniela Casoni Moscato

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Apresentação

O I Seminário Paranaense de Pós-graduandos em História ocorreu em Curitiba, sob a Coordenação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, nos dias 5, 6 e 7 de novembro de 2014. O evento resultou da iniciativa dos programas de Pós-Graduação em História de seis instituições paranaenses: Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Estadual de Maringá (UEM), Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), e teve por objetivo promover a interação de seus professores e estudantes, assim como favorecer a produção e a discussão do conhecimento desenvolvido nessas instituições, sobretudo através de seus núcleos ou grupos de pesquisa. Dentre os trabalhos inscritos por mestrandos e doutorandos, todos referentes às suas pesquisas em andamento, foram selecionadas 70 comunicações livres. Como o evento foi proposto com o objetivo de aproximação interinstitucional e de forma abrangente, sem um eixo temático restritivo e sem seminários pré-definidos, as comunicações selecionadas foram distribuídas em diversas mesas, seguindo critérios de afinidade temática, cronológica, espacial e teórica. Como resultado, formaram-se 22 mesas com apresentações de pesquisas. No que diz respeito ao critério de afinidades temáticas, foram organizadas mesas sobre: História e Ciência; História e Gênero; História e Imprensa; História e Educação; História e Imagem; História e Artes; História e Literatura; História e Cinema; Crime e Violência; Ditadura; Migrações; Religiosidades; História do Pensamento Intelectual e da Leitura; Instituições e ordenamento social. Quanto ao critério cronológico, ocorreram duas mesas sobre História Medieval. Agrupando afinidades espaciais, realizaram-se duas mesas sobre História do Paraná. E privilegiando afinidades teóricas, foram compostas mesas sobre Historiografia e sobre Memória. Para realizar as mediações, convidamos professores das diversas instituições envolvidas que tivessem afinidade com os trabalhos apresentados nas mesas, visando estimular o debate e fornecer contribuições para as pesquisas em desenvolvimento. Participaram também como mediadores professores do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Assim, após encerrado o evento, os textos foram aprimorados a partir das críticas e sugestões feitas pelos debatedores por ocasião da realização das mesas. Apresentamos o resultado de todo o processo nestes Anais do I Seminário Paranaense de Pós-Graduandos em História, com a intenção de registrar e tornar público o debate realizado durante o evento, bem como suscitar o compromisso de sua continuidade. I Seminário Paranaense de Pós-Graduandos em História - v

O êxito do evento deveu-se ao empenho de todas as instituições envolvidas por meio de seus coordenadores de pós-graduação, professores debatedores e secretaria do PPGHIS. A organização resultou do trabalho e da criatividade dos doutorandos do PPGHIS-UFPR que integraram a Comissão Organizadora. A todos os envolvidos e aos pós-graduandos que expuseram suas pesquisas, promovendo um debate maduro e consistente sobre a produção atual da pesquisa em História realizada no Paraná, nossos sinceros agradecimentos.

Curitiba, julho de 2015.

Andréa Doré (Coordenadora do PPGHIS) Rosane Kaminski (Vice-coordenadora do PPGHIS)

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Sumário Autor(a) Amábile Sperandio Amanda Cieslak Kapp Ana Luiza Mendes Andréia Marsaro da Rosa Angélica Nobre da Luz Brayan Lee Thompson Ávila Bruno Paviani Carina Mireli da Silva Carlos Henrique Ferreira Leite Carmem Silvia da Fonseca Kummer Liblik Carmem Lúcia Druciak Caroline de Lara

Caroline Loise Dähne Clara Eliana Cuevas Claudia Ferreira de Melo Cristiana Ferreira Schilder Danile Visnieski

