A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE CAROLINA MARIA DE JESUS POR MEIO DA LITERATURA

June 30, 2017 | Autor: Edgar Gabriele | Categoria: Identity (Culture), Post-Colonial Literature, Brazilian Literature
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CENTRO UNIVERSITÁRIO ANHANGUERA DE SÃO PAULO

EDGAR GODOI GABRIEL

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE CAROLINA MARIA DE JESUS POR MEIO DA LITERATURA

São Paulo 2014

EDGAR GODOI GABRIEL

A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DE CAROLINA MARIA DE JESUS POR MEIO DA LITERATURA

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Letras, Tradutor e Intérprete Inglês- Português do Centro Universitário Anhanguera de São Paulo - Unidade Brigadeiro para a obtenção do título de Bacharel.

São Paulo 2014

A meus pais, Ana e Luiz

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer a meus pais, Ana e Luiz, por serem o princípio do que este trabalho representa. Todo o esforço que fizeram para me educar e me amar de forma tão singular. Embora conste apenas meu nome na capa deste trabalho, eles também são responsáveis por estes textos. Sou a continuação da luta deles por um mundo mais justo e igualitário. Agradeço ao meu irmão Kleber Godoi Gabriel por me aturar e “quebrar meu galho” nos momentos em que precisei. À minha tia Márcia Godoi (in memoriam), que me iniciou na literatura engajada e politizada. À Elaine R. da Silva, que tem me acompanhado todos estes anos e me acolhido após algumas ausências. A quem agradeço e dedico todo o meu amor! Às professoras que dedicaram tempo para me orientar nos momentos de dúvidas e que me ajudaram a construir minha identidade por meio dos estudos, Alvany Guanaes, Rita de Cássia da Silva e Fátima Abbate. Aos amigos: Amauri Germano (força sempre!), Mike Cabrera, família Morozi, Wolf e Paula e André Cavalcante (El gringo). E à Carolina Maria de Jesus por ter tido a coragem de fazer tudo o que fez, pela inspiração para este trabalho e, acima de tudo, embora tropeçando aqui e ali, por ter enfrentado as mais diversas dificuldades em nome de um objetivo, sempre de cabeça erguida. Eles já não podem mais apagar o que foi eternizado em seus cadernos.

Falar é estar em condições de empregar uma certa sintaxe, possuir a morfologia de tal ou qual língua, mas é sobretudo assumir uma cultura, suportar o peso de uma civilização. (Frantz Fanon)

A obra segura-se na mão, o texto mantém-se na linguagem; ele só existe tomado num discurso. (Roland Barthes)

É melhor escrever errado a coisa certa, do que escrever certo a coisa errada. (Patativa do Assaré)

A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada. (Manuel Bandeira)

RESUMO

Este trabalho visa a analisar como Carolina Maria de Jesus constrói sua identidade de sujeito literário e sujeito social por meio da narrativa feita em seus diários. Para isso, foi analisada a relação entre obra e biografia da escritora diarista, pois Quarto de Despejo: diário de uma favelada teve sua autoria posta em xeque por conta de a autora ser negra e moradora de uma grande favela. Acreditava-se que alguém nessas condições não fosse capaz de escrever uma obra daquela magnitude. Mas afinal, quem é Carolina Maria de Jesus e qual sua importância para a literatura nacional? Para embasarmos esta discussão, lançamos mão das pesquisas de MEIHY; LEVINE (1994), SOUSA (2012), PERPÉTUA (2014) e HALL (2014a; b).

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus. Identidade e Identificação. Biografia.

ABSTRACT

This work aims to analyze how Carolina Maria de Jesus constructs her Literary and Human Identity through her journal’s narrative. To do so, we analyze the relation between Carolina’s work and biography because Child of the Dark: The Diary of Carolina Maria de Jesus had its authorship questioned just because she was black and a slum dweller. It was believed that someone under those conditions was not capable of writing such a book. After all, who is Carolina Maria de Jesus and what is her importance to Brazilian Literature? To discuss such questions, we based our analysis on the works of MEIHY; LEVINE (1994), SOUSA (2012), PERPÉTUA (2014) e HALL (2014a; b).

Key words: Carolina Maria de Jesus. Identity and Identification. Biography.

SUMÁRIO

RESUMO ……………………………..…………..…………………………..……………. IX 1. INTRODUÇÃO ………………………….……………………………..……………..… 01

2. BIOGRAFIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS 2.1 Escolaridade………………………………………………………..………........... 04 2.1.1 Como Carolina teve acesso à educação formal …………………….……..…. 08 2.1.2 As razões que levaram Carolina a abandonar os estudos…..……….…..…… 09 2.1.3 Influência da professora Lanita Salvina, do avô Benedito José da Silva e do senhor Manoel Nogueira…………………………………………………..….. 11 2.2 Motivos da saída de Minas Gerais e sua ida para São Paulo ……..……………… 12 2.2.1 Razões para Carolina Maria de Jesus ter ido morar na favela……………….. 15 2.3 Interesse pela leitura e pela escrita …...….....……………….…………………......17 2.3.1 Motivações para Carolina escrever o diário……..………………….……...… 19 2.3.2 Como Carolina consegue publicar seus escritos…….....………………….…. 23 2.3.3 Da utopia à distopia.……………………………………..………………....... 25

3. PANORAMA DO NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA ATÉ MEADOS DO SÉCULO XX ………………………………………………………... 29 3.1 Escritoras negras brasileiras até 1960……………………………………..…….… 29 3.2 Escritores negros brasileiros até 1960…………………………………….….…… 37

4. EU DISCURSIVO, IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO NA OBRA DE CAROLINA ……………………………………………………………..... 47 4.1 Construção da identidade do sujeito social …...…………………………………... 47 4.2 Construção da identidade do sujeito literário….………………………………..… 56 4.3 A importância dos escritos de Carolina Maria de Jesus na atualidade .………….. 59 4.4 Considerações Finais …………………………………………………………...… 61 5. REFERÊNCIAS …………………...……………………………………………………. 62

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1. INTRODUÇÃO

De 1948 a 1960, Carolina Maria de Jesus foi uma dos muitos moradores de uma grande favela de São Paulo: a Favela do Canindé, a qual foi desativada nos anos de 1960 para a construção da Marginal do Tietê. Por ser negra, favelada e semianalfabeta, muitos não acreditaram que Carolina de Jesus fosse capaz de registrar seu cotidiano e o dos demais moradores da favela do Canindé de forma detalhada e crítica. A partir desses registros, surgiu Quarto de Despejo: diário de uma favelada, publicado em agosto de 1960. Dadas as proporções, a obra acabou retratando uma parte do Brasil que até então não entrava nas pautas de discussões políticas, nem acadêmicas. Por esse motivo, defendeu-se que Audálio Dantas (o repórter que intermediou a publicação da obra), temendo represálias, havia criado um pseudônimo com o qual pudesse denunciar as mazelas sociais a que a população da favela estava submetida na capital paulista. Portanto, dizia-se que a obra de estreia de Carolina Maria de Jesus era de autoria de Dantas, e que Carolina Maria de Jesus era sua “criação”. No entanto, mesmo Dantas afirmando que “repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história - a visão de dentro da favela”, levou-se um longo período para que Carolina Maria de Jesus fosse aceita como a autora da obra. Mas afinal, quem é Carolina Maria de Jesus? Como ela se tornou uma escritora notória a partir de Quarto de Despejo e sumiu logo após? O que se sabe a seu respeito e qual é sua importância para a literatura brasileira? Visando a resgatar o histórico de Carolina Maria de Jesus e como sua obra foi escrita baseada em sua (auto) biografia, este trabalho busca trilhar pelas comparações de sua vida e sua obra. Quais são os desejos da escritora, e como ela constrói sua identidade de sujeito social e de sujeito literário por meio desses escritos. Afinal, tudo o que Carolina de Jesus mais queria era estabelecer-se como escritora, mais precisamente, como poeta. E tudo que se sabe a seu respeito deve-se a seu trabalho de escritora. Todas as informações trilham por sua biografia, sua identidade de poeta/escritora. Para tanto, o método adotado consiste em levantar as informações mais relevantes de sua biografia para a composição deste trabalho no Capítulo 2 - Biografia de Carolina Maria de Jesus. Assim, pode-se comparar sua escrita com sua biografia e estabelecer a verossimilhança dos fatos por ela descritos, e como Carolina tem burlado algumas regras sociais estabelecidas (fronteiras invisíveis). Abordaram-se os seguintes tópicos:

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Escolaridade: a escritora frequentou a escola por apenas dois anos numa época em que negros não eram aceitos nos bancos escolares, e como esse fato é importante para que se possa entender e analisar a estética de sua escrita. Como Carolina teve acesso à educação formal: oriunda de família pobre, descendentes de escravizados, se não fosse a caridade de outrem, Carolina jamais teria acesso ao colégio particular na condição de aluna. O que levou Carolina a abandonar os estudos: por falta de condições de sobrevivência digna na pacata cidade de Sacramento, a família teve de se mudar. Assim se foi a oportunidade de ela continuar estudando. A influência de pessoas próximas à menina Carolina: quando criança, Carolina adorava ficar ouvindo histórias, três pessoas foram fundamentais em sua infância, o avô, a primeira professora e o vizinho amigo da família. Migração: os motivos que levaram a família a migrar para São Paulo, houve um período no Brasil em que a forma como as pessoas conheciam o trabalho foi modificada. As máquinas substituíram os trabalhadores e, com isso, muitas pessoas tiveram de abandonar o campo e migrar para as regiões urbanas. Carolina foi uma delas. As razões pelas quais Carolina foi morar em uma favela: em virtude de ser independente, os empregos na capital paulista não a deixavam feliz. Sem qualquer condição financeira de se estabelecer na cidade adequadamente, restou-lhe construir um barraco às margens do Rio Tiête e ser catadora para sobreviver. Interesse pela leitura e pela escrita: os motivos que a levaram a escrever o diário e como ela consegue publicá-lo. Por último, será abordado como Carolina Maria de Jesus passou de escritora famosa a pessoa esquecida pela mídia e pelas editoras.

No Capítulo 3 - Panorama do Negro na Literatura Brasileira até Meados do Século XX, foi discutido a situação do negro na literatura brasileira até 1960. Como se saíram as escritoras e os escritores negros até aquela data. O negro passou de objeto estético em romances a escritor, mas esse processo não se deu de forma natural, lutou-se muito para alcançá-lo. Embora mostrando aptidão para as letras, muitos escritores negros foram sabotados e colocados de lado pelo fato de serem negros. Quanto às escritoras, a situação foi ainda pior porque se o homem sofreu com o racismo, a mulher sofreu em dobro, ou seja, com o racismo e com o machismo. Portanto, aquelas que ousaram ser “subversivas”,

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pagaram um preço alto por isso. Carolina de Jesus, porém, sofreu por ser mulher negra, por ser mulher pobre e por ser mulher semianalfabeta. Mas ainda assim ela conseguiu publicar sua obra e teve mais êxito que as anteriores. No Capítulo 4 - Eu Discursivo, Identidade e Identificação na Obra de Carolina, foi discutido como Carolina Maria de Jesus constrói sua identidade de sujeito social, a mulher que vai trabalhar todos os dias, alimenta os filhos e busca uma vida melhor para a sua família, seu comportamento social, agenciadora política; e o sujeito literário, como Carolina constrói o eu-autoral, eu-escritor, e como esse sujeito literário é influenciado e determinado pelo sujeito social. Depois, qual a importância de seus escritos e como sua vida e obra tiveram tanto destaque no meio acadêmico a partir dos anos de 1990, e onde também se encontram nossas considerações finais.

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2. BIOGRAFIA DE CAROLINA MARIA DE JESUS.

2.1 Escolaridade.

Quando criança, Carolina Maria de Jesus transgrediu uma tradição social e ideológica na cidade de Sacramento do ínicio do século XX ao se matricular em uma escola a fim de receber a educação básica formalmente. Essa foi sua primeira transgressão. Visando a embasar os motivos que levaram Carolina a transgredir e como ela conseguiu transgredir essa tradição, antes será abordado um breve contexto histórico a respeito do direito de crianças negras à instrução no Brasil do século XIX até as primeiras décadas do século XX, em conformidade com a Constituição, como o negro era tratado de acordo com a lei e como o negro era tratado na sociedade. Desse modo, poder-se-á tomar conhecimento sobre quais as dificuldade que Carolina, enquanto negra e descendente de humanos escravizados, teve de superar para realizar o grande sonho de tornar-se escritora. Durante a vigência da Monarquia Imperial (1822-1889), seguindo as tendências internacionais, sobretudo a europeia, para civilizar e instruir a nova sociedade independente que se formava, houve uma necessidade de educar a população brasileira por meio dos estudos. A Constituição de 1824 (BRASIL), por exemplo, declarava a todos brasileiros o direito à instrução primária gratuita em escolas públicas. A instrução era o fator primordial de edificação da nova sociedade, ou seja, não haveria essa nova sociedade sem todos passarem pelo estágio da instrução básica. Para tanto, o aluno deveria sair da escola sabendo ao menos ler, escrever e resolver cálculos matemáticos simples. Mas esse desenvolvimento não estava, de modo algum, ao alcance de todos brasileiros; comprovando que nem sempre aquilo que está previsto em lei é de fato aplicado no âmbito social. De acordo com a Lei n. 1, de 1837, e o Decreto n. 15, de 1839, Artigo III sobre Instrução Primária no Rio de Janeiro, “são proibidos de frequentar as escolas públicas: 1) Todas as pessoas que padecem de moléstias contagiosas; 2) Os escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos” (BRASIL). Os escravos não faziam parte de todos brasileiros, como preconizava a Constituição de 1824. Além do direito à instrução, a essa população era também negado o título de cidadão, pois

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a titularidade da cidadania, definida constitucionalmente, era restrita aos livres e aos libertos e valia tanto para a educação das crianças quanto para jovens e adultos. Para escravos e indígenas, além do trabalho pesado, bastava a doutrina aprendida na oralidade e a obediência pela violência física ou simbólica. Desse modo, o acesso à cultura da leitura e da escrita era considerado inútil para esses segmentos (BRASIL, 2000 apud PASSOS, s/d, p. 2. Grifos nossos).

Entretanto, o veto ao direito da população negra à instrução teve outro motivo. As autoridades temiam que o convívio entre negros e brancos compartilhando o mesmo espaço social pudesse influenciar negativamente as crianças brancas, como afirma Joana Célia dos Passos (s/d): […] a influência negativa que os escravos poderiam exercer nos estabelecimentos de ensino, já que estes transformariam essas instituições em centros de proliferação de moléstias que poderiam “contaminar” o espaço social. […] O contato com os escravizados poderia, também, “contaminar” as crianças com uma cultura primitiva que remontava à África. O que estava em jogo com essas proibições era que os escravos poderiam influenciar com seu comportamento a convivência com os brancos e estes, por conseguinte, poderiam assimilá-los. (p. 3. Grifos da autora)

As autoridades brasileiras vetaram, pois, o direto à instrução desses escravos a fim de “evitar” a má influência de costumes africanos decorrente do convívio que se resultaria. É dado, então, à educação um instrumento de controle e dominação de suma importância. Todavia, de acordo com a lei, os escravos e os pretos africanos eram proibidos de assistir às aulas em escolas públicas, mas não era mencionado se eles eram proibidos de receber a instrução particular, isto é, privada. Dado esse fato, Eduardo França Paiva (2003 apud MACHADO, 2009, p. 22) afirma que “entre os séculos XVI e XIX houve muito mais cativos, libertos e seus descendentes que aprenderam a ler e a escrever do que se imaginou até muito recentemente”. A prática de instruir escravos em fazendas com o auxílio de professores particulares era bem comum no período da monarquia brasileira, principalmente a partir de 28 de setembro de 1871, quando assinada a Lei do Ventre Livre. Uma vez outorgada a Lei n. 2040, de 1871, os filhos de mulheres cativas nascidos a partir daquela data tinham dois destinos: 1) Permanecer sob a tutela de seu senhor até os 21 anos de idade, já que seus pais continuariam na condição de escravos; 2) Eram entregues ao Estado para serem educadas, mediante indenização de valor estipulado pelo próprio Estado. A primeira opção era a mais “escolhida”.

