Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
P á g i n a | 66
A constituição do trabalho escravo como um acontecimento The constitution of slave labor as an event La constitución del trabajo esclavo como un evento
Geise do Socorro Lima Gomes Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil. Flávia Cristina Silveira Lemos Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.
Resumo O artigo visa debater a criação do objeto trabalho escravo em um campo de lutas de saber e poder em que o mesmo é resultante de práticas datadas e múltiplas, heterogêneas e raras. Também descreve um conjunto de lugares institucionais e posições de sujeito constituídas no bojo da elaboração do objeto, concomitantes aos conceitos e condições de possibilidade de aparecimento do acontecimento que ora é analisado. A política produzida como proteção frente ao jogo de tentativas de definição do objeto é correlata de uma maneira de pensar o mesmo e de descrevê-lo ainda que provisoriamente. Essa pesquisa foi realizada com uma análise histórica, documental e com contribuições de Foucault. Palavras-chave: Trabalho escravo; Documentos; História.
Abstract This article aims to discuss the creation of the object slave labor in a field of knowledge and power struggles in which it is dated and practices resulting from multiple, heterogeneous and rare. It also describes a set of institutional locations and subject positions constituted the core of the development of object concepts and concomitant conditions of possibility of occurrence of the event which is now analyzed. The policy produced as protection against the game attempts to define the object is related to a way of thinking the same and still describe the same provisionally, since the fights are still configuring and only battles were won. This research was conducted with a historical, documentary and with contributions from Foucault. Keywords: Slave labor; Documents; history.
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
P á g i n a | 67
Resumen El artículo tiene como objetivo debatir sobre la creación de la mano de obra esclava objeto en un campo de conocimiento y las luchas de poder en el que está fechado y prácticas resultantes de múltiple, heterogéneo y poco frecuente. También se describe una serie de lugares institucionales y posiciones de sujeto constituía el núcleo del desarrollo de los conceptos de objeto y las condiciones concomitantes de la posibilidad de ocurrencia del hecho que ahora se analiza. La política producida como la protección contra el juego trata de definir el objeto se relaciona con una forma de pensar lo mismo y aún describir la misma forma provisional, ya que las peleas se siguen creando y sólo se ganaron batallas. Esta encuesta se llevó a cabo con una perspectiva histórica, documental y las contribuciones de Foucault. Palabras clave: El trabajo esclavo; Documentos; Historia.
E, para questionar os lugares
Introdução
assentados e, muitas vezes cristalizados Este trabalho é uma parte de
por
diferentes
grupos
e
instituições,
pesquisa de mestrado desenvolvida no
procuramos “desmontar” os documentos
Programa
de
em
selecionados para análise, com o intuito de
Psicologia.
O
estudo,
desnaturalizar os discursos que compõem
financiado pela CAPES foi realizar uma
os mesmos documentos e que por sua vez
analítica histórica acerca da formação do
disparam práticas de poder e de saber sobre
campo de luta gerado na constituição do
trabalhadores,
objeto “trabalho escravo”.
simultaneamente
Pós-Graduação objetivo
do
subjetivando-os aos
processos
de
Esse campo de lutas culminou na
objetivação do trabalho como escravo,
produção de documentos nacionais e
como análogo ao escravo ou ainda como
internacionais produzidos por diversos
forçado, dependendo do grupo e instituição
grupos e que foram selecionados para
em jogo.
compor as análises sobre a constituição desse acontecimento.
Assim, baseadas nas contribuições
Esses documentos
de Michel Foucault, apresentamos algumas
são forjados e acionados, por sua vez, por
descrições e análises da produção do
diversos grupos/segmentos para eleger os
objeto trabalho escravo por meio de
trabalhadores rurais como população alvo
práticas correlatas e heterogêneas e seus
de investimentos políticos e econômicos.
efeitos, no presente, a partir de uma breve história das mesmas.