Autor(a)_Título Deivid Fernando Franco Evander Ruthieri da Silva

Título Página MOVIMENTOS JUVENIS DURANTE A DITADURA MILITAR 01 NO BRASIL OS TRATADOS NÁUTICOS IBÉRICOS DO SÉCULO XVI E 08 OS ANTIGOS GREGOS E ROMANOS: DIÁLOGO, GLORIFICAÇÃO E SUPERAÇÃO A COITA NAS CANTIGAS DE AMOR DE DOM DINIS 14 “QUENTES DE CACHAÇA”: FESTAS DAS CLASSES 20 POPULARES EM GUARAPUAVA POR MEIO DE ARQUIVOS CRIMINAIS, 1853-1886. FESTAS, RELIGIOSIDADE E SOCIABILIDADE: 27 IDENTIDADE E MEMÓRIA NAS FESTAS RELIGIOSAS DA COMUNIDADE DA ROÇA VELHA AS IDEIAS ACERCA DO REGIME MILITAR BRASILEIRO (1964-1985) EM NARRATIVAS DE JOVENS DO ENSINO 34 MÉDIO DE LONDRINA-PR. EDUCAÇÃO MORAL E CÍVICA NA DITADURA MILITAR BRASILEIRA: UMA TENTATIVA DE LEGITIMAR O PODER. 42 (1969-1971) MINISTÉRIO CANAÃ NO BRASIL: IRMANDADE EVANGÉLICA DE MARIA, VIDA E TRABALHO NO 50 “BOSQUE DE JESUS” EM CURITIBA – PR O PAPEL DA IMPRENSA NA SOCIEDADE LONDRINENSE: 56 O JORNAL PARANÁ-NORTE (1934 – 1953) “O CAMINHO PERCORRIDO”: ANÁLISE DO DEPOIMENTO DA HISTORIADORA ALICE PIFFER CANABRAVA 63 CHRISTINE DE PIZAN E O CAVALEIRO DO REI CHARLES V “EIS AQUI O REMÉDIO IDEAL!”: NACIONALISMO E EDUCAÇÃO SANITÁRIA NAS PUBLICIDADES DOS ALMANAQUES DE FARMÁCIA (1942 – 1945) A IMPRENSA PONTA-GROSSENSE NOS ESFORÇOS DE GUERRA: OS DISCURSOS DO DIÁRIO DOS CAMPOS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL CHARLES CHAN VERSUS SPENCER HOLMES: VONTADE INDICIÁRIA, CRIMINALIDADE E HOMOSSEXUALIDADE EM ASSUNÇÃO, 1959 ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL: MEMÓRIAS E IDENTIDADES TRANSFORMAÇÕES URBANAS E CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA DA PRAÇA BARÃO DO RIO BRANCO (1920-1970) OS CRAVOS E A ROSA: CLUBE OPERÁRIO E GRÊMIO MAGNÓLIA - INTERDEPENDÊNCIA E TENSÕES NO FAZER-SE DE UMA NOVA CLASSE Página “O BRASIL É O PAÍS DO FUTURO”: AS REPRESENTAÇÕES DO PÓS-DITADURA NAS CANÇÕES DE RENATO RUSSO (1978-1996) FICÇÕES MONSTRUOSAS, NARRATIVAS DEGENERADAS:

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Fabio Luciano Iachtechen Inês Valéria Antoczecen Jorge Luiz Zaluski Julio Cesar Braga

TRAJETÓRIA INTELECTUAL E ESCRITA LITERÁRIA DE BRAM STOKER (1847-1912) TEMPO, DETERMINISMO E LIVRE-ARBÍTRIO EM H. G. WELLS FRONTEIRAS ÉTNICAS ENTRE DESCENDENTES DE POLONESES E UCRANIANOS EM MALLET/ PR AS MENINAS IRÃO CRESCER: UMA EDUCAÇÃO PARA O SER MULHER E SEUS CUIDADOS COM O CORPO. OS PROCESSOS DE INFORMATIZAÇÃO E OS IMPACTOS CAUSADOS NAS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS VOLTADOS PARA A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA: UM FERRAMENTAL TECNOLÓGICO DE APOIO AO HISTORIADOR.