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Assim, a instrução a essas crianças que ficavam sob a tutela de seus senhores tinha o propósito de facilitar a comunicação entre senhores e escravos, aperfeiçoar a mão de obra e eliminar todos os resquícios de cultura e costumes africanos, a saber:

A instrução tinha como objetivo disciplinar a população que trazia consigo os vícios da senzala e da raça. As crianças negras nascidas livres deveriam ter acesso à educação, no entanto, não deveriam ser inseridas na cultura da leitura e da escrita, pois isso poderia comprometer sua função no processo produtivo. (PASSOS, s/d, p. 6)

Seguindo a proposição acima, pode-se concluir que o interesse na instrução dessas crianças não tinha a intenção de construir uma sociedade mais igualitária, como se pode verificar. Os senhores fazendeiros estavam mais preocupados em adestrar a mão de obra, qualificando-a para o trabalho braçal, do que transformar essas crianças em futuros cidadãos cultos. Por outro lado, ensiná-los a ler e a escrever “podia se constituir uma estratégia de reação, resistência e ‘até mesmo de negação da condição escrava’” (SILVA, 2000 apud PASSOS, s/d, p. 4), pois essas crianças seriam capazes de competir com crianças brancas em situação de quase equidade; a cor da pele era determinante. Fonseca (2002 apud PASSOS, s/d, p. 6) declara que “embora fossem as crianças negras que estivessem em questão e sob o foco da ação e do discurso do governo e dos abolicionistas, não era como crianças que elas eram efetivamente tratadas, mas, sim, como trabalhadores negros do futuro”. Logo, elas precisariam de instrução para tornarem-se trabalhadores domésticos e do plantio mais hábeis e consequentemente servir melhor os amos da casa grande. Em relação às crianças do sexo feminino, o direito à instrução era totalmente vetado, a saber:

A interdição da mulher na educação formal perdurou até o final do século XIX. À mulher negra cabia somente trabalho pesado na cidade e no campo, os afazeres domésticos e a preparação para o matrimônio, assim como à mulher da elite eram reservadas principalmente as duas últimas incumbências. (LEWKOWICS et. al. apud MACHADO, 2009, p. 28)

Marta Carvalho (2005) revela em suas pesquisas que:

A escola primária brasileira atendia uma parcela ainda muito reduzida da sociedade brasileira. Forçoso é lembrar que, afinal, em 1888 o Brasil possuía 750 mil escravos, cujo acesso à escolarização havia sido negado historicamente. Em 1872, entre os escravos, o índice de analfabetos atingia 99,9% e entre a população livre, aproximadamente 80%. Em 1888, apenas 2%

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da população total estavam matriculadas no ensino elementar. Vinte anos depois, em 1907, a matrícula na escola primária não chegava a atingir 3% da população brasileira. Nos anos de 1920, o Brasil exibiria índices de analfabetismo em torno de 80%. (CARVALHO, 2005 apud MACHADO, 2009, p. 29)

Carolina Maria de Jesus nasceu em 14 de março de 1914 e pôde frequentar o Colégio Espírita Allan Kardec em 1921. Portanto, aos 7 anos de idade, ela não mais faria parte do índice de 80% de analfabetos no Brasil. Dados os fatos, pode-se afirmar que a pequena Carolina não conhecia o histórico da educação que se iniciou quase um século antes de ela aprender suas primeiras letras. Ainda assim, devido a motivos discutidos a seguir (Ver 2.1.1 Como Carolina teve acesso à educação formal), Carolina rompia, mesmo sem seu conhecimento, com uma tradição social e ideológica de vetar o direito de crianças negras à instrução, principalmente sendo do sexo feminino. Ela frequentou a escola por apenas dois anos, o que lhe proporcionou o aprendizado básico das primeiras letras. Mesmo que insuficientes para torná-la uma cidadã culta nos moldes da elite cultural, esses dois anos foram suficientes para dar a ela condições de se expressar de modo original e único, como ficou conhecida décadas depois. Consequentemente, ela conseguiu construir sua identidade por meio desses escritos, pois neles ela resgatou suas origens e descreveu sua trajetória de vida até aquele momento (autobiografia). Embora tentem tirar o seu mérito, alegando não ter sido ela quem escreveu seu livro de estreia, Quarto de Despejo: diário de uma favelada, publicado em agosto 1960, Carolina produziu material suficiente para ser enquadrada como intelectual, levando em conta a acepção dessa palavra. Ao desafiar o leitor a aderir ao seu ponto de vista, a escritora exerce influência sobre ele, levando-o à reflexão. De acordo com Germana de Sousa (2012):

Ao agir assim, a escritora apela para a cumplicidade do leitor e convida-o a se deslocar um pouquinho de seu ponto de visão para aderir ao dela. Chama a atenção para seu locus de enunciação e lança ao mesmo tempo um desafio ao público leitor: seria você capaz de entender o que vivo/narro aqui? Portanto, Carolina sabe manipular as possibilidades técnicas que lhe confere a narrativa de primeira pessoa e tirar partido do jogo. (p. 89-90)

Como será abordado mais vezes neste trabalho, o público leitor de Carolina não eram os favelados, uma vez que muitos moradores da favela tiveram o direto à instrução renegado. Seus leitores eram os moradores da cidade, que pertenciam a classes sociais mais favorecidas

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que a de Carolina e que, portanto, dificilmente conheciam o que a escritora favelada tematizava em sua obra. Joel Rufino dos Santos (2009, p. 117) não tem dúvidas sobre Carolina poder ser enquadrada como intelectual e defende que “nenhuma especulação sobre intelectualidade e pobreza no Brasil pode passar ao largo da antiga catadora de papel, ex-empregada doméstica, faxineira de hotel, auxiliar de enfermagem, vendedora de cerveja e artista de circo”.

2.1.1 Como Carolina teve acesso à educação formal.

Conforme abordado anteriormente, até as primeiras décadas do século XX, a população negra não tinha o direito à educação como os demais brasileiros. A fim de instrui-los para o trabalho braçal, os senhores fazendeiros contratavam professores particulares e assim a instrução era dada nas próprias fazendas onde eles trabalhavam. Nem Maria Carolina – mãe de Carolina Maria de Jesus –, nem o restante da família teve a oportunidade de ser instruída, mas a menina Bitita (apelido de Carolina de Jesus na infância) teve e foi, mesmo que tão brevemente. Dona Maria Carolina lavava roupas na residência do senhor José Saturnino e sua esposa, dona Mariquinha. Certo dia, dona Mariquinha disse à dona Maria Carolina para colocar a pequena Carolina na escola (JESUS, 1986, p. 122). Carolina era frequentemente lembrada por sua mãe “que os negros devem obedecer aos brancos” (Id. p. 123) e “que os brancos são os donos do mundo” (Id. p. 133). Portanto, respeitando a regra que ensinara à filha, se uma senhora branca, rica e uma das ‘donas do mundo’, sua patroa, disse que ela deveria matricular a pequena Carolina Maria de Jesus na escola, assim ela o fez. No entanto, não se sabe quais eram as intenções da senhora. O que se sabe é que dona Mariquinha nada fez além de dar conselhos. O ingresso da menina ao Colégio Espírita Allan Kardec só foi possível graças à dona Maria Leite – filantrópica francesa e amiga do fundador do colégio, Eurípides Barsanulfo – que frequentava a escola para suas sessões espíritas duas vezes por ano. Além de possibilitar a instrução de algumas crianças negras da cidade, dona Maria Leite também distribuía roupas e livros novos para essas crianças. Em vista da grande oportunidade que foi oferecida a Carolina, sua mãe ficou feliz com a notícia e a bondade de dona Maria Leite, pois, talvez pela experiência de vida por

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tudo que havia observado enquanto mulher negra, ela sabia que o negro não tinha sua vez na roda da fortuna, e que essa seria uma oportunidade única. Anos mais tarde, Carolina de Jesus revelou em seu diário: “não tenho nada a dizer da minha saudosa mãe. Ela era muito boa. Queria que eu estudasse para professora. Foi as contigencias da vida que lhe impossibilitou concretizar o seu sonho. Mas ela formou meu caráter, ensinando-me a gostar dos humildes e dos fracos.” (JESUS, 2012, p. 49-50) A jovem Carolina inicia-se assim na vida escolar, com seus horários e seus planejamentos, tudo diferente do que vivera até então. Talvez o mais importante desse período, além de ela ter aprendido a ler e a escrever, tenha sido o fato de que Carolina de Jesus pôde dividir um ambiente social com crianças brancas sem estar a serviço delas. Todavia, os dias felizes na escola estavam contados.

2.1.2 As razões que levaram Carolina a abandonar os estudos.

Em Sacramento, Carolina Maria de Jesus começou a frequentar o Colégio Allan Kardec por imposição da mãe, uma vez que a matrícula e o ingresso à escola só lhe foram possíveis por conta dos conselhos de dona Mariquinha e da caridade de dona Maria Leite. Se a menina não fosse às aulas, haveria um certo desconforto entre a mãe de Carolina e dona Maria Leite, quem acreditava que com educação aquelas crianças ficariam longe da marginalidade que seduzia tantos jovens negros da cidade. No entanto, nos primeiros dias a menina odiou ir à escola, seus colegas de classe e a professora, como ela mesma relatou em seu livro memorialístico (JESUS, 1986, p. 122). Já no primeiro dia de aula de Carolina, seus colegas de classe chamaram-na de “negrinha feia” e disseram que ela tinha “olhos grandes, parece sapo”, além de mencionarem suas roupas encardidas e gastas (Id. Ib.). As crianças negras que estudavam em colégios particulares – nos quais a maioria dos alunos era crianças brancas de famílias tradicionais – eram frequentemente coagidas a abandonar os estudos tanto por colegas de sala, as crianças brancas, quanto por professores. Esses alunos “ou eram impedidos de frequentar ou, em frequentando, não recebiam ‘uma ampla instrução’ porque eram pessoal e emocionalmente coagidos” (SILVA, 2002, p. 151 apud PASSOS, s/d, p. 4). Era comum também mães de alunos negros irem até a escola para reclamar com os professores em razão de seus filhos serem reprovados e por não receberem a mesma atenção

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dada a alunos brancos. Com o índice de reprovação elevado e as constantes provocações, muitos alunos acabavam por abandonar os estudos, e o ciclo se perpetuava cada vez mais: crianças brancas com maior índice de escolaridade tornavam-se adultos com melhores oportunidades, enquanto as negras tornavam-se exatamente o oposto. Carolina não foi a única criança a sofrer com esse tipo de perseguição. Como discutido anteriormente, os alunos negros “foram tratados de maneira desigual – os alunos pobres e de cor foram marcados como doentes, mal adaptados e problemáticos” (DÁVILA, 2006 apud PASSOS, s/d, p. 12). Assim, o “projeto de escola republicana não incorporou, pois, um projeto de emancipação da população negra, pelo contrário, continuou alimentando o racismo e produzindo a exclusão de crianças e jovens negros dos bancos escolares.” (PASSOS, s/d, p. 13) Tempos depois, a mãe de Carolina largou o emprego na residência do senhor José Saturnino e, com o trabalho da mãe, Carolina também perdeu o acesso à escola, o que para ela naquele momento foi um sacrifício. Após os dias ruins de coação dos colegas e constantes ameaças, ela passou a apreciar o aprendizado das letras e a rotina escolar. Logo, sua experiência escolar durou apenas dois anos; até sua mãe encontrar trabalho fora de Sacramento. Foram morar em uma fazenda em Lajeado, município nos arredores de Uberaba, estado de Minas Gerais. A partir de então, Carolina não pôde mais frequentar as aulas em Sacramento porque a distância era inviável, bem como o fato de seu novo patrão não se interessar pela educação da nova empregada, embora a menina Carolina fosse uma “atração estranha” na nova morada porque era negra e, ao seu modo peculiar, sabia ler e escrever. Carolina de Jesus registrou que, na verdade, o novo patrão não estava em boas condições financeiras; portanto, o estudo dela não era uma prioridade (JESUS, 1986, p. 133-4). Além do mais, João Romualdo, Maria Carolina e Carolina Maria de Jesus chegaram à nova morada com um débito de 200 mil-réis. O novo patrão, senhor Olímpio Rodrigues de Araújo, havia desembolsado essa quantia para transportá-los de Sacramento até Lajeado. Esse investimento deveria voltar aos fundos econômicos dele. Restava apenas a mão de obra da família para o senhor Olímpio reaver a quantia, e com juros.

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2.1.3 Influência da professora Lanita Salvina, do avô Benedito José da Silva e do senhor Manoel Nogueira.

Nos primeiros dias de aula, por conta do bullying dos colegas de sala, Carolina não queria ir à escola. Foi a professora Lanita Salvina quem insistiu para que a menina continuasse e aprendesse a ler e a escrever, mesmo tendo dificuldades. Quando faltava à aula, a professora enviava alguém até a casa de Carolina para saber o que tinha acontecido. A escritora relata que a professora incentivava a continuar os estudos, emprestando livros de História e alguns de poesia para os alunos. Fato é que a menina, depois dessa fase de adaptação, não perdia um dia de aula. Carolina declarou que a professora além de ensinar as primeiras letras e as operações matemáticas, orientou a escrever tudo que lhe viesse à mente. E foi exatamente isso que de Jesus fez. O exercício para treinar a escrita acabou virando uma obsessão que a tornaria reconhecida em todo o mundo. No entanto, segundo Meihy e Levine (1994, p. 21) “a escritora declarava que sua grande inspiração não havia sido a escola, e sim seu avô, a quem chamava entusiasticamente de Sócrates africano”. Carolina tinha uma enorme admiração pelo avô, senhor Benedito José da Silva, sobrenome herdado de um português, seu senhor de outrora. Ela afirmou que, quando criança, costumava passar muito tempo com o avô, que era gentil, educado e tratava todos os netos com muito carinho. Segundo Carolina de Jesus (1986, p. 57), o seu avô foi pai de oito filhos, quatro homens e quatro mulheres, eles “não sabiam ler e trabalhavam nos labores rudimentares”. Senhor Benedito gostaria que não fosse assim, mas na época em que “os filhos deveriam estudar, não eram franqueadas as escolas para os negros” (Id. Ib). Ela também afirmou que em noites quentes, os netos se agrupavam ao redor do avô para ouvir as histórias da época da escravidão. Ele contava a história do Zumbi dos Palmares, das condições das senzalas, sobre o abolicionismo, de como a escravidão era uma cicatriz na alma do negro, etc. Esses momentos foram cativando a menina que vira no avô a figura paterna que nunca teve, além de transmitir a cultura dos ancestrais pela oralidade. Embora não soubesse ler nem escrever, o senhor Benedito era um homem sábio e vivia a dar conselhos tanto para os familiares quanto para os vizinhos e companheiros na “odisseia do negro”, por isso recebeu o apelido de Sócrates africano, uma referência ao filósofo grego.

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Há de se observar, porém, que ao narrar sua infância (Diário de Bitita), Carolina citou o senhor Manoel Nogueira. Este, filho de pai português e mãe negra, teve acesso à educação por ser filho de homem branco, o que lhe dava também acesso aos dois mundos: vivia entre brancos e negros sem maiores problemas, pois era mulato. No entanto, o senhor Manoel Nogueira, que era culto e bondoso, simpatizava-se mais com os negros que com os brancos, segundo consta na narrativa de Carolina. Ao final do dia em Sacramento, a menina Carolina ia ao encontro do senhor Manoel e ouvia-o ler as notícias que chegavam do país em seu jornal O Estado de São Paulo. “O senhor Manoel Nogueira passava o dia com os brancos porque era oficial de Justiça. E no entardecer ele se sentava na porta de sua casa e lia o jornal para nós ouvirmos trechos que foram ditos pelo Rui Barbosa” (JESUS, 1986, p. 40). Dessa forma, ela tomava conhecimento dos fatos a respeito da Guerra Mundial (1914-1918), da política do então presidente Artur Bernardes (1875-1955), o que dizia o filósofo e escritor alemão Frederico Nietzsche (1844-1900) a respeito da econômia mundial, e ouvia as histórias de como os negros haviam sido tratados desde os tempos de escravidão até aqueles dias. Manoel Nogueira sempre orientava o avô de Carolina, senhor Benedito, a colocar as filhas e netas na escola, pois “somente através da educação que o negro conquistaria seu espaço e sua dignidade”, citando trechos da obra de Rui Barbosa. Conclui-se, pois, que, durante a infância de Carolina, essas três pessoas exerceram influência de suma importância para que ela fosse capaz de escrever seus diários, anos mais tarde, com rigor crítico a respeito dos fatos cotidianos que aconteciam na favela do Canindé entre os anos de 1948 e 1960.

2.2 Motivos da saída de Minas Gerais e sua ida para São Paulo.

No início do século XIX, devido à sua localização geográfica, o atual município de Sacramento não passava de uma vila de descanso para tropeiros e bandeirantes que se locomoviam entre os distrititos de Goiás e de São Paulo. Após a descoberta de minérios na região, os fazendeiros passaram a necessitar de mão de obra para trabalhar nos garimpos, nas plantações e nas casas grandes. Foi nesse contexto histórico que a região, atualmente conhecida como triângulo mineiro, recebeu seus primeiros migrantes.

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Entre esses novos habitantes, a fim de trabalhar nos garimpos e nas fazendas, havia muitos negros que, anos mais tarde, após o 13 de maio de 1888, se viram sem trabalho e sem qualquer amparo das autoridades para se estabelecerem de forma digna na cidade, como cidadãos livres. Entre eles estavam os ancestrais de Carolina Maria de Jesus. Sem nenhum recurso para abrigar a família em condições próprias de moradia na cidade, o avô de Carolina, enquanto o patriarca, não teve outra alternativa a não ser pedir emprego em fazendas de Sacramento, voltando ao trabalho que sempre fizera, mas desta vez como um homem livre. O fruto de todo esse trabalho foi a compra de um terreno na área rural da cidade e uma casinha de barro e capim, a qual deveria ser reformada todo ano por conta das chuvas. Cabe aqui ressaltar que os trabalhos doméstico e de serventes em fazendas representavam o elo moderno entre a escravidão e o trabalho assalariado. O salário pago para esse tipo de mão de obra não especializada era insuficiente para a sobrevivência dos trabalhadores. Com isso, estes afundavam-se cada vez mais em dívidas com o patrão (fazendeiro) e tornava-se cada vez mais utópica sua liberdade. Os direitos e leis trabalhistas foram outorgados anos depois, em 1 de maio de 1939, ainda assim o trabalhador não tinha nenhuma garantia de que a lei fosse cumprida por seus empregadores. Carolina de Jesus nasceu em 14 de março de 1914, na área rural de Sacramento, filha ilegítima de João Cândido Veloso, um negro “que gostava de tocar violão e seduzir mulheres nos bailes, conhecido como ‘o poeta bohêmio’, mas não gostava de trabalhar.” (JESUS, 1986, p. 8). Dona Maria Carolina foi abandonada pelo pai de Jerônimo Pereira, o irmão mais velho de Carolina Maria de Jesus, porque suspeitou de uma traição de dona Maria Carolina com o pai de Carolina de Jesus, o poeta boêmio. Este, por sua vez, casou-se apenas visando à sua liberdade. O “poeta bohêmio” só se tornaria um cidadão livre casando-se ou pagando a dívida que tinha com seu patrão. O casamento foi a opção mais fácil e rápida para fugir do emprego em regime de semiescravidão. Após o casamento, ele abandonou a família e foi viver com uma mulher branca de 52 anos de idade. O avô de Carolina, seu Benedito, então abriga a filha e os netos em seu lar, a casa de barro e capim. Carolina passou a infância em uma casa de pau a pique e chão de barro – construção comum entre a população pobre, a maioria de negros ex-escravos – a qual era dividida com o avô, a mãe, as tias e o irmão mulato. Segundo Meihy e Levine (1994):

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Visto “de fora” e singelamente, há autores que identificam aquele vilarejo mineiro [Sacramento] como progressista e até moderno pelo fato de ter tido iluminação elétrica nas ruas em 1910 […] e uma linha de bonde que ligava à cidade de Cipó. (…) De qualquer forma, a vida em Sacramento raiava os limites do primitivo. A população, de modo geral, tinha que produzir quase tudo o que consumia, valendo-se dos produtos locais para trocar por tecidos, querosene, sal e até mesmo sabão. A maioria era de descendentes de escravos que, como Carolina e sua mãe, encontravam-se sem perspectiva. (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 20)