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
P á g i n a | 68
Acerca das práticas de exploração dos
multilateral ligada à Organização das
trabalhadores rurais
Nações Unidas (ONU) e que a partir da elaboração de duas Convenções: a de N. 29
A literatura levantada (Rezende,
e a de N. 105, que formulam proposições
2004; Le Breton, 2002; Martins, 1995;
que visam eliminar tais práticas em todo o
Esterci,
um
mundo, pelos países que aceitaram pactuar
histórico sobre a produção da visibilidade
tais Convenções. Sendo assim, de acordo
dada às práticas de “exploração de
com a Convenção 29 da OIT: “[...]
trabalhadores rurais”, no Brasil, associando
trabalho
sua divulgação às denúncias realizadas,
compreenderá todo trabalho ou serviço
principalmente pela Comissão Pastoral da
exigido de uma pessoa sob ameaça de
Terra (CPT), por volta dos anos 70 e 80, no
sanção e para o qual não se tenha oferecido
século XX. A CPT passou a nomear estas
espontaneamente” (OIT, 2008).
1994)
permite
recortar
práticas de trabalho escravo.
forçado
ou
obrigatório
O Brasil foi um dos países,
Antes desse período e nomeação,
integrante da OIT que assinou esta
essas práticas eram classificadas como
Convenção, e comprometia-se a erradicar
“irregularidades trabalhistas” e o Estado
essas práticas do país. E, devido ao não
brasileiro negava a existência das mesmas,
cumprimento desse acordo; segmentos da
conforme podemos investigar nos relatos
sociedade
dos movimentos denunciantes.
denunciando as situações desta condição
Em
outros
países,
civil
organizaram-se
práticas
de trabalho, no Brasil às várias instituições
semelhantes, que envolviam uma série de
internacionais, como uma forma de fazer
eventos classificados como desrespeito aos
pressão e dar visibilidade para as práticas
direitos trabalhistas, tais como a presença
em questão.
de violações de sua liberdade e, inclusive
As denúncias geralmente versam
inúmeras práticas de torturas e violências
sobre: falta de cumprimento dos direitos
diversas começaram a ser definidas como
trabalhistas, configurados nas extensas
um
horas de trabalho, sem pagamento; falta de
mesmo
objeto
Internacional
do
pela
Organização
Trabalho
(OIT),
denominado de “trabalho forçado”. O objeto “trabalho forçado” se torna cunhada
uma
tipificação
pela
OIT,
internacional, uma
agência
registro da carteira; condições de higiene e salubridade
inadequadas;
cometidas
pelos
e
violências
empregados
dos
contratantes/fazendeiros/empresários: práticas diversas que se configuram como
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
torturas:
chicoteamento,
coronhadas,
P á g i n a | 69
exemplo:
trabalho
acorrentamento, partes do corpo mutiladas,
superexploração
assassinatos e humilhações verbais e
escravidão
ameaças.
presença
A
de
“capangas”
de
semiescravo; mão
de
branca;
obra;
escravidão
contemporânea; neoescravidão etc.
armados é outra característica citada, como
Essa variedade de nomenclaturas,
elemento que garantiria a coerção desses
por sua vez, é entendida por alguns
trabalhadores (Loreiro & Pinto, 2005;
pesquisadores como um “entrave” ou
Sakamoto,
“empecilho” para a investigação dessas
2004;
Le
Breton,
2002;
Rezende, 2000; Martins, 1997).
práticas e seu consequente julgamento
Por conta da variedade de situações e
violências
sofridas
por
(Jardim, 2007; Sento Sé, 2000). De acordo
esses
com suas opiniões, é preciso que haja um
trabalhadores, uma vez que estas práticas
“consenso” sobre a denominação dessas
não se restringem ao meio rural, mas são
práticas, para que medidas de punição e
realizadas também nas carvoarias; nas
enfrentamento
fábricas principalmente as têxteis; nos
(Martins, 2009; Moura, 2006; Rezende,
espaços domésticos; um número crescente
2004). No entanto, um dos maiores debate
de nomeações foi emergindo. Dependendo
que se apresenta compondo os discursos
do setor da sociedade que se manifestava,
sobre
cada prática ganhava visibilidade com uma
relevância ou não dada ao acontecimento,
denominação, que este setor julgava ser a
caso um ou outro nome seja o “escolhido”.
