A constituição do trabalho escravo como um acontecimento

August 13, 2017 | Autor: Geise Gomes | Categoria: History, Psicología Social, Slave Labor, Documents
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Polis e Psique, Vol.3, n.1, 2013

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A constituição do trabalho escravo como um acontecimento The constitution of slave labor as an event La constitución del trabajo esclavo como un evento

Geise do Socorro Lima Gomes Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil. Flávia Cristina Silveira Lemos Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil.

Resumo O artigo visa debater a criação do objeto trabalho escravo em um campo de lutas de saber e poder em que o mesmo é resultante de práticas datadas e múltiplas, heterogêneas e raras. Também descreve um conjunto de lugares institucionais e posições de sujeito constituídas no bojo da elaboração do objeto, concomitantes aos conceitos e condições de possibilidade de aparecimento do acontecimento que ora é analisado. A política produzida como proteção frente ao jogo de tentativas de definição do objeto é correlata de uma maneira de pensar o mesmo e de descrevê-lo ainda que provisoriamente. Essa pesquisa foi realizada com uma análise histórica, documental e com contribuições de Foucault. Palavras-chave: Trabalho escravo; Documentos; História.

Abstract This article aims to discuss the creation of the object slave labor in a field of knowledge and power struggles in which it is dated and practices resulting from multiple, heterogeneous and rare. It also describes a set of institutional locations and subject positions constituted the core of the development of object concepts and concomitant conditions of possibility of occurrence of the event which is now analyzed. The policy produced as protection against the game attempts to define the object is related to a way of thinking the same and still describe the same provisionally, since the fights are still configuring and only battles were won. This research was conducted with a historical, documentary and with contributions from Foucault. Keywords: Slave labor; Documents; history.

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Resumen El artículo tiene como objetivo debatir sobre la creación de la mano de obra esclava objeto en un campo de conocimiento y las luchas de poder en el que está fechado y prácticas resultantes de múltiple, heterogéneo y poco frecuente. También se describe una serie de lugares institucionales y posiciones de sujeto constituía el núcleo del desarrollo de los conceptos de objeto y las condiciones concomitantes de la posibilidad de ocurrencia del hecho que ahora se analiza. La política producida como la protección contra el juego trata de definir el objeto se relaciona con una forma de pensar lo mismo y aún describir la misma forma provisional, ya que las peleas se siguen creando y sólo se ganaron batallas. Esta encuesta se llevó a cabo con una perspectiva histórica, documental y las contribuciones de Foucault. Palabras clave: El trabajo esclavo; Documentos; Historia.

E, para questionar os lugares

Introdução

assentados e, muitas vezes cristalizados Este trabalho é uma parte de

por

diferentes

grupos

e

instituições,

pesquisa de mestrado desenvolvida no

procuramos “desmontar” os documentos

Programa

de

em

selecionados para análise, com o intuito de

Psicologia.

O

estudo,

desnaturalizar os discursos que compõem

financiado pela CAPES foi realizar uma

os mesmos documentos e que por sua vez

analítica histórica acerca da formação do

disparam práticas de poder e de saber sobre

campo de luta gerado na constituição do

trabalhadores,

objeto “trabalho escravo”.

simultaneamente

Pós-Graduação objetivo

do

subjetivando-os aos

processos

de

Esse campo de lutas culminou na

objetivação do trabalho como escravo,

produção de documentos nacionais e

como análogo ao escravo ou ainda como

internacionais produzidos por diversos

forçado, dependendo do grupo e instituição

grupos e que foram selecionados para

em jogo.

compor as análises sobre a constituição desse acontecimento.

Assim, baseadas nas contribuições

Esses documentos

de Michel Foucault, apresentamos algumas

são forjados e acionados, por sua vez, por

descrições e análises da produção do

diversos grupos/segmentos para eleger os

objeto trabalho escravo por meio de

trabalhadores rurais como população alvo

práticas correlatas e heterogêneas e seus

de investimentos políticos e econômicos.

efeitos, no presente, a partir de uma breve história das mesmas.