Assim, como relatado pelos pesquisadores, a família Jesus não tinha muito o que esperar de Sacramento, a única chance de melhorar de vida seria migrar para outra cidade. Mas dessa vez, sem o patriarca da família para lhes auxiliar. Seu Benedito faleceu em decorrência de problemas renais. Como não tinha condições financeiras para arcar com os custos de um tratamento, agonizou em seu leito até o último minuto. Carolina, sua mãe e o padrasto, José Romualdo, foram trabalhar em uma fazenda, no município de Lajeado, nas proximidades da cidade de Uberaba (MG). Passados pouco mais de quatro anos, o emprego na fazenda do senhor Olímpio Rodrigues de Araújo, em Lajeado, também não melhora a situação da família. A vida deles continua a girar em torno da miséria. Para piorar, o senhor Olímpio os despejou alegando que a família lhe trouxera prejuízos apenas. A indenização pelos quatro anos de serviços prestados resumiu-se a alguns sacos de legumes, que eles ainda teriam de vender, algumas aves e um porco. A família teve de oferecer algumas aves e o porco para o motorista levá-los para Sacramento. De volta à cidade natal, Carolina e o padrasto conseguiram trabalho no sítio do Japonês, Napoleão, em época da colheita de arroz. Eles ganhavam 8 mil-réis por semana, e a vida não melhorava em nada. Após a colheita, surgiu um homem na cidade procurando mão de obra para trabalhar numa plantação de café em São Paulo, na fazenda Santa Cruz, do senhor Oliveira Dias. Mais uma vez a família deixa Sacramento buscando melhores condições de vida. A vida deles na fazenda Santa Cruz continuava ruim. O patrão era ainda mais impiedoso que os demais que a família havia encontrado em outros empregos. Em razão disso, Carolina fugiu da fazenda e foi para Franca, cidade do interior do estado de São Paulo, para trabalhar como doméstica. Sendo assim, de acordo com Meihy e Levine (1994), […] quando [Carolina] tinha 16 anos, sua mãe teve que se mudar, desta feita para Franca, no estado de São Paulo. Iniciava-se assim uma peregrinação que as levou de cidade em cidade a muitos locais. As condições de vida em qualquer cidade maior e mais rica deram tanto a Carolina como a sua mãe oportunidades de trabalhar como empregadas domésticas, quando aprenderam a

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cozinhar e a cuidar da casa. Em 1937, depois de muito sofrimento, a mãe de Carolina morreu. (p. 21)

Após vários empregos como doméstica, Carolina encontrou uma patroa que estava prestes a se mudar para a cidade de São Paulo. Viajaram juntas. Dessa forma, Carolina realizou o grande sonho de conhecer a capital, onde acreditava que iria encontrar o local ideal para, finalmente, ter melhores condições de vida. Em situação semelhante, encontravam-se centenas de famílias migrando de cidade para cidade em busca de melhores condições de vida, sobretudo as que iam para o sudeste brasileiro. Contudo, essas pessoas não conseguiam encontrar, pois o plano de modernização do país havia afetado de forma significativa o modo como se conhecia o trabalho. Elas simplesmente não se encaixavam no novo modelo proposto. Por outro lado, não houve nenhum esforço por parte das autoridades em qualificá-las para esse novo modelo. Esse processo resultou em êxodo rural. A saída para muitas famílias foi migrar para os grandes centros urbanos, especialmente Rio de Janeiro e São Paulo. Carolina optou pela capital paulista baseando-se no que ouvira de se tio, quando criança, a respeito da cidade que ansiava por progresso, e também de seu primo que serviu o Exército na Revolução de Vargas. A escritora chegou a afirmar que “o homem que não trabalhar lá em São Paulo é, porque é vadio mesmo” (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 180). Em 1947, aos 33 anos de idade, após a morte de seus dois elos mais fortes, o avô e a mãe, sozinha no mundo, uma vez que pouco se sabe sobre seus outros parentes, Carolina desembarca na Estação da Luz, região central da capital paulista, a poucos quilômetros de onde seria sua morada por mais de 12 anos e o cenário de suas narrativas.

2.2.1 Razões para Carolina Maria de Jesus ter ido morar na favela.

Ao chegar a São Paulo, em 1947, sem nenhuma condição financeira de se abrigar com o mínimo de conforto possível, Carolina chegou a dormir sob pontes, em estradas, passou noites ao desabrigo, pois não tinha ninguém para ajudá-la ou acolhê-la, estava só. Para garantir sua sobrevivência, ela exerceu várias atividades; dentre elas, trabalhou como empregada doméstica, faxineira de hotel, auxiliar de enfermagem em um hospital, vendeu cervejas e tentou ser artista de circo algumas vezes.

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Há razões para se crer que não faltavam empregos domésticos na capital paulista dos anos de 1940. No entanto, como ela mesma chegou a relatar em seu diário, Carolina “era muito independente para ficar limpando bagunça alheia”. Ainda assim, houve outro fator que é de suma importância contra a permanência dela em empregos. Carolina namorava e divertia-se bastante, o que não condizia com as normas severas de famílias aristocrátas e puritanas. Fazia parte de sua rotina abandonar o serviço à noite, voltando apenas na manhã seguinte. Isso pode explicar porque ela perdeu seis empregos seguidos. Em 1948 Carolina engravidou. O pai da criança era um marinheiro português, que a abandonou logo em seguida para voltar ao trabalho. Em razão disso, ela perde o emprego na casa em que estava trabalhando como empregada doméstica. Carolina volta ao estágio inicial de sua vida: o de não possuir nada além do próprio corpo e da determinação. Entretanto, dessa vez ela tinha um filho. Conseguir um novo emprego como doméstica estava fora de questão, nenhum empregador iria aceitá-la. Coube-lhe como única alternativa habitar um terreno público às margens do Rio Tietê e construir seu barraco. Em situação semelhante com a de Carolina, isto é, migrar para São Paulo com a esperança de encontrar melhores condições de sobrevivência, muitos não tiveram opção senão invadir terrenos nas proximidades da capital. Estima-se que, no final da década de 1940, “existiam 50 mil favelados estabelecidos em sete diferentes locais” em São Paulo (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 22). Carolina então escolheu a favela do Canindé, situada nas proximidades da cidade e do depósito de lixo. Assim o lixo passou a fazer parte de sua vida tanto como ganha-pão quanto onde ela encontrava material e inspiração para escrever seus diários. Mesmo grávida de seu primeiro filho, João Carlos de Jesus, Carolina carregou material de construção extraído de uma igreja nas redondezas de onde seria sua morada. Construiu seu barraco ela mesma, com madeiras e folhas de zinco no teto, tudo recolhido do lixo, das sobras do que a cidade já não queria mais. Com o nascimento do primogênito, Carolina passa a ter duas bocas para alimentar e ninguém além dela mesma para poder contar. Passa então a levar o menino nos braços enquanto cata material reciclável para vender no ferro velho do bairro, onde recebe algum dinheiro e com ele tira o sustento dela e do bebê. Contudo, o dinheiro minguado recebido com a venda de papeis, vidros, latas e outros materiais não lhe garantia uma sobrevivência digna. Ela conseguia poucos cruzeiros por dia, o suficiente para comprar alguns pães, leite, sal, gordura, café e sabão. Ainda assim, havia dias em que ela nada conseguia, pois era impossibilitada de sair de casa devido a algum mal-

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estar, que deveria ser superado em virtude de ela ser a única provedora de alimento da família, ou até mesmo por estar chovendo no dia. Esses imprevistos climáticos eram bem frequentes na terra da garoa e, quando aconteciam, Carolina desesperava-se de tal forma para conseguir o alimento do dia que chegava a questionar a própria existência, conforme relatado em várias entradas de seu diário (JESUS, 2012):

16 de maio Eu amanheci nervosa. Porque eu queria ficar em casa, mas eu não tinha nada para comer. Eu não ia comer porque o pão era pouco. Será que é só eu que levo esta vida? O que posso esperar do futuro? (p. 33) 22 de maio Eu hoje estou triste. Estou nervosa. Não sei se choro ou saio correndo sem parar até cair inconciente. É que hoje amanheceu chovendo. E eu não saí para arranjar dinheiro. (p. 42) 23 de maio Levantei de manhã triste porque estava chovendo (p. 43) 26 de maio Amanheceu chovendo. E eu tenho só 4 cruzeiros, e um pouco de comida que sobrou de ontem e uns ossos. (p. 45) 31 de maio Sabado – o dia que quase fico louca porque preciso arranjar o que comer para sabado e domingo. ( p. 48)

Carolina desdobrava-se para garantir o alimento do dia. Sua luta era diária e, embora alguns vizinhos lhe ajudassem com pequenas porções de alimento, apenas ela mesma ficava a cargo de conseguir o mínimo necessário. A escritora não aceitava sua condição de miséria, mas ela não dispunha de meios para sair da favela. O fato de ser mãe solteira de três filhos muito jovens dificultou (ou impossibilitou) qualquer tipo de reação por parte dela. A família de Jesus ainda continuaria morando no barraco da Rua A, n. 9 por mais alguns anos.

2.3 Interesse pela leitura e pela escrita.

Quando criança, Carolina não parava de chorar. Esse fato dificultou a vida de dona Maria Carolina, que não conseguia uma babá para cuidar da menina enquanto saía para trabalhar. Em razão do choro excessivo, a mãe levou Carolina ao único médico que atendia mesmo aqueles que não podiam pagar pela consulta: doutor Eurípedes Barsanulfo, quem

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fundara o Colégio Espírita Allan Kardec em Sacramento, no qual Carolina iria estudar anos mais tarde. O médico, então, revela à mãe o motivo de tanto choro, como relata Carolina:

Minha mãe queixou-se que eu chorava dia e noite. Ele [o médico] disse-lhe que o meu crânio não tinha espaço suficiente para alojar os miolos, que ficavam comprimidos, e eu sentia dor de cabeça. Explicou-lhe que, até os vinte anos, eu ia viver como se estivesse sonhando, que a minha vida ia ser atabalhoada. Ela vai adorar tudo que é belo! A tua filha é poetisa. (JESUS, 1986, p. 71)

Dessa forma, os caminhos literários da menina já estavam traçados. Carolina lamentou que sua mãe tenha decidido acompanhar o padrasto da menina e buscar condições melhores de vida no campo, no município de Lajeado (Ver 2.1.2 As razões que levaram Carolina a abandonar os estudos e 2.2 Motivos da saída de Minas Gerais e ida para São Paulo). Por conta da mudança, Carolina abandonou os estudos. Como se segue: […] foi com grande penar que deixei a escola. Minha única alternativa era me resignar porque as decisões dos meus pais sempre ganhavam. Minha mãe embalava os utensílios de cozinha, eu embalava meus livros, a única coisa que eu venerava (JESUS, 1986, p. 128).

Mais tarde, curiosa a respeito do que era ser uma poetisa, Carolina foi a uma livraria e pediu um livro de poeta. O vendedor, sem entender o que exatamente ela queria dizer, lhe deu um exemplar do poeta romântico Casimiro de Abreu (1839-1860). Conta-se também (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 21) que um de seus empregadores foi o famosos médico doutor Euricledes Zerbini (o cirurgião responsável pelo primeiro transplante de coração no Brasil), quem permitiu acesso aos livros, na biblioteca particular dele nos momentos de folga de Carolina. Entretanto, deve-se ressaltar que em entrevista após a publicação de Quarto de Despejo, Carolina afirmou que “seria uma deslealdade de minha parte não revelar que o meu amor pela literatura foi-me incutido por minha professora, dona Lanita Salvina, que aconselhava-me para eu ler e escrever tudo que surgisse na minha mente” (JESUS, 2012, p. 195). Portanto, pode-se defender que Carolina tenha tomado gosto pela leitura e pela escrita ainda na infância, uma vez que é recorrente em seus diários ela citar, como se fosse uma característica física, se a pessoa com quem interagia sabia ou não ler.

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O interesse pela leitura e a escrita aumentou ao passo que ela teve mais contato com os livros e jornais no colégio em Sacramento, sempre incentivado pela professora Lanita Salvina.

2.3.1 Motivações para Carolina escrever o diário.

Quando escrevi o meu diario não foi visando publicidade. É que eu chegava em casa, não tinha o que comer. Ficava revoltada interiormente e escrevia. Tinha impressão que estava contando minhas magoas a alguem. E assim surgiu o Quarto de Despejo. (Carolina Maria de Jesus)

Carolina Maria de Jesus nunca se conformou em ser favelada, de sobreviver na miséria como sobrevivia e ter de fazer tudo ela mesma. Ainda assim, discordava das mulheres que se submetiam a maus tratos em troca de não precisar trabalhar, pois tinham marido. Neste quesito, a escritora considerava-se livre, mulher que ninguém haveria de pôr rédeas, muito menos um marido. Ela não gostava de ser “teleguiada” nem de se ver dependente economicamente de um homem. Por isso desprezava o casamento, como relatado no trecho a seguir:

18 de julho (…) A minha porta atualmente é theatro. (…) Elas [as vizinhas] alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. Elas tem marido. Mas, são obrigadas a pedir esmolas. São sustentadas por associações de caridade. (…) tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. (…) Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas. Não casei e não estou descontente. (JESUS, 2012, p. 16-7)

Entretanto, o fato de ter de fazer tudo ela mesma dificultou muito sua vida. Quando seus filhos ainda eram bebês, ela tinha de carregá-los enquanto catava papel. Segundo alguns relatos seus, ela dizia ser rejeitada por muitos vizinhos porque era solteira e sabia ler e escrever, o que lhe garantia “ares diferenciados” que a destinguiam dos demais favelados. Sendo assim, Carolina Maria de Jesus permanecia só em seu barraco boa parte do tempo que não estava catando papel, na companhia de seus livros ou ouvindo a telenovela que era transmitida pelo rádio.

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Dessa forma, ela iniciou-se no mundo literário escrevendo poemas, ficção, ditados populares e letras de música. Tudo escrito de forma sistêmica, em folhas de cadernos usados que foram encontrados no lixo, de onde tirava seu sustento e de seus três filhos. Enquanto sujeito anônimo, como tantos outros moradores da favela do Canindé, Carolina não se enquadrava no perfil de seus vizinhos. Com exceção de alguns raros amigos, ela não tinha com quem conversar. Em um ato de partilha de sentimentos e desejos, começou a escrever o que mais tarde foi intitulado Quarto de Despejo: diário de uma favelada, publicado em agosto de 1960. Embora tenha afirmado que, ainda na adolescência, havia escrito o poema O colono e o fazendeiro (JESUS, 1996, p. 147), baseado nas péssimas condições em que ela e os parentes se encontravam trabalhando na lavoura, Carolina inaugurou o diário com a entrada do dia 15 de julho de 1955, na qual relata a angústia que sentiu por não ser capaz de presentear a filha como ambas gostariam:

15 de julho de 1955 Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos generos alimenticios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar. (JESUS, 2012, p. 11)

Houve um outro motivo que a fez começar a escrever, o escapismo de sua dura realidade. Ecléa Bosi preconiza que há uma constante em escritos de classes populares: “na raiz da incompreensão da vida do povo está a fadiga. Não há compreensão possível do espaço e do tempo do trabalhador se a fadiga não estiver presente e a fome e a sede que dela nascem” (BOSI, 1981 apud SOUSA, 2012, p. 182). Carolina, ao narrar seu cotidiano repleto de frustrações, relata a sujeira, os odores desagradáveis com que se deparava diariamente ao retornar à favela após um dia de trabalho catando papel nas ruas da cidade de São Paulo. Em um diálogo com uma moradora recém-chegada à favela do Canindé, a escritora lhe perguntou: – A senhora está morando aqui? – Estou. Mas faz de conta que não estou, porque eu tenho muito nojo daqui. Isto aqui é lugar para os porcos. Mas se puzessem os porcos aqui, haviam de protestar e fazer greve. Eu sempre ouvi falar na favela, mas não pensava que era um lugar tão asqueroso assim. Só mesmo Deus para ter dó de nós. (JESUS, 2012, p. 49)

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Ela também contou a forma com que os moradores da cidade tratavam-na quando se deparavam com Carolina nas ruas em torno da favela do Canindé, os olhares e as insinuações de desprezo. Relatou o esgotamento, tanto físico quanto mental, que é quase uma personagem de suas narrativas de tão presente que é. Logo, ela só consegue “se livrar” desses desprazeres cotidianos quando se senta para escrever seu diário, o que lhe permitia imaginar/criar um mundo totalmente diferente do mundo onde ela se encontrava de fato, a saber:

12 de junho de 1958 Eu deixei o leito as 3 da manhã porque quando a gente perde o sono começa pensar nas miserias que nos rodeia. […] Deixei o leito para escrever. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. […] É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. (JESUS, 2012, p. 60. Grifos nossos)

Todavia, há momentos em que nem a literatura, nem o bom-senso conseguem evitar as frustrações decorrentes da fome, da sede e do cansaço. O estado psicológico de Carolina por vezes é abalado de tal forma que a escritora não consegue se conter e perde as esperanças de ver um mundo melhor, por exemplo:

21 de maio de 1958 Passei uma noite horrivel. Sonhei que eu residia numa casa residivel, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversario de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe uma panelinhas que há muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lirio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. (JESUS, 2012, p. 40. Grifos nossos)

Porém, após o mês de abril de 1958 (Ver 2.3.2 Como Carolina consegue publicar seus escritos), data em que Dantas e ela se conheceram, Carolina começou a descrever seu cotidiano com o propósito de não apenas narrar as mazelas a que estavam (ela e outros favelados) submetidos, como também passa a ver na promessa de publicação de seu livro o meio ideal, talvez o único meio, de estabelecer-se como escritora e, deste modo, ter condições financeiras de sair da favela e de conseguir comprar, finalmente, a casa própria com que tanto sonhara. Paradoxalmente, Carolina se desdobrava para fazer parte do universo literário brasileiro, o qual a rejeitava de todas as formas possíveis.