“mais pertinente”. Uma
essas
possam
práticas
ser
diz
aplicadas
respeito
à
Notamos, então, a configuração de
série
de
processos
de
um campo de luta, que na disputa pela
objetivação implicava em nomeações e
definição,
demandas
dos
“essencialização” dessas práticas e resulta
campos de saber e poder em que o
em implicações de poder diferenciadas.
acontecimento
de
Nesse campo são produzidos regimes de
entrecruzamento de forças específicas. Os
visibilidade e de dizibilidade a partir de
lugares
posições
posicionamentos quanto às práticas em
subjetivas, os temas e conceitos, as
questão, suscitando um campo discursivo
modalidades enunciativas iam delimitando
heterogêneo entre os pesquisadores e
condições
movimentos sociais, além de práticas de
diversas,
dependendo
resultava
institucionais,
de
as
possibilidade
para
o
aparecimento dos objetos. Assim, de acordo com Esterci (1994) temos como
poder
parte
correlatas,
em
busca
sobretudo,
de
as
uma
que
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
P á g i n a | 70
demandam uma lógica penal para os que
às discussões geradas no meio acadêmico;
lucram com estas práticas.
a Convenção 29 sobre o trabalho forçado
E, na tentativa de desnaturalizar os
ou obrigatório, a Convenção 105 relativa à
discursos que engendram as práticas de
abolição do trabalho forçado e o Relatório
“exploração
Global 2009 da OIT “O custo da coerção”
de
trabalhadores
rurais”,
buscou-se nessa pesquisa, dar visibilidade
como
a esse emaranhado de enfrentamentos que
internacionais; o Relatório 2010 da OIT
vão se materializar na produção de
“Combatendo
documentos. E, em nenhum momento nos
contemporâneo: o exemplo do Brasil” e os
colocamos como defensores de qualquer
Planos
forma de violência e de exploração de
Trabalho Escravo: I (2003) e II (2008),
trabalhadores,
como complemento à discussão no Brasil.
essa
pesquisa
tentou
questionar os outros lugares ocupados e, muitas
vezes
de
o
Nacionais
Esses
documentos
trabalho
de
escravo
Erradicação
documentos
ao
foram
por
trabalhados a partir de uma análise baseada
dizem
em apropriações que fizemos de conceitos
nos
de Michel Foucault, por meio da história
perguntando de que forma esses grupos são
arqueológica e genealógica, que consiste
convidados a legislar sobre a vida dessas
em realizar uma análise que não visa a
pessoas? Para questionar esses “lugares”,
“descoberta de essências”, mas “[...]
trabalhamos
realizar
determinados “defender”
consolidados
exemplo
grupos, esses
que
trabalhadores,
com
a
perspectiva
uma
análise
histórica
das
foucaultiana, que nos ajudou no recorte dos
condições políticas de possibilidades dos
documentos de acordo com as orientações
discursos” (Machado, 2006, p. 167).
a seguir. Seguir o filão complexo da proveniência é, [...] manter o que se passou na dispersão
Ferramentas de análise
que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou ao contrário as
Os documentos escolhidos para a realizarmos
a
pesquisa
do
inversões completas – os erros, as falhas
campo
na apreciação, os maus cálculos que deram
heterogêneo de práticas de saber e de poder
nascimento ao que existe e tem valor para
que objetivam o “trabalho escravo” foram:
nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos
08 dissertações publicadas no arquivo
– não existe a verdade e o ser, mas a
intitulado banco de dissertações e teses da
exterioridade
CAPES, na internet, para dar visibilidade
2008a, p. 21).
do
acidente.
(Foucault,
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
O trabalho com documentos exige paciência, de acordo com Foucault (1979).
P á g i n a | 71
que objetivam as práticas e subjetivam os corpos, por sua vez, dos trabalhadores.