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Lara Taline dos Santos

"ON THE BATTLEFIELD": A VIOLÊNCIA NAS VISÕES DE LIBERDADE DOS NEGROS NA GUERRA CIVIL AMERICANA (1861-1865) Leonardo Girardi “O PRINCIPAL E PRECÍPUO ATO DO PODER RÉGIO É JULGAR” – O SOBERANO IDEAL DE ACORDO COM O ESPELHO DOS REIS (1341-1344) DE FREI ÁLVARO PELAYO Leonildo José Figueira ORIGENS, USOS E REPRESENTAÇÕES DO CAMINHO DO ITUPAVA NA OBRA DE JÚLIO ESTRELA MOREIRA (1889-1975) Luis Alberto Gottwald Junior O CORPO COMO DENÚNCIA NO CINEMA NACIONAL DA DÉCADA DE 1970: UMA ANÁLISE DE IRACEMA: UMA TRANSA AMAZÔNICA Luís Fernando Costa Cavalheiro "E CRISTO É A ÚNICA VOZ DE TODO O MUNDO": A DEFESA DA RESPUBLICA CHRISTIANA CONTRA A HERESIA JUDAICA NOS SERMÕES DE AUTOS-DE-FÉ DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA (1612-1640) Marcos Felipe Godoy O PAPEL DAS CÂMARAS MUNICIPAIS NO IMPÉRIO ULTRAMARINO PORTUGUÊS Maria Cristina de Castro Pereira HISTÓRIA E MEMÓRIA: A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS PARA O PASSADO E A REGULARIZAÇÃO DO “POUSO FRIO” DE TOLEDO/PR (1948/1988) Mateus Sokolowski O EMBATE ENTRE O PROJETO CENTRALIZADO RÉGIO E O CONSERVADORISMO DA NOBREZA NAS CANTIGAS DE AFONSO X O SÁBIO (1252-1284) Matheus Koslosky OS MUTIRÕES DA ITAIACOCA: TRABALHO, SOCIABILIDADE E LAZER. Megi Monique Maria Dias O INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO PARANAENSE E A ESCRITA DA HISTÓRIA EM PRINCÍNPIOS DO SÉCULO XX Monah Nascimento Pereira IDENTIDADE E TRADIÇÃO: HISTÓRIA E WYRD NA VERSÃO ANGLO-SAXÔNICA DA DE CONSOLATIONE PHILOSOPHIAE (SÉCULOS IX-X) Nathany A. W. Belmaia A DATAÇÃO DA PÁSCOA: UMA CONTROVÉRSIA NA LONGA DURAÇÃO Neli Maria Teleginski CAMPOS, FORNOS E MOINHOS: OS CEREAIS NA CULTURA ALIMENTAR DOS DESCENDENTES DE ESLAVOS NO CENTRO-SUL DO PARANÁ (1890-1914)

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Pamella Sue Zaroski

Paula Tainar Souza Priscilla Perrud Silva Raphael Almeida Dal Pai Robson Luiz de Bastos Silvestri Rodrigo dos Santos Roger R. Diniz Costa Rubia Caroline Janz

TECENDO CONEXÕES ULTRAMARINAS – A PARTICIPAÇÃO DE HIPÓLITO DA COSTA NOS PLANOS ECONÔMICOS DE DOM RODRIGO DE SOUZA COUTINHO – 1798-1800 HISTÓRIA, CINEMA E A GRANDE GUERRA: A PRESENÇA DO GÓTICO NO CONTEXTO E NA TELA PAULO MENTEN E A ESCRITA DE SI: UMA DISCUSSÃO METODOLÓGICA DO DIÁRIO DO ARTISTA (1963-1969) DIREITOS SOCIAIS SOB A LÓGICA DO MERCADO: INSTITUTO LUDWIG VON MISES BRASIL E AS MANIFESTAÇÕES POR DIREITOS. O OFÍCIO DE CARTORÁRIO EM TURVO-PR - 1962 -1996 PODER E REGIÃO IMPRENSA E (I) MIGRAÇÃO: O JORNAL FOLHA DO OESTE E O SINGRA HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS: OLIVEIRA LIMA E A CONSTRUÇÃO DE HERÓIS MONARQUISTAS DEZ ANOS DA LEI 10.639/03: O QUE OS ALUNOS SABEM SOBRE A ÁFRICA? – UMA PROPOSTA DE ANÁLISE.

Tatiane Karine Matos da Silva

DISPUTAS E SENTIDOS: CONFLITOS POR TERRAS EM SANTA HELENA - PR Thamara Parteka OS MODOS DE SUBJETIVAÇÃO DO ESCRITOR RODRIGO DE SOUZA LEÃO A PARTIR DA EXPERIÊNCIA DA LOUCURA E DE SUA PRODUÇÃO ARTÍSTICA A RETOMADA DO CINEMA NACIONAL NOS ANOS 1990: Thiago Henrique Felício DISCURSOS HEGEMÔNICOS E CONTRA-HEGEMÔNICOS Vagner Melo Figueiredo CONTESTADO (1912-1916): A DISPUTA PELA MEMÓRIA DO MOVIMENTO E DE SEUS SUJEITOS Vanderley de Paula Rocha FESTA E DEVOÇÃO: AS CELEBRAÇÕES EM HONRA AO DIVINO NA CIDADE DE PONTA GROSSA/PR Yuri Sócrates Saleh Hichmeh FABIAN FUKAN E A LEGITIMAÇÃO DA PERSEGUIÇÃO JAPONESA AO CRISTIANISMO (1606-1621)