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Segundo Germana de Sousa (2012):

O interesse de Carolina pela escrita é diferente daquele dos autores clássicos do diário. Para ela, o importante era ser reconhecida como escritora, daí a referência constante de sua parte aos jornais que vinham fazendo matérias acerca de sua atividade literária. Como o centro de suas preocupações ultrapassava o mero desejo de escrever para si, a instância da interlocução – o outro ouvinte, leitor, interlocutor de seu discurso – vira matéria palpável, uma das instâncias da narrativa no diário dela, o tu, portanto. (p. 192. Grifos nossos)

Outro ponto que deve ser abordado é o fato de Carolina de Jesus chamar para si a responsabilidade de alertar o mundo sobre o que acontecia naquela favela. A escritora era uma das poucas pessoas que sabiam ler e escrever e que moravam na favela. Carolina era, portanto, a voz ideal para descrever com tantos detalhes qual era a verdadeira rotina dos favelados. Em Quarto de Despejo, “a perspectiva é outra: é a de quem vive na favela” (N.E. In: JESUS, 2012, p. 5). Ou, segundo o repórter Audálio Dantas, “repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela” (DANTAS, 2012, p. 6. Grifos do autor). A esse respeito, Germana de Sousa (2012), com quem concordamos, afirma que a escritora favelada assume a responsabilidade de ser “porta-voz” daqueles que não podem falar por si e também que

Carolina fala do contexto de pobreza no qual está inserida como uma mediadora, porta-voz daqueles que não têm possibilidade de falar por si. Mas também fala de seu sofrimento pessoal (a fome, o cansaço, a humilhação) para seu “destinatário íntimo”, com uma força de síntese impressionante. (p. 180. Grifos da autora)

No cerne da discussão sobre os motivos que a levaram a escrever os diários – tendo em vista que era raríssima a publicação de obras intimistas e memorialísticas como os seus diários –, pode-se trilhar pelo viés de que Carolina, de modo intencional, visou a se estabelecer como escritora, mais precisamente como poeta. Em muitas entradas de seus diários, principalmente quando trechos de sua obra foram publicados em periódicos de abrangência nacional, a escritora orgulhava-se de ter seu nome impresso dando-lhe a autoria. Em resposta a um jornalista após a publicação de Quarto de Despejo, a escritora afirmou: “o que eu sempre invejei nos livros foi o nome do autor. [...] Eu li o meu nome na capa do livro. Fiquei emocionada” (JESUS, 2012, p. 195).

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Pode-se concluir, então, que mesmo sendo importantíssimas a questão do desabafo pessoal nos diários, a questão do papel de “porta-voz” assumido e a questão de talvez ser a única pessoa capaz de fazer aquela descrição da favela naquele momento, o que Carolina intencionava mesmo era ser reconhecida como escritora, mais precisamente como poeta. Esse era o seu real intento. E ela conseguiu, apesar dos obstáculos.

2.3.2 Como Carolina consegue publicar seus escritos.

Em abril de 1958, em razão da inauguração de um parquinho nas proximidades da favela do Canindé, Audálio Dantas, então repórter designado a cobrir o evento, tomou conhecimento de uma moradora local confrontando os adultos que ali estavam se divertindo, o que não possibilitava que as crianças brincassem no local. Deve-se ressaltar que o ano de 1958 foi um ano eleitoral. Com mais de uma década de existência, a favela do Canindé recebeu o primeiro parquinho apenas em abril de 1958, vésperas de São Paulo escolher o novo prefeito. O parquinho foi a razão de adultos (carentes de meios melhores de sobrevivência, diversão e cultura) encontrarem um local de diversão, como uma alternativa além do álcool, das drogas e da marginalidade. Logo, os adultos dominaram os brinquedos que inicialmente foram destinados às crianças da favela. Coube a Carolina de Jesus reinvindicar os brinquedos para os mais fracos mediante ameaças. Curioso e instigado por uma matéria, o jovem repórter foi conversar com aquela moradora que ameaçava os adultos dizendo que ela iria “colocar o nome deles em seu livro”. Essa moradora era a negra Carolina Maria de Jesus, quem já vinha colecionando inimizades na favela por algum tempo, segundo ela. Dantas lhe questionou a respeito do tal livro dela. Carolina então lhe mostrou o que fizera até aquele abril de 1958. O material era constituído de muitas folhas sujas, nas quais havia poemas, narrativas da infância da autora (Diário de Bitita) e relatos de seu cotidiano. Interessado pelo conteúdo encontrado, uma narrativa do ponto de vista de quem convivia com os problemas da favela, ou seja, um olhar de dentro para fora, o jovem repórter selecionou alguns dos cadernos, que continham registros da vida de Carolina a partir de 15 de julho de 1955, a primeira entrada de seu diário.

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Dantas leu os cadernos e, com critérios adotados junto ao seu editor, selecionou o que, segundo eles, seria mais interessante para o leitor do jornal para o qual trabalhava. Esse processo todo durou dois anos. Até que, em agosto de 1960, o livro foi lançado, após reportagens sobre a favela na revista O Cruzeiro e no jornal Folha da Noite, ambos empregadores de Dantas, e que serviram de preparo para o que seria a publicação de Quarto de Despejo: diário de uma favela. Vale salientar que, embora o conteúdo das reportagens tenha sido quase que em sua totalidade o que Carolina produzira em seus cadernos, Carolina não recebeu nada pelas publicações das reportagens além da promessa de ter o livro publicado. Quanto ao jovem repórter freelancer Dantas, sua carreira foi potencializada a ponto de tornar-se um repórter – mesmo não o sendo por formação – de primeiro escalão e depois tornando-se editor da revista O Cruzeiro; além de caber a ele o título de agente e descobridor da maior revelação literária de 1960. Não há dúvidas, porém, de que sem o trabalho de Dantas, a escritora Carolina Maria de Jesus provavelmente não teria saído do anonimato. Em 9 de maio de 1958, Audálio Dantas escreveu na Folha da Noite a primeira matéria sobre a surpresa caroliana: “O drama da favela escrito por uma favelada: Carolina Maria de Jesus faz um retrato sem retoque do mundo sórdido em que vive” (SOUSA, 2012, p. 18). Para Carolina, essa publicação serve como prova de que ela era uma escritora. Embora Carolina visse seu trabalho publicado nos periódicos citados anteriormente, a vida dela e a dos filhos em nada tinha melhorado. As contradições sociais ainda davam as cartas naquele momento. Carolina, como relatado em seu segundo livro, Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada, no dia em que foi ver as provas de seu livro, teve de ir a pé. Levantou-se às cinco horas da manhã e foi pegar papel para vender e alimentar os filhos, mesmo sendo um dia tão importante para ela. De acordo com Meihy e Levine (1994, p. 25), quando o livro finalmente foi lançado, Carolina chegou a autografar 600 cópias, conversando com cada um dos leitores. Na ocasião, “o Ministro do Trabalho, João Batista Ramos, disse à imprensa, catalisando a opinião pública, que ela [Carolina] merecia uma casa de tijolos que ademais deveria ser doada pelo governo.” Carolina Maria de Jesus tornava-se, então, uma espécie de voz do povo pelo fim das favelas. A fim de se ter uma dimensão do sucesso que a publicação de Quarto de Despejo se tornara, Meihy e Levine nos informa que

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[…] nos primeiros dias do lançamento, 10 mil volumes foram vendidos na cidade de São Paulo. Passados 6 meses, 90 mil cópias haviam-se espalhado por todo o país. No espaço de um ano ela havia se equiparado, em vendagem, a Jorge Amado, e com ele se tranformado no mais traduzido dos autores brasileiros de todos os tempos. […] Quarto de Despejo foi republicado em 13 línguas em mais de 40 países, incluindo a então União Soviética e o Japão. (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 25-6)

Esse sucesso todo ainda é inédito para publicações brasileiras no que tange a relatos de mulheres advindas das classes menos favorecidas, menos ainda sendo elas negras. Após o sucesso de vendas, Carolina e os três filhos puderam finalmente habitar uma casa de alvenaria, graças às vendas de seu livro. Mudaram-se da favela levando “uma mesa, duas camas e três colchões, além de uma estante velha e seis panelas” (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 25-6).

2.3.3 Da utopia à distopia.

Após a publicação de Quarto de Despejo, não seria mais possível para Carolina viver na favela do Canindé devido às inimizades com os vizinhos que se viram retratados de modo negativo no livro dela. Em virtude disso, no dia de sua mudança, alguns moradores da Canindé cercaram o caminhão que levaria a família de Jesus dali e os ameaçaram com pedras. Alguns mais exaltados, dirigiam a ela ofensas do tipo: “You think you are high class now, don’t you, you black whore. You write about us and make lots of money and then leave without share it” (ST. CLAIR, 2003, p. 14). Comovido com a história de Carolina, um gerente de supermercado disponibilizou uma casa nos fundos de uma de suas propriedades no então bairro de Osasco. A escritora e os filhos mudaram-se para a nova moradia. Em Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada, ela afirma que foi um bom momento para ela, pois morava em uma casa com energia elétrica e água encanada, bem diferente do barracão da favela. As viagens pelo Brasil e pela América do Sul para a divulgação de sua obra estavam em seu auge. Portanto, o sonho de Carolina havia finalmente concretizado: ela conseguira publicar sua obra, viajava frequentemente para divulgar o seu livro, e a fome de outrora não ditava mais o cotidiano da família. No entanto, como o bairro de Osasco ainda se encontrava em condições precárias e Carolina já possuía condições financeiras para realizar um sonho antigo, ela comprou uma

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residência no Alto de Santana1, bairro de classe média da cidade de São Paulo. Foi a partir dessa época que tudo mudou. A escritora não foi feliz no novo lar. A vizinhança não acolheu a família de Jesus, o que causou um mal-estar social e ideológico em Carolina. Esta, mãe solteira de três filhos de pais diferentes, saíra de uma favela e fora para o bairro de classe média e pregava que homem nenhum haveria de domá-la nem teleguiá-la, além do fato de ela ser negra. Esses indicadores foram o suficiente para a família não ser aceita no bairro. Seus três filhos, negros e ilegítimos, foram proibidos de brincar com as demais crianças do bairro, que eram brancas. Carolina Maria de Jesus frequentemente recebia reclamações de seus vizinhos, incomodados com a presença de sua família no bairro. Nesse período, a escritora ficou desnorteada, pois na favela ela era uma fera, isto é, conhecia o ambiente, os perigos e sabia se proteger. Já no bairro de classe média, onde as ameaças eram outras, ela não se habituou. Carolina não sabia lidar com a agenda de compromissos públicos (idas a estações de rádio, entrevistas, tardes de autográfo, etc.), nem com o gerenciamento financeiro, tampouco com a nova vizinhança, que insistia em não aceitá-la. Tudo isso culminou para o seu estado de ânimo ser abalado e, aos poucos, a escritora foi perdendo seu prestígio, bem como a ideia utópica de uma sociedade educada e unida. Meses depois, quando ela já não era nenhum atrativo (a favelada que escrevia) para a sociedade letrada de São Paulo, simplesmente foi largada às trassas, como o lixo que costumava catar para sua sobrevivência, pois Carolina não aceitou o papel que lhe haviam reservado. Mais que esquecida, a escritora favelada recebeu um outro rótulo da elite letrada que se recusava a aceitá-la, o de ingrata. Existe um ditado antiquado que diz: “não há racismo no Brasil porque o negro conhece bem o seu lugar”. Qual seria esse lugar destinado a negros? É provável que Carolina não conhecesse o ditado, pois ela “forçou” sua entrada em um lugar que não era destinado a negros nem favelados, tanto ao ir morar no Alto de Santana quanto ao se aventurar pelas veredas da literatura, atividade restrita. Após agosto de 1960, ela recebeu dinheiro suficiente para sair da favela e levar uma vida pacata (lê-se silenciar), mas não era isso o que ela queria. Portanto, continou a escrever da única forma que sabia. A diferença é que não eram mais os favelados da Canindé o tema, e _______________________ 1

O bairro de Santana distinguiu-se como um dos mais conservadores da cidade de São Paulo. Nacionalmente ficou conhecido pela atividade das “senhoras de Santana” que promoviam campanhas de fundo moralizante. (Cf. MEIHY; LEVINE, 1994, p. 50).

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sim os editores, os vizinhos de Santana, os jornais, todos aqueles que de certa forma “se aproveitaram” da aparição Carolina Maria de Jesus. Ou seja, a escritora comprou briga com o poder. Muito desse rótulo de “ingrata” se deve à edição de Dantas. Embora fosse jovem em 1958, Audálio Dantas já era capaz de reconhecer o que a elite letrada de São Paulo estava buscando naquele momento no que tange a escritos literários. Sua edição e seus “cortes, selecionando os trechos mais significativos” (DANTAS, 2012, p. 6) deram ao texto de Carolina a impressão de que a escritora fosse uma coitada, vítima do acaso, somente. Devido a isso, alguns leitores se sensibilizaram com a situação da favelada e lhe ofereceram ajuda, como o fez o gerente de supermercados de Osasco. Mas Carolina era mais complexa do que isso, ela queria ir mais além. Portanto, após conseguir comprar a casa de alvenaria, a escritora manteve seu viés contestador, o que não foi aceito por aquela sociedade. No que tange a escritos femininos, Pierre Bourdieu (2003, p. 82) relata que, das mulheres, “se espera que sejam ‘femininas’, isto é, sorridentes, simpáticas, atenciosas, submissas, discretas, contidas ou até mesmo apagadas”. Todavia, de modo algum Carolina se enquadrava nessas categorias, longe disso. Ela não estava em acordo com a imagem da “mulher ideal” da década de 1950, isto é, ser boa mulher é ser boa mãe e esposa. Aliás, ela nunca foi esposa de ninguém. O que exatamente Carolina poderia querer a mais, já que havia conseguido a publicação de seu livro e condições para não mais morar na favela? Germana de Sousa (2012) defende que […] Carolina queria, na verdade, ser dona de sua história e de seu sucesso, e recusar, por meio disso, ter sido um objeto nas mãos dos editores. Longe de se identificar com o jogo do mercado, que entra em ação por trás de todo grande lançamento da esfera cultural, Carolina queria confirmar sua independência […] Contraditoriamente desejando e recusando o sucesso. ( p. 15)

Carolina não conhecia o lado perverso da fama antes de ver publicado seu Quarto de Despejo. Quando ela conheceu esse outro lado, desiludiu-se, como registrado em Meu Estranho Diário (In: JESUS, 1999) “Quando infiltrei na literatura sonhava so com a ventura”. Aos poucos o fenômeno Carolina deixava de ser atrativo. Em vista de evitar o inevitável, a escritora batalhou para se manter como escritora. Naquele momento ela não precisava mais catar lixo para sua sobrevivência, por isso, dedicou-se inteiramente à sua escrita. Dessa forma ela continuou a escrever Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada

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(1961) e Pedaços da Fome (1963), este custeado pela própria autora, ambos foram fracassos de vendagem. Contudo, o que poderia ter sido o motivo do fracasso de uma escritora que em menos de 3 anos havia vendido milhares de cópias de seu livro de estreia e ter tido status na mídia brasileira e internacional, com filmes baseados em sua obra, traduções de Quarto de Despejo para 13 idiomas? Apesar de haver tentado, Carolina não mais obteve êxito como escritora. Para ir contra seu sonho de reerguer-se profissionalmente, em 1964 “o livro de Carolina escorreu pela vala do esquecimento como se não tivesse importância singular em nossa história da cultura” (MEIHY, 1998 apud SOUSA, 2012, p. 19). O historiador continua, “o estranho sucesso do livro foi breve porque sua mensagem de crítica social era inadequado ao padrão proposto pelo golpe militar de 1964”. Ele ainda afirma que Carolina sofreu “uma censura branca”, pois “seu livro foi evitado pelos editores que o viam como perigoso e passível de uma censura que seria, no mínimo, economicamente prejudicial” (Id. Ib). Outro ponto que deve ser analisado é o fato de Carolina ter sido apresentada na mídia como escritora de diários, embora se saiba que sua produção literária tenha ido além disso, e que seus diários eram menos importantes para ela, que queria se afirmar como poeta. O gênero diário por muito tempo foi considerado como baixo, de pouca qualidade, e destinado a assuntos femininos. Ainda assim, mesmo sendo considerado como algo aquém da literatura canônica, o gênero era destinado a mulheres pertencentes à classe social dominante, pois eram essas mulheres que aprendiam a ler e a escrever, liam jornais e tinham acesso à cultura. Lejeune (1980 apud SOUSA, 2012, p. 32) afirma que “o silêncio dos outros parece natural: a autobiografia não faz parte da cultura dos pobres”. Nos exemplos citados por Lejeune, há camponeses e operários que resgatam suas memórias pela oralidade e que quem coletava esses relatos era ou historiador ou etnólogo. Portanto, esses profissionais ‘davam voz aos excluídos’. Lejeune (Id. ib), citando Bourdieu, nos põe a perspectiva de que “as classes dominadas não falam, são faladas”. Quanto a Carolina Maria de Jesus, “a especifidade de seu texto tem a ver com a sua escrita da vida de próprio punho, sem mediação. É uma escrita que se autorrepresenta como mulher, negra e pobre. Mas poeta”. (SOUSA, 2012, p. 33) Logo, Carolina – enquanto negra e favelada – não teve um mediador2 que a fizesse ser _________________ 2

Neste caso, um mediador enquanto pessoa que transcreve os relatos. Carolina, ela mesma, escreveu suas histórias. Audálio Dantas serviu como intermedário no que diz respeito a publicar os escritos.

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ouvida. Como parte de sua personalidade, ela mesma escreveu seus relatos utilizando-se de técnicas rudimentares, mas fez ser ouvida. Mesmo com condições financeiras favoráveis, Carolina se desgastou muito no novo bairro ao não ser aceita em Alto de Santana, onde se dizia infeliz. Por essa razão, comprou, sem avisar ao menos para os filhos, uma chácara em Parelheiros, periferia da cidade de São Paulo. A escritora isolou-se do agito da cidade grande. Na nova moradia, um sítio, Carolina de Jesus pôde reviver a infância no interior de Minas Gerais, cuidando da plantação e criando alguns animais. Foi naquele local em que ela faceleceu em 1977, sem dinheiro e sem o prestígio de outrora.

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3. PANORAMA DO NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA ATÉ MEADOS DO SÉCULO XX.

Neste capítulo, será traçado um panorama do negro na literatura brasileira até meados do século XX, mais precisamente até 1960, data-base desta discussão por marcar o lançamento de Quarto de Despejo: diário de uma favelada, obra de estreia de Carolina Maria de Jesus. A partir de Carolina Maria de Jesus, discutir-se-á como foi a (não) aceitação das obras de Rosa Egipcíaca, Maria Firmina dos Reis, Luiz da Gama, Machado de Assis, José do Patrocínio, Cruz e Sousa, Lima Barreto e Solano Trintade. Os dados coletados desses autores serão divididos de acordo com o sexo, e se seguirá uma ordem cronológica dos fatos. As informações obtidas resumem-se a: breve biografia, obras mais importantes e representatividade sociopolítica de cada escritor para o momento. Em razão de não ter tido muitas escritoras negras nesse período, foram incluídas três escritoras brancas (Francisca Clotilde, Júlia Lopes e Patrícia Galvão) as quais, através de seus escritos, combateram a escravidão e a diminuição da mulher na sociedade brasileira, bem como o fez Carolina Maria de Jesus. Logo, foram selecionadas devido à sua representatividade em favor da libertação feminina e importância sociopolítica, cada qual em seu momento. E também para possibilitar uma comparação da (não) aceitação de cada uma delas no meio intelectual brasileiro. Com isso, será possível notar o quanto o escritor negro foi ignorado em todas as suas vertendes (artística e socialmente) desde o Brasil colonial, até o século XX. Dessa forma, serão expostos dados e fatos concretos dos motivos ideológicos que fizeram com que a obra de Carolina fosse silenciada na década de 1960.