Ele nos ensinou a pensar a produção dos
Para a identificação dessas práticas “séries”
foram
por práticas que são acontecimentos raros e
funcionaram
singulares, datados e forjados por lutas.
metodológicos ajudando a recortar os
Os
documentos
são
montados,
organizadas
que
documentos como arquivos, constituídos
como
operadores
documentos, em determinados campos de
organizados e recortados, conservados e
luta
guardados de certo modo e em certo lugar
acontecimentos. As séries recortadas para
e tempo, portanto, têm história e são
as análises ajudaram a ordenar e organizar
resultantes de forças distintas e múltiplas,
os
que se encontraram ao acaso e seu ponto
conceitos, lugares institucionais, posições
de encontro é a emergência e sua aparição
de
não
a
possibilidade de aparecimento dos objetos.
genealogia permite a crítica da origem e da
Tanto nas dissertações estudadas
finalidade e a arqueologia possibilita a
quanto nos documentos da OIT, existe uma
visão de descontinuidade que se atualiza
preocupação em definir as práticas de
por proveniências e dispersões.
exploração dos trabalhadores. Definir essas
tem
intencionalidade.
Assim,
É neste aspecto, que Le Goff
que
compõem
discursos
sujeito
práticas
os
destacados
e
requer
pelas
a
discursos-
por
temas,
condições
formulação
de
de
(2003) destaca que: nenhum documento é
justificativas que vão sendo elaboradas
inocente, devendo ser des-estruturado,
com o objetivo de chegar a um “consenso”
desmontado
um
pela produção de jogos de saber-poder,
artifício que foi elaborado e organizado de
constituído por forças heterogêneas. Estes
certa maneira, em uma dada época e lugar
regimes de verdade operam também pela
específicos tal como um diagrama de
tipificação penal para facilitar a realização
forças dispersas e heterogêneas que se
de um julgamento; que possibilite a criação
articularam. Logo, os documentos aqui
de banco de dados com o cadastro dos
apresentados foram analisados com esse
trabalhadores que foram resgatados e que
intuito, de dar visibilidade à construção das
foram
práticas discursivas e das não discursivas
sociais;
que compõem os documentos, e de como
documentos dos trabalhadores, como a
estas se configuraram como dispositivos
carteira de identidade e de trabalho; que
e
interrogado
como
viabilize
encaminhados que
o
para
favoreça
pagamento
o
programas registro
dos
de
direitos
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
P á g i n a | 72
trabalhistas e de indenizações pelos danos
condição pelo fato dos mesmos terem
sofridos etc.
assinados termos de compromisso com a
Contudo, como eleger os elementos
OIT e por terem ratificado as Convenções
que irão servir de composição dos tais
referentes a cada violação de direito
“dados”? Que critérios serão elaborados
trabalhista a que estas Convenções se
para avaliar se um caso se trata ou não de
referem.
“trabalho escravo”? Essas questões são
A OIT assinala que muitos países,
apresentadas posições que implicam em
inclusive, o Brasil mascaram estes dados e
decisões a respeito das chamadas políticas
até mesmo não têm arquivos com registros
públicas de enfrentamento à situação
confiáveis a respeito, de acordo com o
exemplificada, por diferentes agentes e
relatório 2009 dessa organização. A partir
órgãos
da entrega destes dados, a OIT orienta os
governamentais
e
não
governamentais.
países
A Organização Internacional do
a
criarem
metodologias
para
pesquisas sobre o tema, que possam
Trabalho recebe um destaque nos estudos
demonstrar
sobre “trabalho escravo contemporâneo”
submetidas ao que delimita como trabalho
por legislar a respeito das relações de
forçado e que definam características
trabalho no âmbito internacional. Por sua
específicas da mesma em seus territórios,
vez, acaba recebendo por diversos países,
bem como descreva quais são os locais de
pedidos de auxílio na identificação das
maior incidência destas práticas e que
práticas, já que este órgão conseguiu
circunscreva as violações trabalhistas e
agenciar
outras (como as de liberdade) que estão
grande
reconhecimento
e
o
perfil
sendo
expertise de pesquisa, de articulação
podemos
política e de intervenções em muitos países
administrativo penal vai se esboçando na
nas situações de violações de direitos
política definida como de enfrentamento ao
trabalhistas,
trabalho escravo e de que maneira a
especial,
nas
que
denominou de “trabalho forçado”. Diante das encomendas da OIT, os países são convocados a apresentarem os
etc.