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Acerca das práticas de exploração dos

multilateral ligada à Organização das

trabalhadores rurais

Nações Unidas (ONU) e que a partir da elaboração de duas Convenções: a de N. 29

A literatura levantada (Rezende,

e a de N. 105, que formulam proposições

2004; Le Breton, 2002; Martins, 1995;

que visam eliminar tais práticas em todo o

Esterci,

um

mundo, pelos países que aceitaram pactuar

histórico sobre a produção da visibilidade

tais Convenções. Sendo assim, de acordo

dada às práticas de “exploração de

com a Convenção 29 da OIT: “[...]

trabalhadores rurais”, no Brasil, associando

trabalho

sua divulgação às denúncias realizadas,

compreenderá todo trabalho ou serviço

principalmente pela Comissão Pastoral da

exigido de uma pessoa sob ameaça de

Terra (CPT), por volta dos anos 70 e 80, no

sanção e para o qual não se tenha oferecido

século XX. A CPT passou a nomear estas

espontaneamente” (OIT, 2008).

1994)

permite

recortar

práticas de trabalho escravo.

forçado

ou

obrigatório

O Brasil foi um dos países,

Antes desse período e nomeação,

integrante da OIT que assinou esta

essas práticas eram classificadas como

Convenção, e comprometia-se a erradicar

“irregularidades trabalhistas” e o Estado

essas práticas do país. E, devido ao não

brasileiro negava a existência das mesmas,

cumprimento desse acordo; segmentos da

conforme podemos investigar nos relatos

sociedade

dos movimentos denunciantes.

denunciando as situações desta condição

Em

outros

países,

civil

organizaram-se

práticas

de trabalho, no Brasil às várias instituições

semelhantes, que envolviam uma série de

internacionais, como uma forma de fazer

eventos classificados como desrespeito aos

pressão e dar visibilidade para as práticas

direitos trabalhistas, tais como a presença

em questão.

de violações de sua liberdade e, inclusive

As denúncias geralmente versam

inúmeras práticas de torturas e violências

sobre: falta de cumprimento dos direitos

diversas começaram a ser definidas como

trabalhistas, configurados nas extensas

um

horas de trabalho, sem pagamento; falta de

mesmo

objeto

Internacional

do

pela

Organização

Trabalho

(OIT),

denominado de “trabalho forçado”. O objeto “trabalho forçado” se torna cunhada

uma

tipificação

pela

OIT,

internacional, uma

agência

registro da carteira; condições de higiene e salubridade

inadequadas;

cometidas

pelos

e

violências

empregados

dos

contratantes/fazendeiros/empresários: práticas diversas que se configuram como

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torturas:

chicoteamento,

coronhadas,

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exemplo:

trabalho

acorrentamento, partes do corpo mutiladas,

superexploração

assassinatos e humilhações verbais e

escravidão

ameaças.

presença

A

de

“capangas”

de

semiescravo; mão

de

branca;

obra;

escravidão

contemporânea; neoescravidão etc.

armados é outra característica citada, como

Essa variedade de nomenclaturas,

elemento que garantiria a coerção desses

por sua vez, é entendida por alguns

trabalhadores (Loreiro & Pinto, 2005;

pesquisadores como um “entrave” ou

Sakamoto,

“empecilho” para a investigação dessas

2004;

Le

Breton,

2002;

Rezende, 2000; Martins, 1997).

práticas e seu consequente julgamento

Por conta da variedade de situações e

violências

sofridas

por

(Jardim, 2007; Sento Sé, 2000). De acordo

esses

com suas opiniões, é preciso que haja um

trabalhadores, uma vez que estas práticas

“consenso” sobre a denominação dessas

não se restringem ao meio rural, mas são

práticas, para que medidas de punição e

realizadas também nas carvoarias; nas

enfrentamento

fábricas principalmente as têxteis; nos

(Martins, 2009; Moura, 2006; Rezende,

espaços domésticos; um número crescente

2004). No entanto, um dos maiores debate

de nomeações foi emergindo. Dependendo

que se apresenta compondo os discursos

do setor da sociedade que se manifestava,

sobre

cada prática ganhava visibilidade com uma

relevância ou não dada ao acontecimento,

denominação, que este setor julgava ser a

caso um ou outro nome seja o “escolhido”.