3.1 Escritoras negras brasileiras até 1960.

Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos. (Lygia Fagundes Telles)

Sabe-se que se tem feito literatura durante muitos séculos. Desde a Mesopotâmia, China até a Grécia Antiga, onde Aristóteles (384-322 a.C.) dedicando-se aos seus estudos, estabeleceu divisões para os gêneros literários, ainda usados nos estudos modernos.

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Sabe-se também que o ser humano tem a necessidade de narrar os feitos do herói, o símbolo de esperança de um povo. Como exemplo de ética e personalidade, têm-se os heróis dos poemas épicos de Ilíadas, Eneida e Os Lusíadas. Por isso, a história conhecida é sempre a do vencedor, do mais forte e do mais correto, daquele que age de acordo com a lei. No período do Brasil colonial (1500-1822), muitos escritores narraram as façanhas de seus heróis (fictícios ou não) e, a partir do século XVIII, declararam o amor incondicional às suas musas inspiradoras, pregaram que o bem-estar estaria no campo, enalteceram as divindades mitológicas, entre outros. Somente a partir do século XIX que a burguesia, em sua plena ascensão, passou a comercializar e a consumir produtos culturais, até então restritos à corte. Nesse momento histórico, o livro foi consolidado como produto cultural e exerceu uma função pedagógica de maior abrangência que outrora. O romance, por sua vez, assume um papel importante na definição do que era socialmente aceito como certo e errado, ou seja, condutas comportamentais moralizantes e éticas definidas. Nesse quesito, a representação da mulher “ideal” em narrativas românticas daquele século, por exemplo, era bem clara: sempre pálida, vulnerável e à espera de um herói (o mocinho) que a salvasse de algum perigo iminente. Logo, a mulher jamais poderia tomar qualquer tipo de decisão, pois não tinha voz ativa. Já no Realismo/Naturalismo do final do século XIX, a mulher era adúltera e utilizava de sua sedução para conseguir o que desejava, ao menos tentava. Ainda assim não podia fazer muita coisa, pois estava subjulgada ao crivo do pai, do marido e da sociedade. De qualquer forma, sua representação era também de cunho negativo. Em razão disso, até as primeiras décadas do século XX, pouco se soube a respeito do trabalho intelectual produzido por mulheres, uma vez que elas, tidas como fracas e inferiores em relação aos homens, produziam material, mas não conseguiam publicá-lo devido às restrições masculinas predominantes. Sendo assim, tornava-se quase impossível para uma mulher fazer parte de um universo tão restrito ao gênero masculino e de determinada casta. Para o homem branco burguês do século XIX, os temas abordados por mulheres não eram de grande valia, uma vez que delas nada era esperado a não ser cuidar dos filhos e dos afazeres domésticos. A esse respeito, Claúdia Castanheira (2011) afirma que: […] sob os impositivos ideológicos de uma colonização econômica e cultural, a mulher deparouse com graves obstáculos à sua inserção no cenário literário. Prevalecia o pensamento de que as mulheres eram intelectualmente inferiores aos homens, portanto sua forma de pensar e de

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escrever não era levada em consideração. Por não possuir nem a independência intelectual nem a material – e uma coisa é ligada a outra –, a mulher, a que era considerada moralmente válida, não tinha como avançar muito além dos muros de seus quintais para adquirir uma cultura superior e dar vazão à sua criatividade. (p. 26)

De acordo com o que nos informa a autora supracitada, além de ser desprestigiada moral e intelectualmente, a mulher pouco podia fazer já que era economicamente dependente do marido ou do pai. Mesmo assim, apesar de todos os obstáculos, houve aquelas que ousaram produzir material e publicá-lo. “A partir da segunda metade do século XIX, influenciadas pelo primeiro movimento feminista no Brasil, as mulheres começam a publicar mais intensamente. Surge uma imprensa feminina”, como afirma Castanheira (s/d, p. 2-3). A autora revela ainda que “era retratada a vida da mulher burguesa em seu espaço doméstico, privado, familiar. E que muitas mulheres possuíam uma consciência política bastante esclarecida acerca das desigualdades sociais, raciais e sexuais.” (Id. p. 3) Dessa época em diante, muitas mulheres assumiram o lado “subversivo” e começaram a dar vazão a seus sentimentos por meio da escrita, ainda que não fosse de bom-tom moça de família ser dada a qualquer atividade que não pertencesse aos deveres domésticos e maternais. Entre elas, citam-se: 

Francisca Clotilde (1862-1935): Segundo Luciana Andrade de Almeida (2006), Clotilde, cearense de Tauá (antiga São João dos Inhamuns), foi a primeira mulher a ser admitida para lecionar na Escola Normal, em Fortaleza, inaugurada em 1884. Ela teria participado da libertação de escravos no interior e, ao que consta, teve seis filhos, tendo sido casada mais de uma vez. Francisca fez parte do movimento de cearenses precursoras da escrita feminina, em um tempo em que o ato de escrever, em si, era subversivo. O ingresso dela no magistério – dirigido e orientado exclusivamente por homens à época –, aos 20 anos de idade, é representativo do período de busca feminina por atividades, instrução e ofícios fora do ambiente doméstico. Em 1884, Francisca Clotilde passa a ser a primeira professora da Escola Normal no Ceará. Sua produção literária inclui Coleção de Contos (1897), Noções de Aritmética (1889), A Divorciada (1902), sonetos, contos, peças teatrais,

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poemas, traduções de folhetins de autores como Byron, Goethe e Gogol, críticas literárias e propagandas. Também colaborou em jornais e revistas, na folha operária O Combate e no abolicionista O Libertador. Seu legado maior para a Literatura Brasileira, porém, deve-se à publicação de A Divorciada, no qual tematizou o divórcio, tema inédito nas letras brasileiras. A publicação chocou a sociedade conservadora de então, que a considerou “antifamiliar”. 

Júlia Valentim da Silveira Lopes de Almeida (1862-1934): Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, no mesmo edifício que servia de escola secundária para moças (o Colégio de Humanidades) e de residência para a família, segundo aponta Leonora De Luca (1999). Aos 7 anos de idade, a família se muda para Campinas, no início de 1870. Abstraídos os períodos em que acompanha os pais em viagens ao exterior, Júlia Lopes permaneceu na cidade até os 23 anos (até o noivado). Por orientação do pai, ocupou-se da leitura dos clássicos portugueses (Garrett, Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Diniz) – para voltar-se, depois de casada, para os grandes nomes do Realismo e do Naturalismo francês (Flaubert, Maupassant, Zola). Aos 19 anos de idade, o pai a convida para colaborar em seu jornal, A Gazeta de Campinas, sua estreia se deu em 8 de dezembro de 1881. Em 1884, marca uma inovação importante: aqueles primeiros textos, leves e concisos, dão lugar a uma série de artigos mensais, que aparecem sob a epígrafe Leitura Popular (com o subtítulo As Nossas Casas), na qual é abordada a problemática cotidiana da dona-de-casa. Casou-se com Filinto de Almeida em 1886 e mudaram-se para a cidade de São Paulo, onde deu à luz dois filhos. A possibilidade de uma mulher conciliar a administração do lar com um trabalho literário, do mesmo nível qualitativo da produção masculina, vinha demonstrar a inconsistência dos mitos machistas que vedavam o acesso às profissões liberais a todo o gênero feminino; o ineditismo de se dispor da presença de uma escritora que não se limita à composição de versinhos – mas que participa ativamente da vida da nação, emitindo opiniões próprias

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– torna-a modelo a ser seguido por toda uma legião de mulheres talentosas que afloram pelo Brasil. Até meados da década de 1910, sucedem-se, somando dezenas de milhares de exemplares (feito raro em um Brasil ainda praticamente analfabeto), as edições e reedições de seus romances; lembrando que essas novas tiragens vêm somar-se às reimpressões praticamente anuais de seus livros didáticos (Contos Infantis e Histórias da Nossa Terra (1907), aos quais irá juntar-se A Árvore (1916), convencemo-nos de que Júlia Lopes efetivamente concretizou o raro feito de conseguir “viver de letras” em um país como o Brasil. Em 16 de fevereiro de 1914, acumulam-se ainda evidências de que seu prestígio extrapola os limites da comunidade lusófona: registrou-se uma apoteótica recepção a ela oferecida em Paris, em um banquete para o qual, a pretexto de apresentarem-na “ao mundo intelectual francês”, foram convidadas 400 pessoas. 

Patrícia Rehder Galvão (1910-1962): Nascida em São João da Boa Vista (SP), foi romancista, diretora de teatro, desenhista, tradutora, jornalista e professora. Mudou-se com a família para a capital paulista aos 3 anos de idade. Foram morar no bairro industrial do Brás. Em virtude de ser militante comunista, foi a primeira mulher presa no Brasil por motivações políticas. Ao todo, somaram-se 23 prisões durante sua breve vida. Aos 18 anos, juntou-se ao movimento antropofágico de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Participou da Revista de Antropofagia, entre outras, publicando suas ilustrações de 1928 a 1929. Em 1930, Patrícia Galvão casou-se com Oswald de Andrade, com quem teve um filho. Foi uma mulher avançada para os padrões da época, pois cometia algumas “extravagâncias” como fumar na rua, usar blusas transparentes, manter os cabelos bem cortados e eriçados e dizer palavrões. Sem se importar com o que pensavam e diziam a seu respeito, tinha muitos namorados e causava polêmica na sociedade. Comportamento esse que não era nem um pouco compatível com sua origem familiar, bem tradicional.

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Em 1933, ela partiu para uma viagem pelo mundo, deixando marido e filho no Brasil. No mesmo ano publicou Parque industrial, romance que dava a operários o título de protagonistas. Em 1935, Pagu foi presa em Paris como comunista estrangeira, com identidade falsa, sendo repatriada para o Brasil. Retomou sua atividade jornalística, mas foi presa e torturada pelas forças da Ditadura mais uma vez, ficando na cadeia por cinco anos. Ao sair da prisão, em 1940, rompeu com o Partido Comunista, passando a defender um socialismo de linha trotskista. Nesse mesmo ano, integrou a redação de A Vanguarda Socialista junto de seu marido Geraldo Ferraz, o crítico de arte Mário Pedrosa, Hilcar Leite e Edmundo Moniz. Faleceu no município de Santos, litoral do estado de São Paulo, em 1962.

Como se pôde verificar, a partir da metade do século XIX, a mulher vai aos poucos conquistando seu espaço literário após diversas batalhas. Já no século XX, embora com certa resistência na aceitação pública no início de carreira, constam entre os cânones literários as consagradas Raquel de Queiroz (1910-2003), Cecília Meireles (1901-1964), Clarice Lispector (1920-1977), Hilda Hilst (1930-2004), Lygia Fagundes Telles (1923-), dentre tantas outras com o merecido destaque. No entanto, deve-se mencionar que as escritoras acima citadas, sem nenhuma exceção, são provenientes de lares em que a cultura teve fácil acesso. São mulheres brancas que tiveram acesso à educação, aprenderam mais de uma língua estrangeira e puderam frequentar a universidade; isto é, embora tenham enfrentado alguma resistência por serem mulheres e escritoras, a inserção delas no meio cultural elitista brasileiro não foi de todo evitado. Por outro lado, no que diz respeito a mulheres não brancas na literatura brasileira, as coisas não se deram com tanta facilidade. É comum nos depararmos com as negras e mulatas sedutoras e/ou subalternas descritas em romances, pois não cabia a essas mulheres a condição de heroína de qualquer que fosse a história. Durante todos os anos de consolidação de uma população negra brasileira e todas as lutas por direitos e reconhecimentos, pouco se tem no que diz respeito a escritoras negras no país, visto que boa parte dessa população ainda busca a alfabetização e a criação de uma identidade negra; ao passo que muitos ainda renegam sua identidade negra. Dessa forma, torna-se difícil encontrar escritoras negras que tematizem a condição e a identidade de mulher negra, uma vez que a maioria dos negros pouco conhece sobre suas origens devido a questões ideológicas que visam a obstruir o acesso a esse conhecimento.

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Ainda assim, houve aquelas que, mesmo sem as mínimas condições, superaram os obstáculos e conseguiram um fato audacioso: publicar seus escritos. Como abordado anteriormente em 2.1 Escolaridade, o direito à instrução era vetado a negros, e a situação ficava ainda pior quando a criança era do sexo feminino. Apesar das condições precárias, estas escritoras trabalharam seus escritos e defenderam o discurso de que algo deveria mudar porque o que lhes era imposto não estava correto já que beneficiava apenas uma das partes. Entre essas escritoras, citam-se: 

Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz (1719-1779): Segundo o historiador e biógrafo Luiz Mott (1993), Rosa Maria foi a primeira mulher negra a escrever um livro no Brasil. Com mais de 200 páginas e intitulada Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas, a obra reunia visões e pensamentos da escrava, que teria começado a escrever com mais de 30 anos de idade, obedecendo a uma visão espiritual. O livro da escrava teria sido quase que totalmente destruído por seu confessor, depois que ela foi acusada de heresia e falsa santidade em 1763. Rosa Maria foi trazida da Costa da Mina (África) para o Brasil aos 6 anos de idade, aportando no Rio de Janeiro em 1725, onde permaneceu até os 14 anos, quando foi deflorada por seu antigo proprietário. Foi vendida para Minas Gerais, onde viveu como meretriz por quase 20 anos. Como continuou a ter visões e possessões, Rosa Maria foi examinada por uma junta de teólogos e exorcistas, que a tomou por embusteira, levando-a ao açoite. Temendo novas represálias, ela voltou para o Rio de Janeiro, onde fundou, em 1751, junto de seu ex-confessor, ex-exorcísta e coproprietário, o Recolhimento do Parto, destinado a mulheres pobres, parte delas negras e mulatas. Em 1763, foi enviada presa para os Cárceres do Santo Ofício da Inquisição de Lisboa. O fim de sua história não é conhecido, mas vale destacar que no altar do Recolhimento do Rio de Janeiro havia um quadro com a figura de Rosa trazendo o Menino Jesus no colo e uma pena na mão, o que dá bem a dimensão de seu prestígio junto aos fiéis. Sua biografia inspirou outras obras ficcionais e vários estudos a respeito do momento histórico do Brasil, principalmente a respeito da escravidão.

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Maria Firmina dos Reis (1825-1917) : Durante a infância, a menina bastarda e mulata viveu em um contexto de extrema segregação racial e social, por isso teve de se mudar para São José de Guimarães, no município de Viamão (MA). A maranhense Maria Firmina foi a primeira mulher brasileira a ter um romance publicado no Brasil. Úrsula (1859) abordou em sua trama o discurso engajado da autora antiescravidão. “Considerou-se, inclusive, que um de seus méritos foi o de alçar o escravo à condição de objeto estético, já que, por um longo tempo, a presença deste na literatura era obscurecida por sua própria condição social.” (CASTANHEIRA, 2011, p. 28) No entanto, “como era comum numa época em que as mulheres viviam submetidas a inúmeras limitações e preconceitos, a autora omite seu nome tanto na capa quanto na folha de rosto de Úrsula, ali consignando apenas o pseudônimo ‘Uma Maranhense’” (DUARTE, s/d). Duarte (Id.) afirma também que a ausência do nome, aliada à indicação da autoria feminina e, ainda, a procedência da distante província nordestina, juntam-se ao tratamento absolutamente inovador dado ao tema da escravidão no contexto do patriarcado brasileiro. O resultado é que uma espessa cortina de silêncio envolveu a autora ao longo de mais de um século. Maria Firmina foi educada graças ao seu primo, “o escritor e gramático Sotero dos Reis, primo por parte de mãe, como afirma em diversos poemas”. (Id.) A autora escreveu contos, romances, poesias e contos orais do folclore brasileiro.

Dessa forma, chega-se a meados do século XX com a publicação de Quarto de Despejo: diário de uma favelada de Carolina Maria de Jesus, no qual é relatado o cotidiano de uma negra, mãe solteira de três filhos e moradora de uma grande favela da cidade de São Paulo, localizada no bairro do Canindé, entre a margem do Rio Tiête e o depósito de lixo. Tem-se, pois, um panorama da escrita de autoria feminina muito debilitado no que tange a escritoras negras. Das duas escritoras negras citadas, pode-se notar que ambas tiveram acesso à instrução clandestinamente, isto é, não aprenderam a ler e a escrever em escolas, tampouco frequentaram a universidade. E também que nenhuma delas conseguiu o feito de Carolina Maria de Jesus. Por essa razão, Robert M. Levine (In: JESUS, 1998, p. 13) afirma

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que “Of the tens of millions of Brazilians descendants of African slaves, only one, Carolina Maria de Jesus, ever wrote and published about her life”. Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz escreveu sobre sua condição de escrava, mas não conseguiu publicar porque foi condenada de heresia e falsa santidade, tendo os manuscritos quase que totalmente destruídos para evitar castigo mais rigoroso. Maria Firmina dos Reis conseguiu publicar sua obra, mas não consta seu nome na autoria – foi usado o pseudônimo “Uma Maranhense” – e ela não escreveu estritamente sobre sua vida, embora tenha abordado o tema da escravidão com duras críticas. Portanto, até 1960, Carolina Maria de Jesus foi a única escritora negra a conseguir a façanha de não apenas ousar escrever, como conseguir publicar sua obra, que foi sucesso de vendagem. Quarto de Despejo foi qualificado como best-seller e traduzido para 13 idiomas, além de ter se tornado a sensação das letras brasileiras daquele ano. A autora se equiparou a Jorge Amado em quantidade de idiomas traduzidos e o superou em números de vendagem.