pessoas
construiu ao longo de décadas uma
em
realizadas
dessas
analisar
diplomacia
Desse
modo,
um
campo
como
interfere
na
situação
de
violação dos direitos trabalhistas. Para
Foucault está
(2008c),
baseada
em
essa
seus levantamentos sobre as situações
preocupação
uma
denunciadas, por meio de relatórios de
biopolítica, que encontra um dispositivo de
prestação de contas a respeito desta
governo securitário, aliada aos saberes da
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
P á g i n a | 73
informática, da estatística, da geografia, da demografia, da administração social e do
Assim,
direito penal. A partir dessa preocupação
descumprimento da legislação brasileira.
da OIT com a criação de protocolos de
temos
questões
como
o
Não podemos nos esquecer da brandura e da permissividade da legislação trabalhista
denúncia e com a organização destes em
e
bancos de dados, podemos afirmar que os
consideramos os julgamentos e punições
indicadores
direitos
dos crimes de trabalho escravo, os quais
trabalhistas são uma série discursiva
apresentam pena mínima de dois anos e
de
violação
de
recorrente nos documentos analisados nesta pesquisa.
da
Constituição
Federal,
quando
máxima de oito anos, prevista no artigo 149 do Código Penal, podendo ser aplicados ainda certos dispositivos para
Outra série recorrente é o clamor
atenuar a pena, com sua conversão em
pela criminalização da situação em pauta,
prestação de serviços à comunidade ou
ou seja, da tipificação penal por meio do
distribuição de cestas básicas, isto quando
consenso de um nome que abarque a
o crime não prescreve. Em 2005, dos 17.983 trabalhadores libertados em 1.463
condição de escravidão, na atualidade, para
fazendas fiscalizadas, houve poucos casos
que seja estipulado, concomitantemente o
de condenação, sendo que em nenhum
quadro jurídico das respectivas leis e
desses
penalidades frente à emergência dos
reclusão, dando à questão uma conotação
enunciados de ilegalidade. Embora conste, desde 1940, no Código Penal Brasileiro,
os
réus
cumpriram
pena
de
menos importante, o que de certa forma incentiva a continuidade dessa prática. (Pereira, 2007, p.115-116).
que as práticas associadas à escravidão contemporânea figurem como crimes;
De acordo com Passetti (2003, p.
ainda se evidencia um discurso de intenso
132), “[...] delimita-se o crime como algo
dessas
que atenta contra a sociedade e não contra
práticas e a punição dos considerados
indivíduos, sua vida ou seus bens”. Esse
“culpados”.
discurso presente na literatura brasileira é
clamor
pela
“criminalização”
O “clamor” pela criminalização traz
muito próximo do discurso proferido pela
novas práticas jurídicas para a situação em
OIT (2009), quando incentiva os países-
termos de maior delimitação das penas e,
membros a reverem suas legislações para
sobretudo, de endurecimento das mesmas.
procurar
Podemos então, exemplificar com um
criminalização e da punição referentes às
extrato de dissertação pesquisada sobre o
práticas de exploração dos trabalhadores.
assunto:
Contudo,
adequá-las
o
à
objetivo
demanda
maior
da
que
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
P á g i n a | 74
visualizamos na esfera internacional é
trabalho forçado destinado a juízes e
transformar a definição geral elaborada por
promotores públicos. (OIT, 2009, p. 02).
esta agência, como uma tipificação penal internacional. Desse modo, um tribunal internacional,
poderá
algum
dia,
futuramente, atuar no julgamento desses casos em qualquer lugar do mundo, uma vez que generalizadas as situações, a
Essa intervenção já se presentifica não só com o consentimento do pacto estabelecido entre os países, mas bem como, por meio das propostas e cartilhas, diversas
elaboradas
pela
agência e direcionadas a determinados profissionais para que atualizem seus trabalhos
à
demanda
do
juízes, também ganham suas versões destinadas
a
outros
segmentos
da
sociedade, como os sindicatos e inspetores do trabalho, configurando dispositivos biopolíticos que atuarão sobre a vida de
intervenção pela agência seria possível.
orientações
As orientações elaboradas para os
“clamor”
securitário e penal do neoliberalismo, criando assim espaços e posições de sujeitos da verdade específicos desta
determinadas populações, como a dos trabalhadores, já que estas foram eleitas como público alvo e irão passar por um controle
exercido
por
medidas
e
mecanismos que poderão fazer viver e deixar morrer, na esfera da segurança e da saúde. É neste aspecto que a biopolítica é exercida como prática de poder e saber, em sua positividade também e em termos de vinculação entre economia política com a soberania jurídica. Há uma ampliação da gestão do
determinada sociedade.