“mais pertinente”. Uma

essas

possam

práticas

ser

diz

aplicadas

respeito

à

Notamos, então, a configuração de

série

de

processos

de

um campo de luta, que na disputa pela

objetivação implicava em nomeações e

definição,

demandas

dos

“essencialização” dessas práticas e resulta

campos de saber e poder em que o

em implicações de poder diferenciadas.

acontecimento

de

Nesse campo são produzidos regimes de

entrecruzamento de forças específicas. Os

visibilidade e de dizibilidade a partir de

lugares

posições

posicionamentos quanto às práticas em

subjetivas, os temas e conceitos, as

questão, suscitando um campo discursivo

modalidades enunciativas iam delimitando

heterogêneo entre os pesquisadores e

condições

movimentos sociais, além de práticas de

diversas,

dependendo

resultava

institucionais,

de

as

possibilidade

para

o

aparecimento dos objetos. Assim, de acordo com Esterci (1994) temos como

poder

parte

correlatas,

em

busca

sobretudo,

de

as

uma

que

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demandam uma lógica penal para os que

às discussões geradas no meio acadêmico;

lucram com estas práticas.

a Convenção 29 sobre o trabalho forçado

E, na tentativa de desnaturalizar os

ou obrigatório, a Convenção 105 relativa à

discursos que engendram as práticas de

abolição do trabalho forçado e o Relatório

“exploração

Global 2009 da OIT “O custo da coerção”

de

trabalhadores

rurais”,

buscou-se nessa pesquisa, dar visibilidade

como

a esse emaranhado de enfrentamentos que

internacionais; o Relatório 2010 da OIT

vão se materializar na produção de

“Combatendo

documentos. E, em nenhum momento nos

contemporâneo: o exemplo do Brasil” e os

colocamos como defensores de qualquer

Planos

forma de violência e de exploração de

Trabalho Escravo: I (2003) e II (2008),

trabalhadores,

como complemento à discussão no Brasil.

essa

pesquisa

tentou

questionar os outros lugares ocupados e, muitas

vezes

de

o

Nacionais

Esses

documentos

trabalho

de

escravo

Erradicação

documentos

ao

foram

por

trabalhados a partir de uma análise baseada

dizem

em apropriações que fizemos de conceitos

nos

de Michel Foucault, por meio da história

perguntando de que forma esses grupos são

arqueológica e genealógica, que consiste

convidados a legislar sobre a vida dessas

em realizar uma análise que não visa a

pessoas? Para questionar esses “lugares”,

“descoberta de essências”, mas “[...]

trabalhamos

realizar

determinados “defender”

consolidados

exemplo

grupos, esses

que

trabalhadores,

com

a

perspectiva

uma

análise

histórica

das

foucaultiana, que nos ajudou no recorte dos

condições políticas de possibilidades dos

documentos de acordo com as orientações

discursos” (Machado, 2006, p. 167).

a seguir. Seguir o filão complexo da proveniência é, [...] manter o que se passou na dispersão

Ferramentas de análise

que lhe é própria: é demarcar os acidentes, os ínfimos desvios – ou ao contrário as

Os documentos escolhidos para a realizarmos

a

pesquisa

do

inversões completas – os erros, as falhas

campo

na apreciação, os maus cálculos que deram

heterogêneo de práticas de saber e de poder

nascimento ao que existe e tem valor para

que objetivam o “trabalho escravo” foram:

nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos

08 dissertações publicadas no arquivo

– não existe a verdade e o ser, mas a

intitulado banco de dissertações e teses da

exterioridade

CAPES, na internet, para dar visibilidade

2008a, p. 21).

do

acidente.

(Foucault,

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O trabalho com documentos exige paciência, de acordo com Foucault (1979).

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que objetivam as práticas e subjetivam os corpos, por sua vez, dos trabalhadores.