3.2 Escritores negros até 1960.

Notou-se no subcapítulo anterior que as mulheres tiveram de superar muitos obstáculos para se estabelecerem como escritoras e que essa superação tornou-se mais complicada quando as mulheres que ousaram se estabelecer como escritoras eram negras. No entanto, pode-se supor que os obstáculos superados por tais mulheres tenham sido tão intensos por conta de elas quererem assumir uma posição social, isto é, ter voz ativa em uma sociedade machista e patriarcal que tentou impedi-las de tal realização. Mas como se saíram os escritores negros no Brasil até a década de 1960? Esses escritores tiveram o acesso à elite cultural facilitado por serem homens? A seguir, discutiremos como se saíram alguns dos principais escritores negros no Brasil. Em relação ao número de escritores brasileiros desde o século XVII até meados do século XX, o número de escritores não brancos é quase nulo (limitando esta comparação àqueles que conseguiram publicar seus escritos). Todavia, mesmo sendo eles do sexo masculino, o que os impossibilitou de desfrutar um certo prestígio na carreira foram as questões raciais, mais que a qualidade artística da obra, o descrédito ao qual o homem negro foi atirado, independente de sua profissão. Entre aqueles que se destacaram na literatura, citam-se alguns que fizeram história tanto pela qualidade literária quanto por sua representação sociopolítica. São eles:

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Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882): Nascido no estado da Bahia, era filho de um fidalgo português (nunca teve o nome revelado) e de Luiza Mahin, negra livre que participou de diversas insurreições de escravos. Em 1840, foi vendido como escravo pelo próprio pai para pagar uma dívida de jogo. Transportado para o Rio de Janeiro, foi comprado pelo alferes Antônio Pereira Cardoso e passou por diversas cidades de São Paulo até ser levado para Lorena, interior do estado. Aos 17 anos de idade, Luiz Gama foi alfabetizado pelo estudante Antônio Rodrigues de Araújo, que havia se hospedado na fazenda de Antônio Pereira Cardoso. Um ano depois ele fugiu para a cidade de São Paulo. Em 1848, alistou-se na Força Pública da Província (ou Corpo de Força da Linha de São Paulo), entidade na qual se graduou cabo e permaneceu até o ano de 1854, quando deu baixa por um incidente que ele classificou como “suposta insubordinação”, já que apenas se limitara a responder insultos de um oficial. Em 1850, casou-se e tentou frequentar o Curso de Direito do Largo do São Francisco. Por ser negro, enfrentou a hostilidade de professores e alunos, mas persistiu como ouvinte das aulas. Embora não tenha concluído o curso, o conhecimento adquirido permitiu-lhe que atuasse na defesa jurídica de negros escravos. Na década de 1860, Luiz Gama projetou-se na literatura por conta de seus poemas, os quais satirizavam a aristocracia e os poderosos de seu tempo. É reconhecido como um dos grandes representantes da segunda geração do Romantismo brasileiro, mas na época enfrentou a oposição dos acadêmicos conservadores. Também é reconhecido por ter sido um dos maiores líderes abolicionistas do Brasil, sempre engajado nos movimentos contra a escravidão e a favor da liberdade dos negros. Em 1869, fundou com Rui Barbosa o Jornal Radical Paulistano. Em 1880, foi líder da Mocidade Abolicionista e Republicana. Devido a sua luta a favor da libertação dos escravos, era hostilizado pelo Partido Conservador, chegando a ser demitido do cargo de amanuense por motivos políticos. Nos tribunais conseguiu libertar mais de 500 escravos. As causas eram as mais diversas, muitas envolviam negros que podiam pagar cartas de alforria, mas eram impedidos pelos seus senhores de serem libertos, ou que haviam

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entrado em território nacional após a proibição do tráfico negreiro em 1850. Ganhou notoriedade por defender que “ao matar seu senhor, o escravo agia em legítima defesa”. Faleceu pobre, pois costumava repartir seus ganhos com negros fugitivos que batiam à sua porta no meio da noite. 

Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908): Nascido no Morro do Livramento, cidade do Rio de Janeiro, Machado de Assis era filho de um mulato pintor de paredes e de uma lavandeira, que viviam como agregados na propriedade de uma senhora viúva e rica. Em 1881 lança a obra que inaugurou o Realismo no Brasil, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Foi eleito, por unanimidade, o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras (1897-1908), e é considerado o maior escritor brasileiro. Alguns críticos acusam-no de “cinismo” por ter ignorado questões sociais importantes na história do país, como a Independência do Brasil e a Abolição da Escravatura. São dispensados maiores comentários a respeito de sua biografia, mas deve-se ressaltar que frequentemente, devido ao seu status de “maior escritor brasileiro”, suas origens são evitadas. Em 2011, por exemplo, o escritor foi o centro de discussões raciais em uma propaganda da Caixa Econômica Federal, na qual o escritor foi protagonizado por um ator branco, eliminando qualquer resquício de sua identidade (origem) negra.



José Carlos do Patrocínio (1854-1905): Nascido em Campos dos Goytacazes (RJ), era filho natural do Padre João Carlos Monteiro, Vigário da paróquia e orador sacro de grande fama na capela imperial, e de Justina do Espírito Santo, uma jovem escrava mina de 15 anos, cedida ao serviço do cônego por D. Emerenciana Ribeiro do Espírito Santo, proprietária da região. Passou a infância na fazenda paterna da Lagoa de Cima, onde pôde observar, desde criança, a situação dos escravos e assistir a castigos que lhes eram infligidos. Por certo nasceu ali a extraordinária vocação abolicionista.

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Aos 14 anos de idade foi para o Rio de Janeiro. Começou a trabalhar na Santa Casa de Misericórdia e voltou aos estudos no Externato de João Pedro de Aquino, fazendo os preparatórios do ensino superior. Ingressou na Faculdade de Medicina como aluno de Farmácia, concluindo-o em 1874. Naquela época, passou dificuldades porque os amigos da república de estudantes voltavam para suas cidades de origem, e ele teria que alugar outra moradia. Foi então que seu amigo João Rodrigues Pacheco Vilanova, colega do Externato Aquino, convidou-o a morar em São Cristóvão, na casa da mãe, então casada em segundas núpcias com o Capitão Emiliano Rosa Sena. Nesse período Patrocínio iniciara a carreira de jornalista, na Gazeta de Notícias, e sua estrela começava a aparecer. Com Dermeval da Fonseca, publicava Os Ferrões, quinzenário que saiu de 1 de junho a 15 de outubro de 1875. Em 1877, Patrocínio estava na Gazeta de Notícias, onde teve a seu cargo a Semana Parlamentar, que assinava com o pseudônimo Prudhome. Em 1879 iniciou a campanha pela Abolição. Em torno dele, formou-se um grande coro de jornalistas e de oradores, entre os quais Ferreira de Meneses, na Gazeta da Tarde, Joaquim Nabuco, Lopes Trovão, Ubaldino do Amaral, Teodoro Sampaio, Francisco de Paula Nei, todos da Associação Central Emancipadora. Por sua vez, Patrocínio começou a tomar parte nos trabalhos da associação. Em 1881, passou para a Gazeta da Tarde, tornando-se o novo proprietário do periódico, comprado com a ajuda do sogro. Patrocínio tinha atingido a grande fase de seu talento e de sua atuação social. Fundou a Confederação Abolicionista e lhe redigiu o manifesto, assinado também por André Rebouças e Aristides Lobo. Em setembro de 1887, deixou a Gazeta da Tarde e passou a dirigir a Cidade do Rio, que havia fundado. Ali se fizeram os melhores nomes das letras e do periodismo brasileiro do momento, todos eles chamados, incentivados e admirados por Patrocínio. Foi de sua tribuna da Cidade do Rio que ele saudou, em 13 de maio de 1888, o advento da Abolição, pelo qual tanto lutara. Em 1889, Patrocínio não teve parte na República e, em 1891, opôs-se abertamente a Floriano Peixoto, sendo desterrado para Cucuí. Em 1893,

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foi suspensa a publicação da Cidade do Rio, e ele foi obrigado a refugiar-se para evitar agressões. Fundador da Cadeira 21 da Academia Brasileira de Letras, suas obras são: Os Ferrões (1875), Mota Coqueiro ou A pena de morte (1977), Os retirantes (1879), Manifesto da Confederação Abolicionista (1883) e Pedro Espanhol (1884). Faleceu pouco depois, aos 51 anos de idade, aquele que é considerado por seus biógrafos o maior de todos os jornalistas da Abolição. 

João da Cruz e Sousa (1861-1898): Filho dos escravos alforriados Guilherme da Cruz e Carolina Eva da Conceição, João da Cruz desde pequeno recebeu a tutela e uma educação refinada de seu ex-senhor, o marechal Guilherme Xavier de Sousa, de quem adotou o nome de família, Sousa. A esposa do marechal, Dona Clarinda Fagundes Xavier de Sousa, não tinha filhos. Por isso, passou a proteger e a cuidar da educação de João da Cruz e Sousa. Ele aprendeu francês, latim e grego, além de ter sido discípulo do alemão Fritz Müller, com quem aprendeu Matemática e Ciências Naturais. Em 1881, dirigiu o jornal Tribuna Popular, no qual combateu a escravidão e o preconceito racial a que também era exposto. Em 1883, foi recusado como promotor de Laguna por ser negro. Em 1885, lançou seu primeiro livro, Tropos e Fantasias, em parceria com Virgílio Várzea. Mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro, onde arrumou emprego de arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil. Com uma renda mensal fixa, pôde colaborar também com o jornal Folha Popular. Em fevereiro de 1893, publicou Missal e, em agosto do mesmo ano, Broquéis, dando início ao Simbolismo no Brasil, que se estendeu até 1922. Em novembro daquele ano, casou-se com Gavita Gonçalves, também negra, com quem teve quatro filhos, todos mortos prematuramente por tuberculose, fato que abalou o estado emocional de Gavita. João da Cruz e Sousa faleceu a 19 de março de 1898 em Minas Gerais, na localidade de Curral Novo, então pertencente ao município de Barbacena, aos 36 anos de idade, vítima da tuberculose, da pobreza e, principalmente, do racismo e da incompreensão.

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Ele teve o corpo transportado para a cidade do Rio de Janeiro em um vagão destinado ao transporte de cavalos. Ao chegar à cidade, foi sepultado no Cemitério de São Francisco Xavier por seus amigos, dentre eles José do Patrocínio. Cruz e Sousa é um dos patronos da Academia Catarinense de Letras, representando a cadeira número 15. 

Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922): Nascido na cidade do Rio de Janeiro, Lima Barreto era filho de João Henriques de Lima Barreto (mulato nascido liberto) e de Amália Augusta Barreto (filha de escrava liberta da família Pereira de Carvalho). O pai era tipógrafo talentoso, e a mãe foi educada com esmero, tendo obtido diploma de professora do primário. Ela morreu cedo, o que fez com que João Henriques trabalhasse muito para sustentar os quatro filhos do casal. Talvez as lembranças saudosistas de seu pai do fim do período imperial no Brasil, bem como suas remotas lembranças da Abolição da Escravatura na infância viriam a exercer influência sobre a visão crítica do escritor a respeito do regime republicano. Mulato e, portanto, vítima do racismo em um país que mal acabara de abolir oficialmente a escravatura, Lima Barreto teve oportunidade de boa instrução escolar. Seus primeiros estudos foram realizados na cidade de Niterói. Logo depois, transferiu-se para a única instituição pública de ensino secundário da época, o conceituado Colégio Pedro II, no centro do Rio de Janeiro, cujos estudantes eram oriundos basicamente da elite econômica. Em 1897, aluno acima da média, foi admitido no curso de Engenharia da Escola Politécnica, no Largo de São Francisco, porém foi obrigado a abandoná-lo em 1902 para assumir o sustento dos irmãos, já que o pai enlouquecera. Nessa época, tornou-se funcionário público, exercendo a função de amanuense na Secretaria da Guerra. O cargo, somado às muitas colaborações em diversos órgãos da imprensa escrita, garantia-lhe algum sustento financeiro.

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Não obstante, o escritor foi reconhecido como fundamental para a Literatura Brasileira somente após o seu falecimento. Para ele, escrever tinha uma finalidade, o escritor tinha uma função social. Sua obra é composta de Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), Numa e a ninfa (1915), Vida e morte de J. Gonzaga de Sá (1919), Histórias e sonhos (1920) e Os bruzundangas (1922). Lima Barreto faleceu aos 41 anos de idade em decorrência do vício do álcool, que por mais de uma vez o levou ao hospício. 

Solano Trindade (1908-1874): Nascido em Recife (PE), era filho de Manuel Abílio, mestiço, sapateiro, e da quituteira Merença (Emerenciana). Estudou até completar um ano de desenho no Liceu de Artes e Ofício. A partir de então, começou a escrever. A militância inicia-se a partir de 1930, quando começa a compor poemas afro-brasileiros e, integrado em tal corrente, participa em 1934 do I e II Congresso Afro-Brasileiro, no Recife e Salvador. Em 1936, fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileiro, que tinha o objetivo de divulgar os intelectuais e artistas negros. De todos os escritores negros, ligados à coletividade negra brasileira, o que deixou presença mais forte foi Solano Trindade. Foi o primeiro a escrever, com especificidade, para negros, naquele tempo. Pagou o preço disso. Em 1940 transfiriu-se para Belo Horizonte. Depois para o Rio Grande do Sul, fixando-se por um tempo em Pelotas, onde funda com o poeta Balduíno de Oliveira um grupo de arte popular. Essa foi sua primeira tentativa de criar um teatro do povo, o que não se concretizou devido à enchente de 1941, que carregou todo o material. Voltou então para Recife, indo logo depois para o Rio de Janeiro, onde no "Café Vermelhinho", detém-se a discutir e a conversar com jovens poetas e intelectuais, artistas de teatro, políticos e jornalistas. Em 1944, edita o livro Poemas de uma vida simples, no qual se pode encontra o declamadíssimo poema Trem sujo da Leopoldina. Por causa de um de seus poemas mais conhecidos, Tem Gente com Fome, Solano foi preso e teve o livro apreendido.

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Em 1945, funda o Comitê Democrático Afro-brasileiro, com Raimundo Souza Dantas, Aldair Custódio e Corsino de Brito. Em 1954 mudou-se para São Paulo, criando na cidade de Embú, um polo de cultura e tradições afro-americanas. Funda também o Teatro Popular Brasileiro (TPB), no qual desenvolveu uma intensa atividade cultural voltada para o folclore e para a denúncia do racismo. Em 1955 viaja à Europa, com o TPB, onde dá espetáculos de canto e dança. Em 1958, edita Seis tempos de poesia e, em 1961, Cantares ao meu povo (com uma reunião de poemas anteriores). Em 1964, seu filho Francisco Solano morreu em decorrência de torturas numa prisão da ditadura militar. Solano foi um lutador, um grande defensor da liberdade, e resgatou a cultura negra no país. Por isso Solano Trindade sofreu tantas perseguições.

Nota-se, de modo geral e através dos dados acima, que os escritores negros e mulatos foram mais bem aceitos pela crítica da elite literária brasileira do que as escritoras negras e mulatas do mesmo período. Até porque alguns desses escritores fizeram parte da dita elite literária brasileira, como foi o caso de Machado de Assis e José do Patrocínio, ambos imortalizados pela Academia Brasileira de Letras (ABL). Porém, sem ter como ignorar a qualidade literária de Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Sousa, tentou-se mascarar a origem desses escritores ao longo dos anos. Segundo Eduardo de Assis Duarte, em Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica, esses autores foram “embranquecidos pela capacidade de absorção do establishment literário, que ignora a questão racial”. Embora tenham sido aceitos como escritores de qualidade ímpar, uns de imediato e outros posteriormente, a questão racial era levada em consideração, como foi o caso de Machado de Assis na propaganda da Caixa Econômica Federal em 2011. Dessa forma, a obra desses autores foi aceita; o escritor, nem tanto. Isso faz com que se pense que o 13 de maio de 1888 não tenha, de modo algum, erradicado a ideologia da soberania e superioridade branca existente no Brasil. Florestan Fernandes (2008) defendeu a tese de que “a democracia racial brasileira tinha se transformado em mito. Mito não no sentido da falsidade, como alguns pensam, mas no sentido de uma ideologia dominante, de percepção de classe que pensa o seu ideal de conduta como verdade efetiva”. O autor ainda ressalva que “o ‘homem de cor’ não era repelido frontalmente, mas também não era aceito sem restrições” (Id, p. 307) e que,

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portanto, nada foi feito em prol de negros e mulatos porque “a modernização de atitudes e de comportamento, sob a presunção de que agitar certas questões só serviria para ‘prejudicar o negro’ e ‘quebrar a paz social’” (Id. Ib.). Então uma questão vem à tona. Se, indiretamente, tudo que o negro produzia era boicotado do círculo cultural brasileiro, como o mulato Machado de Assis é tido como o maior escritor brasileiro? Teria sido ele aceito exclusivamente pela sua qualidade literária? Como já salientado, alguns críticos acusam o primeiro presidente da ABL de “omissão e cinismo” a respeito de assuntos importantes de sua época, tais quais a Abolição da Escravatura e a Independência do Brasil. Uma possível resposta pode ser dada por Florestan Fernandes (2008), quem declarou que […] uma visão da realidade racial pressupunha uma solução extremamente lenta e sob aspectos iníqua do “problema negro”. Sem que se atentasse para isso, a filosofia política dessa solução repousava no antigo modelo de absorção gradativa dos “elementos de cor” pelo peneiramento e assimilação dos que se mostrassem mais identificados com os círculos dirigentes da “raça dominante” e ostentassem total lealdade a seus interesses ou valores sociais. (p. 308-9. Grifos do autor)

Teria Machado, então, “se identificado” mais rapidamente com os interesses e valores sociais da “raça dominante” e, por isso, tenha sido “absorvido” e consequentemente aceito pelo círculo cultural brasileiro? Sabe-se que, bem como Carolina de Jesus, Machado de Assis via em sua obra uma forma de ascensão social, talvez a única forma. Por outro lado, dentre os escritores citados, tem-se, como exemplo de não aceitação pela elite intelectual, Solano Trindade. Mesmo que ele tenha sido um escritor exímio, sofreu as consequências de não compactuar sua obra e seu estilo de vida com a ideologia dominante. Ou seja, nas palavras de Fernandes, Solano não se identificou com os interesses e valores sociais da raça dominante. Assim, não foi possível (ou não se quis) embranquecê-lo. E quanto à Carolina Maria de Jesus? Sua obra não foi aceita pela elite cultural do país ainda que tenham sido vendidas milhões de cópias. A temática abordada em sua obra não condiz com a fidelidade de que trata Fernandes. Mas a escritora se identificava com os interesses e os valores sociais da raça dominante. Ainda assim, a escritora não foi aceita. Pode-se justificar o fato da não aceitação de Carolina por ela não respeitar as concordâncias e crases ao escrever e que os temas por ela abordados são depreciativos. No entanto, tem-se Cruz e Sousa que, apesar de ter tido instrução da mais alta qualidade, também não foi aceito como escritor exímio que era, além de ter pertencido à alta classe social. Postumamente, foi-lhe atribuído o título de maior poeta simbolista do Brasil.