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A COITA NAS CANTIGAS DE AMOR DE DOM DINIS Ana Luiza Mendes Doutoranda UFPR [email protected]

Resumo: Este trabalho tem como objetivo uma primeira abordagem temática sobre as cantigas de amor do rei Dom Dinis (1279-1325), mais precisamente sobre o conceito de coita que nelas aparecem e como ele se articula com outras possibilidades de temas existentes nas mesmas cantigas, assim como compreender o significado de coita para o autor e quais as condições que permitem a sua existência histórica e literária. Palavras-chaves: Dom Dinis; cantigas de amor; coita Resumen : Este trabajo pretende un primer acercamiento temático sobre las canciones de amor de lo rey Dom Dinis (1279-1325), más precisamente en el concepto de coita que aparecen en ellos y cómo éstos se vinculan a otras posibilidades de temas existentes en las mismas canciones, así como entender lo sentido de la coita al autor y las condiciones que permiten su existencia histórica y literaria. Palabras claves: Dom Dinis; cantigas de amor; coita

Dom Dinis, rei de Portugal entre 1279 e 1325, é bastante conhecido por ter empreendido ações em diferentes áreas que confluíram para o desenvolvimento do reino português e sua autonomia perante aos demais reinos ibéricos. Dinis, nascido em 1261, fruto do casamento de Afonso III (1210-1279) e Beatriz de Castela (1242–1303), é secundogênito, o que significa que não seria rei. Este posto caberia ao irmão mais velho, Fernando, e a Dinis caberia o destino dos filhos segundos: ganhar o mundo e I Seminário Paranaense de Pós-Graduandos em História - 14

lutar para sobreviver nele até casar-se e constituir sua própria casa e linhagem. Porém, o primogênito morre e, diante deste fato, Dinis herda o trono de Portugal. Assume-o aos 18 anos e nele permanece por 46. Neste período Dom Dinis foi responsável pelo fomento de diversas áreas que contribuíram para o desenvolvimento do reino português e de suas instituições que permitiram a afirmação deste em relação aos demais reinos ibéricos. Suas alcunhas revelam este fato: O Lavrador, O Rei-Agricultor, o Rei-Poeta, o Rei-Trovador. Os dois últimos epítetos são os que nos interessam no presente trabalho. Dom Dinis não era somente rei. Também era poeta, mais precisamente, trovador. É bom lembrarmo-nos que Dinis era neto de Afonso X, de Castela (1252-1284), exímio e famoso trovador e rei de uma das cortes mais cultas da época. Diante disso, é possível apontar para uma influência passada de avô para neto no que diz respeito ao âmbito cultural. Além disso, Dinis foi educado para ser um rei culto, contando com diversos preceptores, um deles possivelmente da Provença, o que lhe possibilitou o conhecimento de variadas culturas e o aperfeiçoamento cultural e trovadoresco. Este conhecimento e aperfeiçoamento podemos observar nas 137 composições de Dom Dinis que nos foram legadas. É o compositor português com o maior número de obras preservadas, as quais se dividem em: 76 cantigas de amor, 51 cantigas de amigo e 10 cantigas de escárnio e maldizer. Tais denominações estão presentes no tratado poético contido no Cancioneiro da Biblioteca Nacional que, juntamente com o Cancioneiro da Ajuda e da Vaticana, transmitiram as composições do trovadorismo galego-português. O tratado poético, modernamente denominado de Arte de Trovar, nos traz as definições dos gêneros pertinentes a este movimento. Dessa forma, nas cantigas em que eles falam na prima cobra5 e elas na outra, amor, porque se move a razon d’ele (como vos ante dissemos); e se elas falam na primeira cobra, é outrossi d’amigo; e se ambos falam em ũa cobra, outrossi é segundo qual deles fala na cobra primeiro. (TAVANI, 1999: 41).