Ele nos ensinou a pensar a produção dos

Para a identificação dessas práticas “séries”

foram

por práticas que são acontecimentos raros e

funcionaram

singulares, datados e forjados por lutas.

metodológicos ajudando a recortar os

Os

documentos

são

montados,

organizadas

que

documentos como arquivos, constituídos

como

operadores

documentos, em determinados campos de

organizados e recortados, conservados e

luta

guardados de certo modo e em certo lugar

acontecimentos. As séries recortadas para

e tempo, portanto, têm história e são

as análises ajudaram a ordenar e organizar

resultantes de forças distintas e múltiplas,

os

que se encontraram ao acaso e seu ponto

conceitos, lugares institucionais, posições

de encontro é a emergência e sua aparição

de

não

a

possibilidade de aparecimento dos objetos.

genealogia permite a crítica da origem e da

Tanto nas dissertações estudadas

finalidade e a arqueologia possibilita a

quanto nos documentos da OIT, existe uma

visão de descontinuidade que se atualiza

preocupação em definir as práticas de

por proveniências e dispersões.

exploração dos trabalhadores. Definir essas

tem

intencionalidade.

Assim,

É neste aspecto, que Le Goff

que

compõem

discursos

sujeito

práticas

os

destacados

e

requer

pelas

a

discursos-

por

temas,

condições

formulação

de

de

(2003) destaca que: nenhum documento é

justificativas que vão sendo elaboradas

inocente, devendo ser des-estruturado,

com o objetivo de chegar a um “consenso”

desmontado

um

pela produção de jogos de saber-poder,

artifício que foi elaborado e organizado de

constituído por forças heterogêneas. Estes

certa maneira, em uma dada época e lugar

regimes de verdade operam também pela

específicos tal como um diagrama de

tipificação penal para facilitar a realização

forças dispersas e heterogêneas que se

de um julgamento; que possibilite a criação

articularam. Logo, os documentos aqui

de banco de dados com o cadastro dos

apresentados foram analisados com esse

trabalhadores que foram resgatados e que

intuito, de dar visibilidade à construção das

foram

práticas discursivas e das não discursivas

sociais;

que compõem os documentos, e de como

documentos dos trabalhadores, como a

estas se configuraram como dispositivos

carteira de identidade e de trabalho; que

e

interrogado

como

viabilize

encaminhados que

o

para

favoreça

pagamento

o

programas registro

dos

de

direitos

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trabalhistas e de indenizações pelos danos

condição pelo fato dos mesmos terem

sofridos etc.

assinados termos de compromisso com a

Contudo, como eleger os elementos

OIT e por terem ratificado as Convenções

que irão servir de composição dos tais

referentes a cada violação de direito

“dados”? Que critérios serão elaborados

trabalhista a que estas Convenções se

para avaliar se um caso se trata ou não de

referem.

“trabalho escravo”? Essas questões são

A OIT assinala que muitos países,

apresentadas posições que implicam em

inclusive, o Brasil mascaram estes dados e

decisões a respeito das chamadas políticas

até mesmo não têm arquivos com registros

públicas de enfrentamento à situação

confiáveis a respeito, de acordo com o

exemplificada, por diferentes agentes e

relatório 2009 dessa organização. A partir

órgãos

da entrega destes dados, a OIT orienta os

governamentais

e

não

governamentais.

países

A Organização Internacional do

a

criarem

metodologias

para

pesquisas sobre o tema, que possam

Trabalho recebe um destaque nos estudos

demonstrar

sobre “trabalho escravo contemporâneo”

submetidas ao que delimita como trabalho

por legislar a respeito das relações de

forçado e que definam características

trabalho no âmbito internacional. Por sua

específicas da mesma em seus territórios,

vez, acaba recebendo por diversos países,

bem como descreva quais são os locais de

pedidos de auxílio na identificação das

maior incidência destas práticas e que

práticas, já que este órgão conseguiu

circunscreva as violações trabalhistas e

agenciar

outras (como as de liberdade) que estão

grande

reconhecimento

e

o

perfil

sendo

expertise de pesquisa, de articulação

podemos

política e de intervenções em muitos países

administrativo penal vai se esboçando na

nas situações de violações de direitos

política definida como de enfrentamento ao

trabalhistas,

trabalho escravo e de que maneira a

especial,

nas

que

denominou de “trabalho forçado”. Diante das encomendas da OIT, os países são convocados a apresentarem os

etc.

pessoas

construiu ao longo de décadas uma

em

realizadas

dessas

analisar

diplomacia

Desse

modo,

um

campo

como

interfere

na

situação

de

violação dos direitos trabalhistas. Para

Foucault está

(2008c),

baseada

em

essa

seus levantamentos sobre as situações

preocupação

uma

denunciadas, por meio de relatórios de

biopolítica, que encontra um dispositivo de

prestação de contas a respeito desta

governo securitário, aliada aos saberes da

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informática, da estatística, da geografia, da demografia, da administração social e do

