A CONSTRUÇÃO DA PAULISTANIDADE. IDENTIDADE, HISTORIOGRAFIA E POLÍTICA EM SÃO PAULO (1856-1930)

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

A CONSTRUÇÃO DA PAULISTANIDADE. IDENTIDADE, HISTORIOGRAFIA E POLÍTICA EM SÃO PAULO (1856-1930)

Danilo José Zioni Ferretti

Tese

apresentada

Graduação

em

ao

Programa

História

de

Pós

Social,

do

Departamento de História, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em História.

Orientador: Prof ª Dr ª Maria Helena Rolim Capelato.

São Paulo 2004

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE HISTÓRIA SOCIAL

A CONSTRUÇÃO DA PAULISTANIDADE: IDENTIDADE, HISTORIOGRAFIA E POLÍTICA EM SÃO PAULO (1856-1930)

Danilo José Zioni Ferretti

São Paulo 2004

RESUMO. Nesta tese estudo a construção da identidade regional paulista no período compreendido entre 1856 e 1930. No caso de São Paulo a identidade regional foi obra principalmente de historiadores e se deu mediante a elaboração de representações sobre figuras do passado regional, com destaque para o bandeirante. Baseado na reflexão de Michel de Certeau sobre os lugares de produção do discurso histórico, elaborei um estudo historiográfico que apresenta as diferentes representações sobre o bandeirante e o passado colonial paulista, procurando ainda definir o uso político que se fez deste passado inventado.

ABSTRACT In this thesis I study the creation of the Paulista, (as the inhabitants of the State of São Paulo are known), regional indentity between 1856 and 1930. In the case of São Paulo, its regional identity was mostly

the work of historians through the elaboration of

representations of past figures with an emphasis on the Bandeirante. The Bandeirantes were the first Portuguese settlers. Based on Michel de Certeau´s reflections concerning the creation of the historical discourse, I prepared an historiographical study aimed at revealing the different interpretations regarding the Bandeirante and the Paulista´s colonial past, attempting to define the political appropriation of this invented past.

Palavra Chave: Historiografia, Identidade, História São Paulo, Bandeirante, Americanismo. Key Words: Historiography, Identity, History of São Paulo, Bandeirante, Americanism.

AGRADECIMENTOS.

Esta pesquisa nasceu da tentativa inicial de compreender a decoração interna do saguão do Museu Paulista. Corria o ano de 1993 e o autor, então estagiário do Serviço Educativo do Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo, vivia o rescaldo das discussões pioneiras sobre o “Direito à Memória” em uma cidade caracterizada pelo desrespeito aos testemunhos de sua trajetória passada. Das reflexões iniciais à redação final da tese, muito tempo passou, os objetivos se transformaram e diversas pessoas auxiliaram a elaboração deste estudo. Gostaria aqui de agradece-las. Inicialmente a José Adriano Fenerick e André Mota que, juntos a Fábio Franzini, grande amigo recém convertido aos estudos historiográficos, contribuíram na definição do projeto de pesquisa com discussões marcadas pela franca amizade e comum interesse em torno dos dilemas da modernização e da construção nacional. A Artur Amorim, Alexandre Mountfort, Rodrigo Pupo e Renato de Alencar Dota que souberam aliar amizade e discussão sincera. A Marco Antônio Cornaccioni Sávio, que com seu entusiasmo pelo paulistanismo motorizado se tornou um interlocutor privilegiado deste trabalho, incentivando o aprofundamento do viés territorialista do símbolo bandeirante. Aos colegas de orientação Ival de Assis Cripa, Cláudio Aguiar, Marcos Napolitano de Eugênio, Mariana Villaça, Francisco César Pinto da Fonseca, Cecília Azevedo e a Eduardo Moretin pelo acolhimento e incentivo. Aos colegas de pós-graduação e hoje amigos Elena Pajaro Perez e Nelson Aprobato Filho, que compartilharam o interesse pelas transformações da Paulicéia. A Mary Anne Junqueira, pelas indicações de textos sobre a reflexão norte americana a respeito da ocupação do espaço. Ao gaúcho apaulistado Maximiliano Mac Menz, grande interlocutor, pela seriedade que impunha às nossas discussões. A Rogério Lopes de Carvalho, Amom Pinho e Thiago Nicodemo pelo diálogo franco. A André Machado, pela indicação de leituras decisivas e Fernanda Sposito, pelas ricas discussões sobre a questão indígena no séc. XIX. A Ricardo Besen pelas sugestões e atenta revisão da maior parte do texto. Às professoras Cecília Helena Lorenzini de Salles Oliveira e Tânia de Luca pelas sugestões apresentadas no exame de qualificação. A Kátia Abud e Raquel Glezer, pelo

diálogo aberto que proporcionaram. Ao prof. José Carlos Barreto de Santana, pelas preciosas indicações a respeito da documentação de Teodoro Sampaio. Ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, principalmente na pessoa de Zita Alves, pelo modo com que franquearam o acesso ao acervo de Teodoro Sampaio. À equipe do Museu Paulista: as(os) bibliotecárias(os), a Shirley Ribeiro da Silva e a Jonas Soares de Souza, que tão bem me receberam, respectivamente no arquivo do Museu Paulista e no Museu Convenção de Itu. Às bibliotecárias(os) da Biblioteca Municipal Mário de Andrade e às funcionárias(os) do Arquivo do Estado de São Paulo e do Instituto de Estudos Brasileiros. À FAPESP pela bolsa de mestrado concedida e à Capes pela bolsa de doutorado que possibilitou a conclusão deste trabalho. À generosidade e empenho incomparáveis da Professora Maria Helena Rolim Capelato, por ter possibilitado a minha formação como historiador. Aos de casa: além da legião de tios, tias, primos e primas, a meu irmão Paulo E. Zioni Ferretti e a meus pais Eduardo Omar Ferretti e Priscila Zioni Ferretti, por terem sempre dado todo o apoio afetivo, e principalmente por terem aguçado em mim a busca ao conhecimento. Por fim, à Larissa, que me move.

SUMÁRIO.

Introdução ------------------------------------------------------------------------------------------p. 1 PARTE I VISÕES MONÁRQUICAS DO PASSADO PAULISTA (1856-1870) Capítulo 1 – Identidade paulista e historiografia entre Colônia e Império.---------------- p. 13 1.1 – A Herança colonial: Predominância da fragmentação.--------------------------------- p.13 1.2 - A província de São Paulo e o segundo Império.-----------------------------------------p. 19 1.3 - Liberalismo monárquico paulista e discurso identitário regional----------------------p. 24 1.4 – Homem de Melo e Ricardo Gumbleton Daunt: Federalismo liberal e paulistanismo ultramontano.---------------------------------------------------------------------------------------p. 27 Capitulo 2 – Machado de Oliveira no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB): paulistanismo indianista. ------------------------------------------------------------------------- p.38 2.1 – Historiografia e centralização: História Una x Monografias Regionais. ------------p. 40 2.2 – Machado de Oliveira no IHGB: Política indigenista e historiografia indianista-----p.44 2.2.a – A política indigenista: povo homogêneo e antiescravismo.----------------- p.49 2.2.b.- A etno-historiografia indianista: o índio civilizável, jesuíta civilizador e colono ambicioso---------------------------------------------------------------------------p.64

Capítulo 3- O paulistanismo monárquico: antibandeirismo e fidelidade paulista. --------p. 79 3.1 – Machado de Oliveira e “Os Guaianás”: antibandeirismo indianista------------------p. 79 3.2. – Varnhagen e a louvação monárquica do bandeirante--------------------------------- p. 90 3.3- Amador Bueno e a fidelidade paulistana à Monarquia---------------------------------- p. 93

PARTE II ESBOÇO E INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UMA VISÃO REPUBLICANA DO PASSADO PAULISTA (1870-1916). Capítulo 4 – Desatando os nós da Centralização: Modernização e Crise do Império--------------p.103 4.1.- Novos Liberais e americanismo: crítica à Centralização. ---------------------------------------p.105 4.2.- Crise do Indianismo e visão cosmopolita do nacional.-------------------------------------------p.111 4.3.- Americanismo e passado: “Absolutismo Colonial” explica atraso brasileiro.----------------p.115 4.4.Capistrano de Abreu: história como “luta territorial” e reavaliação do bandeirismo. ---------p.122 4.4.a - Entre a intelectualidade crítica e a renovação do indianismo------------------------p.123 4.4.b - Historiografia territorialista e o projeto de história sertaneja.-----------------------p.129 4.4.c – Visão fragmentada da nação e reavaliação do bandeirismo. -----------------------p.136 Capítulo 5 – Republicanismo Paulista: identidade ianque e esboço de uma visão republicana do passado de São Paulo (1870-1894).----------------------------------------------------------------------p. 142 5.1.Café, republicanismo e americanismo. -------------------------------------------------------------p. 142 5.2.Construindo a identidade regional: o paulista como “ianque sul americano”.-----------------p. 149 5.3. Um passado diferente: a História explica a “exceção paulista”.--------------------------------p. 164 5.3.a – Os paulistas contra o altar: antijesuitismo republicano e a absolvição do colono paulista----------------------------------------------------------------------------------------------p. 172 5.3.b – Os paulistas contra a coroa: A guerra dos emboabas ou a negação de Amador Bueno------------------------------------------------------------------------------------------------p.188 5.4. Separatismo Paulista: o Meio e a Raça explicam a “exceção paulista”-------------------------p.197

Capítulo 6 - Institucionalização da visão republicana do passado paulista: O Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) (1894-1916).--------------------------------------------------------p.208 6.1. Consolidação da república: os paulistas no poder.------------------------------------------------p.208 6.2. Reforma cultural republicana e criação do IHGSP------------------------------------------------p.211 6.3. Antônio Piza e Washington Luís: a liberdade do colono paulista como mito de origem perrepista-----------------------------------------------------------------------------------------------------p.223 6.4. Teodoro Sampaio e Orville Derby: territorialismo paulista e o bandeirante como conquistador do sertão------------------------------------------------------------------------------------------------------p.235

PARTE III CRÍTICA E AFIRMAÇÃO DA VISÃO REPUBLICANA DO PASSADO PAULISTA (1916-1930). Capítulo 7 – Crise da República federalista e a crítica historiográfica de Oliveira Vianna e Paulo Prado. ---------------------------------------------------------------------------------------p.252 7.1 - A República em crise e a vaga nacionalista -------------------------------------------- p.252 7.2– Oliveira Vianna e a crítica antiliberal à Primeira República-------------------------- p.258 7.2.a - História e Política: o período colonial em Oliveira Vianna-----------------p.262 7.2.b - Oliveira Vianna e a paulistanidade: a representação do bandeirante------p.270 7.2.c - Oliveira Vianna e o “eugenismo paulista”------------------------------------p.280 7.3- Paulo Prado e o liberalismo oposicionista paulista--------------------------------------p.285 7.3.a - Paulo Prado e a crítica ao adesismo do paulista moderno------------------p.298 7.3.b- Paulo Prado e o passado regional: a decadência da liberdade paulista----p.304

Capítulo 8 - O PRP diante da crise: a reafirmação da tradição paulista -------------------p.316 8.1- O PRP nos anos 20: liberalismo, progresso e ordem------------------------------------p.316 8.2.- O Grupo do Correio Paulistano e o culto ao passado paulista-----------------------p.327 8.3.- Alfredo Ellis Jr.: as origens da democracia paulista------------------------------------p.346

Conclusão.-----------------------------------------------------------------------------------------p.361

INTRODUÇÃO. "São Paulo pode ser tudo o que se queira, mas certamente não é o Brasil dos trópicos, tão caro aos estereótipos franceses, o Brasil sensual, lânguido e primitivo(...). Não faz sentido falar aqui de febre amarela ou de exotismo tropical(...). Estão muito longe esses cantos do Brasil cujos nomes ressoam em nossos ouvidos franceses com um sabor bem particular: Aracajú, Salvador, Iguaçú, Rio de Janeiro. Este último é, por excelência a imagem do Brasil para os estrangeiros. "Cidade maravilhosa”, o Rio não encontra dificuldades em seduzir. (...) Ao contrário de São Paulo, esta ilha do Brasil útil, que faz com que se reencontre a realidade, e com ela o senso da seriedade e do trabalho(...). Em comparação com este Brasil pragmático do comércio e dos negócios, que investe, aposta e ganha, o restante do país parece indolente e entorpecido. A burguesia paulista não está muito longe de pensar que sozinha faz viver todo o outro Brasil, o ornamental, das entidades e da vitrine para os estrangeiros. De Gaule disse - e os brasileiros não esqueceram - que "o Brasil não é um país sério". O Brasil pode não ser, mas certamente São Paulo o é, encarniçada no trabalho, competitiva, orgulhosa (...) "1 (Olievenstein & Laplatine, 1993 / p. 09,10,13). No trecho acima, escrito por dois visitantes franceses no início dos anos 90, percebe-se a permanência, na atualidade, de uma série de representações que apresentam São Paulo como uma parte contrastante com o restante do Brasil. São Paulo, segundo esta visão, seria uma exceção na nacionalidade, uma "ilha do Brasil útil", segundo as palavras dos observadores estrangeiros. Longe de se restringir a um “olhar externo" esta idéia de uma "exceção paulista" é algo ainda muito presente no imaginário de paulistas e demais brasileiros, seja com sentido positivo ou negativo. O discurso da identidade regional, apesar de não ter mais o peso que possuía até quatro décadas atrás, não desapareceu de todo. Ainda hoje, seja na esfera privada ou na pública, são transmitidas representações ufanistas da identidade paulista. A imagem do paulista progressista, paladino de um Brasil moderno como decorrência de uma ética intrínseca e especificamente sua, ainda está presente na

1 OLIEVENSTEIN & LAPLATINE. Um olhar francês sobre São Paulo. São Paulo: ed. Brasiliense; 1993, p. 9,10,13.

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sociedade brasileira e na auto-visão de muitos habitantes do estado. Ela assume mesmo foros de discurso oficial uma vez que o próprio governo estadual parece ainda cultivá-la. Em nossos dias o site oficial apresenta uma imagem radiante do estado e seu habitante: “Falar do estado de São Paulo é sempre no superlativo. É o estado com maior população, o maior parque industrial, a maior produção econômica, o maior registro de imigrantes e, como também não poderia deixar de ser, com toda a complexidade do Estado mais cosmopolita da América do Sul.” O tom grandiloqüente mantêm-se no texto, estando presente também na página dedicada à definição da “gente paulista”: “A pobreza dos tempos coloniais jamais levaria a imaginar a pujança e o dinamismo econômico, social e cultural que são característicos de São Paulo. Quem construiu toda essa riqueza? Em primeiro lugar, o que se poderia chamar de “espírito bandeirante” de São Paulo. O que é notável desde os primeiros tempos coloniais é que, num território inóspito, uma população escassa de colonos portugueses intensamente misturada às populações nativas e, mais tarde aos escravos africanos (...) fosse capaz, movida pelo gosto da aventura e da ambição, de sustentar um empreendimento de vulto e tão arrojado como a organização das ‘bandeiras’(...).”2 O texto indica que este espírito “arrojado”, herdado de um passado glorioso, implicou na diferenciação e liderança paulista frente ao restante do país. Nele estaria a predisposição do paulista a construir o Brasil moderno. Ou, conforme o texto, “com a melhor infra-estrutura e mão-de-obra qualificada, São Paulo pode mesmo ser chamado de ‘a locomotiva do Brasil’”. Esta imagem da “exceção paulista”, a todos nós familiar a ponto de não despertar maiores questionamentos, possui, contudo, a sua historicidade, estando ligada a um longo processo mediante o qual se elaborou um discurso e uma liturgia da paulistanidade cujas bases se localizam no período da propaganda republicana de finais do séc. XIX. Procuro neste estudo mostrar como esta visão da paulistanidade como “exceção de progresso” em meio a um Brasil atrasado, antes de tudo, foi fruto de um amplo e trabalhoso 2 “Um mundo chamado São Paulo” In “www. saopaulo.sp.gov. br, /saopaulo/index.html” acessado em outubro de 2001.