poder, que de acordo com Foucault (2005) Os juízes tem tido por vezes que enfrentar
para que se engendre nas diferentes esferas
novos conceitos de servidão por dívidas,
da vida, tanto no âmbito individual como
de práticas de escravatura e de exploração
no coletivo e, no caso da biopolítica, a
laboral. Muitas vezes, a dificuldade na
regulação é da totalidade de um segmento
interpretação de nova legislação é passada para o poder judicial, e onde possa existir
ou pelo menos da tentativa de. E,
jurisprudência, e, quer em países de direito
acrescenta o autor, essa economia do poder
comum ou de direito civil, devem aprender
não pode funcionar sem uma produção de
uns com os outros. Para orientar a prática
verdade. E uma questão é a luta pela
judicial,
delimitação e produção da verdade, que
e
instrumentos
para da
assegurar OIT
sobre
que
os
trabalho
forçado são considerados em julgamentos futuros, foi publicado em 2009, uma coletânea
de
jurisprudência
sobre
o
poderá ser a dos documentos analisados ou de outros registros e instâncias correlatas.
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
Assim, os discursos do objeto direitos
humanos e das
A questão é que outras formas de
de
exploração no trabalho se tornam menos
“trabalho escravo” como um crime grave e
graves diante da escravidão e terão menos
que deve ser punido é um destes regimes
atenção
de verdade e da recomendação de poder
neoliberalismo,
coextensiva ao mesmo. Neste aspecto,
equitativa passa a vigorar como central
podemos
frente
observar
práticas
P á g i n a | 75
que
outra
série
de
à
uma a
ampla
política, lógica
defesa
penal
de
no e
a
direitos
recorrente nos documentos é dos direitos
fundamentais
humanos.
financiamento de políticas estatais que
As intervenções realizadas pelos
e;
pois,
sobretudo,
garantam todos estes direitos.
de
Assim, o
diferentes grupos que atuam frente ao
que produz a escravidão não é alvo da
objeto
geralmente
política atual, pois são trabalhadores
baseiam-se no discurso da garantia e
explorados e, em progressiva situação de
promoção dos direitos humanos. E, no caso
exclusão pela não garantia de um conjunto
para garantir estes direitos, é proposta uma
de seus direitos fundamentais que irá
posição
conduzi-los para a escravidão como um
trabalho
de
escravo
sujeito
denominada
de
“trabalhador” e “pessoa” que se reconheça como “escravo”.
último recurso de “sobrevivência”. Percebemos
nos
discursos
dos
Ou seja, a partir do conjunto de
documentos nacionais e internacionais que
características discursivas levantadas como
há um movimento de desprestígio dos
constitutivas do objeto trabalho escravo
direitos civis, políticos e sociais e que
contemporâneo,
que
somente a urgência dos limites mais
desejar ser alvo da proteção e garantia
extremos tem sido alvo de alguma forma
respectiva
formação
de compensação pelo Estado brasileiro
discursiva produzido, deverá identificar-se
como decisão política para lidar com as
e aceitar ser classificado por este crivo. A
violações.
ao
cada
campo
trabalhador
de
situação de escravidão seria um agravante
Para Coimbra (2000) o foco para os
frente a outras violações de direitos
direitos humanos recebe uma construção
trabalhistas e criaria um campo de políticas
cotidiana, portanto, histórica. Se alguns
compensatórias
os
acontecimentos vão emergir como sendo
trabalhadores identificados nesta posição
casos de “violação dos direitos humanos”
subjetiva.
ou não, vai depender dos efeitos das
diferenciadas
para
relações de forças em um contexto
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
P á g i n a | 76
temporal e social. E para poder garantir o
assinado as Convenções da OIT, há grupos
lugar de “humano a ser protegido” pela
de resistência no país que propõem outras
condição de sobrevivente, é montada uma
designações, por acharem que a designada
rede de proteção com práticas de peritos e
pela OIT não corresponde às situações que
de especialistas que formam o que
ocorrem na realidade brasileira.
designamos de “complexo tutelar”.