Assim,

direito penal. A partir dessa preocupação

descumprimento da legislação brasileira.

da OIT com a criação de protocolos de

temos

questões

como

o

Não podemos nos esquecer da brandura e da permissividade da legislação trabalhista

denúncia e com a organização destes em

e

bancos de dados, podemos afirmar que os

consideramos os julgamentos e punições

indicadores

direitos

dos crimes de trabalho escravo, os quais

trabalhistas são uma série discursiva

apresentam pena mínima de dois anos e

de

violação

de

recorrente nos documentos analisados nesta pesquisa.

da

Constituição

Federal,

quando

máxima de oito anos, prevista no artigo 149 do Código Penal, podendo ser aplicados ainda certos dispositivos para

Outra série recorrente é o clamor

atenuar a pena, com sua conversão em

pela criminalização da situação em pauta,

prestação de serviços à comunidade ou

ou seja, da tipificação penal por meio do

distribuição de cestas básicas, isto quando

consenso de um nome que abarque a

o crime não prescreve. Em 2005, dos 17.983 trabalhadores libertados em 1.463

condição de escravidão, na atualidade, para

fazendas fiscalizadas, houve poucos casos

que seja estipulado, concomitantemente o

de condenação, sendo que em nenhum

quadro jurídico das respectivas leis e

desses

penalidades frente à emergência dos

reclusão, dando à questão uma conotação

enunciados de ilegalidade. Embora conste, desde 1940, no Código Penal Brasileiro,

os

réus

cumpriram

pena

de

menos importante, o que de certa forma incentiva a continuidade dessa prática. (Pereira, 2007, p.115-116).

que as práticas associadas à escravidão contemporânea figurem como crimes;

De acordo com Passetti (2003, p.

ainda se evidencia um discurso de intenso

132), “[...] delimita-se o crime como algo

dessas

que atenta contra a sociedade e não contra

práticas e a punição dos considerados

indivíduos, sua vida ou seus bens”. Esse

“culpados”.

discurso presente na literatura brasileira é

clamor

pela

“criminalização”

O “clamor” pela criminalização traz

muito próximo do discurso proferido pela

novas práticas jurídicas para a situação em

OIT (2009), quando incentiva os países-

termos de maior delimitação das penas e,

membros a reverem suas legislações para

sobretudo, de endurecimento das mesmas.

procurar

Podemos então, exemplificar com um

criminalização e da punição referentes às

extrato de dissertação pesquisada sobre o

práticas de exploração dos trabalhadores.

assunto:

Contudo,

adequá-las

o

à

objetivo

demanda

maior

da

que

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visualizamos na esfera internacional é

trabalho forçado destinado a juízes e

transformar a definição geral elaborada por

promotores públicos. (OIT, 2009, p. 02).

esta agência, como uma tipificação penal internacional. Desse modo, um tribunal internacional,

poderá

algum

dia,

futuramente, atuar no julgamento desses casos em qualquer lugar do mundo, uma vez que generalizadas as situações, a

Essa intervenção já se presentifica não só com o consentimento do pacto estabelecido entre os países, mas bem como, por meio das propostas e cartilhas, diversas

elaboradas

pela

agência e direcionadas a determinados profissionais para que atualizem seus trabalhos

à

demanda

do

juízes, também ganham suas versões destinadas

a

outros

segmentos

da

sociedade, como os sindicatos e inspetores do trabalho, configurando dispositivos biopolíticos que atuarão sobre a vida de

intervenção pela agência seria possível.

orientações

As orientações elaboradas para os

“clamor”

securitário e penal do neoliberalismo, criando assim espaços e posições de sujeitos da verdade específicos desta

determinadas populações, como a dos trabalhadores, já que estas foram eleitas como público alvo e irão passar por um controle

exercido

por

medidas

e

mecanismos que poderão fazer viver e deixar morrer, na esfera da segurança e da saúde. É neste aspecto que a biopolítica é exercida como prática de poder e saber, em sua positividade também e em termos de vinculação entre economia política com a soberania jurídica. Há uma ampliação da gestão do

determinada sociedade.