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Seus escritos são carregados de lirismo e todos os tipos de recursos estilísticos que o círculo literário brasileiro tanto adora. Mas Cruz e Sousa teve um posicionamento político contrário e não se identificou com os valores sociais da “raça dominante”. Ele criticou veementemente o preconceito que tanto o incomodava. Como exemplo de luta por meio de sua obra, pode-se traçar um paralelo entre o diário Quarto de Despejo, de Carolina, e o poema Litania dos Pobres, de Cruz e Sousa. De formas diferentes, ambos abordam a mesma problemática: preconceito racial, cultural e social e a luta diária daqueles que nada possuem e que, portanto, nada são. Logo, a não aceitação de Carolina não reside em sua “má escrita”, sem concordâncias, crases e temas mais amenos; pois, se assim o fosse, Cruz e Sousa não teria sofrido o que sofreu. Restam-nos então a questão racial e o posicionamento político contraditório de Carolina perante a classe dominante. Portanto, sem ser possível ignorar a qualidade literária de escritores como Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Sousa e José do Patrocínio, tentou-se ao longo dos anos mascarar a origem negra e/ou mulata desses escritores. A (não) aceitação de escritores negros e mulatos, como Carolina de Jesus, ficou claramente relacionada à origem étnica e social dos autores. E que, apoiado nas palavras do sociólogo Florestan Fernandes, a tão dita “democracia racial” não passa de um mito, ou seja, mesmo que esses autores sejam reconhecidos como grandes escritores das letras brasileiras (cânones), sua origem e sua cultura de nada valem se não estiverem em acordo com o que é socialmente aceito pela “raça dominante”.

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4. EU DISCURSIVO, IDENTIDADE E IDENTIFICAÇÃO NA OBRA DE CAROLINA.

Neste capítulo, será abordado como Carolina Maria de Jesus constrói sua identidade social por meio de sua escrita e como essa identidade define a construção de sua identidade literária, uma vez que não é tarefa fácil disassociá-las em razão de sua obra literária estar interligada à sua biografia. Carolina viu em sua escrita uma oportunidade de ascender socialmente e, para tanto, ela teve de adaptar-se enquanto sujeito social para conseguir o feito mais importante para ela: consagrar-se escritora. Dessa forma, será possível notar como ela constrói uma imagem que, segundo ela, é a ideal para ser aceita na cidade; mas que, após vivenciar o estilo de vida no bairro de classe média, Carolina desilude-se e isola-se na periferia da cidade. Em virtude disso, discutiremos primeiro a construção da identidade do sujeito social (representação) e, logo em seguida, abordaremos a construção de sua identidade autoral, sujeito literário. Assim, poder-se-á conhecer as possíveis razões que levaram Carolina Maria de Jesus a não conseguir se estabelecer nem como escritora nem como moradora do bairro classe média. A posteriori, abordaremos como essa experiência proporcionou motivos suficientes para que Carolina Maria de Jesus pudesse decidir seu lugar e sua função no mundo e como essa representação de si mesma fez com que ela se tornasse referência nos dias atuais, meio século após a publicação de seu primeiro livro.

4.1 Construção da identidade do sujeito social.

Para Stuart Hall (2014a, p. 105), o conceito identificação é preferível ao de identidade, embora ele reconheça que aquele é “quase tão ardiloso” quanto este, porque “não nos dá, certamente, nenhuma garantia contra as dificuldades conceituais que têm assolado o último.” Sob a perspectiva da teoria desconstrutiva de Derrida, Hall sustenta que o sinal de “rasura” (X) indica que [os conceitos] não servem mais - não são mais “bons para se pensar”. Mas uma vez que eles não foram dialeticamente superados e que não existem outros conceitos, interamente diferentes, que possam substituí-los, não existe nada a fazer senão continuar a se pensar com eles - embora agora em suas formas destotalizadas e desconstruídas, não se trabalhando mais no paradigma no qual eles foram originalmente gerados. (HALL, 2014a, p. 104)

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É com essas palavras que aqui justificamos o uso de ambos os conceitos, quando nos for mais conveniente e adequado. Em uma breve definição do conceito, Hall nos informa que “na linguagem do senso comum, a identificação é construída a partir do reconhecimento de alguma origem comum, ou de características que são partilhadas com outros grupos ou pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal.” E que, portanto, “é em cima dessa fundação que ocorre o natural fechamento que forma a base da solidariedade e da fidelidade do grupo em questão. A identificação é, pois, um processo de articulação, uma suturação, uma sobredeterminação, e não uma subsunção.” (HALL, 2014a, p. 106) O teórico ainda afirma que, pela abordagem discursiva, a identificação é um processo em constante construção, nunca completado, “embora tenha suas condições determinadas de existência, (…) é, ao fim e ao cabo, condicional” e por isso está sujeita “a uma historização radical, mudando-se e transformando-se.” (HALL, 2014a, p. 106-8) Mas que só é possível através do discurso, pois

é precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas específicas, por estratégias e iniciativas específicas. (HALL, 2014a, p. 109)

Corroborando com a afirmação de Stuart Hall, Émile Benveniste (2005) preconiza que “é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’”. Que a subjetividade da linguagem é “a capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’. E que “a consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste.” (p. 286. Grifos do autor) A respeito de o sujeito se constituir somente por meio de contraste, já que identidade e diferença são interdependentes, ou seja, elas são “formadas na interação entre o ‘eu’ e a sociedade” (HALL, 2014b), Stuart Hall argumenta que o mesmo processo acontece com as identidades e identificações, uma vez que, acima de tudo, […] as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela. Isso implica o reconhecimento pertubador de que é apenas por meio da relação com o Outro, da relação daquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo, que o significado “positivo” de qualquer termo - e assim, sua “identidade” - pode ser construído. (HALL, 2014a, p. 110. Grifos do autor)

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Dessa forma, não se pode categorizar Carolina Maria de Jesus como um sujeito que tenha pertencido exclusivamente a um determinado grupo apenas porque ela era negra e favelada. Entretanto, pode-se, por meio de sua literatura híbrida, de seu discurso, notar que ela tenha se identificado com determinados grupos, ao passo que rejeitou outros por não estarem de acordo com aqueles que ela julgava corretos (identidade e diferença). Afinal, ao afirmar quem ela era, Carolina concomitantemente afirmava quem ela não era. Enquanto um ser social, empírico, que transforma o meio em que vive e é por ele transformado, Carolina se constituiu como sujeito por meio da alteridade, isto é, somente ao ver no outro algo repudiante (diferença) ou algo com que ela se identificava, que a escritora construía o seu eu, sua identidade. Sou x; logo, não sou y nem z. Utilizando-nos das palavras de Frantz Fanon (2008, p. 93), devido ao processo brutal de colonização dos europeus e, por consequência, de imposição ideológica, “para o negro, a alteridade não é outro negro, é o branco”. Pode-se verificar tal fato na literatura caroliana quando ela afirmou ter sido amante dos homens brancos apenas, desprezando os homens não brancos. Ao narrar seu cotidiano, Carolina de Jesus constrói uma imagem (representação) de si mesma que ela acreditava ser a ideal para conseguir sair da favela e ser aceita na cidade na condição de semelhante. Ela o fez selecionando o que expor e, principalmente, o que não expor em seus escritos, quais aspectos seus eram interessantes para o leitor, o tu de seu eu, aceitar a verossimilhança de sua narrativa. É sabido que a diarista via em seus escritos uma (a única) forma de ascensão social. Por isso, a imagem construída por ela deveria estar de acordo com o grupo que ela gostaria de fazer parte. Sabe-se, por exemplo, que o estereótipo de moradores da favela é o de que eles são sujeitos preguiçosos, pedintes, indolentes, mal-educados, primitivos, entre outros adjetivos de semântica negativa. Visando a afirmar que ela, Carolina Maria de Jesus, não era semelhante aos demais favelados, a escritora descreve-se como uma mulher guerreira, uma mulher que enfrentava qualquer tipo de trabalho, que detestava a preguiça e os vícios. Têm-se sempre os binômios eu sou/eu não sou, gosto/não gosto (identificação e diferença), como se verifica no trecho a seguir (JESUS, 2012):

18 de julho de 1955 Os meu filhos não são sustentados com pão de igreja. Eu enfrento qualquer especie de trabalho para mantê-los. (p. 16. Grifos nossos) […] pessoas que são dadas ao vicio da embriaguês não compram nada. Nem roupas. Os ebrios não prosperam. […] Fui catar papel e permaneci fora de casa uma hora. Quando retornei vi varias pessoas as margens do rio. É que lá estava um senhor inconciente pelo alcool e os homens indolentes da favela lhe vasculhavam os bolsos. Roubaram o dinheiro e rasgaram os documentos. (p. 17)

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19 de julho de 1955 O que eu reprovo nas favelas são os pais que mandam os filhos comprar pinga e dá as crianças para beber. E diz: - Ele tem lumbriga. Os meus filhos reprova o alcool. (p. 21)

Em seus escritos, ela pondera ser uma pessoa controlada, bondosa e compreensível com os demais favelados, sobretudo com as crianças (JESUS, 2012):

Surgio D. Cecilia. Veio repreender os meus filhos. Lhe joguei uma direta, ela retirou-se. Eu disse: - Tem mulher que diz saber criar os filhos, mas algumas tem filhos na cadeia classificado como mau elemento. Ela retirou-se. Veio a indolente Maria dos Anjos. Eu disse: - Eu estava discutindo com a nota, já começou chegar os trocos. Os centavos. Eu não vou na porta de ninguem. É vocês que vem na minha porta aborrecer-me. Eu nunca chinguei filhos de ninguem, nunca fui na porta de vocês reclamar contra seus filhos. Não pensa que eles são santos. É que eu tolero crianças. Veio a D. Silvia reclamar contra os meus filhos. Que os meus filhos são mal iducados. Mas eu não encontro defeito nas crianças. Nem nos meus nem nos dela. Sei que criança não nasce com senso. Quando falo com uma criança lhe dirijo palavras agradaveis. […] Sei dominar meus impulsos. (p. 16) […] Nas favelas, os homens são mais tolerantes, mais delicados. As bagunceiras são as mulheres. […] Mas eu sou forte! Não deixo nada imprecionar-me profundamente. Não me abato. (p. 21. Grifos nossos) 20 de maio de 1958 O meu sorriso, as minhas palavras ternas e suaves, eu reservo para as crianças. (p. 39)

Carolina morava na favela do Canindé, às margens do rio Tietê, no quarto de despejo da cidade, mas não se identificava com o local: “Cheguei em casa, aliás no meu barraco” (JESUS, 2012, p. 12). Ela dividia o espaço com outros moradores, mas se sentia superior a eles porque sabia ler e escrever e porque se identificava com valores morais desprezados, segundo ela, pelos demais moradores da favela do Canindé. Em razão disso, é bem comum ela narrar “fatos sobre os favelados” em terceira pessoa, isto é, sem fazer menção a si mesma entre eles.

18 de julho de 1955 […] os homens indolentes da favela lhe vasculhavam os bolsos. (p. 16) 21 de julho de 1955 […] Passou um senhor e perguntou-me: - O que escreve? - Todas as lambanças que pratica os favelados, estes projetos de gente humana. (JESUS, 2012, p. 23. Grifos nossos)

Sua intencionalidade de se propor diferente ou até mesmo superior aos demais moradores da favela pode ser notada também quando o assunto é a respeito de bebidas

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alcoólicas. Carolina resistiu ao vício, dentre outros motivos, justamente por saber que a classe dominante não aceitava o álcool como algo positivo, e ainda se glorifica por isso. Dessa forma, em um dos seus momentos de desespero, ela pensa em beber cerveja para "se livrar" dos desagrados da vida, mas resiste:

[…] Hoje não saí para catar papel. Vou deitar. Não estou cançada e não tenho sono. Hontem eu bebi uma cerveja. Hoje estou com vontade de beber outra vez. Mas, não vou beber. Não quero viciar. Tenho responsabilidade. Os meus filhos! E o dinheiro gasto em cerveja faz falta para o essencial. (JESUS, 2012, p. 20-1)

Ela não bebe a cerveja e, com isso, consegue demonstrar que Carolina Maria de Jesus é uma pessoa controlada e digna de se confiar. Deixa bem claro para o leitor que ela era uma pessoa consciente de seus atos e que se preocupava com os filhos, além de dialogar com o leitor, exigindo deste um sinal de aprovação por suas escolhas (JESUS, 2012):

20 de maio de 1958 … Para mim o mundo em vez de evoluir está retornando a primitividade. Quem não conhece a fome há de dizer: “Quem escreve isto é louco”. Mas quem passa fome há de dizer: - Muito bem, Carolina. Os generos alimentícios deve ser ao alcance de todos. (p. 39) 27 de junho de 1958 … Tem pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga. Eu sou sozinha. Tenho três filhos. Se eu viciar no álcool os meus filhos não irá respeitar-me. Escrevendo isto estou cometendo uma tolice. Eu não tenho que dar satisfações a ninguem. Para concluir, eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no alcool. Se você achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer: - Muito bem, Carolina! (p. 74. Grifos nossos)

Embora ela tenha iniciado o diário em 15 de julho de 1955 sem ao menos saber se chegaria a ser publicado, ela já o fazia visando a esse fim. Porém, a partir de abril de 1958, as entradas do diário têm um apelo emocional voltado para a construção de sua imagem de pessoa diferente, digna de ganhar a confiança do leitor, superior aos demais favelados. Carolina havia parado de escrever o diário em determinado período, houve um hiato entre 29 de julho de 1955 e 1 de maio de 1958. Quando conheceu Audálio, quem se interessara por seus escritos, ela retomou sua atividade literária no dia 2 de maio de 1958 com uma afirmação contundente: “Eu não sou indolente.” (JESUS, 2012, p. 29) No entanto, Carolina inclui-se no grupo dos favelados quando critica os políticos “em prol dos outros” (os demais moradores da Canindé) ou quando ressalta sua identidade de mulher negra. Ela admite orgulhar-se de ser negra ao mesmo tempo em que reconhece

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que sua cor de pele tenha dificultado sua consagração como escritora, conforme relatado no trecho a seguir (JESUS, 2012):

19 de maio de 1958 … Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem se manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros. (p. 37) 16 de junho de 1958 … Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondiam-me: - É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta. (p. 65. Grifos nossos)

Há momentos em que a escritora pondera ser uma pessoa de bem, seguir os preceitos religiosos (amar o próximo, não roubar, não matar, etc.) ainda que esse discurso não seja seu. Para comprovar sua afirmação, chega a disponibilizar o número do Registro Geral (RG), documento popularmente conhecido como ‘identidade’, caso alguém deseje averiguar. … Estive revendo os aborrecimentos que tive esses dias (…) Suporto as contigências da vida resoluta. Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência. Nunca feri ninguem. Tenho muito senso! Não quero ter processos. O meu registro geral é 845.936. (JESUS, 2012, p. 18. Grifos nossos)

Nota-se também uma identificação étnica nos escritos de Carolina. Em seu Diário de Bitita (1986), a autora nos revela um período importante de sua vida, no qual ela toma conhecimento das histórias de seus ancestrais: a infância. As noites ao redor da fogueira no quintal e seu avô contando aos netos o que sucedera com os negros até aquele momento fizeram com que ela mantivesse viva a cultura herdada. Talvez tenha sido essa a razão de ela ter publicado um livro só de provérbios anos mais tarde. Contudo, após se matricular no colégio Allan Kardec e aumentar o convívio com os brancos, Carolina passa a conhecer outras histórias, as dos homens brancos. Em virtude disso, sua identidade sofre um processo de “rasura”, isto é, de acordo com a concepção desconstrutiva de Derrida via Hall (2014b), tenta-se anular todos os vestígios de seu passado para que fosse “suturada” uma cultura superior, mais evoluída, a do europeu; ou seja, Carolina foi “costurada à estrutura”. Carolina absorve essa cultura e começa a se identificar com os brancos a respeito de vários assuntos, sobretudo aqueles interligados à dicotomia Cultura superior (brancos) /

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Cultura inferior (não brancos). Nesse processo inclui-se a religião. É comum a escritora exaltar alguma santidade cristã, ao passo que não cita nenhuma outra entidade religiosa. A respeito dos conceitos, Hall (2014a, p. 104) afirma: “as duas linhas cruzadas (X) que sinalizam que eles estão cancelados permitem, de forma paradoxal, que eles continuem a ser lidos.” Esse processo de “rasura e sutura” pode ser aplicado à identidade de Carolina. Isto é, a identidade dela não foi totalmente “rasurada”, apenas “suturaram” outra, o que fez com que a antiga permanecesse notável e, como resultado dessa miscigenação identitária, transforma-se em uma “nova identidade”. Para melhor entendermos tal processo, recorremos às palavras de Stuart Hall (2014b):

[...] O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. (p. 12)

Sendo assim, a narrativa de Carolina Maria de Jesus nos informa a inconstância de indentificação da autora, ora aceitando a ideologia dominante, ora a rejeitando; ora se orgulhando de ser negra, ora relacionando todo o mal de sua existência à sua cor de pele, como neste exemplo: “23 de maio de 1958 […] Quando puis a comida o João sorriu. Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia.” (JESUS, 2012, p. 44. Grifos nossos) A escrita de Carolina é uma obra híbrida, na qual vários gêneros se intercalam para se contar uma história. Por se tratar de um diário, a perspectiva é limitada pelo cotidiano, o que faz com que a diarista tenha mais exatidão e fidelidade à realidade. Isso porque o período entre a experiência vivida e a escrita é relativamente curto. Por isso, segundo Elzira Perpétua (2014), a escrita de Carolina de Jesus é fragmentada porque

se, por um lado, o registro imediato do vivido minimiza o trabalho seletivo da memória, por outro, as anotações diárias vão imprimir um caráter bastante caótico na escrita, transformando o diário numa obra fragmentada, onde vários eus se evidenciam. (p. 254. Grifos da autora)

Logo, a cada entrada do diário, é possível depreender que havia um eu narrando os acontecimentos do cotidiano da escritora diarista; um eu que se identificava com o grupo X naquele exato momento, mas não necessariamento no momento seguinte. A narrativa de Carolina, por vezes, torna-se confusa e contraditória. Ao mesmo tempo em que ela era a prova viva de que faltavam oportunidades para os negros se

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estabelecerem nas cidades dignamente após o 13 de maio de 1888, a escritora chegou a declarar que os brancos davam, sim, oportunidade para os negros, e estes não aproveitavam. Ao fazer isso, Carolina ressaltou ainda mais o estereótipo de inferioridade dos negros.