E, segundo o mesmo tratado, sobre as cantigas de escárnio e maldizer: Cantigas d’escarneo som aquelas que os trobadores fazen querendo dizer mal d’alguen en elas, e dizen-lho per palavras cobertas que hajan dous entendimentos [...]. Cantigas de maldizer son aquels que fazem os trobadores descobertamente: e elas estrarám palavras e que querem dizer mal e nm aver outro entendimento se nom aquel que querem dizer chãam . (TAVANI, 1999: 42-43).

Estabelecida, então, o conhecimento sobre os gêneros destas produções, passemos, pois ao que se estabelece como fonte para este trabalho: as cantigas de amor. Há nestas cantigas alguns traços do amor cortês, expressão utilizada por Gaston Paris, em 1883, para definir o amor entre Lancelot e Guinevere em O cavaleiro da charrete de Chrétien de Troyes (LE GOFF; SCHMITT, 2002: 47) que designa um sentimento transmitido pela literatura, sob o codinome de fin’amors, o qual se refere: a um amor puro, perfeito, delicado, cujo desenrolar envolvia o frenesi provocado pelo erotismo e pelo controle do desejo, uma vez que cantava o amor ora inacessível, que não espera recompensa, apenas se submete totalmente à amada, com o compromisso de honrá-la e servi-la com fidelidade e discrição, ora carnal e adúltero. (MENDES, 2013: 49).

Ou seja, era o ideal amoroso pertinente ao comportamento ideal da cortesia, a ponto dele se estabelecer quase como uma justa, mas uma justa amorosa que se acirra através de metáforas e da submissão do cavaleiro à dama, numa condição de vassalagem amorosa.

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Denominação contida no mesmo tratado poética que designa a estrofe.

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Nesse jogo, a mulher é um chamariz. Ela preenche duas funções: por um lado, oferecida até um certo ponto por aquele que a mantém em seu poder e que conduz o jogo, ela constitui o prêmio de uma competição, de um concurso permanente entre os jovens da corte, atiçando entre eles a emulação, canalizando sua força agressiva, disciplinando-os, domesticando-os. Por outro lado a mulher tem a missão de educar esses jovens. O “amor delicado” civiliza, ele constitui uma das engrenagens essenciais do sistema pedagógico do qual a corte principesca é o centro. É um exercício necessário da juventude, uma escola. Nessa escola, a mulher ocupa o lugar de mestre. Ela ensina melhor porque estimula o desejo. Convém portanto que ela se recuse e sobretudo que seja inacessível. Convém que ela seja uma esposa e, melhor ainda, a esposa do senhor da fortaleza, a sua dama. Por isso mesmo, ela está em posição de domínio, esperando ser servida, dispensando parcimoniosamente seus favores, numa posição homóloga àquela em que está instalado o senhor, seu marido, no centro da rede dos verdadeiros poderes. De maneira que, na ambivalência dos papéis atribuídos às duas pessoas do par conjugal, este amor, o amor dos textos, o verdadeiro, o desejo contido, aparece de fato como escola de amizade, dessa amizade da qual se pensa, nessa mesma época, que ela deveria estreitar o laço vassálico e consolidar assim as bases políticas da organização social. (DUBY, 1989: 38).

Neste jogo poético transmitido pelos trovadores provençais, portanto, a mulher, a dama, fica em evidência. Suas características são enaltecidas, e a ela não há nenhuma outra que se compare. Tal sentimento foi compartilhado pelos trovadores portugueses, pois também em suas composições sua senhor6 não é comparável a nenhuma outra. O elogio à senhor, inclusive, aparece 25 vezes nas cantigas de amor de Dom Dinis, sendo, portanto, um tema recorrente, revelando a influência do trovadorismo provençal. Contudo, influência não significa cópia. Dom Dinis apresenta-se como um rei que busca a autonomia do seu reino e não poderia ser diferente no âmbito cultural. Dessa maneira, é possível verificar uma modificação da expressão do sentimento amoroso nas composições do dito rei. O elogio à dama está presente em relação a outros temas, como o da coita, que é mencionada 38 vezes, sendo o tema profano mais frequente das suas cantigas de amor.7 A coita, segundo o dicionário da língua portuguesa medieval é dor, tormento, pesar, mágoa (SILVA, 2009:93) que refletem o estado de espírito do trovador em relação a sua amada. Isto é, representa a dor do amor não correspondido e está intimamente relacionado com o sentimento de morte ou, mais especificamente, o desejo de morrer pelo amor não correspondido, como podemos ver nesta cantiga: Senhor, oj’ ouvess’ eu vagar e Deus me dess’ end’ o poder, que vos eu podesse contar o gram mal que mi faz sofrer esse vosso bom parecer, Senhor, a que el nom fez par. Ca se vos podess’ i falar, cuidaria muit’ a perder da gram coita e do pesar com que m’ oj’ eu vejo morrer; Não havia o feminino da palavra senhor, sendo que esta é a forma utilizada pelos trovadores quando se referiam a dama em suas cantigas. 7 Refiro-me a tema profano para diferenciar das referências sagradas: Santa Maria, que é mencionada 2 vezes, e Deus, referido 57 vezes. 6