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processo de construção simbólica que nada tem de neutro e isento, estando ligado aos mais diversos interesses econômicos, sociais e culturais que se congregavam na forma de demandas políticas, conforme a concepção do político como “ponto de condensação” dos diferentes níveis, desenvolvida por René Rémond3. Ao contrário de outras regiões, como Minas Gerais ou o Nordeste onde ensaístas e romancistas foram os principais artífices do discurso de identidade regional4, em São Paulo, ainda que não possa ser menosprezado o papel central de romancistas e ensaístas, os historiadores acabaram assumindo um papel de destaque. Talvez mais do que em outras regiões, no caso paulista, o debate sobre a identidade regional assumiu a forma de uma discussão sobre o passado regional. Dos personagens da história paulista, o que se destacou como símbolo maior da identidade regional foi o bandeirante. Sobre ele me concentrei, uma vez que a discussão historiográfica sobre sua natureza foi tomada pelos contemporâneos como a própria discussão sobre o caráter paulista. Mas, para melhor compreender o bandeirante, foi imprescindível voltar a atenção também para o fértil debate historiográfico sobre o jesuíta, figura que, ao longo do séc. XIX, foi apresentada como antítese do antigo colono paulista. Pelo jogo de aproximação e distanciamento com a figura do jesuíta os historiadores do final do séc. XIX acabaram conferindo precisão à imagem do bandeirante e à identidade paulista a ela ligada. O bandeirante, porém, não era visto como um elemento isolado e desligado de sua época. Ele era tomado como representante de todo um período da história paulista, carregando em si os defeitos e virtudes do que entendiam ser o período colonial paulista. Assim, juntamente com o estudo da representação do bandeirante será estudada a maneira 3 O autor define a relação entre o político e os demais níveis da realidade da seguinte maneira: “Autour d’un noyau stable et restreint qui correspond grossièrement aux fonctions règaliénnes de l’Ètat traditionnel, le champ de l’histoire politique irradie en toute direction et détache comme une multiplicité de digitations. Rien ne serait plus contraire à l’intelligence du politique et de sa nature que de le représenter comme un isolat ; il est sans rivages et communique avec la plupart des otres domaines. Aussi les historiens du politique ne saurait t’ils s’y cantonner et cultiver leur jardin secret à l’écart des grands courrants qui traversent l’histoire. L’histoire politique demande à s’inscrire dans une perspective oú le politique est un point de condensation ». RÉMOND, René. « Du Politique » In RÉMOND , René ( Dir.) Pour une histoire politique. Paris ; ed. Seuil, 1988.p.382. 4 Durval Albuquerque evidencia a importância do romance regionalista de 30 e da sociologia Freireana, dentre outras manifestações, para a emergência de uma imagem do nordeste nos anos 20. ver ALBUQUERQUE. Durval Muniz de. A Invenção do nordeste e outras artes.Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez; 1999. Da mesma forma, Maria Arminda do Nascimento Arruda frisa a importância do relato memorialista na construção do mito da mineiridade. ARRUDA, Maria Arminda Nascimento. Mitologia da Mineiridade. São Paulo: Ed. Brasiliense; 1990.

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como foi interpretado, pelos historiadores regionais, o período colonial especificamente paulista, entendido como dotado de originalidade. A discussão sobre o período colonial - o sentido que assumiu, assim como as seqüelas e positividades que legou ao presente – sempre teve lugar de destaque no pensamento social brasileiro5. De Varnhagen a Fernando Novais, dos monarquistas à teoria da dependência e suas contestações atuais, os mais diversos grupos políticos sempre deram destaque ao tratamento da questão. Procurei aqui mostrar como as elites paulistas, principalmente as republicanas, interpretaram de forma original o passado colonial regional, visando apresentar um passado diferente, específico aos paulistas, entendendo-o como fonte de explicação do progresso e originalidade regional. A periodização adotada contempla as datas limites de 1856 e 1930. A escolha da data de 1856 se deve à publicação do jornal acadêmico O Guaianá por Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo. O jornal deu ensejo a um breve e incipiente debate entre seu autor e o médico irlandês Ricardo Gumbleton Daunt sobre o passado paulista que nos deixa apreender a visão deste mesmo passado regional difundida durante a monarquia. Para melhor compreender esta visão monárquica e sua principal obra o Quadro histórico da Província de São Paulo (1864) do brigadeiro Machado de Oliveira - a única “história de São Paulo” escrita no período monárquico, anterior aos anos 1870 - não tomei o marco de 1856 como uma barreira intransponível, recuando alguns momentos para período anterior, como se verá. Procurei assim compreender o ambiente do IHGB onde se formou Machado de Oliveira, o autor da única história de São Paulo do período. Se retomo as crônicas sobre história de São Paulo escritas no período colonial ( Pedro Taques e Frei Gaspar) o faço da forma mais breve possível. Com isso viso simplesmente apresentar um termo de comparação para melhor compreender a mudança do tratamento da questão das identidades coletivas do período, representada pela emergência da necessidade de criação de uma identidade nacional brasileira, fator que orientará toda a produção historiográfica do oitocentos. O estudo aqui realizado da visão do passado paulista construída pelas elites monárquicas buscou preencher uma lacuna historiográfica - visto que os estudos atuais

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Para uma compreensão do historiador e da historiografia como parte do pensamento social brasileiro, ver, GOMES, Ângela de Castro. História e Historiadores. Rio de Janeiro: ed. FGV, CPDOC; 1997.

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pouca atenção deram ao tratamento concedido à questão regional durante o Império - ao mesmo tempo que auxiliou a compreender com mais precisão o caráter liberal americanista da historiografia republicana sobre o bandeirante, surgida nos anos 1870 e desenvolvida ao longo da Primeira República. A data limite de 1930, por sua vez, foi escolhida por ter sido este o momento em que a elite republicana paulista foi destituída do poder político que assumira com a república. A partir de 1930 o discurso sobre a identidade paulista e o bandeirante ganhou um novo sentido, diferente daquele estudado neste trabalho6. Ao abordar a formação da historiografia paulista, necessariamente estou dialogando com uma série de autores que nos últimos anos vem se dedicando ao tema. Dentre eles se destacam os trabalhos de Kátia Abud e Antônio Celso Ferreira, sobre os quais me concentro por tratarem da historiografia paulista em seu conjunto. Além destes trabalhos mais amplos, surgiram importantes estudos sobre aspectos e autores específicos, o que aponta para a consolidação de uma área de estudos sobre o tema da relação entre identidade paulista e historiografia. Em 1985, quando Kátia Abud escreveu sua tese “O Sangue intimorato e as nobilíssimas tradições”, poucos autores haviam abordado o tema. De forma que este pode ser considerado não somente um trabalho pioneiro no estudo da historiografia regional paulista, como se mantém referência obrigatória sobre o tema, por conta, tanto da amplo recorte cronológico adotado, quanto da abertura de novos caminhos historiográficos que estabeleceu. Kátia Abud mapeou a representação do bandeirante desde os textos de jesuítas do séc. XVII até a mobilização política do símbolo em 1932. Na sua obra a análise do político está presente, mas não assume primeiro plano, centrando-se o estudo preferivelmente em um enfoque social, que privilegia a abordagem da elite paulista no seu caráter unitário, sem privilegiar o tratamento de clivagens políticas internas. Desta forma, ao abordar a produção entre 1870 e 1930, centra-se principalmente nos autores como Afonso de Taunay, Alfredo Ellis Jr. e Alcântara Machado, deixando em segundo plano autores como Oliveira Vianna e Paulo Prado que, conforme procuro aqui mostrar, contestavam aspectos importantes da representação da vertente perrepista.

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Sobre o sentido do símbolo bandeirante pós 30 ver CAPELATO, Maria Helena . O movimento de 32. A causa paulista. Col. tudo é história. Ed. Brasiliense: 1981. E CERRI, Luís Fernando. A ideologia da paulistanidade. São Paulo: ed. Cone Sul; 1997.

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Em 1998, Antônio Celso Ferreira defendeu sua tese de livre docência intitulada “A Epopéia Paulista. Imaginação Literária e Invenção Histórica”, em que trata do período compreendido entre 1870 e 1940. O autor estudou a construção do que denomina de “epopéia paulista”, o discurso sobre a experiência regional, ressaltando as íntimas relações entre os universos da historiografia e da literatura. Apropriando-se de forma crítica do princípio teórico, desenvolvido por Haydem White e Stephan Bann, que afirma a aproximação entre a narrativa histórica e a ficcional, Antônio Celso Ferreira, sem se restringir a um estudo exclusivamente internalista dos textos históricos, buscou ressaltar o papel central da imaginação na construção de uma historiografia que se pretendia rigorosamente objetiva. O autor desenvolveu uma importante discussão sobre a estruturação do universo historiográfico paulista no período estudado, apontando para a sua precariedade e indistinção em relação a outras áreas de saber, o que, em sua opinião, implicou não somente na proximidade mas, em diversos casos, na submissão dos estudos históricos ao universo literário, uma vez que, na sua visão, a historiografia do período “deixa-se moldar pela imaginação literária”7. Contudo, acredito que o mesmo argumento apresentado pelo autor sobre a indefinição dos limites das diferentes áreas de saber, de forma mais adequada, possa apontar para a dependência do universo cultural em seu conjunto (historiografia e literatura) em relação ao universo da política. Assim, nesta tese foi privilegiado exatamente o aspecto político que o autor acima citado intencionalmente deixou em segundo plano. A adoção de um enfoque que confere ênfase ao político deve-se ao duplo motivo de uma escolha teórica e das evidências empíricas referentes à condição do trabalho intelectual no período estudado. Convém estudar estes dois motivos mais atentamente. Quanto à escolha teórica, este trabalho foi muito marcado pelo questionamento sobre os “usos políticos do passado” levantados pela historiadora argentina Diana Quatrocchi-Woisson em seu estudo Un nationalisme de déracinés: Argentine pays malade de sa mémoire8. Membro do grupo Histoire du Temps Présent, neste livro a autora

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FERREIRA, Antônio Celso. “vida (e morte) da epopéia paulista” In FERREIRA, Antônio Celso & LUCA, Tânia Regina de & IOKOI, Zilda Grícoli. Encontros com a história. São Paulo: ed. Unesp; 1999. P. 96. 8 QUATROCCHI-WOISSON, Diana. Un Nationalisme de déracinés: Argentine, pays malade de sa mémoire. Paris: ed. du CNSR; 1992.

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estuda a disputa historiográfica em torno da figura do presidente argentino Juan Manuel de Rosas, ressaltando o uso político desta figura histórica e os diversos grupos que procuraram mobilizá-la para as lutas de seu presente, ao longo do século XX. Refletindo sobre a relação entre história e política a autora considera que não podemos reduzir o trabalho historiográfico unicamente à sua dimensão cognitiva. Inevitavelmente ele será aproveitado para a luta política devido ao seu enorme poder de legitimação de poderes e justificação de privilégios que os diferentes grupos políticos nela identificam. “As sociedades se apropriam do passado, o comemoram e o recriam em função de suas necessidades”. Ao ser mobilizado pelos grupos políticos para as lutas travadas no presente, o discurso sobre o passado passa a constituir um elemento privilegiado da rede de símbolos, imagens e mitos que compõem os imaginários sociais. Neste sentido, pensar a historiografia sobre o bandeirante e o passado colonial paulista significa também estudar um elemento importante do imaginário político dos grupos que dele fizeram uso, para tanto me utilizei das colocações metodológicas de Bronislaw Baczko e Raoul Girardet9. Ao mesmo tempo, a adoção do enfoque que confere destaque ao sentido político da historiografia se deve às evidências empíricas que apontam para a impossibilidade de se considerar o campo intelectual – fosse a historiografia ou a literatura - como estando numa posição de autonomia frente ao campo político, no Brasil do final do séc. XIX e, segundo Sérgio Miceli, das primeiras três décadas do XX10. Neste sentido, o estudo de Ângela Alonso serve como referência importante para esta tese, na medida em que a autora apresenta um enfoque inovador ao questionar as análises do ambiente cultural brasileiro do séc. XIX que consideravam o intelectual como membro de um grupo social à parte, independente frente o universo da política. Por meio de intensa pesquisa empírica e baseada na história das idéias elaborada pela “escola de Cambridge” (Quentin Skinner, John Poccock)11, a autora conclui pela não autonomia do campo intelectual e pela sua submissão ao universo da política: “observando as trajetórias individuais nos anos 1870 e 1880, é impossível distinguir ‘intelectuais’ de ‘políticos’. A secção é um anacronismo e exclui da 9

BACZKO, Bronislaw. “A Imaginação social”. In Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1985 e GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Cia. das Letras; 1987. 10 MICELI, Sérgio. Intelectuais e Classes dirigentes no Brasil. São Paulo; Difel; 1979. 11 Sobre a “escola de Cambridge”, ver GUILHAUMOU, Jacques. L’Histoire des Concepts: le contexte historique en débat” In Annales HSS, Paris, mai-jun, 2001, n º 3. Ou ainda DOSSE, François. “Da história das idéias à História intelectual” In Idem, História e Ciências Sociais. Bauru: Edusc; 2004.

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análise uma parte do próprio problema: a atividade política que os ‘intelectuais’ desempenharam. No Brasil da Segunda metade do XIX não havia um grupo social cuja atividade exclusiva fosse a produção intelectual.(...) A apreensão de seu significado impõe ir além da reconstituição da lógica interna dos textos e inscrever a produção do movimento intelectual no processo sóciopolítico em que surge. (..) Em uma palavra: os escritos são formas de intervenção política ”12 Considerando, portanto, a inter-relação entre universo político e intelectual no período estudado, procuro me deter no estudo do uso político do passado paulista. Para tanto me utilizo de referenciais metodológicos da área de estudos historiográficos, conforme definidos por Michel de Certeau. De forma que o presente trabalho se constitui essencialmente numa obra de análise historiográfica. Nos últimos anos os estudos de história da historiografia vem assumindo um destaque inédito, apontando para existência de um acalorado debate a respeito das posturas e formas de sua elaboração. Compreende-se a intensidade e acirramento dos ânimos na medida em que a discussão coloca em confronto concepções diferentes da natureza do trabalho historiográfico e do estatuto do conhecimento histórico. Segundo Rogério Forastieri da Silva, em estudo no qual realiza um amplo levantamento das formas de se fazer história da historiografia, a grande clivagem presente atualmente no campo da historiografia opõe uma história que se orienta pelos métodos das ciências sociais e uma “história pós-moderna” de recente aparecimento13. A “história pós-moderna”, teria se originado a partir do final dos anos 60. Auto proclamada herdeira de Nietzsche, esta postura tomou corpo a partir dos trabalhos dos estruturalistas franceses Barthes, Foucault e Derrida14 e teria um desdobramento contemporâneo nos trabalhos de autores anglo-saxões ligados ao linguistic turn como

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ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento. A geração 70 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Tese (doutorado) dept. Ciências Políticas, FFLCH-USP; 2000. p.10 e 15. 13 SILVA, Rogério Forastieri. História da Historiografia. Bauru: EDUSC; 2001. P. 281-311. Mesmo reconhecendo o caráter controverso e uitas vezes redutor do termo “pós-moderno”, adoto-o com o único propósito de facilitar a exposição. Sigo, em sentido geral, a caracterização e as críticas feitas a esta postura nas obras APPLEBY&HUNT&JACOB. La verdad sobre la história. Cid. Mexico: ed. Andrés Bello; 1998. E CHARTIER, Roger. “l’Histoire aujourd’hui: doutes, defis et propositions” (mimeo). 14 Sobre Foucault ver O’ BRIEN, Patricia. “A História Cultural de Michel Foucault” in HUNT, Lynn. (org.) A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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Haydem White, Dominick la Capra15 e, num esforço mais modesto de aplicação da abordagem destes autores, Stephen Bann16. Seu início seria decorrente da aproximação entre os campos da lingüística e da história e teria como cerne de sua visão o questionamento do estatuto científico da história, de sua capacidade de elaborar uma verdade objetiva e de capturar o real por intermédio da linguagem. Questionando a pretensão de cientificidade da história – conforme definida por uma concepção do estatuto do conhecimento histórico originário do séc. XIX – estes autores, principalmente os anglosaxões, ressaltaram as profundas relações que a disciplina mantinha com o campo literário. O resultado desta abordagem “pos-moderna” seria um profundo relativismo, uma postura que desconfiaria de qualquer tentativa de definição de uma “verdade objetiva” ou de recuperação do passado conforme ele “realmente aconteceu”. O aparecimento desta nova forma de entender o estatuto da disciplina histórica teve grande impacto no campo da análise historiográfica. Quase toda a discussão sobre a natureza científica ou literária do discurso histórico se baseou em estudos que tomavam como objeto de investigação a própria historiografia. Assim, partindo de uma concepção do conhecimento histórico como sendo essencialmente uma forma discursiva de representar o passado17, em nada diferente da narrativa literária, Haydem White procura identificar as figuras retóricas que condicionam o discurso elaborado pelos historiadores do séc. XIX, classificando-os a partir do seu enquadramento em um dos quatro tropos clássicos: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia. Em seu trabalho, White adota uma abordagem da historiografia que privilegia o tratamento de elementos exclusivamente internos ao discurso. A abordagem adotada pelo autor inglês, assim como pelos adeptos do linguistic turn é resumida por Roger Chartier, um crítico cujas posturas frente ao estatuto da história me identifico neste trabalho: “(...) tomam a linguagem como um sistema fechado de signos nos quais as relações produzem elas mesmas a significação. A construção do sentido é assim destacada de toda intenção ou de todo controle subjetivo uma vez que ela se

15

Ver KRAMER, Lloyd S. “Literatura, crítica e imaginação histórica: O desafio literário de Hayden White e Dominick La Capra” In HUNT, Lynn, Op, Cit. 16 BANN, Stephen. As invenções da história. Ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Ed. Unesp; 1994.