poder, que de acordo com Foucault (2005) Os juízes tem tido por vezes que enfrentar

para que se engendre nas diferentes esferas

novos conceitos de servidão por dívidas,

da vida, tanto no âmbito individual como

de práticas de escravatura e de exploração

no coletivo e, no caso da biopolítica, a

laboral. Muitas vezes, a dificuldade na

regulação é da totalidade de um segmento

interpretação de nova legislação é passada para o poder judicial, e onde possa existir

ou pelo menos da tentativa de. E,

jurisprudência, e, quer em países de direito

acrescenta o autor, essa economia do poder

comum ou de direito civil, devem aprender

não pode funcionar sem uma produção de

uns com os outros. Para orientar a prática

verdade. E uma questão é a luta pela

judicial,

delimitação e produção da verdade, que

e

instrumentos

para da

assegurar OIT

sobre

que

os

trabalho

forçado são considerados em julgamentos futuros, foi publicado em 2009, uma coletânea

de

jurisprudência

sobre

o

poderá ser a dos documentos analisados ou de outros registros e instâncias correlatas.

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Assim, os discursos do objeto direitos

humanos e das

A questão é que outras formas de

de

exploração no trabalho se tornam menos

“trabalho escravo” como um crime grave e

graves diante da escravidão e terão menos

que deve ser punido é um destes regimes

atenção

de verdade e da recomendação de poder

neoliberalismo,

coextensiva ao mesmo. Neste aspecto,

equitativa passa a vigorar como central

podemos

frente

observar

práticas

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que

outra

série

de

à

uma a

ampla

política, lógica

defesa

penal

de

no e

a

direitos

recorrente nos documentos é dos direitos

fundamentais

humanos.

financiamento de políticas estatais que

As intervenções realizadas pelos

e;

pois,

sobretudo,

garantam todos estes direitos.

de

Assim, o

diferentes grupos que atuam frente ao

que produz a escravidão não é alvo da

objeto

geralmente

política atual, pois são trabalhadores

baseiam-se no discurso da garantia e

explorados e, em progressiva situação de

promoção dos direitos humanos. E, no caso

exclusão pela não garantia de um conjunto

para garantir estes direitos, é proposta uma

de seus direitos fundamentais que irá

posição

conduzi-los para a escravidão como um

trabalho

de

escravo

sujeito

denominada

de

“trabalhador” e “pessoa” que se reconheça como “escravo”.

último recurso de “sobrevivência”. Percebemos

nos

discursos

dos

Ou seja, a partir do conjunto de

documentos nacionais e internacionais que

características discursivas levantadas como

há um movimento de desprestígio dos

constitutivas do objeto trabalho escravo

direitos civis, políticos e sociais e que

contemporâneo,

que

somente a urgência dos limites mais

desejar ser alvo da proteção e garantia

extremos tem sido alvo de alguma forma

respectiva

formação

de compensação pelo Estado brasileiro

discursiva produzido, deverá identificar-se

como decisão política para lidar com as

e aceitar ser classificado por este crivo. A

violações.

ao

cada

campo

trabalhador

de

situação de escravidão seria um agravante

Para Coimbra (2000) o foco para os

frente a outras violações de direitos

direitos humanos recebe uma construção

trabalhistas e criaria um campo de políticas

cotidiana, portanto, histórica. Se alguns

compensatórias

os

acontecimentos vão emergir como sendo

trabalhadores identificados nesta posição

casos de “violação dos direitos humanos”

subjetiva.

ou não, vai depender dos efeitos das

diferenciadas

para

relações de forças em um contexto

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temporal e social. E para poder garantir o

assinado as Convenções da OIT, há grupos

lugar de “humano a ser protegido” pela

de resistência no país que propõem outras

condição de sobrevivente, é montada uma

designações, por acharem que a designada

rede de proteção com práticas de peritos e

pela OIT não corresponde às situações que

de especialistas que formam o que

ocorrem na realidade brasileira.

designamos de “complexo tutelar”.