22 de julho de 1955 - Antigamente eram os pretos que criava os brancos. Hoje são os brancos que criam os pretos. (p. 24) 13 de maio de 1958 … Nas prisões os negros eram os bodes espiatorios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz. (JESUS, 2012, p. 31)

À medida que a escritora se sentia marginalizada pela sociedade porque sobrevivia em um mundo negro, ela imaginava que, passando para o mundo branco, todos os problemas que ela enfrentava iriam simplesmente deixar de existir. Sendo assim, ela tem o mundo branco como um lugar idealizado, idílico. O fato de algumas opiniões expressas no diário estarem mais próximas dos outros (classe dominante) que de seus semelhantes (favelados) não impossibilitou que sua cultura ‘menor, inferior’ fosse percebida. Isso fez com que ela não pertencesse a nenhum dos grupos: para os favelados, ela não era bem-vinda por se sentir superior a eles; para os brancos da cidade, definitivamente ela era inferior em todas as vertentes. Ao analisar a obra de Mayotte Capécia, cuja história é semelhante à de nossa heroína, Frantz Fanon denominou tal circustância de “Processo bilateral, a tentativa de aquisição por interiorização de valores originalmente proibidos. […] A preta se sente inferior, por isso aspira a ser admitida no mundo branco.” Isso ocorre porque “o negro é escravo de sua inferioridade” ao passo que “o branco é escravo de sua superioridade.” (FANON, 2008, p. 66) Ainda assim, de Jesus ressalta sua identidade e suas identificações com o grupo mais humilde, conforme ela mesma salientou ao mencionar uma lição aprendida com a mãe. Carolina afirmou: “ela formou meu carater, ensinando-me a gostar dos humildes e dos fracos. É por isso que eu tenho dó dos favelados.” (JESUS, 2012, p. 50) Ou mesmo quando ela assume uma postura revolucionária, afirmando ser possível mudar o quadro da política nacional. A escritora cobra mais atenção para/com os pobres e põe em xeque a idoneidade de alguns políticos pretenciosos. Ao fazer isso, ela está manifestando exatamente o seu eu-subjetivo, aquele que escolhe e tem consciência do que quer, aquele que sabe o que é, ou seja, Carolina cunha quem é essa

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escritora favelada, escritora dos pobres ou escritora vira-lata, e o que e como ela pretende conseguir, como se verifica no trecho a seguir (JESUS, 2012):

10 de maio de 1958 O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças. (p. 30) 21 de maio de 1958 … Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, e a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos políticos açambarcadores. (p. 40. Grifos nossos) 13 de junho de 1958 … Os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operarios, para os mendigos, que são escravos da miseria. (p. 62)

Entretanto, como fica perceptível em Quarto de Despejo, Carolina ainda alimentava a esperança de que tudo iria ‘dar certo’ no final. Com a publicação de seu livro, ela contaria ao mundo o que se passava na favela, e o mundo se mobilizaria para resolver tais questões apontadas por ela. Esse foi o auge de seu período utópico. Supomos ter sido essa a razão de ela não tomar partido definivamente antes de ver seu primeiro livro publicado. Mas, no final, ela acabou sendo levada a tomar partido. Em virtude disso, Carolina não teve apoio dos militantes da esquerda, nem dos da direita. “Para os primeiros, ela não parecia suficientemente estridente para provar as teses da luta de classes; para a direita, seus testemunhos incomodavam o pressuposto da pobreza domesticada, útil sem dúvida para os discursos disciplinadores.” (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 19-20) Portanto,

Carolina foi, pode-se dizer, uma guerreira valente contra as tropas da herança racista, atiinteriorana, preconceituosa em relação às mulheres e, sobretudo uma pessoa afrontadora da marginalidade e da negligência política. Rebelava-se sozinha e por isso jamais chegou a ser revolucionária ou heroína permanente. Sequer foi musa de causas coletivas. Houve um momento em que, ainda que de maneiras contraditórias e estranhas, ela cabia em todas as frentes e, ao mesmo tempo, não servia por longo período a nenhuma. Por isso é provável que tenha sido deixada por todos. (MEIHY; LEVINE, 1994, p. 19)

Carolina Maria de Jesus defendeu que os políticos deveriam acabar com as favelas e, consequentemente, acabar com a pobreza que assolava a população. Em suma, sua narrativa defendia um melhor posicionamento social para os mais humildes, visto que o Brasil era um país muito rico. Porém, ela mesma estava muito ligada às suas próprias verdades a respeito dos outros que não compartilhavam de sua ideologia.

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Na medida em que seus textos são publicados em jornais e revistas para os quais Audálio Dantas trabalhava, Carolina de Jesus vai ganhando notoridade na cidade letrada e a oportunidade de informar os vizinhos da favela do Canindé (e seus leitores de modo geral) que o dia a dia dos favelados não era nada fácil, e que eles, os favelados, não eram protegidos por político nenhum, como se costumava alegar.

22 de maio de 1958 … Os meninos come muito pão. Eles gostam de pão mole. Mas quando não tem eles comem pão duro. Duro é o pão que nós comemos. Dura é a cama que dormimos. Dura é a vida do favelado. (p. 42) 28 de maio de 1958 … Os visinhos ricos de alvenaria dizem que nós somos protegidos pelos políticos. É engano. Os políticos só aparece aqui, no quarto de despejo, nas epocas eleitorais. (JESUS, 2012, p. 46)

É notável, por conseguinte, que enquanto Carolina via na promessa de publicação de seu livro uma forma de ascensão social, ela alimentava uma certa esperança de que sua vida seria perfeita a partir do momento em que ela saísse da favela: casa de alvenaria e fartura na alimentação. No entanto, após ver seu Quarto de Despejo publicado, a mudança para Santana e a desilusão de não ser bem-vinda exatamente onde ela depositava todas as suas esperanças, Carolina sofreu com um sentimento muito típico naquela época, o de não pertencer a nenhum lugar. Restou-lhe o limbo. Eis, talvez, o motivo de ela ter escolhido passar seus últimos anos de vida em uma chácara em Parelheiros. A partir desse período, ela assumiu sua identidade de negra, mulher independente, escritora, e finalizou sua obra memorialística Diário de Bitita (1986), na qual ela resgata as lembranças de sua infância e muito dos valores que a guiaram até aquele momento.

4.2 Construção da identidade do sujeito literário. […] Contei-lhes que um dia uma jovem bem vestida vinha na minha frente um senhor disse: - Olha a escritora! O outro agêitou a gravata e olhou a loira. Assim que eu passei fui apresentada. - Ele olhou-me e disse: - É isto! E olhou-me com cara de nojo. Sorri, achando graça. Ela é escritora vira-lata disse a Dona Maria mãe do Ditão.

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Os passageiros sorriram. E repetiam. Escritora vira-lata. (Carolina Maria de Jesus)

Conforme abordado em 2.3.1 Motivações para Carolina escrever o diário, a escritora começou a escrever o seu diário a fim de aliviar as angústias geradas de sua vida atribulada. Ela o fez criando um universo paralelo a partir de sua dura realidade. Com isso, a diarista foi construindo o seu eu-escritor, eu-autoral, poeta do lixo, poeta dos pobres. Sabe-se, por exemplo, que era difícil para uma subalterna como Carolina Maria de Jesus ousar a escrever, e ainda mais difícil quando a subalterna resolve publicar sua obra, tanto por falta de interesse comercial quanto pelo fato de a diarista se expor em demasia, dentre outros motivos (vide Capítulo 3). Carolina não foi aceita como sujeito social proveniente da classe média paulistana por motivos ideológicos, raciais e sociais. No entanto, enquanto sujeito literário, “a autora infiltra o mundo literário, ou arromba a literatura, provocando rachaduras no arcabouço dessa república das letras brancas e cultas, mundo das concordâncias e das crases” (LAJOLO apud JESUS, 1996, p. 23). De Jesus forçou a entrada nesse mundo letrado tão restrito porque “a língua europeia, estudada em seu padrão culto, não admitia concorrências e, portanto, rejeitava ‘as distorções não canônicas’ oriundas da periferia e da margem.” (BONNICI, 2000, p. 12) Em suma, porque “o testemunho de um membro das camadas subalternas de nossa sociedade, narrado a partir do ponto de vista de baixo, não cabia nos moldes das elites.” (SOUSA, 2012, p. 21) Para que ela fosse aceita, não somente sua identificação ideológica deveria estar de acordo com a elite das letras, como também seus costumes e seu comportamento social. Carolina certa vez afirmou: “O livro é a maior invenção do homem” e “gosto de ouvir as valsas vienenses no rádio”. Tanto o livro quanto as valsas vienenses são símbolos culturais (signos ideológicos) que, na sua maioria, estavam ligados ao consumo cultural do outro de classe social, raramente ao subalterno, membro da camada inferior. O fato de Carolina ter tanto apreço e ressaltá-los em sua narrativa com uma certa frequência nos leva a entender que a construção de sua identidade autoral é tanto simbólica quanto social. A esse respeito, Kathryn Woodward (2014) argumenta que:

O social e o simbólico referem-se a dois processos diferentes, mas cada um deles é necessário para a construção e a manutenção das identidades. A marcação simbólica é o meio pelo qual damos sentido a práticas e relações sociais, definindo, por exemplo, quem é excluído e quem é incluído. É por meio da diferenciação social que essas classificações da diferença são “vividas” nas relações sociais. (p. 14)

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Assim, enquanto sujeito social, Carolina era identificada como favelada devido às suas roupas, cor de pele (etnia), estilo de vida, etc. Contudo, enquanto sujeito literário, as identificações intelectuais de Carolina (valsas vienenses, livros) estavam mais próximas de seu outro de classe social, distante dos favelados. Portanto, ela foi incluída no grupo dos favelados e excluída do grupo de moradores da cidade, ainda que ela não se identificasse exclusivamente com nenhum desses dois grupos e partilhasse identificações com ambos. Por isso ela recebeu as alcunhas: poeta do lixo, poeta dos pobres e escritora vira-latas. Esse hibridismo de identificações pode, por conseguinte, ser notado em sua obra. Ao mesclar a estética literária predominante (por exemplo, a romântica, citada em seu diário) e a língua informal (inculta) em sua escrita, Carolina se expressou da forma que pôde, isto é, bem como sua identidade “rasurada” e “suturada”, sua escrita caminha por essas veredas artísticas: culto/inculto, belo/não belo. Dessa forma, acabou por “criar” uma estética literária dando uma nova roupagem para a escrita em diário como era conhecida até então. Em seu diário, encontram-se características de escrita íntima, romances, contos, poemas, peças teatrais, dentre outros. Todavia, Carolina construiu sua identidade autoral, de fato, ao narrar o mesmo tema de formas diferentes. Da primeira à última página de Quarto de Despejo e boa parte de Casa de Alvenaria, a escritora narra o próprio cotidiano: a ida até a torneira para coletar água, as dificuldades de ela catar lixo para vender no ferro velho, as brigas entre os vizinhos, etc. Mas, principalmente, o sujeito que tinha todas essas tarefas e ainda se sentava para escrever sobre ser mulher, ser mãe, ser solteira e ser a poeta dos pobres. Nesse processo criativo, ela sempre insere um assunto que fisga a atenção do leitor fazendo-o refletir sobre o assunto por ela proposto. O leitor já sabe o que vem a seguir, a expectativa resta em saber como tudo vai acontecer. Se não fosse a capacidade ficcional da diarista (observar e transcrever a realidade refratada), a narrativa de suas histórias tornar-se-ia um tanto quanto monótona. Carolina tinha na escrita o seu refúgio e também o seu ato de catarse. Por isso, certa vez revelou: “Eu gosto de ficar dentro de casa, com as portas fechadas. Não gosto de ficar nas esquinas conversando. Gosto de ficar sozinha lendo. Ou escrevendo!” (JESUS, 2012, p. 25) Além de a escritora se isolar para experimentar e imortalizar sua escrita, há também o fato de Carolina de Jesus inserir poesia na sua narrativa mesmo estando fisicamente ao lado do lixo, às margens da sociedade, no quarto de despejo da cidade de São Paulo. O contraste entre suas doces palavras, metáforas e sua triste realidade é imenso (JESUS, 2012):

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20 de julho de 1955 Deixei o leito as 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar fui buscar agua. (p. 21) 22 de julho de 1955 Eu sou muito alegre. Todas manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer. De manhã eu estou sempre alegre. A primeira coisa que faço é abrir a janela e contemplar o espaço. (p. 25) 19 de maio de 1958 Deixei o leito as 5 horas. Os pardais já estão iniciando a sua sinfonia matinal. (…) Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil. (p. 36)

Embora muitas vezes soando clichê, Carolina foi capaz de exaltar as belezas e os fenômenos naturais com palavras suaves, tênues em forma de poesia e, logo após, transmitir uma imagem desagradável para instaurar sua crítica aos responsáveis pela pobreza no país, a saber:

O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há varias coisas belas no mundo que não é possível descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe. (JESUS, 2012, p. 44)

Carolina construiu, pois, sua identidade autoral ao ver poesia onde só havia lixo, intriga e tristeza e ao inovar os elementos de sua narrativa, embora seu enredo já fosse conhecido pelo leitor. No mesmo lixo em que ela catava alimento para o corpo, ela catava alimento para a escrita. E, segundo ela, “catava tudo, só não catava felicidade”. Portanto, “ao dizer eu, Carolina não só se coloca no texto, mas determina-o por meio da afirmação – eu escrevo, eu sou poeta, ‘poeta do lixo’, ‘poeta dos pobres’”. E o que Carolina conseguiu provar é que, “pela construção de uma identidade autoral, é possível ser ‘preta, pobre, mulher’ e ser poeta. (SOUSA, 2012, p. 177. Grifos da autora)

4.3 A importância dos escritos de Carolina Maria de Jesus na atualidade.

Carolina de Jesus serviu a um propósito para o Brasil das décadas de 1950 e 1960, dado seu contexto histórico. Como já discutido, ela simplesmente foi abandonada à própria sorte após o seu produto não ter mais serventia para o mercado editorial por motivos de censura branca, e por não condizer com a proposta de um país igualitário e moderno que eliminou a miséria do país, como os governos de então enfatizavam.

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Entretanto, mesmo sendo obrigada a voltar para o silêncio inicial, a obra de Carolina nunca foi esquecida. St. Clair (2003, p. 14) afirma que “as palavras de Carolina são as palavras das ruas. Seu português não é fluente como o falado pelas classes mais altas, mas é um fragmento do discurso dos pobres”. Oswaldo de Camargo (2005) ainda ressalta:

Passados mais de 50 anos da publicação do diário que ergueu Carolina à fama, este continua sendo uma das mais instigantes indagações sobre a sociedade brasileira. Sobretudo tendo-se em conta os binômios cruciais “negro e miséria”, “negro e auto-estima”, que a República de 1889 não conseguiu ainda resolver. (p. 9)

Durante as décadas de 1960 a 1980, a obra caroliana foi abafada tanto pela crítica quanto pelas editoras. Havia uma certa dúvida em relação à verdadeira autoria de Carolina ou se tinha sido Audálio Dantas quem escrevera o diário. Foi somente a partir da década de 1990 que pesquisadores passaram a dar mais enfoque na obra e, consequentemente, na biografia da diarista, pois Carolina representou uma espécie de resistência política e social por conta de sua condição de mãe solteira, negra e favelada: a favelada que escrevia, como era mais comumente retratada. Segundo Germana de Sousa (2012), a obra de Carolina de Jesus é temática de grande complexidade e interesse para o estudo da literatura brasileira, uma vez que a autora parece preencher lacunas nesse universo bem posto de nossa literatura, como escritora negra, mãe solteira e favelada. Os estudos críticos de sua obra trilham por essas características de sua biografia. (p. 55)

Com isso, não mais seguindo o padrão de análise de outrora, os estudos da cultura brasileira e suas personagens têm resgatado obras de suma importância enquanto registro histórico-literário que eram postas às margens do cânone. Muito próximo de sua totalidade, têm-se as obras de mulheres, negros, indígenas, homossexuais, enfim, todos aqueles que pertencem a alguma subcultura. Surge a voz dos que não tinham voz. No que tange a escritos femininos e negros, Carolina tornou-se referência de resistência e combate à pobreza tanto nacional quanto internacionalmente, vistas as várias traduções e reimpressões de sua obra. Como defende Germana de Sousa (2012):

O diário de Carolina Maria de Jesus estabelece, portanto, para a autora um espaço literário revelador de um destino poético, um vir a ser pela e na escritura, e de uma ética ligada ao compromisso pessoal da autora com a representação de seu modo de vida em conjunto com o modo de vida dos excluídos (mulheres, negros, favelados). (p. 180)

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Carolina construiu, portanto, sua identidade de mulher guerreira, de autora de uma obra que resistiu ao tempo e que, apesar de trafegar pelas margens, resiste ao cânone.

4.4 Considerações Finais.

Buscou-se, com este trabalho, analisar como Carolina Maria de Jesus constrói sua identidade de sujeito literário e sujeito social por meio da narrativa feita em seus diários, uma vez que essa é a única maneira pela qual ela ainda é reconhecida. Carolina transpassou fronteiras sociais e culturais ao forçar sua entrada no universo literário (publicou suas obras) e ao mudar-se para o bairro de classe média. Por motivos ideológicos que visavam a impedir essa ‘invasão’, a diarista não obteve sucesso ao tentar se estabelecer como escritora (sujeito literário), pois houve um movimento de censura branca para/com sua obra. Nem se estabeleceu como sujeito social, pois não foi aceita no bairro da nova moradia; tampouco poderia voltar a morar na favela, em vista das inimizades lá criadas. Discutiu-se também como as identidades e identificações de Carolina Maria de Jesus passaram por um processo de rasura e sutura ao longo dos anos, ou seja, tentou-se suturar uma cultura superior, mas não se realizou por completo, pois sua identidade “inferior” continuou a ser notada, tanto como sujeito social quanto literário. Conclui-se, então, que apesar de sua narrativa estar mais de acordo com a ideologia de quem a oprimia em determinados momentos, Carolina Maria de Jesus construiu sua identidade de sujeito atuante, trabalhador, honesto, agenciador político “em prol dos outros”, de mulher negra, mãe solteira de três filhos, de mulher que rejeitou o casamento e de quem resistiu aos vícios. Mas, sobretudo, a identidade de uma escritora, diarista, poeta do lixo, escritora vira-lata que buscou ter voz onde só havia silêncio, de uma mulher que afirmou que o subalterno pode e deve falar. Tudo realizado por meio de sua escrita, que a imortalizou.

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