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encontra determinada a um funcionamento lingüístico automático e impessoal. A realidade não mais é pensada como uma referência objetiva, exterior ao discurso, já que ela é constituída pela linguagem e na linguagem”18. Procurando questionar e fazer frente a esta postura, Chartier - da mesma forma que François Dosse19 - propõe um retorno à obra de Michel de Certeau, um autor que, de forma pioneira, já apresentava a importância de se considerar a dimensão de representação escrita característica do conhecimento histórico, mas que nem por isso deixou de ressaltar as relações que o discurso mantinha com o mundo exterior ao texto, com a sociedade na qual estava inserido e que o condicionava20. Portanto, dentre as várias formas de abordagem possíveis do fenômeno historiográfico, me baseei nas colocações de Michel de Certeau, uma vez que seu enfoque permitiu estudar as representações do passado, ressaltando as relações que mantinham com a sociedade e o mundo da política21. Para este autor, a operação historiográfica não se restringe somente a um discurso, a uma escrita, conforme afirmam os autores “pósmodernos”. Nas suas palavras: “Encarar

a

história

como

operação

será

tentar,

de

maneira

necessariamente limitada, compreende-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da ‘realidade’ da qual trata, e que esta atividade pode ser apropriada ‘enquanto 17

Na sua visão ele seria “uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa que pretende ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de explicar o que eram representandoos”. Ídem, Ibidem, p. 18. 18 CHARTIER, Roger. Op. cit. p. 07. 19 Sobre a “redescoberta” recente de Certeau por François Dosse, que a ele dedicou uma pormenorizada biografia intelectual em 2003, ver DOSSE, François. “Michel de Certeau e a história: entre o dizer e o fazer” In Idem, Op. Cit., 2004. 20 Sobre a relação entre de Certeau e Foucault, no que diz respeito tanto às aproximações quanto às críticas, ver MAIGRET, Éric. “Michel de Certeau. Lectures et réceptions d’une oeuvre” In Annales HSS, n º 3. Maijun. 2000. 21 Segundo Guy Bourdé e Hervé Martin, da mesma forma que François Chesneau, a reflexão de Michel de Certeau representou uma repolitização do trabalho historiográfico pela ênfase conferida ao peso do lugar social de produção do discurso. BOURDÉ, Guy & MARTIN, Hervé. Les écoles Historiques. Paris: ed. Seuil; 1983. E, de fato, em de Certeau podemos encontrar a seguinte passagem em que propõe algo próximo à elaboração de uma teoria crítica da produção historiográfica: “é, pois, impossível analisar o discurso histórico independentemente da instituição em função do qual ele se organiza silenciosamente (...) Sob este aspecto, como indicam as pesquisas de Jürgen Habermas, uma “repolitização” das ciências humanas se impõe: não se poderia dar conta dela ou permitir-lhe o progresso sem uma “teoria crítica” de sua situação atual na sociedade.”. De CERTEAU, Michel. Op. Cit., p. 71.

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atividade humana’, ‘enquanto prática’. Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operação historiográfica se refere à combinação de um lugar social, de práticas científicas e de uma escrita.”22 ( negritos meus) Sem descartar a dimensão discursiva da história (história como escrita e representação do passado), de Certeau procura ressaltar os laços que unem a escrita sobre o passado a um conjunto de procedimentos científicos23 e principalmente a um lugar social de produção. Seguindo a este autor e visando compreender o uso político do passado, adoto como postura metodológica uma abordagem da produção historiográfica que ressalte o papel desempenhado pelo lugar de produção na definição dos procedimentos e na elaboração das representações sobre o passado. Para de Certeau, aquilo que produz o historiador não pode prescindir da particularidade do lugar de onde fala. Para se compreender a obra que procura recriar o passado faz-se necessário, antes de tudo, recriar este ambiente que particulariza o trabalho do historiador. Segundo o autor: “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade.”24 Ainda segundo este autor, a instituição social - o lugar no qual o historiador realiza a pesquisa – é que define os temas a serem tratados e os métodos a serem utilizados na pesquisa. Tanto as representações sobre o passado quanto os procedimentos científicos adotados na sua elaboração, são definidos pelo lugar social de produção deste discurso. Vale lembrar que a postura de De Certeau foi em parte retomada por Marc Ferro, um outro estudioso dos usos do passado que nos auxiliou a pensar a historiografia paulista da passagem do século. A concepção de “focos da consciência histórica” de que fala Ferro,

22

DE CERTEAU, Michel. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000, p. 66. Como conhecimento científico, de Certeau considera aquele que proporciona: “(...) a possibilidade de estabelecer um conjunto de regras que permitam ‘controlar’ operações destinadas à produção de objetos determinados” Idem, Ibidem, p.109. 24 Idem, Ibidem, p. 66-67. 23

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possui grande proximidade da idéia de “lugar social” de De Certeau e juntamente com a idéia de “contra história” serviu também de referência para o presente estudo25. Tendo em vista estas colocações, procurei recuperar o debate historiográfico a respeito do bandeirante identificando e analisando o lugar social dos historiadores que se dedicaram ao tema. Desta forma, procurei compreender as diferentes formas como foi representado o bandeirante e o período colonial paulista. Pois se formos observar com cuidado, veremos que o propalado “símbolo bandeirante” não tinha um sentido unívoco, sendo representado de forma diferente pelos diversos historiadores que dele se apropriaram. E esta diversidade de sentido foi entendida como decorrente dos diferentes lugares de produção do discurso sobre o bandeirante e o passado colonial paulista. Procurei, assim, tomar o processo de construção da historiografia como um debate, no qual autores de diferentes épocas e lugares sociais confrontaram diferentes representações do passado. Neste ponto, procurei ressaltar o caráter de conflito e competição inerente ao processo de elaboração das representações sobre o bandeirante. Pois como afirma Roger Chartier: “esta investigação sobre representações supõe-nas sempre colocadas em um campo de concorrências e de competições cujos desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõem, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus e os seus domínios.”26 Assim, para traçar as diferentes representações sobre o passado colonial paulista e a figura do bandeirante, foi necessária a reconstrução não somente dos diferentes lugares sociais dos autores mas também do debate político e cultural no qual estes se inseriam, atentando para as diferentes conjunturas entre os anos 1856 e 1930. Estudando a maneira como os historiadores ligados a diferentes grupos políticos representavam o passado colonial paulista procurei, na realidade, compreender melhor a forma como encaravam as questões de seu presente e os desafios a se enfrentar na construção do futuro.

25 26

FERRO, Marc. A História Vigiada. São Paulo: Martins Fontes; 1989. CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; 1986; p. 17.

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Capítulo 1 – Identidade paulista e Historiografia entre colônia e Império.

1. 1 - A herança Colonial: Predominância da fragmentação. Às vésperas da sua emancipação política, a porção lusitana das Américas não existia como corpo político unificado e íntegro. Não havia propriamente Brasil, entendido, à maneira do pensamento nacionalista romântico, como uma Nação à espera de seu Estado. Nas primeiras décadas do séc. XIX, não havia unidade político administrativa e muito menos um sentimento generalizado de identidade brasileira, sentindo-se os habitantes muito mais como lusitanos da América ou, antes, pernambucanos, paulistas e paraenses. Como lembra Sérgio Buarque de Holanda em texto célebre, não podemos confundir independência com unidade, os dois processos não coincidem temporalmente, sendo o primeiro anterior e somente concluído como a saída de D. Pedro I em 1831 e o segundo, somente com a repressão à última revolta provincial, a Praieira em 1848, portanto, já “uma conquista do império independente”27. A ausência de unidade político administrativa e a semi-autonomia das suas diversas partes, constituíam um dos mais pesados traços da herança colonial com a qual tinham que haver as primeiras gerações de políticos do Império recém independente, empenhados em estruturar o nascente Estado Nacional. Este quadro de fragmentação generalizada e predominância do provincianismo, era fruto da forma como se organizou a colônia desde os seus primórdios. A Coroa portuguesa entrega, desde o séc. XVI, ao poder privado a incumbência de colonizar a nova terra, estabelecendo com este colonos uma aliança por horas tensa mas duradoura. O território da América portuguesa foi retalhado em diversas capitanias, cada uma entregue a um donatário que, dotado de ampla autonomia, tinha o direito de explorá-la economicamente. A despeito de iniciativas limitadas de centralização, como foram o Governo Geral no séc. XVI e o Vice Reinado no séc. XVIII, formou-se, desde o primeiro século da colonização, um sistema de ocupação do território marcado por uma série de núcleos de ocupação semi autônomos e que pouca articulação possuíam entre si.

27

HOLANDA, Sérgio Buarque de. “A Herança colonial – Sua desagregação” In HOLANDA (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Brasil Monárquico, vol 1. São Paulo: Difel, 1967; p.23.

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Alguns autores utilizam a imagem da América portuguesa como um arquipélago, onde as ilhas seriam as capitanias, semi autônomas em relação umas às outras.28 Não haveria um centro no continente americano que as unisse e de onde emanasse um poder de caráter agregador. As próprias sedes do Governo Geral e, posteriormente, do Vice Reinado, ou seja, Salvador e Rio de Janeiro, não tinham sua autoridade respeitada além de algumas poucas províncias secundárias29. Contudo, existia uma ligação entre as diversas capitanias. Esta se dava diretamente com a metrópole, sendo Lisboa, a sede da Monarquia, o seu único e efetivo centro. Assim, às vésperas da independência, o viajante Saint-Hilaire sintetizou a situação das vastas possessões portuguesas na América ao afirmar que “cada capitania tinha seu pequeno tesouro; elas mal se comunicavam entre si, muitas vezes ignoravam mesmo a existência umas das outras . Não havia no Brasil centro comum – era um círculo imenso cujos raios convergiam muito longe da circunferência”30. Esta forma de organização do território colonial implicava em uma maneira original dos habitantes da América portuguesa entenderem sua própria identidade. Até o início do séc. XIX e mesmo depois da independência, predominava entre os portugueses da América o sentimento da identidade “regional”, de capitania. As populações livres locais se sentiam antes de tudo pernambucanas, paraenses, mineiras ou paulistas. Não havia algo semelhante a um sentimento de identidade brasileira, nem em termos político nem cultural. Mesmo a maior parte das elites regionais não pensavam o Brasil como uma unidade que se apresentasse como síntese orgânica das diversas partes. José Murilo de Carvalho cita, dos inconfidentes mineiros aos revoltosos pernambucanos de 1817, diversos exemplos da predominância da visão compartimentada e parcial das elites locais 31. Somente se começou a pensar o Brasil como síntese e não simples soma das várias partes com a vinda da Família Real para o Rio de Janeiro em 1808 e, mesmo assim, em um restritíssimo grupo de intelectuais ilustrados.

28

CARVALHO, José Murilo de. “Federalismo e Centralização no Império Brasileiro: História e Argumento” In CARVALHO, J.M. Pontos e Bordados. Belo Horizonte: Ed. UFMG; 1998. 29 Sérgio Buarque cita exemplos do sistemático desrespeito de governadores de capitania frente a resoluções do Governo Geral. Ver HOLANDA , op. cit, pp21. 30 SAINT-HILAIRE. Apud. CARVALHO, Op. cit. P.159. 31 CARVALHO, José Murilo . “Brasil : nações imaginadas” In CARVALHO, J. M. Op. cit. pp 234, 235.

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Esta visão compartimentada e múltipla das identidades da América lusitana estava ancorada simbolicamente na historiografia produzida no período colonial, também ela predominantemente calcada no recorte por capitania. Poucas eram as obras que lançavam um olhar sobre a totalidade do Brasil, como fez Sebastião da Rocha Pita com a sua História da América Portuguesa de 1730, ou mesmo a clássica História do Brasil, escrita no séc. XVII por Frei Vicente do Salvador, obra que, apesar do recorte amplo, apresenta o “Brasil” como um conjunto não articulado de possessões portuguesas, sendo sua história a compilação de conquistas paralelas das diversas capitanias que pouco tinham em comum. Nem mesmo a tentativa empreendida pelas Academias setecentistas dos Esquecidos e Renacidos, de criar uma interpretação unificada do passado da América Portuguesa, conseguiu se sobrepor à visão fragmentada32. No geral, prevaleceu a tendência a apresentar histórias e memórias sobre as diversas capitanias, como bem demonstra José Honório Rodrigues no seu estudo sobre a historiografia colonial33. Assim, dentre várias outras, tínhamos para Pernambuco de Loureto Couto os Desagravos do Brasil e glórias de Pernambuco, de 1753; de Antônio J. Mendes da Fonseca uma Nobiliarquia pernambucana, de meados do séc. XVIII; para o Maranhão os Annaes do Maranhão de Barredo; para a Bahia, a Notícia geral de toda esta Capitania da Bahia, escrita em 1759 por José Antônio Caldas; para a Paraíba a Descrição da Capitania da Paraíba do Norte, de 1799, por Fernando Delgado Freire de Vasconcelos; etc34 . O caso paulista não foi exceção. O séc. XVIII foi o momento de surgimento de uma historiografia voltada a louvar o passado da capitania de São Paulo. A empreitada foi obra de dois filhos da aristocracia local: o beneditino santista Frei Gaspar da Madre de Deus, e o fidalgo paulistano Pedro Taques de Almeida Paes Leme35, nascidos respectivamente em 1714 e 1715. A partir de meados do setecentos, ambos se empenharam em elaborar uma história de São Paulo que tinha como objetivo comum louvar a grandeza da elite local e rebater os impropérios e acusações que jesuítas como Dias Taño, Montoya, Vieira e

32

KANTOR, Íris. “De Esquecidos e Renascidos: Historiografia Acadêmica Luso-Americana (1724-1759).” São Paulo, Doutorado, dep. História USP; 2002. 33 RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil; sua evolução e problemas atuais. Rio de Janeiro: Dep. de Imprensa Nacional; 1952. 34 JANKSÓ, István & SLEMIAN, Andréia. “O Correio Braziliense: um Caso de patriotismo imperial.” (mimeo).

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Charlevoix, dentre outros, vinham lançando aos paulistas desde o séc. XVII, quando estes últimos organizam as expedições sertanistas que destruíram as missões jesuíticas de Tapes e Guairá. Pedro Taques de Almeida Paes Leme, ao mesmo tempo membro da elite local e um funcionário do governo colonial36, escreveu uma História da Capitania de São Vicente; uma Notícia Histórica da expulsão dos jesuítas do colégio de São Paulo; e em 1772 a sua Informações sobre as Minas de São Paulo, a pedido do então governador da capitania Morgado de Mateus, dentre outras obras hoje perdidas. Mas a sua principal e mais significativa obra foi a Nobiliarquia Paulistana Histórico e Genealógica. Nela apresentava um rol das famílias tradicionais da Capitania, desde o séc. XVI, relatando sua origem e descendência, bem como os feitos mais significativos empreendido por cada clã. Kátia Abud ressalta a visão positiva conferida pelo autor ao movimento posteriormente chamado de bandeirismo. Os paulistas que participaram das entradas para o sertão eram louvados pela liderança na preação de índios, na busca de minas de ouro e pedras preciosas para o rei e pelo combate aos estrangeiros e escravos rebeldes. Além de lembrar o inegável serviço e fidelidade à coroa prestado pelos paulistas antigos, a obra de Pedro Taques ressaltava o caráter nobre desta elite. Seus esforços foram todos no sentido de frisar a fidalguia dos troncos mais antigos de paulistas mediante o destaque dado às exigências para o pertencimento ao grupo dos Homens Bons, que representava exatamente o ápice da sociedade colonial. Assim, os antigos paulistas eram descritos como bravos militares, grandes senhores de terras e arcos, além de donos de inegável atestado de pureza de sangue exigido pelo tempo. Este último tópico é de especial importância, na medida em que ao frisar o sangue puramente europeu dos antigos paulistas, Pedro Taques negava a miscigenação com sangue índio que estava na raiz da maioria dos clãs vicentinos ou, quando impossível faze-lo, condenava o relapso paulista promotor da mestiçagem.

35

Para o tratamento da obra destes dois autores me baseio na tese de ABUD, Kátia. “O Sangue intimorato e as nobilíssimas tradições. A construção de um símbolo paulista: o Bandeirante” São Paulo, USP, doutorado, 1985, cap. II. 36 Foi, durante os anos 1740, escrivão da Intendência Comissária e Guarda Moria do Distrito de Pilar em Goiás e de meados dos anos 1750 até 1769, Tesoureiro-Mór da Bula da Cruzada nas Capitanias de São Paulo, Mato Grosso e Minas Gerais; ver : Idem, Ibidem, p. 69.