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ca me nom pód’ escaecer esta coita que nom a par. Ca me vós fez Deus tant’ amar, er fez vos tam muito valer, que nom poss’ oj’ em mi osmar, senhor, como possa viver, pois me nom queredes tolher esta coita que nom a par. (LANG, 2010: 221)

Nesta cantiga o trovador confessa o mal causado pelo amor que sente pela senhor que Deus nom fez par, ou seja, ela é única e não se compara a nenhuma outra em nenhuma qualidade e, por isso, é a eleita do amor do trovador que se vive em gram coita e pesar, a morrer por esse amor. Deus é a testemunha desse amor e desse coita, pois foi ele que fez o trovador amar, mesmo que sem correspondência. Ainda assim, o trovador admite que não consegue imaginar sua vida sem a coita, sem o morrer de amor pela sua senhor. Em outra cantiga, Dom Dinis compara a sua obra e o seu sentimento ao dos provençais: Proençaes soen mui bem trobar e dizem eles que é com amor; mais os que trobam no tempo da frol e non em outro, sei eu bem que nom am tam gram coita no seu coraçom qual m’eu por mha senhor vejo levar. Pero que trobam e saem loar sas senhores o mais e o melhor que eles podem, sõo sabedor que os que trobam quand’ a frol sazom a e, nom ante, se Deus mi perdom, nom am tal coita qual eu ei sem parar. Ca os que trobam e que s’alegrar vam e-no tempo que tem a color a frol comsigu’e tanto que se for aquel tempo, logu’ em trobar razom nom am, nem vivem em qual perdiçom oj’ eu vivo, que pois m’ a de matar. (LANG, 2010: 228)

Nesta cantiga, a coita está relacionada com o trovar genuíno, isto é, o trovar por amor, o trovar que parte ele mesmo do sentimento vivenciado de forma vívida o que não aconteceria com os provençais, segundo Dom Dinis, uma vez que este os acusa de só trovarem no tempo da frol, ou seja, da primavera. Dessa forma, Dom Dinis afirma que os provençais nom am tam gram coita no coraçom, como o rei confessa sentir pela sua senhor. A coita, pois, para Dom Dinis é onipresente, isto é, é um estado permanente do amante e do trovador e é o que permite o trovar sincero.

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Sobre esta cantiga, Graça Videira Lopes salienta a defesa de uma diferença entre esses proençaes que soem mui bem trobar e o eu que aqui canta – diferença cujo enunciado a adversativa “mas”, no princípio do terceiro verso, introduz – o que, como também tem sido desde sempre notado, não deixa de constituir uma interessante declaração de autonomia da arte galego-portuguesa face aos modelos provençais admirados (mesmo no que toca à cantiga de amor, como é o caso). Distinguindo entre um eles e um nós, de que o trovador, mesmo se a título pessoal, se faz porta-voz, D. Dinis parece postular claramente essa diferença. (LOPES, 2009: 3).

