A Comodificação das Emoções

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A Comodificação das Emoções
Posso vender-te um like? Os likes nas redes sociais estão à venda por todo o ciberespaço. Mil likes custam cerca de 75 dólares, prometido por um qualquer empreendedor universitário, mas já existem empresas exclusivamente dedicadas a este exercício. Algumas até vendem algoritmos que fazem qualquer post ter 300 likes assim que é publicado. Um like significa em bom português um "gosto disto" e carrega em si o peso de uma emoção, um sentimento de ligação em diversos graus. O "gosto" da praxe para aquele amigo que faz sempre "gostos" nos meus posts. O "gosto" em uma notícia que nos afecta particularmente ou um "gosto" de ocasião porque se trata de algo que aparece no topo do nosso mural. Existem vários tipos de "gostos", mas em comum todos carecem de uma ligação afectiva. Atribuímos "gostos" na medida da gratificação por nos ter sido possibilitado sentir algo e na medida dos nossos interesses pessoais, envolvemo-nos particularmente com diversos tipos de assuntos que nos vão aparecendo na página. Seja um gif de um gatinho fofinho ou uma imagem relacionada com terrorismo, reagimos exactamente como o fazemos quando o vemos na televisão, só que pelas redes sociais, o nosso input é imediato por intermédio da informação que usamos para dar expressão às nossas emoções. Só que esta abertura do eu ao vácuo do ciberespaço tem uma função diria desregulatória das emoções que, transformando-as em informação, comodifica a própria vida. Um "gosto", uma "partilha" ou um "comentário", por esta ordem, implicam uma simulação de interactividade que requere envolvimento, compromisso emocional e uma abertura voluntária da privacidade às corporações que gerem as plataformas e fazem uso dessa informação para se capitalizarem. O estudo de Delores Phillips e Kevin Moberly sobre as redes sociais encontra nesta mercantilização da informação e das emoções, o móbil que faz manobrar o discurso associado a uma emergente cultura tecnológica.
"Commodifying happiness, envy, alienation, and consumption as social play, it challenges players to demonstrate their self-worth through a ritualized version of what is arguably the primary form of immaterial labor upon which Facebook's continued economic success depends: a digital narcissism through which participants perform their happiness through the accumulation of images, "likes," "shares," wall-posts, and other such activities. (…) By explicitly constructing the immaterial labor that constitutes participation on Facebook as play, these games perpetuate the illusion that much of what takes place on Facebook itself is not play. In doing so, we argue they perpetuate the illusion that Facebook is real: that it is synonymous with, if not equivalent to, "real life." At times of crisis, the language of happiness acquires an even more powerful hold."
No contexto do problema da mercantilização de toda a actividade humana, Norman Farclough chama de comodificação "o processo pelo qual as instituições sociais passam a ser definidas e organizadas, apesar de não produzir mercadorias no sentido estrito da palavra, em termos de produção, distribuição e consumo de mercadorias." A palavra é a adaptação do inglês commodification, termo surgido na teoria da arte que significa "processo de transformar em mercadoria (= commodity)". Vai buscar o seu radical à palavra latina commodĭtas: commŏdus (cum + modus = com medida) + ātis (simetria, proporção; comodidade, oportunidade, ocasião favorável, bondade, complacência). No âmbito das redes sociais, este processo é a produção, distribuição e consumo de emoções que se transformam em mercadoria. Por exemplo, se na minha actividade online visitar vários sites de viagens para um determinado destino, é bastante provável que nos dias seguintes, as minhas redes sociais sejam inundadas com publicidade e páginas de empresas que oferecem serviços similares. Isto quer dizer que tudo o que um utilizador fizer online estará sujeito a apreciação de algoritmos que se dedicam a comercializar os interesses desse mesmo utilizador. O poder de influência sobre onde fazemos "gostos", "partilhas" e "comentários" ficou bem patente quando o Facebook publicou um estudo onde afirma ter manipulado as news feed de 689,003 utilizadores por todo o mundo, retirando todos os posts positivos ou negativos para perceber como isso afectava o seu humor.
Corpos transformam-se em informação, em fluxos que circulam pelo ciberespaço qual novo commodity, sujeitos aos filtros de interesses governativos e corporativos. O corpo transformado em informação não é, no entanto, uma invenção decorrente da Internet. Adquire contornos decisivos nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial. Nomeadamente em 1953, quando a revista científica Nature, publicou o estudo de Francis Crick e James Watson em que demonstravam a estrutura molecular do ADN como sendo uma cadeia de dupla hélice, composta de bases purínicas e piramidais. Esta fusão entre código da vida e tecnologia promove a vida como sendo possível através de uma combinação de informação que é o ADN. Os corpos transformaram-se em programas de informação transmissíveis digitalizados através do código. Se o código da vida passou a ser resumido a combinações informativas, os corpos transformaram-se em media que aguarda mediação, em biomedia, pois a informação através de dispositivos tecnológicos é maleável ad infinitum.