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Seguindo orientação semelhante, Frei Gaspar, importante figura do clero colonial37, escreveu a sua principal obra Memórias para a História da Capitania de São Paulo. Nela também ressaltava a nobreza dos paulistas antigos e os serviços prestados à coroa. Mais uma vez a ênfase recaía sobre a figura do sertanista preador de índios, posteriormente identificada como bandeirante. Porém, ao contrário de Pedro Taques, reconhecia e louvava no paulista antigo a mistura do português com o índio e apontava os serviços dos habitantes de São Paulo na conquista e defesa dos territórios do Rei de Portugal frente ao avanço espanhol, através das missões jesuíticas, pelas terras meridionais da América. Kátia Abud, procurando ainda compreender a obra destes autores à luz do contexto social interno de São Paulo, encontrou nelas o desejo de valorizar um grupo mais antigo de moradores da Capitania em detrimento de uma nova leva de imigrantes reinóis. Recém chegados no séc. XVIII, estes “novos emboabas” haviam se destacado no comércio e já disputavam com os membros das famílias paulistas mais antigas os principais cargos políticos da capitania. Os dois historiadores, membros de velhos ramos familiares paulistas, puseram sua pena na “defesa do que consideravam direito dos descendentes dos antigos povoadores”38. O trabalho historiográfico destes autores resumia as características principais da forma como então entendiam a sua própria identidade. Viam-se antes de tudo como aristocratas da capitania, fiéis à coroa portuguesa: nobres paulistas súditos de sua magestade el rey de Portugal. Da mesma forma, dando suporte a esta identidade, a historiografia que elaboraram, como boa parte da historiografia colonial, era antes de tudo uma nobiliarquia localista e vassala, aliando de forma coesa os elementos aristocracia, capitania e fidelidade ao Império Português. As crônicas do setecentos eram relatos do valor e das ações gloriosas de uma aristocracia tradicional da capitania a serviço da grandeza da Coroa Portuguesa. O todo, ao qual se julgavam pertencer, era o Império português, sendo a capitania de São Paulo, a parte; segundo os termos da época, a “nação” era a portuguesa e a “pátria” era a paulista. O Brasil nada era além de uma realidade

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Frei Gaspar fez seu noviciado na Bahia, passando depois pelo Rio de Janeiro e Portugal. De volta ao Rio de Janeiro foi professor de Filosofia e teologia no Mosteiro beneditino, chegando a abade provincial em 1766. Ver: Idem, Ibidem, p. 69. 38 Idem, Ibidem; p.98.

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meramente administrativa, o “ Estado do Brasil”, existente como uma unidade somente na consciência da burocracia imperial portuguesa. A obra de Frei Gaspar e Pedro Taques marcou profundamente a historiografia que lhe seguiu, fixando representações sobre o passado paulista, posteriormente mobilizadas e ressignificadas por outros historiadores até o século XX. De sua elaboração historiográfica devemos ressaltar a centralidade e positividade conferida à figura do paulista antigo, do sertanista, daquele posteriormente chamado bandeirante, que então se apresenta como o es teio da identidade dos habitantes da capitania de São Paulo. Da mesma forma, o sentimento de paulistanismo e a visão de fidelidade à capitania, que lhe eram correlatos, se mantiveram inalterados até pelo menos o início do processo de independência, como comprova o caso já célebre da participação da representação paulista nas Cortes de Lisboa, no início da década de 1820. Aí o deputado Diogo Feijó deixou bem claro, para quem ainda não o soubesse, que falava exclusivamente em nome da província de São Paulo, sua “Pátria”, evidenciando a inexistência de uma representação política única do reino do Brasil. A fidelidade provincianista, evidente na fala do deputado Feijó, era compartilhada por todos os representantes das províncias americanas do Império Português no início dos debates das Cortes. Ao longo das discussões ela será paulatinamente substituída por uma nova forma de conceberem a sua própria identidade. À medida que o entusiasmo inicial, por parte dos representantes americanos, pela adoção do regime representativo foi sendo temperado por uma desconfiança a respeito dos interesses adversos dos reinóis e da ameaça à ordem escravocrata na América, aqueles passaram a ter claro os interesses que os uniam. Emergiu daí, segundo István Janksó e João Paulo Pimenta, o primeiro esboço de uma identidade nacional brasileira que suplantasse as diversas e fragmentárias identidades provinciais ainda evidentes no início dos debates39. Assim, no decorrer do séc. XIX, o sentimento de identificação com a província, característico do período colonial, teve que se haver com uma nova forma de identidade emergente: a identidade nacional una. No caso específico do sentimento colonial de identidade paulista a mudança foi profunda.

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JANKSÓ, István & PIMENTA, João Paulo. “Peças de um mosaico. A emergência de uma identidade nacional brasileira.” In. MOTA, Carlos Guilherme (org). Viagem incompleta : a experiência brasileira (1500-2000): a grande transação. São Paulo: SENAC, 2000.

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Para compreender estas mudanças procuro me concentrar preferencialmente no estudo da atuação do Brigadeiro José Joaquim Machado de Oliveira, o autor da única “História de São Paulo” escrita no período monárquico anterior a 1870. A publicação, em 1864, do Quadro Histórico da Província de São Paulo, de sua autoria, representa a culminação de um projeto intelectual nascido no contexto das discussões travadas no interior do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro durante os anos 1840, quando a instituição dava seus primeiros passos, ao compasso dos valores da centralização política e da discussão a respeito da abolição do tráfico de escravos. A história completa das representações sobre São Paulo e da elaboração da identidade provincial durante o Império ainda deverá ser feita. Para isso, será necessário estudar a variada imprensa regional assim como os discursos dos representantes políticos paulistas. Não é esse trabalho que pretendo aqui realizar. Escolhi como objeto de análise me concentrar na atuação de um alguns autores significativos pela definição de um padrão de representação da história paulista posteriormente refutado pelos historiadores republicanos.

1.2 A Província de São Paulo e o Segundo Império.

Durante os três primeiros quartos do século XIX, São Paulo estava longe de apresentar um quadro de estagnação e de decadência econômica, conforme apregoou uma historiografia tradicional40. Embora fosse uma província economicamente secundária no conjunto do Império, caracterizou-se por um crescimento constante de suas forças materiais. Desde fins do séc. XVIII São Paulo presenciava o desenvolvimento da produção do açúcar na região do chamado “Oeste Velho” (Itu, Porto Feliz, Limeira). Ainda que esta produção não pudesse competir com a nordestina, era a primeira vez que a província tinha sua economia baseada em uma atividade agrário exportadora, rompendo com séculos de

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Críticas à idéia de “decadência” e “estagnação econômica” da Província nos séc. XVIII e XIX ver MARCÍLIO, Maria Luisa. Cidade de São Paulo: povoamento e população, São Paulo : Pioneira, 1974 . E BLAJ, Ilana. A Trama das Tensões. São Paulo: Humanitas, FFLCH/USP, Fapesp; 2002.

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economia voltada exclusivamente ao abastecimento interno da colônia41. A partir dos anos 1830 o incremento da economia regional era intensificado pela emergência da cultura do café na região do vale do Paraíba (Bananal, Taubaté, Pindamonhangaba). Desde o séc. XVIII desenvolvia-se também uma intensa atividade comercial e pecuária, principalmente ligada às tropas de abastecimento primeiramente da região das Minas, no séc. XVIII, e depois, já no início do séc. XIX, da Corte. O comércio de muares em Sorocaba fazia da província um ponto importante nas redes comerciais que ligavam a zona produtora de charque e gado do extremo sul, às regiões consumidoras da Corte e do centro do Brasil. Socialmente, a base da pirâmide era formada pela população escrava e um grande contingente de homens livres pobres, na sua maioria sitiantes “caipiras”. Por conta das imensas terras situadas além da fronteira econômica, havia ainda uma significativa população de índios que ultrapassava a média das províncias de mais antiga ocupação. No topo da pirâmide, encontrava-se uma elite formada por fazendeiros de açúcar, comerciantes, alguns clérigos e muitos militares. Sérgio Buarque de Holanda, tratando da província nas quatro primeiras décadas do sec. XIX, chama a atenção para o fato da carreira das armas (e, em menor medida, do clero) ser uma das principais alternativas de inserção social que havia para os filhos das tradicionais famílias da elite provincial42. O sucesso da carreira militar revela outra característica marcante do papel da província no Império: a preponderância que os paulistas de todas as classes tiveram na composição das tropas que participam das guerras joaninas da fronteira sul, e demais conflitos que se estenderam pelo período independente adentro. Foi exatamente desta elite militar paulista que se originou o autor que estudamos, o brigadeiro José Joaquim Machado de Oliveira. Membro de antiga família paulista, filho do Tenente Coronel Francisco José Machado, nasceu em 8 de julho de 1790 na cidade de São Paulo43. Com um ano de idade foi alistado na “Legião dos Voluntários Reais”, corpo criado 41

Sobre economia de São Paulo nos séc. XVII e XVIII ver respectivamente MONTEIRO, John. Negros da Terra. São Paulo; Cia. das Letras; 1995. BLAJ, Ilana. Op. Cit.. Sobre a cultura canavieira ver o trabalho clássico de PETRONE, Maria Teresa Schorer. A lavoura canavieira em São Paulo. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1968. 42 HOLANDA, Sérgio Buarque. “São Paulo” In HOLANDA. S. B. (Org.) História geral da Civilização Brasileira. T. II, Vol. 2º. 43 Os dados biográficos de Machado de Oliveira que seguem foram retirados de SOARES, José Carlos de Macedo. Três Biografias. José Joaquim Machado d’Oliveira, Brasílio Machado d’Oliveira e José de

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pelo Governador Lobo de Saldanha em obediência à orientação de Pombal. Atuou nas campanhas de Buenos Aires e Montevidéu em 1811, 1812, 1816 e 1827. Primeiramente como simples tenente, galgando, ao longo das lutas, os postos da hierarquia militar, chegando nas batalhas de Ibicuí, Iapejá e Itacoroí a deter o comando da infantaria e da artilharia com o cargo de tenente coronel. Em meio a uma das campanhas em que participava no Sul, irrompeu o movimento de independência, o qual apoiou, sendo o escolhido para levar, a D. Pedro I, o documento de adesão das tropas da fronteira sul ao Império nascente. Com a Regência passou a agir no terreno da administração pública e na política. A sua nomeação para as presidências do Pará, em 1831; Alagoas, em1834; Santa Catarina, em 1836 e Espírito Santo, em 1840, evidencia a sua proximidade com o grupo político dominante na Corte e a sua incorporação à máquina do Estado monárquico independente. Machado de Oliveira estava então alinhado com os liberais moderados, tendo adquirido a simpatia de Evaristo da Veiga, que, em 1834, o coloca no cargo de líder da Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional. Porém, mais do que um membro do grupo de Evaristo, Machado de Oliveira, pela sua adesão nunca negada aos valores federalistas e descentralizadores, pode ser considerado um digno representante da elite liberal que dominava a política da província dos anos 1820 a 1840. De fato, em termos sociais, os principais representantes da elite política provincial estavam ligados ao setor de proprietários produtores de açúcar da região próxima a Itu. Era um grupo que tinha como expoentes, o padre secular Diogo Feijó, os donos de engenho Paula Sousa e Nicolau Vergueiro e o militar Rafael Tobias de Aguiar. Exceto este último, somente dedicado à atuação política interna à província, os demais haviam tido participação de destaque nas Cortes de Lisboa. Aí representaram os interesses das províncias do centro sul do Brasil e acabaram rompendo com o constitucionalismo português e aderindo à causa da independência. Tratava-se, já neste início de séc. XIX, de uma elite claramente liberal, que possuía um projeto nacional próprio, baseado na defesa da autonomia das províncias e

Alcântara Machado d’Oliveira. São Paulo: ed. da Academia Paulista de Letras, 1955 e ALCÂNTARA MACHADO, José de. “Machado d´Oliveira” In Revista do Arquivo Público Municipal (RAPM); SP; Vol LIII, dez.1938/ jan.1939; Idem, “Machado d´Oliveira” In RAPM, Vol.LXXII, nov./dez. 1940.

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na manutenção do sistema agrário exportador escravista44. Era um projeto político de envergadura nacional que defendia a forma monárquica constitucional e visava assegurar a unidade nacional, negando, contudo, a centralização política. Esta prática, vigente no Primeiro Reinado, seria retomada em novas bases pelos saquaremas a partir de 1837 com o chamado “regresso conservador”, movimento político do qual os paulistas foram ferrenhos opositores. Contrastando com o secundário papel econômico que possuía no quadro nacional, o grupo liberal paulista assumiu papel de primeiro plano no terreno político durante o período regencial. Neste contexto, sob a liderança de Feijó, que atingiu o cargo máximo de regente uno em 1835, os liberais paulistas compunham a ampla frente dos liberais moderados juntamente com os grupos alinhados em torno dos outros líderes; Evaristo da Veiga e Bernardo Vasconcelos, estes mais simpáticos à centralização. Durante a Regência, os liberais paulistas, afinados com outras elites provinciais e forças políticas, conseguiram efetivar seus propósitos de estabelecer um sistema político-administrativo descentralizado, baseado na criação das Assembléias Provinciais dotadas de amplos poderes. Na análise de Míriam Dolhnikoff, o Ato Adicional - dispositivo jurídico que institucionalizava o sistema descentralizado da Regência, aprovado em 1834 - criava uma esfera provincial de poder, até então de pouca monta, dotada de ampla autonomia em relação à autoridade central. Esta esfera regional, se por um lado restringia o poder centralizador da Corte, por outro, buscava enquadrar e diminuir o poder das Câmaras Municipais e assim anular os efeitos dissolventes do poder local. Assim, a concessão da autonomia provincial criava uma espécie de monarquia federativa, forma intermediária defendida pelos liberais paulistas para a manutenção da unidade nacional sem a marca da centralização. Este regime descentralizado, “quase republicano”, segundo alguns autores, durou pouco tempo, menos de dez anos. A instabilidade social e política da Regência reforçou a luta de setores mais conservadores – normalmente ligados ao grande comércio e à grande lavoura de exportação, com destaque para o nascente café valeparaibano - que passaram a defender a maior centralização de poder. Assim, mal aprovado o Ato Adicional, em 1834, logo no ano seguinte, os setores dos liberais moderados liderados por Bernardo Pereira de

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DOLHNIKOFF, Miriam. “Construindo o Brasil: unidade nacional e pacto federativo nos projetos das elites (1820-1842).” São Paulo, tese de doutorado: USP; 2001.

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Vasconcelos - formando o embrião do futuro grupo saquarema (Partido Conservador) começaram uma movimentação no sentido de restringir o recém atribuído poder das assembléias provinciais, em favor do fortalecimento do poder central. Iniciava-se a obra do “regresso conservador” que terminou por prevalecer após 183745. Este movimento foi consagrado nos anos 1840 com a reforma do Ato Adicional, a reforma do Código do Processo Criminal e o fim do caráter eletivo da oficialidade da Guarda Nacional. A antecipação da maioridade do imperador, em 1840, e a entrada em vigência do poder moderador ajudou a consolidar o processo de construção da ordem centralizada. Pesquisa atual de Miriam Dolhnikoff tem questionado a visão do regresso conservador como um retorno à ordem ultra centralizada, que caracterizou o primeiro reinado, marcada pela negação das instâncias políticas regionais. Ao invés de suprimir o poder regional a centralização manteve-o, buscando, porém, limitá-lo e canalizá-lo para seus intentos. As elites regionais não tiveram seu poder de todo negado, mas foram em grande medida cooptadas e incorporadas, de forma subalterna e controlada, à obra de construção política do Império unitário. Mas este processo de incorporação subalterna não foi pacífico. As resistências das elites provinciais à centralização se deram em vários níveis e com diferentes intensidades. Não raro descambaram para o confronto armado, como ocorreu com paulistas e mineiros, em 1842, e com os praieiros pernambucanos, em 1848. Alçados ao centro do poder durante a Regência, os liberais paulistas desde o início marcaram posição firme contra os regressistas. O que não significa que não existisse um setor da elite provincial alinhada com os saquaremas, representada neste momento pelo barão de Monte Alegre e, mais adiante nos anos 1860, pelo clã dos Prado. Mas o grupo político hegemônico na província – o dos liberais da tríade Feijó, Paula Sousa e Vergueiro – se opôs fortemente à anulação das medidas federativas que constituíam o cerne de seu projeto nacional. Destituídos do poder regencial após a queda de Feijó em 1837, acuados no terreno político, juntamente com os liberais mineiros, partiram para o confronto armado em 1842. Tendo como estopim a recusa da reforma do Código do Processo Criminal, a resistência contra as tropas centralistas comandadas por Caxias foi organizada pelo 45

Sobre o regresso ver MATOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. Rio de Janeiro: Access Editora, 1987; CARVALHO, José Murilo. A formação da ordem. Rio de Janeiro : Editora UFRJ/Relume Dumará, 1996; DOLHNIKOFF, Op. Cit.2001.

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brigadeiro Tobias de Aguiar. Em pouco tempo os revoltosos paulistas foram vencidos e seus líderes presos, e somente em 1844 anistiados. Mesmo voltando nos anos 40 à atividade parlamentar regular, os liberais paulistas tiveram que se contentar com uma posição política subalterna diante da hegemonia dos saquarema46. Cansado de remar contra a maré conservadora, o liberal Paula Sousa afirmava, no final dos anos 1840, que finalmente “largava os remos”, atestando a derrota dos liberais de sua província no terreno da política. O Segundo Império, portanto, nascia da marginalização política da elite liberal paulista e, num certo sentido, se baseava na derrota relativa do projeto de nação que defendiam. A derrota foi “relativa” pois, como lembra Dolhnikoff, o Estado monárquico centralizado não suprimiu de todo, tendo porém limitado fortemente, a esfera provincial de poder tão defendida pelos liberais paulistas. De qualquer forma, estes deixaram de dar as cartas na política, conforme ocorria na Regência. Sua luta por autonomia provincial fora, em parte, derrotada.

1. 3. Liberalismo monárquico paulista e discurso identitário regional.