Assim, por exemplo, no nosso
Emprestamos de Donzelot (1986) o
Código Penal, a designação constatada é de
conceito de Complexo tutelar para falar da
“Condições análogas a de escravo”, forma
“tutela” que de certo modo acaba sendo
encontrada
exercida sobre os trabalhadores, que
enfatizar as situações encontradas no
infantilizados pela maneira como seus
Brasil, que para alguns pesquisadores
direitos são apresentados como favor e
(Jardim, 2007; Jesus, 2005) preserva
benesse de cunho moral. Muitos assessores
determinadas práticas efetuadas no Brasil
com suas recomendações e reprodução das
Colônia, contudo, não sendo consideradas
chamadas práticas exitosas visam tutelar os
iguais. Para efeitos de julgamento e
corpos dos trabalhadores resgatados em
punição, deverão receber outra nomeação,
nome da defesa e proteção, todavia, sem
já
ouvir os que sofrem a violação de direitos
corresponde a uma prática extinta no
e sem valorizar suas falas e interesses.
Brasil, desde a Lei Áurea, segundo os
que
o
pelo
termo
setor
jurídico
“trabalho
para
escravo”
juristas brasileiros. A luta de saber e poder pelas nomeações dos acontecimentos
Para os movimentos sociais, a nomeação que se usa habitualmente é “trabalho escravo”, vindo tocar justamente
A primeira, “trabalho forçado”, é
nas situações mais explícitas da reprodução
uma descrição mais difundida pelo aporte
de práticas coloniais de exploração do
de divulgação e força de articulação
trabalho, atualizadas no presente.
política da OIT. O seu uso permite a
E,
por
último,
“condições
intervenção dessa agência no Estado
degradantes de trabalho”. Essa nomeação
brasileiro, o que aponta para os processos
está inserida no Código Penal Brasileiro,
de internacionalização do direito e da
complementando as características que
emergência de encomendas de julgamentos
evidenciam as práticas “análogas a de
a serem realizados por um tribunal
escravo”. Contudo, essa definição também
internacional. Embora o Brasil tenha
é fruto de tensões, mas há grupos que
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
defendem
o
uso ao
relacionado-a
dessa
expressão,
“trabalho
P á g i n a | 77
Referências
escravo”
somente se vier acompanhada da situação
Brasil. (2003). Plano Nacional para a
da falta de liberdade. É uma discussão
Erradicação do Trabalho Escravo.
gerada entre os procuradores do trabalho e
Brasília: OIT.
os dos direitos civis que por um lado,
______. (2008). Plano Nacional para a
também procuram demarcar sua posição
Erradicação do Trabalho Escravo,
nesse jogo de saber poder, gerado na
II. Brasília: SEDH.
discussão do tema “trabalho escravo”.
Coimbra, C. (2000). Psicologia, Direitos Humanos e Neoliberalismo. Revista Psicologia Política, v.1, n.1, julho.
Algumas considerações finais
Esterci,
N.
(1994).
Escravos
da
O objeto trabalho escravo difere do
desigualdade: estudo sobre o uso
trabalho forçado e, por sua vez, das
repressivo da força de trabalho
condições análogas à escravidão e ainda do
hoje. Rio de Janeiro: CEDI.
objeto exploração do trabalho, entre outras
Foucault, M. (2005). Em defesa da
nomeações utilizadas pelos grupos em
sociedade. 25. ed. São Paulo:
disputa.
Martins Fontes.
De
qualquer
forma,
os
acontecimentos se materializam em sua
______. (2008a).Nietzsche, a genealogia e
raridade e singularidade e, por isto, os
a história.
termos que são criados para governá-los
poder. Org. e Trad.:
são práticas
Roberto
e maneiras
de
Machado. 25. ed. Rio de Janeiro:
dão
conta
da
Graal.
apesar
de
______. (2008b). A Arqueologia do Saber.
destacarem a existência de um campo de
7. ed. Rio de Janeiro: Forense
preocupações políticas com o que nos
Universitária.
enquadrar
datadas
In: Microfísica do
que
multiplicidade
não em
jogo,
acontece no presente e o que produzimos
______. (2008c). Segurança, Território e
como efeito de um determinado modo de
População. São Paulo: Martins
recortar e nomear os acontecimentos.