O poder hegemónico dos discursos tecnológicos veicula uma ideologia assente na noção que os humanos são ambos organismos mecânicos (hardware) e seres construídos socialmente (software),no entanto abandona a subjectividade e a criatividade humana como factores eminentes do que representa ser humano. Esta emergente cultura tecnológica é visível no quotidiano na jurisprudência divina da economia, da nova ecologia e da segurança conseguida através da vigilância e da "infalível" polícia científica, mas sobretudo na sua acção sobre desaparecimento do corpo como símbolo histórico, linguístico e subjectivo, sugerindo uma desregulação do que é ser humano, fenómeno que podemos atribuir à utopia da descentralização dos poderes ocorrida entre as décadas de 80 e 90 por intermédio da acelerada inovação tecnológica.
"Throughout the late 1980s and 1990s, the word "new" was persistently attached to the term "technology," a coupling intended to reference a vast range of phenomena - computers, the internet, wireless telecommunications, satellite cinema and so on. Throughout this period, these technologies were widely heralded as global panaceas. In the pages of glossy hi-tech magazines and academic annals alike, the obliteration of racism, homophobia, sexism, and the great class divide became subjunctive to the problem of connecting everybody everywhere to emergent digital networks. Decentering old-world imperial powers and creating alternative cultural formations became battle cries for the new economy, the new world community and a new decentralized and democratized body politic. Instantaneous, immersive and transparent unions among people and places across politics and cultural difference pervaded corporate advertising, government policy documents and university budgets alike. These were, for many, exciting times. Indeed, the US economy witnessed unprecedented growth. Rhetoric about globalization promised to tear down previous barriers to world-wide prosperity, security and equality. On the surface, it seemed like a pretty good deal."
De facto, a propalada era de ouro das tecnologias de informação prometia a reconfiguração de esfera da vida social, unindo o mundo em redor da máquina universal que é o computador. No entanto, este discurso tecnológico de contornos utópicos cedo demonstrou ser um pharmakon. Lyotard refere que "o discurso assente na eficiência e na performatividade matou à nascença qualquer ganho material ou possibilidade epistemológica", ao operar sobre a premissa de que o conhecimento pode se tornar transparente e radicalmente transferível, enfim o conhecimento é acesso, acesso a informação, informação que é tudo o que circula, inclusive os corpos. A sequência no filme Matrix, em que Neo está prestes a receber o seu treino e tudo o que tem de fazer é recostar-se numa cadeira e esperar que a sabedoria das artes-marciais orientais lhe seja carregada directamente no cérebro via interface neuronal-digital, representa esta ideia de que o conhecimento são depósitos de informação, que podem ser reprogramados e baixados directamente para o interior do cérebro. De algum modo, esta desregulação ou comodificação da vida, como lhe chama a dupla Delores Phillips e Kevin Moberly, apresentam-se perfeitamente normalizados nos dias de hoje. Os murais do Facebook são espectáculos performativos através dos quais os internautas se realizam socialmente, na medida da quantidade de informação que disponibilizam. É raro o adolescente que hoje em dia não possui dezenas de contas em diferentes redes sociais. O incentivo de uma vida partilhada digitalmente através de imagens, de likes, de comentários e de shares, resulta em corpos-objecto que flutuam no domínio público da Internet, sujeitos a permanente reconfiguração no campo mediático. O corpo e as emoções tornaram-se o novo currency da utopia tecnológica, que na possibilidade de libertação dos entraves do corpo, promete reconstituir o user por entre as infinitas possibilidades do ciberespaço.



PHILLIPS, Delores, MOBERLY, Kevin in Spectacular Unhappiness Social Life, Narcissistic Commodification, and Facebook, Reconstruction Vol. 13, No. 3/4, http://reconstruction.eserver.org/Issues/133/133_Phillips_Moberly.shtml, acesso entre Novembro 2014 e Fevereiro 2015
In Discurso e Mudança Social, Brasília, Nobel/UNB, 2001
WASSON, Haidee in New and Now: A Plea for Historiography and Technology, http://reconstruction.eserver.org/Issues/041/editorial.htm
PHILLIPS, Delores, MOBERLY, Kevin in Spectacular Unhappiness Social Life, Narcissistic Commodification, and Facebook, Reconstruction Vol. 13, No. 3/4, http://reconstruction.eserver.org/Issues/133/133_Phillips_Moberly.shtml, acesso entre Novembro 2014 e Fevereiro 2015



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