Apesar de defender as prerrogativas provinciais com tanto afinco, os liberais paulistas do império não se empenharam em elaborar um discurso identitário que fosse o suporte simbólico de suas reivindicações de autonomia regional. Até que novas pesquisas dedicadas a analisar os discursos políticos de paulistas nas assembléias e na prolífica imprensa regional provem o contrário, permanece válido o sentido geral da afirmação feita por Kátia Abud de que “escritores que surgiram, paulistas mesmo, ou identificados com São Paulo, foram muito raros, na primeira metade do séc. XIX”47. A elite liberal paulista de meados do séc. XIX não parece ter se empenhado em usar da história como instrumento para legitimar sua ação política, evidenciando profunda diferença em relação à elite republicana da passagem do séc. XIX para o XX. Mas se nada explícito existe em relação a este ponto, podemos aventar uma certa identificação dos liberais com o resumo de história da província de São Paulo realizado pelo viajante francês Saint Hilaire. Esta pista foi dada pelo viajante americano Daniel Kidder, presente na província de S. Paulo de 1838 a 1840.

46 47

MATOS, Ilmar. Op. Cit. 1987. ABUD, Kátia. Op. Cit., 1985. P.106.

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Ele nos relata que “certa noite, passeando em companhia de várias pessoas nos vastos jardins do sr. Rafael Tobias de Aguiar, popular ex presidente da província e um de seus maiores proprietários de terras, a conversa encaminhou-se para os vários visitantes estrangeiros que passaram pelo Brasil. Uns referiram-se a Mawe; mas, Saint Hilaire, o botânico francês, era quem gozava de consideração geral, pois conseguiu fazer um trabalho completo.”48 Não se sabe exatamente o que despertou a predileção em relação à obra do viajante francês em membros da elite liberal paulista como Tobias de Aguiar, além do “trabalho completo” a que Kidder faz menção. Nem se sabe, com segurança, se a predileção por sua obra se deveu à narrativa histórica que elaborou. Talvez estes liberais ciosos da autonomia provincial já tenham se identificado com o elogio da liberdade do antigo paulista realizado por Saint Hilaire em passagem que, no contexto da luta republicana, será a pedra de toque da historiografia de cunho federalista. Nela o botânico francês afirmava que “animados pelo espírito de liberdade selvagem que caracteriza a raça americana, (...) os paulistas nunca foram um povo submisso”49. Talvez a predileção pelo relato do cientista viajante se deva simplesmente àquele “tom de admiração e respeito” que empregou quando tratou dos paulistas antigos e o “algo de simpático”50 que para Kátia Abud permeou suas críticas ao bandeirante, algo raro num contexto, conforme veremos, marcado pela demonização quase completa do paulista colonial realizada pela etno-historiografia indianista. Mais significativo, porém, é o relativo silêncio sobre a identidade regional vigente no interior da elite paulista de meados do Séc. XIX. Kátia Abud, já ressaltou o fato da figura do bandeirante ter “permanecido em seu sono” durante o século XIX, querendo demonstrar, com esta afirmação, o pouco interesse que a figura histórica despertou nos contemporâneos. Se isso não é rigorosamente correto para o contexto da produção historiográfica elaborada no Rio de Janeiro, conforme veremos, o é para o caso do ambiente interno da província de São Paulo. De fato, não notamos no contexto interno da província nenhum empenho sistemático, independente e coletivo em elaborar um discurso identitário e muito menos em reelaborar a representação do passado regional calcado no bandeirante.

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KIDDER, Daniel. Reminiscências de viagens e permanência nas províncias do sul do Brasil. Belo Horizonte, São Paulo: Ed. Itatiaia/ Edusp; 1980. 49 SAINT HILAIRE, Auguste. “Quadro Histórico da Província de São Paulo” In.Viagem à província de São Paulo. São Paulo : Martins, 1972

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No caso paulista, até 1870, não existiu nada semelhante, em dimensão e profundidade ao empenho da elite monárquica pernambucana de elaborar um discurso identitário próprio, baseado na recuperação do passado regional mediante louvação do evento da Restauração pernambucana, materializado na fundação do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano (AGP), em 186251. Somente notamos os casos marginais, e quase restritos ao universo privado da epistolografia de Homem de Melo e Ricardo Gumbleton Daunt, além da obra de Machado de Oliveira, esta sim a elaboração oficial do regionalismo monárquico paulista. Mesmo assim, nestes casos, o bandeirante não assumiu lugar de destaque. Um dos motivos que eventualmente impossibilitaram o desenvolvimento de um discurso identitário regional sistemático e institucionalisado tenha sido o acanhamento do ambiente cultural da São Paulo imperial. A própria Academia de Direito, normalmente tomada como foco de produção cultural paulista, dificilmente pode ser tomada como representante dos interesses regionais, uma vez que, segundo Antônio Cândido, não mantinha uma relação orgânica com a sociedade paulista, sendo antes uma congregação a ela justaposta52. Estudantes e professores, na sua maioria originados de outras províncias do Império, como que formavam um circulo à parte da sociedade paulista e que somente secundariamente influiu na elaboração de um discurso identitário regional. No terreno da cultura, a província de São Paulo era acentuadamente dependente da Corte e dos valores culturais produzidos na capital do Império. Até quase entrado o séc. XX, os paulistas com maiores pretensões literárias eram atraídos pelo ambiente do Rio de Janeiro, verdadeira capital da cultura letrada nacional. Este foi o caso, tanto de Machado de Oliveira quanto de Francisco Inácio Marcondes Homem de Melo. Este último, um promissor estudante de direito paulista no final dos anos 1850, já tendo despertado interesse pela política e pelos estudos históricos, foi para a Corte, nos anos de 1860, onde acabou sendo integrado nas principais instituições culturais do Império: foi professor do colégio Pedro II, membro importante do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), além 50

ABUD, Kátia. Op. Cit., 1985. p. 104. Sobre o caso Pernambucano e a manutenção, durante o séc. XIX, de uma perspectiva “nativista” da história, independente da perspectiva centralista da historiografia produzida no IHGB ver. MELO, Evaldo Cabral de. Rubro veio. Imaginário da restauração pernambucana. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira; 1986. 52 CÂNDIDO, Antônio. “A literatura na evolução de uma comunidade” In Literatura e Sociedade. São Paulo: T. A . Queiroz ; Publifolha; 2000. 51

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de expoente do Partido Liberal através do qual foi diversas vezes presidente de províncias. Mas antes de partir para Corte, o jovem liberal Homem de Melo esboçou um discurso identitário provincial calcado no uso da Historia. Homem de Melo é um exemplo interessante de historiador paulista do período monárquico que, pelo seu interesse em relacionar as críticas à centralização com a historiografia regional paulista, chegou a matizar, mas não negar, a tendência ao pouco investimento na elaboração de um discurso articulado de identidade regional. O diálogo epistolar de Homem de Melo com o médico irlandês Ricardo Gumbleton Daunt a respeito do passado paulista, pela sua excentricidade no período em que ocorreu, pode ser considerado a exceção que confirma a regra.

1.4. Homem de Melo e Ricardo Gumbleton Daunt: federalismo liberal e paulistanismo Ultramontano.

Paulista natural de Pindamonhangaba e futuro barão Homem de Melo, em 1856, o então jovem estudante de direito Francisco Inácio lançou, com alguns colegas de turma um pequeno jornal intitulado O Guaianá, que foi o estopim de um tímido e quase que pessoal empenho de elaboração de um discurso de cunho regionalista e mesmo anticentralizador. Como colaboradores do jornal havia: Aureliano Cândido Tavares Bastos e José Vieira Couto de Magalhães, duas figuras que se destacariam no universo das letras e da política como expoentes do Partido Liberal monárquico. Se o primeiro deles acabou sendo o autor da maior crítica ao Estado Imperial centralizado, neste jornal de juventude só se dedicou à simples crítica literária. Mesmo assim, a tônica dominante do periódico O Guaianá já vinha marcada pelo viés crítico à centralização. E de fato, Homem de Melo não somente atacava a centralização, como o fazia mediante o uso da História. Além do mais, era uma historiografia voltada a sustentar um discurso de cunho laudatório das virtudes paulistas. Para Homem de Melo a lembrança da grandeza passada de São Paulo servia primeiramente para destacar as agruras do seu triste presente sob o jugo da centralização: Decaída de sua glória, a província de S. Paulo – aí repousa triste e abatida – ouvindo apenas os ecos sentidos da saudade – sem ao menos refletir a luz radiosa, com que iluminou outrora o Brasil inteiro!

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Essa província, que conquistou em nossa história uma página gloriosa inteiramente votada a seus patrióticos feitos, teve a preeminência de ser o berço feliz dos grande homens...53. O interesse pela história e pela autonomia provincial levou Homem de Melo a investir na valorização da figura de Diogo Feijó, na sua opinião o maior destes “grandes homens” de São Paulo e como que símbolo das virtudes liberais da província. O projeto historiográfico do jovem Homem de Melo, já presente nas páginas de O Guaianá, era voltado à escrita de uma “história constitucional do Brasil”, conforme explicitou em outro escrito de 186854. Ao contrário da tendência predominante no IHGB, mais voltado ao passado indígena e ao período colonial55, seu interesse estava em estudar o período posterior à independência, quando se iniciava a vida político-constitucional da nação. Pretendia, assim, retraçar a marcha ascendente da liberdade política no Império brasileiro. E neste quadro, o período áureo foi identificado como sendo aquele posterior ao sete de abril, exatamente o período regencial em que os liberais paulistas lutavam por autonomia provincial. Seguindo os valores do liberalismo de sua época, Homem de Melo desdenhava o passado colonial. Mesmo não deixando de prestar as louvações de praxe aos irmãos Gusmão e demais paulistas alargadores de fronteira dos primeiros séculos, Homem de Melo não se empenhava no resgate das glórias do passado colonial paulista. Nenhum entusiasmo com o colono paulista e muito menos com o jesuíta. Isso se explica pela visão essencialmente negativa que tinha de todo o passado colonial brasileiro, visão esta caudatária da interpretação liberal da História brasileira, conforme cristalizada por João Francisco Lisboa, de quem se considerava seguidor em termos historiográficos 56. Homem de Melo, evitava até mesmo escrever sobre o período colonial. Quando teve que defini-lo,

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O Guaianá, São Paulo, n º 2, 1856. HOMEM de MELO, Francisco I. M.. Escritos Históricos e literários. Rio: Tipografia Quirino & Irmãos; 1868. pp V. 55 GUIMARÃES. Lúcia. “Debaixo da imediata proteção de sua majestade imperial: o Instituto Historico Geografico Brasileiro”. São Paulo, doutorado, Dep. História /USP; 1994. 56 Sobre a obra Jornal de Timom, de autoria de Lisboa, Homem de Melo considerava que “ do ponto de vista das instituições coloniais é o que possuímos de melhor e mais completo. É um trabalho jurídico da mais alta importância”. In HOMEM DE MELO, F. I. Estudos Históricos Brasileiros. São Paulo: tipografia 2 de dezembro; 1858. p. 142. Ver ainda JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. João Francisco Lisboa: jornalista e Historiador. São Paulo: Ática, 1977. 54

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apelou para a citação de Julio Frank que sintetiza a sua representação do período nos seguintes termos: “O tempo colonial no Brasil é uma noite profunda, em que o historiador tateia nas trevas, sem que venha alumiar-lhe a obscurecida senda a luz de um princípio, de uma idéia, que lhe sirva como farol neste vasto período de ignorância e embrutecimento. Aos olhos consternados do observador, que investiga o passado, desdobra-se apenas o melancólico espetáculo do homem curvado sob o peso do cego despotismo”57 Assim, um dos primeiros esboços de elaboração de um discurso regional paulista, calcado na história e de caráter descentralizador, buscou resgatar, não o espírito indômito do bandeirante, mas a memória recente de Feijó, alçado então a símbolo maior da luta pela autonomia paulista. Seus estudos históricos, divulgados em forma de artigos sobre Feijó e outros liberais paulistas da Regência, aliavam provincianismo paulista com defesa dos valores do liberalismo. O empenho em elaborar um discurso autonomista e anticentralizador calcado na história regional ainda aproximou de Homem de Melo uma figura que se encontrava no extremo contrário do espectro político. Comprovando que os opostos se atraem, o jovem liberal Homem de Melo trocou intensa correspondência com o católico ultra conservador Ricardo Gumbleton Daunt, natural da Irlanda e estabelecido como médico desde 1843 em Campinas. Partilhavam o entusiasmo pela história paulista e principalmente pela figura de Feijó, de quem Ricardo G. Daunt se orgulhava de ser aparentado por parte de sua mulher brasileira. O entusiasmo presente nas palavras de Ricardo Daunt ao se referir à iniciativa literária de Homem de Melo dá a dimensão da excepcionalidade do tratamento do tema regional paulista em pleno período da conciliação monárquica: “É tão raro achar entre pessoas dedicadas às letras um verdadeiro nacionalismo paulista e uma paixão para o estudo de nosso passado que quando essas qualidades se me apresentam assim combinadas gozo de um sentimento de

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Idem, Ibidem.

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ilimitado prazer e esqueço-me por um pouco do meu habitual descoroçoamento quanto ao futuro.”58 Mesmo que motivados por princípios opostos, ambos se encontravam na louvação de Feijó e na crítica à centralização imperial. Se Homem de Melo pode ser facilmente identificado como representante da tradição liberal brasileira, Ricardo Gumbleton Daunt desafia os historiadores a compreender a forma original como conciliava adesão ao Partido Conservador provincial e crítica à política de centralização59. Talvez a origem extra nacional de seu posicionamento político ajude a compreender o seu anticentralismo conservador. Ricardo Gumbleton Daunt pertencia a uma tradição de cultura política inexistente no Brasil do séc. XIX, explicada por sua origem social.60. Membro da nobreza irlandesa, ultracatólico, o legitimista jacobita Ricardo Gumbleton Daunt parece ser um típico representante do tradicionalismo romântico restitucionista61, marcado pela luta contra os avanços da modernidade liberal – daí seu conservadorismo - e pela identificação da fragmentação política do período feudal como o sistema político ideal; daí sua defesa da autonomia regional. A sua predileção pela descentralização que caracterizou o Antigo Regime em alguns países europeus ficou patente na crítica que teceu aos colegas conservadores brasileiros “que condenam o Provincianismo como perigoso à Monarquia e à unidade do Império

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Carta de Ricardo G. Daunt a Francisco Inácio M. Homem de Melo, 17 de junho de 1857. Apud ALANIZ, Ana Gicele Garcia. “Dr. Ricardo Gumbleton Daunt: o Homem, o médico, a cidade (Campinas 1843-1893)” São Paulo, Tese de doutorado, USP; 1999. Apêndice I p. 203. Todas as cartas citadas a seguir, exceto a retirada do arquivo do IHGB, se remetem a esta tese. 59 Em carta de 17 de julho de 1857 escreve que pretendia ser eleito para a Assembléia provincial para “mostrar que posso ser logicamente Monarquista – Conservador ( não desta ou daquela lei mas no sentido genuíno da palavra) – Aristocrata mesmo, sem por isso ser menos (...) dedicado à causa das liberdades provinciais e da descentralização”. 60 Nascido na Irlanda em 1818, provinha da união de dois ramos familiares, um de nobres irlandeses e o outro, também nobre, mas inglês e protestante. Apesar da predominância de protestantes na família, muito jovem ainda procurou afirmar a sua identidade irlandesa, tornado-se profundamente católico e anti-inglês. Este último aspecto fica claro na recusa obstinada de acompanhar vários de seus parentes à cerimônia de coroação da rainha Vitória, em 1838. O jovem Richard Gumbleton Daunt, assim como já haviam feito alguns de seus parentes, aderiu ainda ao grupo dos jacobitas, setor legitimista britânico que procurava recuperar a monarquia tradicional dos reis filocatólicos Jaime II e seu filho Jaime III, que haviam sido depostos do trono britânico pela “Revolução Gloriosa” em 1688. Em 1842 trocou o Reino Unido pela África do Sul. Aí perdeu em um naufrágio os poucos bens herdados que lhe sobravam, decidindo então partir para o Brasil, onde chega em 1843, estabelecendo-se na cidade de Campinas, na província de São Paulo. BOURROUL, Estevão L. O Dr. Ricardo Gumbleton Daunt. Ensaio Biográfico. São Paulo: Tipografia Espíndola, Siqueira e Cia.; 1900 61 Michel Löwie e Robert Sayre esboçando uma tipologia das correntes românticas, definem o romantismo restitucionista como “aquele que aspira à restituição – isto é, à restauração ou recriação desse passado” pré-

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esquecendo-se do forte espírito provincial que reinava nas várias províncias da França de Luís XIV e os Fueros das províncias de Espanha”. Por todas as formas procurava mostrar aos seus correligionários tupiniquins que se podia ser bom conservador e descentralizador ao mesmo tempo. Mas o seu paulistanismo consistia mais na defesa dos valores de uma sociedade tida como essencialmente tradicionalista do que propriamente uma adesão ao federalismo de cunho liberalizante. A sua indisposição com a centralização estava principalmente no caráter antitradicional e, num certo sentido, modernizante e homogeneizador62 que este processo assumia na prática63. Neste sentido, mais do que qualquer outra figura do sec. XIX brasileiro, Ricardo Gumbleton Daunt encarnou os valores do mais conservador e tradicionalista dos romantismos, sendo avesso ao progresso e à democracia como nenhum outro literato romântico brasileiro conseguiu ser. Em carta de 1851 a Varnhagen, então secretário do IHGB, Ricardo Daunt evidenciava seu apego à tradição: “É sobremaneira aflitivo a quem ama e respeita o passado o ver como de dia em dia vão apagando pela seifa da inexorável morte as memórias dos grandes acontecimentos de outra ora, tão poéticos e tão românticos, e que indicam um estado social tão diferente do atual. De 50 anos para cá que de tradições interessantíssimas caíram em um oblívio donde nunca mais sairão!!! O século XIX é especialmente inimigo às tradições!”64 Se o problema do séc. XIX era o desprezo da tradição e do passado, ele se agravava quando o próprio Estado se encarregava de incentivar esta má tendência da época. Era isso, a seu ver, o que fazia a monarquia brasileira com a política de centralização. O problema maior da centralização era a descaracterização dos tradicionais costumes paulistas por uma cultura cosmopolita importada da Corte. A seu ver, esses costumes paulistas eram mais condizentes com uma sociedade aristocrática e hierarquizada, regida pelos valores do mais capitalista. In LÖWIE, Michel & SAYRE. Revolta e Melancolia. O romantismo na contra mão da modernidade. Petrópolis RJ: Vozes; 1995. p. 94. 62 “Eu não concebo verdadeira grandeza de um povo sem um passado (...) e estremeço do progresso que só faz aplainar as saliências e as distintivas do caráter e dos costumes paulistanos que rapidamente se efetua e que alguns aplaudem como garantia da unidade do Império! No meu ver a uniformidade de pensamento – de costume, de gosto, de caráter – é o presságio da decadência de qualquer grande império(...)” In Carta de 4 de agosto de 1856. 63 Já Löwie definiu o romantismo como uma visão de mundo que encontra seu cerne na rejeição aos valores da modernidade capitalista. LÖWIE & SAYRE, Op. Cit. 64 Carta de Ricardo G. Daunt a F. ª de Varnhagen. Arquivo do IHGB. L177, D 68.