Fontes. Jardim, P. G. (2007). Neoescravidão: as relações
de
contemporâneo
trabalho no
escravo Brasil.
Dissertação (Mestrado) – Programa
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
de
Pós-Graduação
em
Direito.
UFPR. Curitiba.
Brasil
representações
______. (2009). O custo da coerção. Relatório Global no seguimento da
Jesus. J. G. de. (2005). Trabalho escravo no
P á g i n a | 78
Declaração
da
OIT
sobre
os
contemporâneo:
Direitos e Princípios Fundamentais
sociais
do
dos
Trabalho.
Disponível
em:
libertadores. Dissertação (Mestrado
http://www.oitbrasil.org.br/inst/fun
em
d/docs/index.php. Acesso em: 06
Psicologia
Social
e
do
Trabalho) – UnB, Brasília.
mar. 2009.
Le Breton, B. (2002). Vidas roubadas: a
Passetti,
E.
(2003).
Anarquismos
e
escravidão moderna na Amazônia
sociedade de controle. São Paulo:
brasileira. 2. ed. São Paulo: Loyola.
Cortez.
Loreiro, V. R.; Pinto, J. N. A. (2005). A
Pereira, A. (2007) Os desafios para o
questão fundiária na Amazônia:
trabalho nas carvoarias de Ribas
algumas fontes para a compreensão
do
do problema atual. , São Paulo,
Dissertação (Mestrado) – Programa
Estudos avançados, 19 (54).
de Pós-Graduação em Geografia,
Machado, R. (2006). Foucault, a ciência e
Rio
Universidade
o saber. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge
“Júlio
Zahar.
Prudente..
Martins, J. de S. (1995). A reprodução do
Pardo/MS.
Estadual
Mesquita”,
2007.
Paulista Presidente
Rezende, R. (2000). Por que o trabalho
capital na frente pioneira e o
escravo.
renascimento da escravidão. Tempo
Avançados, vol. 14, n. 38, jan.
Social – Revista de Sociologia. USP, SP, 6 (1-2), p. 1-25.
São
Paulo,
Estudos
______. Pisando Fora da Própria Sombra: a escravidão por dívida no Brasil
______. (1997). Exclusão Social e a Nova Desigualdade. São Paulo: Paulus. Organização Internacional do Trabalho.
contemporâneo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. Russo, A. M. V. Os direitos humanos e a
(2008). Convenção 29 sobre o
escravidão
trabalho forçado ou obrigatório.
trabalhador
Disponível
Dissertação (Mestrado) – Programa
em:
por
dívida
brasileiro.
Pós-Graduação
em
do 2005.
http://www.oitbrasil.org.br/inst/fun
de
Direito,
d/docs/index.php. Acesso em: 07
Universidade do Vale do Rio dos
out. 2008.
Sinos, São Leopoldo, 2005.
Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013
Sakamoto, L. (2006). Nova escravidão traz
P á g i n a | 79
Humanas/UFPA.
Guamá,
mais vantagens econômicas para os
Pará/PA.
patrões que a da época colonial.
E-mail:
[email protected]
Disponível
Belém
do
em:
.
Flávia
Acesso em: 05 maio.
Psicóloga (UNESP), Mestre em Psicologia
Sento-Sé, J. L. de A. (2000). Trabalho
Cristina
Silveira
Lemos:
Social (UNESP), Doutora em História
escravo no Brasil na atualidade.
(UNESP).
Professora
adjunta
São Paulo: LTR.
Psicologia Social (UFPA).
III
de
Endereço: Avenida Augusto Côrrea, n. 01. Geise
do
Socorro
Lima
Gomes:
Instituto
de
Psicóloga no NASF, formada na UFPA.
Humanas/UFPA.
Mestre
Pará/PA.
em
Psicologia
pela
UFPA.
Doutoranda em Educação na UFPA. Endereço: Avenida Augusto Côrrea, n. 01. Instituto
de
Filosofia
e
Ciências
Filosofia Guamá,
e
Ciências
Belém
E-mail:
[email protected]
do