Assim, por exemplo, no nosso

Emprestamos de Donzelot (1986) o

Código Penal, a designação constatada é de

conceito de Complexo tutelar para falar da

“Condições análogas a de escravo”, forma

“tutela” que de certo modo acaba sendo

encontrada

exercida sobre os trabalhadores, que

enfatizar as situações encontradas no

infantilizados pela maneira como seus

Brasil, que para alguns pesquisadores

direitos são apresentados como favor e

(Jardim, 2007; Jesus, 2005) preserva

benesse de cunho moral. Muitos assessores

determinadas práticas efetuadas no Brasil

com suas recomendações e reprodução das

Colônia, contudo, não sendo consideradas

chamadas práticas exitosas visam tutelar os

iguais. Para efeitos de julgamento e

corpos dos trabalhadores resgatados em

punição, deverão receber outra nomeação,

nome da defesa e proteção, todavia, sem



ouvir os que sofrem a violação de direitos

corresponde a uma prática extinta no

e sem valorizar suas falas e interesses.

Brasil, desde a Lei Áurea, segundo os

que

o

pelo

termo

setor

jurídico

“trabalho

para

escravo”

juristas brasileiros. A luta de saber e poder pelas nomeações dos acontecimentos

Para os movimentos sociais, a nomeação que se usa habitualmente é “trabalho escravo”, vindo tocar justamente

A primeira, “trabalho forçado”, é

nas situações mais explícitas da reprodução

uma descrição mais difundida pelo aporte

de práticas coloniais de exploração do

de divulgação e força de articulação

trabalho, atualizadas no presente.

política da OIT. O seu uso permite a

E,

por

último,

“condições

intervenção dessa agência no Estado

degradantes de trabalho”. Essa nomeação

brasileiro, o que aponta para os processos

está inserida no Código Penal Brasileiro,

de internacionalização do direito e da

complementando as características que

emergência de encomendas de julgamentos

evidenciam as práticas “análogas a de

a serem realizados por um tribunal

escravo”. Contudo, essa definição também

internacional. Embora o Brasil tenha

é fruto de tensões, mas há grupos que

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defendem

o

uso ao

relacionado-a

dessa

expressão,

“trabalho

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Referências

escravo”

somente se vier acompanhada da situação

Brasil. (2003). Plano Nacional para a

da falta de liberdade. É uma discussão

Erradicação do Trabalho Escravo.

gerada entre os procuradores do trabalho e

Brasília: OIT.

os dos direitos civis que por um lado,

______. (2008). Plano Nacional para a

também procuram demarcar sua posição

Erradicação do Trabalho Escravo,

nesse jogo de saber poder, gerado na

II. Brasília: SEDH.

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Algumas considerações finais

Esterci,

N.

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Escravos

da

O objeto trabalho escravo difere do

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trabalho forçado e, por sua vez, das

repressivo da força de trabalho

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objeto exploração do trabalho, entre outras

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disputa.

Martins Fontes.

De

qualquer

forma,

os

acontecimentos se materializam em sua

______. (2008a).Nietzsche, a genealogia e

raridade e singularidade e, por isto, os

a história.

termos que são criados para governá-los

poder. Org. e Trad.:

são práticas

Roberto

e maneiras

de

Machado. 25. ed. Rio de Janeiro:

dão

conta

da

Graal.

apesar

de

______. (2008b). A Arqueologia do Saber.

destacarem a existência de um campo de

7. ed. Rio de Janeiro: Forense

preocupações políticas com o que nos

Universitária.

enquadrar

datadas

In: Microfísica do

que

multiplicidade

não em

jogo,

acontece no presente e o que produzimos

______. (2008c). Segurança, Território e

como efeito de um determinado modo de

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recortar e nomear os acontecimentos.

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(UNESP).

Professora

adjunta

São Paulo: LTR.

Psicologia Social (UFPA).

III

de

Endereço: Avenida Augusto Côrrea, n. 01. Geise

do

Socorro

Lima

Gomes:

Instituto

de

Psicóloga no NASF, formada na UFPA.

Humanas/UFPA.

Mestre

Pará/PA.

em

Psicologia

pela

UFPA.

Doutoranda em Educação na UFPA. Endereço: Avenida Augusto Côrrea, n. 01. Instituto

de

Filosofia

e

Ciências

Filosofia Guamá,

e

Ciências

Belém

E-mail: [email protected]

do

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