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rígido catolicismo Para Ricardo Daunt centralização, cosmopolitismo e idéias políticas estrangeiras se uniam para destruir os costumes aristocráticos e católicos que identificava na elite paulista: “Tenho por isso uma mui positiva birra com a tendência estrangeira de grande parte dos homens educados em nossas faculdades de Direito, que ás idéias centralizadoras unem uma insensata admiração para as instituições de outros países e outras raças querendo nos tratar como se São Paulo tivesse sido uma tábua rasa onde tudo esteve para principiar como qualquer colônia norteamericana. (...) Outrossim, um governo não pode felicitar país algum de cujas tradições e índole não tiver bebido a traços largos. Logo pois que se despreza a história Paulistana em qualquer de suas ramificações – logo que se quer assumir que nada há que distingue profundamente São Paulo da semi-estrangeira Rio de Janeiro – logo que se quer sustentar que São Paulo não tinha uma velha civilização – robusta e fértil – nem o governo poderá nos reger a contento nosso e nem a oposição poderá indicar o remédio.” Mas o que era exatamente esta “velha civilização” paulista a que se referia Ricardo G. Daunt? Qual o passado que como bom restitucionista pretendia restaurar? Diante de sua originalíssima posição política, a representação do passado colonial paulista que ele elaborou também não encontrou paralelos em nenhum outro autor. Idealizou o período colonial de São Paulo como uma época de ouro provincial, principalmente o séc. XVII, quando ocorreu a união ibérica e os paulistas se tornaram súditos dos Felipes da Espanha. Neste momento “parece que os paulistas se governam por si mesmos com ascendência dos Camargos e existia uma espécie de feudalismo muito favorável ao desenvolvimento de algumas grandes virtudes”65. Tratava-se da louvação de um período colonial paulista representado como formado por uma aristocracia de proprietários que gozava de uma autonomia (“se governam por si mesmos”) de natureza feudal e que encontrava nos jesuítas seus principais aliados e guias morais. Na contramão da historiografia indianista sobre São Paulo, representada por Machado de Oliveira e que estudaremos melhor no próximo capítulo, Daunt entendia colonos paulistas e jesuítas não como encarniçados inimigos, mas como ativos 65

Carta de 4 de agosto de 1856.

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colaboradores. Não demonizava os paulistas antigos, mas também não os louvava como “bandeirantes”, como heróis nacionais construtores do território. Eram antes vistos de passagem como senhores feudais, ao gosto do romantismo medievalista europeu, sem merecer longo tratamento. Como a maioria dos historiadores de sua época, o destaque ficava para os jesuítas. Estes difusores do cristianismo nos sertões paulista eram elevados à categoria de símbolo maior da grandeza existente no passado colonial provincial. Mas a sua louvação do jesuíta diferia daquela realizada por autores do IHGB, como Machado de Oliveira. Ao contrário destes, que sempre fizeram severas restrições ao poder teocrático dos inacianos, Daunt elogiava incondicionalmente a ordem, revelando a sua afinação com a nascente tendência ultramontana em São Paulo, conforme veremos. Na sua visão, os jesuítas foram os grandes responsáveis pela elevação moral e intelectual da aristocracia “feudal” paulista. Nos colégios jesuítas da capitania cultivava-se a mais sofisticada cultura do período, constituindo “um sistema que não custava cento e tantos contos ao Erário Público e imprimia nas inteligências que formava um impresso (sic) de patriotismo e heroísmo que atualmente custaríamos igualar”66. Mais do que tudo os jesuítas foram responsáveis por retirar São Paulo das trevas “em que convencionalmente se concorda em supor que São Paulo como o resto do Brasil jazia”. O resultado da ação jesuíta era dos melhores e evidenciava a superioridade do passado em relação ao presente: “São Paulo naquele tempo não era um país bárbaro: tinha uma civilização bela – sã – e favorável ao franco desenvolvimento das virtudes morais e sociais e que era ornada pela cultura da inteligência em um grau incrível mas que as tradições familiares nos atestam. Não foi uma civilização importada – enxertada – mas sim homogênea com o povo e filha da história deste.” Definitivamente Ricardo Gumbleton Daunt não era um homem afinado com o mundo moderno. Da mesma forma como os valores que identificava como característicos da paulistanidade não condiziam com os princípios liberais laicos do século do progresso. Assim, inteligência refinada, virtudes morais de um cristianismo rígido 67, espírito 66

Idem, ibidem. O autor exemplifica a rigidez moral herdada pelos fidalgos paulistas dos jesuítas na descrição de uma velha matrona, “virtuosa e heróica”, da província: “Terá V. Sia. ouvido falar da ilustre e nobilíssima Verônica Dias? Era uma das suas avós – ainda vivem terceiros netos dela -. Essa virtuosa e heróica Fidalga com suas próprias 67

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aristocrático de família e cultura autêntica, valores cultivados pela aristocracia européia do século XIX em seus devaneios romântico restauracionista, formavam o quadro que caracterizava para Ricardo Daunt a civilização tradicional paulista que procurava recuperar. A sua visão do passado paulista não se restringia, porém, à louvação das origens. Tão importante quanto a sua idealização do período colonial é a explicação para a sua supressão. Ricardo Daunt elabora, neste sentido, uma das pioneiras explicações para a Decadência de São Paulo, tema recorrente na historiografia regional posterior, principalmente na do séc. XX68. Para o autor, esta robusta e livre civilização paulista colonial – misto de feudalismo aristocrático com teocracia jesuíta – teria seu fim com a ação nefasta da Coroa portuguesa. O anti-herói da história paulista, representado como a causa da decadência de São Paulo, era o Marquês de Pombal, símbolo de um Estado centralizador que submete ao seu poder a Igreja e os potentados locais. Em carta a Homem de Melo, datada de 1856, Ricardo Daunt explica as causas do fim da grandeza atingida pelo paulista sob o governo dos Felipes da Espanha: “Todavia foi reservado ao Marquez de Pombal de conquistar São Paulo e acabrunhar por uma vez este grande povo. Esse homem cuja memória é ainda diariamente amaldiçoada no seio de muitas famílias em nossos matos achou os paulistas senhores de grande riqueza e possuindo em alto grau a instrução que a Itália – a Espanha e o Portugal podiam ministrar. Ele percebeu que a ruína das grandes famílias era indispensável para poder firmar-se a despótica autoridade Régia e para conseguir esta ruína deu alforria aos índios administrados, e , afim de secar as fontes de onde os paulistas se fortalecessem com sã erudição, desterrou os religiosos da Companhia de Jesus. Os efeitos destas medidas aparecem prontamente e foi então que o férreo jugo do regime colonial foi uma verdade em São Paulo.”69 Se Pombal, representante da “autoridade Regia” contrária às “grandes famílias”, desencadeou o processo de decadência paulista através da expulsão dos jesuítas e alforria

mãos estrangulou com uma toalha uma sua filha, só por que esta espiou na janela. Este fato ocorreu em São Paulo e ficou impune” In. Carta de 4 de outubro de 1857. 68 Conforme veremos mais adiante, no séc. XX o tema da Decadência Paulista, normalmente situada pelos autores na passagem do séc. XVII para o XVIII, foi tratado com destaque por Washington Luis no seu livro A Capitania de São Paulo. Governo de D. Rodrigo César de Meneses , de 1903 e também por Paulo Prado no Paulística, de 1925.

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dos escravos indígena - a qual, como bom escravocrata70, Ricardo Daunt muito lastimava este processo não foi completo e irreversível. Afinal “a mão do Marquês de Pombal não pôde com os Jesuítas arrancar a semente que deixaram no coração e na inteligência de seus discípulos! E assim a escravidão de São Paulo à metrópole devia ter um fim”71. Desta forma, a própria independência do Brasil, na sua versão, fora resultado da permanência do pouco de liberdade e grandeza de espírito que os paulistas haviam herdado dos jesuítas. Os grandes vultos políticos paulistas do séc. XIX tinham sua grandeza explicada pelo fato de ainda manterem os valores transmitidos pela educação jesuíta dos tempos coloniais. Daí o seu entusiasmo pelos Andradas, por Alvares Machado, Paula Souza e por Feijó; de quem ressaltou os traços aristocráticos e de tão fervoroso catolicismo que o levava à autoflagelação72. Na visão de Ricardo Daunt a província de São Paulo vivia um estado de decadência que precisava ser revertido. E esta reversão implicava na restauração deste passado heróico paulista baseado nos valores do catolicismo jesuíta e que correspondia a uma política de reforço do primado do sagrado e da autoridade da Igreja no seu presente, política esta representada pela corrente do ultramontanismo católico. A sua representação do passado provincial servia, assim, para legitimar seu empenho na causa ultramontana que começava então a se afirmar na província com a nomeação, em 1851, de D. Antônio Joaquim de Melo como bispo de São Paulo73. Procurando reverter a relação de “aliança subordinada” que a Igreja mantinha com o Estado monárquico por conta da vigência do regime do Padroado Régio, o ultramontanismo representou uma ala radical e fundamentalista do catolicismo oitocentista que lutou para que a autoridade do Papa prevalecesse sobre a do Imperador no tocante a assuntos religiosos. Assim, o romantismo restitucionista de Ricardo G. Daunt, quando adaptado ao contexto brasileiro de submissão da Igreja ao Estado, se traduzia em ferrenho

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Carta de 4 de agosto de 1856. Seu biógrafo e amigo Estevão Bourroul escreve que “era tido como um escravocrata da gema (...) Acompanhava a escola dos Martinho de Campos, Andrade Figueira e dos Cotegipe; preferia a ação lenta do tempo ao precipício da revolução” In. BOURROUL, Estevão L. Op. Cit.,1900. 71 Idem, Ibidem. 72 O Feijó de Ricardo G. Daunt – aristocrata e católico - não era o herói liberal federalista louvado por Homem de Melo e, já nos séc. XX, pelos republicanos paulistas. Ver Carta de 17 de julho de 1857. 73 WERNET. Augustin. A igreja paulista no séc. XIX: A reforma de D. Antônio Joaquim de Melo(185161). São Paulo: Ática; 1987. 70

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ultramontanismo.74 Chegou a pensar em fundar um partido católico voltado para sustentar, dentre outras bandeiras antiliberais, a causa da monarquia de direito divino. Apesar de radical defensor da autoridade e da ordem pública, chegou mesmo a manter, em alguns momentos, uma relação tensa e desafiadora com o Estado monárquico, como quando, em 1874, era juiz de paz e se recusou a executar os regulamento do recém criado registro civil em sua paróquia campineira75. Diante de sua peculiar cultura política Ricardo Gumbleton Daunt elaborou uma original reflexão sobre o passado paulista que correspondia a uma crítica à centralização imperial. O seu paulistanismo era baseado na louvação de uma época em que, livre da autoridade do Estado monárquico, uma aristocracia feudal paulista vivia imersa em um mundo regido pelos valores do jesuitismo o mais ortodoxo, até que o Estado régio, simbolizado na figura de Pombal, pôs tudo a perder. A louvação incondicional do jesuíta, presente em suas cartas, será mantida pela historiografia católica e ultramontana que se afirma nos últimos anos do século (João Mendes de Almeida, João Mendes Júnior e Eduardo Prado) e da qual podemos considerar Ricardo G. Daunt como iniciador. Mas essa interpretação não agiu no sentido de despertar o ardor regional de seus contemporâneos por que sua invenção do passado paulista assim como a crítica à centralização, ainda que explícita e direta, se deram no nível do espaço privado76, através da correspondência com Homem de Melo. Como suas idéias não vieram a público, este fato restringiu consideravelmente o seu alcance. Apesar desta manifestação de crítica à centralização e da elaboração de um discurso epistolar de reduzida circulação, prevaleceu no Segundo Reinadoo pouco investimento no tratamento sistemático do passado paulista. E mesmo quando este tratamento ocorreu, como nos casos de Homem de Melo e Ricardo Daunt ou mesmo no trabalho propriamente 74

Segundo Bourroul, foi por intervenção política de Ricardo Daunt junto ao governo imperial que D. Antônio Joaquim de Melo, o responsável pela reforma ultramontana na igreja paulista, foi indicado como bispo de São Paulo. Daunt conhecera D. Antônio em 1850 quando se muda para Itu e passa a conviver com os Padres do Patrocínio, grupo religioso do qual fazia parte o futuro bispo. BOURROUL, Op. Cit., 1900. 75 Em carta de 1879 ao seu correligionário e biógrafo Estevão Bourroul, Ricardo Daunt se orgulhava de ter sido “o único Juiz no Império que relutou contra esta medida que encerra os germens de todos os maus projetos dos maçons contra a igreja”, evidenciando sua sistemática oposição a qualquer tentativa de laicização do Estado brasileiro. BOURROUL. Op. Cit., 1900. p.61 76 Somente nos anos 1880, no contexto de acirramento da luta ultramontana contra os grupos mais radicais do republicanismo paulista, Ricardo Daunt torna pública a sua visão ultrajesuítica do passado paulista. Isto se dá através da publicação de artigos no jornal O Monitor Católico, redigido de 1880 a 1882 pelo também ultramontano Estevão Bourroul. Ver BOURROUL, Op. Cit, 1900. anexos.

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historiográfico de Machado de Oliveira, ele desdenhou a figura do paulista antigo conquistador de terras e preador de índios, louvada pelos historiadores do séc. XVIII. Para melhor compreender o motivo desta transformação do símbolo bandeirante, temos que nos voltar para a obra de Machado de Oliveira e sua peculiar inserção no ambiente intelectual do Rio de Janeiro. Na sua filiação ao grupo do nacionalismo indianista está a chave para a compreensão da desqualificação que o Segundo Reinado realizou contra a figura do antigo colono paulista.

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Capítulo 2. Machado de Oliveira no IHGB : paulistanismo indianista.

Como já disse anteriormente, a única obra propriamente historiográfica sobre o passado paulista produzida no apogeu do segundo reinado foi o livro Quadro Histórico da Província de São Paulo, escrito por Machado de Oliveira e publicado em 1864. A iniciativa para a elaboração do livro partiu da Assembléia Provincial, o órgão por natureza de representação dos interesses da elite paulista. A intenção era dotar as escolas da província de um compêndio histórico sobre o passado de São Paulo. Pensou-se então que a figura ideal para a empresa seria o Brigadeiro Machado de Oliveira, paulista da estirpe dos velhos liberais da Regência, e que não deixara de ter livre e bom trânsito em meio à burocracia imperial da Corte, o que lhe possibilitou desenvolver suas habilidades pessoais no terreno das letras históricas mediante sua admissão como sócio no IHGB, em 1840. Da mesma forma como havia escrito anteriormente uma geografia da província de São Paulo, Machado de Oliveira levou a termo a sua obra sobre o passado paulista. Apesar de defensor da autonomia das províncias, conforme nos informa em carta a Homem de Melo, Machado de Oliveira não imprimiu cunho federalista à sua interpretação do passado paulista. Tendo em vista a elaboração de uma obra de caráter oficial, em nenhum momento procurou transformar a história em arma política voltada à luta pela defesa da autonomia provincial. Em um momento como o da década de 1860, de arrefecimento dos embates políticos do passado, interessava à elite provincial evidenciar a sua fidelidade ao Império. Assim, o que transparece no Quadro Histórico é a transposição, para o plano do simbólico, da relação entre centro e província característico do Segundo Reinado. Neste sentido, esta obra historiográfica pode ser considerada o melhor representante do regionalismo monárquico paulista, ou seja, da forma como a elite paulista do período interpretava sua identidade mediante a definição de sua relação com o quadro geral da nação. Se, conforme afirma Dolhnikoff, a centralização não significou a negação completa da esfera política provincial, mas antes um reconhecimento profundamente regulado que procurava não negar mas submeter e cooptar as instâncias regionais, também no nível do simbólico a centralização não significou a negação do tratamento do tema regional, mas a sua redefinição em termos de submissão ao padrão identitário nacional.