A autora levanta a questão sobre a retórica utilizada por Dom Dinis, a partir da qual estabelece a dicotomia entre o fingimento e a sinceridade do sentimento amoroso que causa a coita. Como grande trovador é admissível que interpretemos esta cantiga de Dom Dinis como a aplicação de um cânone poético que contribui para a definição de uma cantiga de amor que, como o próprio nome sugere, canta o amor e suas benesses. Ou seja, Dinis critica e, ao mesmo tempo, usufrui de um clichê poético. Mas o seu clichê é sincero. O topos do sofrer por amor é utilizado porque ele tem uma formação trovadoresca, ele faz parte de uma tradição e, portanto, é necessário que siga suas regras. Porque o poeta quer também, em última instância, persuadir o auditório para que reconheça o seu domínio da arte de trovar; e é por isso que se os procedimentos e os motivos são comuns, o verdadeiro gênio poético mostra-se no emprego que se faz dos mesmos em cada caso concreto. (FREIXEDO, 2012: 25)

Porém, Dom Dinis, ao utilizar-se do cânone poético, além de estabelecer-se dentro de uma tradição e, assim, afirmar-se como trovador de valor, se diferencia dos trovadores provençais porque ao clichê adiciona a sinceridade contínua do sentimento. Assim, sugere que o amor provençal é sazonal, enquanto que a coita portuguesa é permanente. E mais: “o eu que canta (o sujeito da enunciação) não se apresenta como uma simples voz indiferenciada, mas apela a uma correspondência direta com o próprio trovador-autor”. (LOPES, 2009: 7). Para além da discussão acerca da relação entre veracidade real e retórica poética dessas composições, o fato é que Dom Dinis, através de suas produções, contribui para a construção de uma identificação dos portugueses, pois, como rei, ele não apresenta-se sozinho na empresa de definir-se como mais autêntico que os provençais. Os trovadores do seu reino também o são, pois compartilham de um sentimento que é real e que os fazem trovar melhor por isso. Dessa maneira, Dom Dinis faz parte de duas tradições poéticas: uma que reconhece e utiliza as formas da poesia provençal, e outra que transforma essa forma em uma tradição própria, a galego-portuguesa, em que a coita é o mote que transmite a sinceridade do sofrimento amoroso português. Assim, Dom Dinis busca, para além da tradição, determinar sua identidade literária que, por sua vez, é compartilhada pelos demais trovadores galego-portugueses, pois “sob o olhar da corte, rei é sinônimo de modelo, e Rei-Trovador sinônimo de ‘Arte Poética’ a seguir”. (NOBRE, s/d: 50). Nesse sentido, a coita cantada por Dom Dinis e seus seguidores transforma-se ela mesma em uma tradição, na qual instaura-se os alicerces da identidade do português através da sua retórica hiperbólica que canta a onipresença do seu morrer de amor. Referências DUBY, Georges. Idade média, idade dos homens: do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. FREIXEDO, Xosé Bieito Arias. En vós mostrou el seu poder. A poética hiperbólica das cantigas de amor galego-portuguesas. Revista Signum, vol, 13, n. 2, 2012, pp. 22-43. LANG, Henry R. Cancioneiro d’el Rei Dom Denis e estudos dispersos. MONGELLI, Lênia Márcia; VIEIRA, Yara Frateschi (org). Niterói: Editora da UFF, 2010.

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LOPES, Graça Videira. E dizem eles que é com amor – fingimento e sinceridade na poesia profana galego-portuguesa. Floema, ano 5, n.5, jul-dez, 2009, pp. 53-82. Disponível em: http://periodicos.uesb.br/index.php/floema/article/viewFile/486/527. Acesso em: 13/12/2013. MENDES, Ana Luiza. A história que se faz cantiga nas barcarolas galego-portuguesas. São Paulo: Ixtlan, 2014. _____. O diálogo entre a razão e o pecado nas correspondências de Abelardo e Heloísa. São Paulo: Ixtlan, 2013. NOBRE, Cristina. Amor e poesia nas cantigas d’amor de D. Denis. Educação e Comunicação, 6, pp.50-65. Disponível em: https://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/242/1/n6_art4.pdf. Acesso em: 26/07/2013. PIZARRO, José Augusto de Sotto Mayor. D. Dinis. Um génio da política. Lisboa: Temas e Debates, 2008. SERRÃO. Joaquim Veríssimo. História de Portugal. Volume I Estado, Pátria e Nação (1080-1415). Lisboa: Verbo, 1979. SILVA, Joaquim Carvalho da. Dicionário da língua portuguesa medieval. Londrina: Eduel, 2009. TAVANI, Giuseppe. A Arte de Trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa. Introdução, edição crítica e fac-símile. Lisboa: Edições Colibri, 1999.

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