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O padrão monárquico de tratamento da relação nacional / provincial foi definido, no terreno historiográfico, a partir do IHGB, instituição cuja criação, em 1838, vem sendo analisada como a correspondente, no campo da cultura, do processo de centralização política desencadeado no final da década de 183077 e foi marcado por dois movimentos paralelos: a) um de elaboração de uma identidade nacional que deveria se sobrepor às diversas fidelidades provinciais herdadas do período colonial (analisadas no 1 º tópico deste capítulo), e outro, b) de redefinição destas mesmas identidades regionais no sentido, não de sua negação, mas de sua adequação de forma subalterna, à identidade nacional em processo de criação. Em termos historiográficos, esse duplo movimento implicou no projeto de elaboração de uma história una da nação e na escrita de histórias provinciais submetidas ao padrão de nacionalidade monárquico. Machado de Oliveira participou destas duas etapas: ajudou, como sócio atuante do IHGB entre as décadas de 1840 a 1860 a elaborar uma história nacional indianista e, com o Quadro Histórico, escreveu uma história provincial que em nada negava o quadro da história nacional que havia ajudado anteriormente a edificar. Para melhor compreender o sentido político da historiografia de Machado de Oliveira, passo a estudar o debate realizado no interior do IHGB, uma vez que mais do que o próprio ambiente da elite paulista, o Instituto acabou sendo o instituição social a partir da qual foi elaborado o pensamento historiográfico do autor,explicitado na referida obra sendo o ambiente centralizador e idianista da Corte o lugar social 78 a partir do qual o autor elaborou sua visão da história de São Paulo. Mais especificamente procuro analisar, a seguir, as relações do IHGB e de sua historiografia com o processo de centralização política então em curso, que influenciaram as interpretações do autor paulista.

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Manuel Salgado Guimarães e Arno Wehling chamam a atenção para as profundas relações do projeto historiográfico do IHGB com o processo de centralização política. GUIMARÃES, Manuel S. “Nação e civilização nos trópicos: O IHGB e o projeto de uma história nacional”. In Estudos Históricos, Rio de Janeiro, FGV, n º1, 1989. e WEHLING, Arno. Estado, História e Memória: Varnhagen e a construção da identidade nacional.Rio de Janeiro: ed. Nova Fronteira; 1999. Lúcia Guimarães aprofunda o tratamento da questão, mostrando que o grupo majoritário entre os fundadores do IHGB estava empenhado na centralização, mas não correspondiam exatamente ao grupo dos saquaremas, sendo antes seus adversários da facção áulica, também centralizadora. GUIMARÃES, Lúcia P. “Debaixo da imediata proteção de sua majestade imperial: o Instituto Historico Geografico Brasileiro”. São Paulo, doutorado, Dep. História /USP; 1994. 78 CERTEAU, Michel de . A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2000.

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2. 1. Historiografia e centralização : História Una x Monografia Regionais.

No contexto do processo de interiorização da metrópole, detonado com a mudança da Corte joanina em 1808, o Rio de Janeiro transformava-se na cabeça e centro da América Portuguesa e depois do Brasil, rompendo portanto, com a geografia de poder fragmentária predominante no período colonial. Desenhou-se um contorno hierarquizado, no qual o Rio de Janeiro aparecia no vértice da pirâmide do poder, imediatamente sustentado pelas demais províncias do centro sul e impondo às outras partes, principalmente as do Norte, uma posição entendida pelos próprios contemporâneos como de submissão e dependência79. A criação, em 1838, do IHGB na Corte refletia este papel central, tanto político quanto cultural, que a cidade do Rio de Janeiro assumiu com a independência e que era reforçado pela política de centralização. O caráter centralizador do IHGB, já ressaltado pela historiografia, não estava presente somente no grupo de políticos que o compunha, uma articulação de burocratas ilustrados, politicamente alinhados com a corrente centralizadora da facção áulica. Também estava presente, tanto na sua forma de organização institucional, quanto na natureza dos trabalhos que produziu. Estes dois últimos meios de centralização transparecem nos dois principais objetivos da instituição, definidos no momento de sua criação: levantar e concentrar nos seus arquivos na Corte os principais documentos e fontes referentes à história do país e a elaboração de uma história una, que transcendesse a tendência da historiografia colonial de produzir monografias provinciais. O IHGB, ao propor como seu objetivo a concentração de documentação 80, definia um padrão de relação hierarquizada entre o centro carioca e as províncias. Procurava definir um movimento convergente que atrelasse à sua sede no Rio de Janeiro os diversos arquivos provinciais e municipais. Assim, quando estabeleceu nos seus estatutos “ramificar-se” pelas províncias, não pensava em criar institutos provinciais paralelos e coordenados nos diversos

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DIAS, Maria Odila Leite. “Interiorização da metrópole (1808-1853)” In MOTA, Carlos Guilherme.(Ed.) 1822: dimensões. São Paulo: Ed.Perspectiva; 1986. 80 O Cônego Januário, na proposta para a criação do IHGB, escreve: “(...) conhecendo a falta de um Instituto Histórico e Geográfico nesta corte, que principalmente se ocupe em centralizar imensos documentos preciosos, ora espalhados pelas províncias, e que podem servir à história e geografia do Império(...) pedem a sua pronta instalação(...)” ( grifos meus) In. RIHGB, v. 1, 1939, p. 6.

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pontos do Império, movimento que somente toma força após a proclamação da República81. Muito pelo contrário, pretendia reforçar o poder do centro, mediante a requisição para que as instâncias regionais enviassem documentação histórica para o arquivo do Instituto. Ao mesmo tempo, o Instituto organizou expedições de reconhecimento de arquivos e coleta de documentos nas províncias por meio de alguns membros especialmente enviados. Machado de Oliveira, por exemplo, foi responsável pelo levantamento de documentação nos arquivos paulistas, assim como o poeta Gonçalves Dias foi enviado com a mesma incumbência para o Maranhão. O IHGB procurou criar um fluxo de informações, documentação e mesmo de intelectuais, das provinciais para a Corte, estabelecendo o correspondente cultural das “peregrinações” que Benedict Anderson considera tão importantes para a consolidação dos Estados Nacionais82. Tornava-se assim um espaço privilegiado de sociabilização e nacionalização das elites regionais que, através dos seus intelectuais, - dos quais Machado de Oliveira foi um dos principais exemplos - eram chamadas a fazer parte do esforço, controlado pelos intelectuais ligado à burocracia estatal da Corte, de criar uma identidade nacional e uma história una. Uma vez reunidos no Rio de Janeiro, intelectuais provinciais participariam da elaboração de um discurso identitário unificador que seria difundido do Centro para toda a extensão do império mediante a divulgação da Revista do IHGB, refazendo o caminho contrário até então trilhado, indo agora da Corte às províncias. Também esta historiografia que procuravam construir, e que constituía a principal meta da instituição, vinha marcada de forte caráter centralizador. Ao pretender criar uma história una do Brasil o IHGB rompia com a tradição prevalecente no período colonial de elaboração de monografias regionais, como as histórias de capitanias ou mesmo as histórias de ordens religiosas. O Instituto buscava transpor, para o terreno simbólico, a unidade que o Estado monárquico e as elites a ele ligadas estavam em vias de consolidar. Contudo, o empenho em criar esta história unificada passava, necessariamente, pelo equacionamento da questão do espaço que cabia ao tratamento das histórias provinciais, questão

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Durante o período monárquico somente Ceará e Pernambuco criaram Institutos Históricos próprios, sendo os demais obras das primeiras décadas republicanas. 82 ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática; 1989. p. 64.

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fundamental para se compreender a possibilidade de tratamento de uma história paulista durante o período monárquico. Logo nas primeiras sessões do Instituto levantou-se um debate sobre a forma como esta história nacional seria escrita. Duas posições se definiram. De um lado os defensores da elaboração de uma História una do Brasil, também chamada de “História Filosófica do Brasil”, referindo-se às grandes sínteses realizadas pela filosofia da história iluminista. Os representantes desta vertente eram o cônego Januário da Cunha Barbosa, Pedro de Alcântara Bellegarde e, mais adiante, nos anos 1850, Francisco A. de Varnhagen. De outro lado, autores que defendiam a impossibilidade de escrever a história geral e unificada do Brasil pela falta de estudos específicos. Destes, se destacaram o visconde de São Leopoldo e o marechal Cunha Mattos, defendendo este último que “por hora não estamos habilitados a escrever a história geral do império do Brasil por nos faltarem muitos elementos provinciais para isso necessários”83. Uma saída conciliatória foi encontrada pelo naturalista bávaro Carl Friedrich von Martius na sua premiada monografia “Como se deve escrever a História do Brasil”, de 1844. A saída seria um caminho de meio termo, que considerasse a cor local mas não caísse no exclusivismo provincial. Propunha dar destaque àquilo que fosse verdadeiramente nacional, que existisse em comum entre todas as províncias, e depois traçar o particular, entendido como um neutro “tom local” que em nada questionasse a unidade do quadro. Para Martius a consideração do particular somente era pensada como complemento à valorização da unidade da História do país, que deveria ser o objetivo maior do historiador. Afinal, a História do Brasil a ser escrita tinha um propósito eminentemente político, sentido este revelado em trecho paradigmático: “Só agora principia o Brasil a sentir-se como um todo unido. Ainda reinam muitos preconceitos entre as diversas províncias; estes devem ser aniquilados por meio de uma instrução judiciosa; cada uma das partes do império deve tornar-se cara uma às outras; (...) deve o historiador patriótico aproveitar toda e qualquer ocasião a fim de mostrar que todas as províncias do Império por lei orgânica se pertencem mutuamente (...). Justamente na vasta extensão do país, na variedade de

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MATTOS, Raimundo José da Cunha. “Dissertação cerca do sistema de escrever a história antiga e moderna do Império do Brasil”. In RIHGB, v. 26, 1863. pp 122.

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seus produtos, ao mesmo tempo que os seus habitantes têm a mesma origem, o mesmo fundo histórico, e as mesmas esperanças para um futuro lisonjeiro, acha-se fundado o poder e grandeza do país. Nunca esqueça, pois, o historiador do Brasil, que para prestar um verdadeiro serviço à sua pátria deverá escrever como autor Monárquico-Constitucional, como unitário no mais puro sentido da palavra.”84 (grifos meus). Assim, a valorização simbólica da unidade e da existência de uma única história para todas as províncias deveria ser o compromisso do historiador monarquista. No contexto da consolidação do segundo reinado, a historiografia não era somente um reflexo do processo de centralização. Ela servia como força de ação no sentido de consolidar o processo de costura da unidade nacional pela introjeção - nas mentes e corações dos súditos-cidadãos, principalmente os das elites regionais - de uma identidade nacional calcada na consciência de pertencimento a um passado comum. Isso, porém, não chegava a implicar na negação do provincial. Por mais politicamente centralizada que fosse a Monarquia, no terreno do simbólico e da identidade nacional ela procurou antes enquadrar do que simplesmente negar o tratamento da dimensão regional. Seguia a tendência européia apresentada por Hobsbawn para quem “onde a supremacia da nacionalidade estatal (...) não estava em questão, a nação maior poderia acolher e patrocinar (...) as tradições históricas e folclóricas das comunidades menores que continha, ao menos para provar o espetro de cores de sua palheta macronacional”85. Havia, desta forma, espaço para o tratamento da história de São Paulo no período monárquico e dentro do próprio IHGB, agente maior da centralização cultural, conforme afirma Manuel Salgado Guimarães ao ressaltar o espaço reservado às histórias regionais na revista do Instituto86. E, de fato, podemos notar algumas tentativas neste sentido, levadas a efeito por parte de paulistas natos: o visconde de São Leopoldo e Machado de Oliveira. São Leopoldo morreu antes de finalizar sua “História da Província de São Paulo”, de sorte que

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MARTIUS, K. F. von. “Como se deve escrever a história do Brasil” In Idem, O estado do direito entre os autóctones do Brasil. Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/ Edusp ; 1980; pp 106. 85 HOBSBAWN , Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio: Paz e Terra; 1990. p. 47. 86 GUIMARÃES, Manuel Salgado. Op. Cit. 1989.

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desta obra nada conhecemos87. E a primeira demonstração de interesse em escrever uma história de São Paulo, por parte de Machado de Oliveira, apareceu em 1847, também no interior do IHGB88. Mas enquanto foi membro do Instituto, Machado de Oliveira não escreveu a história da província projetada, tendo se dedicado preferencialmente à elaboração da história nacional de cunho indianista. Somente quando solicitado pela Assembléia Provincial pôde realizar o seu antigo intento historiográfico, materializado no Quadro Histórico. A identidade monárquica paulista, evidenciada no Quadro Histórico, nasceu submetida ao padrão de identidade nacional definido pelos intelectuais da Corte. E este primeiro padrão de identidade estava lastreada no indianismo, no movimento de valorização do indígena como símbolo nacional. Para compreender como Machado de Oliveira articulou um discurso identitário paulista aos moldes do indianismo estudaremos, sua participação no ambiente cultural da Corte para depois estudarmos a transposição da identidade nacional aí formulada para o caso paulista, procurando compreender as relações entre suas praticas políticas efetivas e as representações do passado que elabora.

2.2. Machado de Oliveira no IHGB: política indigenista e historiografia indianista.

No contexto de afirmação do Estado monárquico centralizado, o IHGB foi uma das principais instituições que conferiam destaque ao Rio de Janeiro como lugar privilegiado de socialização da elite letrada do período imperial. Visando ser uma instituição dedicada primordialmente à elaboração da historiografia que fazia falta à nação recém independente, ele se tornou, na expressão do literato áulico Araújo Porto Alegre, a “verdadeira Academia

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Em carta ao IHGB de 1847, São Leopoldo escrevia: “(...) continuo na minha favorita tarefa da História da Província de São Paulo, minha pátria; para aproveitar os numerosos e escolhidos manuscritos que sobre ela possuo, e quando a morte me atalhe os passos, ao menos deixo Coleção de memórias para servirem a futuros historiadores.” Na sessão seguinte, a revista do Instituto informava o falecimento de São Leopoldo. Ver RIHGB, v. 9, 1847, p. 429. 88 Em carta de 1847 dirigida ao primeiro secretário do IHGB, Machado de Oliveira manifestava seu intuito de “colher fatos históricos, que prestem à história desta [São Paulo] Província” e para isso solicitava envio de informações estatísticas levantadas pelo também paulista e historiador Visconde de São Leopoldo. Carta de J. J. Machado de Oliveira ao IHGB. Arquivo do IHGB, L 310 D 4.

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brasileira”89. Foi não somente a instituição que lançou as bases do campo historiográfico no Brasil como também acabou se tornando a principal instituição de saber de todo o período imperial. Sua participação na criação de uma cultura letrada nacional e de uma identidade nacional – principalmente a indianista - foi muito importante. Como bem analisou Manuel Salgado Guimarães, o IHGB veio marcado pelo modelo das academias letradas ilustradas, típicos do séc. XVII e XVIII, nas quais o critério principal para admissão de sócios era baseado nas relações pessoais, o que acabou conferindo a elas um caráter fortemente elitista90. A intelectualidade reunida no IHGB foi composta por dois grupos principais: burocratas ilustrados e literatos românticos, que também acabaram definindo o perfil do historiador brasileiro do segundo e terceiro quartel do séc. XIX. Como demonstra acurado e minucioso trabalho de Paula Porta Fernandes91, os fundadores do Instituto, em sua maioria, eram políticos e burocratas herdeiros do pensamento e do projeto de Império do reformismo ilustrado ibérico92. Foram ainda líderes de destaque do movimento da independência e desempenharam papel importante no ambiente político do Primeiro Reinado e da Regência. Ao longo do Segundo Reinado, os principais membros do IHGB seriam gente próxima ao poder constituído, vários deles militares ou diplomatas. Eram, na sua grande maioria, “funcionários do Estado”, comprometidos com a construção da ordem centralizada e a sustentação da monarquia constitucional. Este corpo de burocratas ilustrados contava ainda com vários membros das elites regionais incorporados ao grupo, que atuavam como ponte entre os interesses

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PORTO ALEGRE, Manuel Araújo. Correspondência com Paulo Barbosa da Silva. Rio: Academia Brasileira de Letras; 1991. 90

GUIMARÃES, Manuel Salgado. Op. Cit., 1989. FERNANDES, Paula Porta. “ Elites dirigentes e projeto nacional: a formação de um corpo de funcionários do Estado no Brasil”. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000. 92 Sobre o reformismo ilustrado ibérico ver NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo o no Brasil”. São Paulo: 2000, tese doutorado USP. Cap. 3 e 4.; DIAS, Maria Odila Leite. “Aspectos da Ilustração brasileira” Rio: Imprensa Nacional; 1968 (separata da RIHGB 278); CÂNDIDO, Antônio. “A nossa aufklärung” In Formação da Literatura no Brasil. Livro I. 93- Os burocratas ilustrados eram figuras como a dos idealizadores do Instituto cônego Januário da Cunha Barbosa e general Cunha Mattos, além do Visconde de São Leopoldo, Aureliano Coutinho, Pedro de Alcântara Bellegarde, Conrado Jacob Niemeyer, Duarte da Ponte Ribeiro e Francisco Adolfo de Varnhagen, dentre vários outros. 91

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provinciais e o grupo de poder da Corte, sendo este o caso de Machado de Oliveira, admitido ao IHGB em 184093. O outro grupo era formado pelos Literatos românticos. Na sua maioria eram mais jovens do que os burocratas ilustrados fundadores, estes últimos donos de consolidadas carreiras na “Pública Administração”. Seguindo os passos do espiritualismo eclético dos doctrinaires94 franceses como Royer Collard, Cousin, Jouffroy e do catolicismo romântico conservador de Chateaubriand, os literatos românticos defendiam um programa político cultural de negação da filosofia do séc. XVIII nos seus aspectos materialistas e utilitaristas 95

. Baseados no romantismo de caráter espiritualista, identificavam a religião como o cerne

da civilização e condição para a liberdade política e a paz do Império, conforme fica explícito no título de um estudo traduzido por Januário da Cunha Barbosa e que poderia ser entendido como síntese do programa do grupo: “A Religião é o mais sólido fundamento da prosperidade do Estado”96. Em termos práticos, defendiam a difusão de uma cultura da ordem, que sob a bandeira do “progresso moral”, procurava reforçar os valores religiosos e cristãos em todas as camadas sociais, inclusive as classes mais baixas do povo, setor visto, principalmente nos anos 1830 e 40, como turbulento e ameaçador. Substituindo assim, a cultura de intensa mobilização política, característica do período regencial, por um

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Sobre os doctrinaires e o ambiente cultural francês no qual se formaram os primeiros românticos brasileiros ver THEIS, Laurent. “Guizot et les institutions de mémoire”. In NORA, Pierre (Dir.). Les Lieux de la Mémoire. La Nation. Paris: Gallimard; 1986 e CROSSLEY, Ceri. French Historians and Romanticism. London, New York: Routledge; 1993. 95 O caráter espiritualista que aqui considero a base do pensamento dos românticos do Império, assim como o sentido político do movimento, foi definido de forma exemplar no texto de Gonçalves de Magalhães, espécie de líder do grupo – intitulado “Filosofia da Religião. Sua relação com a moral e sua missão social” publicado no n º 2 da Revista Niterói de 1837. Ver ainda BARROS, Roque Spencer Maciel de. Significação educativa do romantismo no Brasil: Gonçalves de Magalhães. São Paulo: Edusp, 1973. A idéia de base dos nossos românticos - de que a liberdade somente poderia ser baseada em uma moral e esta seria essencialmente cristã - remonta a Chateaubriand. A posição política deste autor, assim como as semelhanças com os doctrinaires, são tratadas, a despeito do conservadorismo do autor, em CLEMENT, Paul. “Chateaubriand Politique”. In http://194.254.135.72/chateaubriand/cadre.htm ( consultado em abril de 2003) 96 Figura fundamental do período, Januário da Cunha Barbosa, por transitar constantemente entre o universo político e o literário, foi o elo que unia o grupo dos burocratas ilustrados aos literatos românticos. Vários são os artigos de sua lavra, ou por ele traduzidos, que apareceram nas publicações dos românticos, como a Minerva Brasiliense. Além do citado, publicado no Vol 1 do jornal citado, ver: Biblioteca Pública (vol.1, 1843); Trecho do discurso de M. Mennechet lido no congresso histórico de Paris no ano de 1843 enviado por J. da C. B.( vol 1, 1843); Influência do espiritualismo sobre o gênio literário composto em francês por Afonse Mazure e traduzido por J. da C. B.(vol. 1 , 1843) ; Importância de uma boa educação(vol. 1, 1843).

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espiritualismo pacificador, marcariam a cultura política do segundo reinado por um forte traço católico e conservador. Neste grupo, podem ser classificados Gonçalves de Magalhães, Manuel Araújo Porto Alegre, Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo, Joaquim Norberto Sousa e Silva, Cônego Fernandes Pinheiros, dentre outros. Burocratas ilustrados, juntamente com literatos românticos, formavam uma espécie de intelectualidade imperial, um grupo de intelectuais orgânicos da monarquia brasileira, diretamente vinculados ao Imperador e ao Estado Monárquico, de quem recebiam apoio político e financeiro para suas empreitadas culturais. Por conta da composição de seus quadros, o IHGB foi profundamente marcado pela proximidade com os problemas de Estado. Assumiu assim uma dupla natureza, uma vez que visava responder tanto a uma finalidade simbólica - a construção da identidade nacional por intermédio de uma história nacional – quanto uma função prática, na medida em que acabou sendo um fórum de reflexão da elite localizada no Estado Imperial. O IHGB foi muito mais do que um grupo de letrados e eruditos, possuindo um caráter pragmático voltado à elaboração de um conhecimento utilitário para servir de subsídio às políticas aplicadas pelo Estado monárquico. Este caráter utilitário estava em perfeita continuidade, aliás, com a concepção do trabalho intelectual característica da ilustração ibérica, conforme analisada por Maria Odila Leite Dias97. Neste contexto, onde prática política efetiva e elaboração simbólica se misturavam formando um todo de difícil separação, podemos destacar como programa cultural do IHGB o tratamento de pelo menos três temáticas principais: a questão Indígena, a questão das fronteiras e os atos do governo de D. Pedro II. As questões correspondiam ao tratamento de três aspectos centrais para a construção de todo Estado nacional: respectivamente, o da formação do povo-nação, o da constituição do território nacional e, por fim, o da legitimação do sistema político vigente, no caso a Monarquia Constitucional. Assim, além de ser o lugar privilegiado de definição do “Corpo da Pátria”, ou seja, de um imaginário geográfico sobre o território nacional, conforme apontou Demétrio Magnoli 98, o IHGB também foi palco para a definição da “Alma da Pátria”, da identidade nacional vista

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DIAS, Maria Odila Leite. O´p. Cit. 1968. MAGNOLI, Demétrio. O Corpo da Pátria. Imaginação Geográfica e política externa no Brasil (18081912). São Paulo: Ed. Unesp/ Moderna; 1997. 98

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como intimamente ligada ao elemento indígena, e da construção da imagem do “Pai da Pátria”, do Monarca que, por aclamação de seu povo, encarnava a soberania nacional. Concentrarei meu interesse no projeto do IHGB de uma política indigenista e na elaboração da historiografia indianista que lhe é correlata, uma vez que foi neste debate que Machado de Oliveira se inseriu com destaque e foi este o pano de fundo da elaboração da visão monárquica do passado paulista. Tomo o indianismo do séc. XIX como um fenômeno muito mais amplo e complexo do que a já por si importante corrente literária nacionalista. Pesquisas atuais, dedicadas em compreender o indígena como um agente ainda muito presente no cenário brasileiro do séc. XIX, têm chamado a atenção para os diversos laços que unem as representações simbólicas a respeito do indígena e a definição de uma política indigenista do Império 99. Baseado nestas pesquisas, procuro entender o indianismo como um fenômeno amplo, dotado de três dimensões principais: uma política indigenista, uma etno-historiografia indianista e, por fim, o mais conhecido indianismo literário. Acredito que para a melhor compreensão do indianismo imperial e da forte articulação entre estas esferas diferentes é fundamental trazer para primeiro plano os debates realizados no interior do IHGB, o que parece ter sido desprezado pela maioria das análises. Pela sua dupla natureza, prática e simbólica, e pela composição de seus membros ativos, burocratas e literatos, o IHGB desempenhou papel preponderante na elaboração de uma política indigenista e de um padrão de identidade nacional indianista, calcado em uma etno-historiografia também indianista. O Instituto Histórico foi a instituição que aproximou e articulou burocratas, políticos, historiadores e poetas empenhados em incorporar simbólica e concretamente o indígena ao Estado nacional brasileiro.

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A pesquisa que parece ter aberto um novo campo foi a de CUNHA, Manuela Carneiro da. “Política indigenista no séc. XIX” In CUNHA (org) História dos índios no Brasil. SP: Cia. Das Letras; Secretaria Municipal de Cultura; 1992. A tentativa de relacionar os três níveis da literatura, da historiografia e da política indigenista foi realizada pioneiramente por PUNTONI, Pedro. “O sr. Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira” In JANKSÓ, István (org.) Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo : Hucitec, 2003. e PUNTONI, P. “A Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães. A Poética da História e a Historiografia do Império.” In Novos Estudos CEBRAP, n º 45, 1996 ; ou ainda, PARAÍSO, Maria H. Barqueiro. “Imigrantes europeus e índios: duas soluções para a questão da substituição da mão-de-obra escrava africana no Brasil da década de 1850”. In www.ufba.br/~inquice/01paraiso.html. (acessado em maio 2003) Na área dos estudos literários, perspectiva semelhante vem sendo adotada por TREECE, David. “Exiles, Allies, Rebels: Brazil’s indianist movement, Indigenist Politics, and the Imperial Nation-State.” In http://www.kcl.ac.uk/pobrst/davidtreece.pdf (acessado em jun. 2003)

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Neste sentido, a inserção de Machado de Oliveira no IHGB reforça a visão integrada do indianismo uma vez que ele procurou transitar pelas três esferas citadas acima. Empenhou-se na definição e aplicação de uma política indigenista, tendo sido nomeado, em 1846, Diretor geral dos índios da província de São Paulo. Foi ainda um dos expoentes da historiografia indianista elaborada no IHGB, publicando vários artigos em sua revista. E, em 1847, quando assumia a direção dos aldeamentos da província de São Paulo, manifestou desejo de escrever uma obra literária no estilo romântico sobre o papel pacificador de Nóbrega e Anchieta no episódio da “Confederação dos Tamoios”. Esta obra, que antecederia de quase uma década a epopéia sobre o mesmo tema, escrita pelo também ativo membro do IHGB Gonçalves de Magalhães, não chegou a ser composta por Machado de Oliveira que, assim, restringiu sua atuação efetiva aos níveis da política indigenista e da etno-historiografia indianista, dimensões sobre as quais centrarei o presente estudo, não abordando a dimensão literária do indianismo.

2.2. a. A política indigenista no IHGB: povo homogêneo e antiescravismo.

A política indigenista forjada no interior do IHGB estava relacionada a um investimento mais amplo do Estado monárquico em definir uma política populacional que implicava na criação do povo brasileiro, então sentido como somente esboçado. E a compreensão que tinham de “povo” muito pouco tinha a ver com o critério liberal, oriundo das revoluções de final do séc.XVIII, que o entendia como o conjunto dos cidadãos, das pessoas dotadas de direitos políticos. Para os nossos intelectuais imperiais reunidos no IHGB, a que pese a polissemia do termo, “povo” era, na maioria da vezes, empregado como sinônimo de “população”, de conjunto de pessoas livres que serviriam como importante força de trabalho. Assim, a discussão sobre criação de um povo brasileiro mais do que um problema de política e cidadania, uma vez que haviam vedado a participação aos não proprietários, era entendido no interior do IHGB como uma questão econômica de fornecimento de mão-de-obra. E, de fato, a questão da mão-de-obra era um dos principais entraves sentidos pela elite política brasileira dos anos 1830 e 1840 no seu empenho em criar um Estado nacional autônomo e independente. A elite da geração que fez a Independência e lançou as bases do

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Estado monárquico brasileiro, exatamente os mesmos homens que em 1838 fundaram o IHGB, se viam diante do dilema marcado pela necessidade de manter um comércio transcontinental de escravos que garantia o sucesso de sua economia (ainda mais dependente do tráfico após o surto do café nos anos 1830) diante de uma cada vez mais agressiva pressão inglesa pela sua supressão. Coagido, o recém criado governo brasileiro, que já proibira formalmente o tráfico em 1831, ao longo das duas décadas seguintes viu sua soberania ser fortemente ameaçada100 pelas atitudes de uma marinha britânica que, nas suas ações de apreensão de tumbeiros não respeitava a inviolabilidade do território brasileiro, chegando por fim a efetivamente suprimir em 1850 o tráfico de escravos. Mas para compreender o debate sobre povo-nação e sua relação com a questão da força de trabalho no contexto de criação do IHGB, tão importante quanto considerar a pressão externa britânica é levar em conta a concepção que as próprias elites nacionais tinham do papel da escravidão na construção da nacionalidade. István Janksó e João Paulo Pimenta mostram como o primeiro esboço de uma identidade nacional brasileira, emergente na década de 1820, vinha calcado no reconhecimento da escravidão (e de uma escravidão que procuravam então manter a qualquer custo), como traço distintivo dos luso-americanos, que então começavam a se entender como “brasileiros”. Ao mesmo tempo, este traço específico representado pela escravidão era marcado por um sentido negativo, na medida em que era visto como um “cancro”, um “corpo estranho”, inassimilável e nocivo à nação brasileira que se pretendia edificar101. Para as elites que participaram do processo de independência, pairava sobre a nação o espectro do “haitianismo”, da grande revolta escrava ocorrida na ilha antilhana e que ameaçava a “paz social”102. A escravidão africana, ao mesmo tempo que era a base da economia e a força que explicava a adoção da forma monárquico constitucional103, também era vista como corpo inassimilável e perigoso, um 100

A historiografia que vê a ameaça à soberania nacional ocasionada pela pressão britânica uma das explicações para a abolição do tráfico, ver MATTOS, Ilmar. Op. Cit. e RODRIGUES, Jaime. “O Infame Comércio. Propostas e experiências no final do Tráfico de Africanos para o Brasil (1800-1850)”. Dissertação de mestrado. Campinas: UNICAMP; 1994. 101 JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo. “Peças de um mosaico, ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira.” Principalmente p. 168 a 174. 102 RODRIGUES, Jaime, op. cit. e para o caso do antiescravismo dos ilustrados, MAXWELL, Kenneth. “A geração de 1790 e a idéia de império luso brasileiro”. In Chocolate, piratas e outros malandros. RJ: Paz e Terra; 1999. 103 ALENCASTRO, Luis Felipe de. “O fardo dos bacharéis”. In Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n º 19, dezembro 1987.

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inimigo interno que ameaçava a ordem social mas cujo tráfico o Estado deveria procurar manter o mais tempo possível até que se encontrasse outra alternativa viável de mão-deobra. Todos estes elementos dispersos – criação de um povo, perigo representado pela escravidão negra, busca de alternativa de força de trabalho – foram discutidos e sistematizados por representantes do reformismo ilustrado luso brasileiro dos primeiros anos do séc. XIX: políticos e intelectuais como José da Silva Lisboa (visconde de Cairú), José Bonifácio de Andrada e Silva e José Severiano Maciel da Costa, entre outros104. Dentre todos, José Bonifácio apresentou a solução que seria posteriormente adotada pelo IHGB e que serviria de parâmetro para a política indigenista do Império, conforme assinalou Manuela Carneiro da Cunha105. No contexto da consolidação da independência, durante as discussões da constituinte de 1823, Bonifácio lançou os termos do debate indianista, mantidos ao longo do séc. XIX. Definiu como objetivo maior a criação do povo brasileiro unificado, mediante a supressão da heterogeneidade física e social representada pela existência de dois grandes corpos estranhos, inassimiláveis ao todo nacional que se pretendia consolidar: os escravos negros e os povos indígenas. Dos dois, o ilustrado Bonifácio ressaltava a negatividade do escravo africano, visto como grande ameaça à ordem social, à moral pública e privada e ao avanço da indústria agrícola. Bonifácio era marcado por forte antiescravismo e também, o que era raro na época, mesmo entre burocratas ilustrados, por uma intenção abolicionista que nunca conseguiu ver concretizada. Como solução para o problema da criação de um povo homogêneo e de fornecimento de um contingente de trabalhadores, apontava para a necessidade de abolir o mais rápido possível o tráfico de africanos, o que não foi realizado, e substituir o trabalho do escravo negro pelo trabalho do indígena, que deveria ser incorporado à sociedade brasileira como força de trabalho106. Assim, Bonifácio resolvia o problema da existência de

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ROCHA, Antônio Penalves. “Idéias antiescravistas da Ilustração na sociedade escravista brasileira.” In Revista Brasileira de História, São Paulo, v.20. n º 39, 2000. 105 CUNHA, Manuela, Op. Cit e “Pensar os índios: apontamentos sobre José Bonifácio” In Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense; 1987. 106 O projeto de José Bonifácio para a formação de um povo homogêneo pela supressão da escravidão negra e incorporação indígena está sistematizado nos dois documentos complementares que apresentou à constituinte de 1823 a “Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a

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dois corpos estranhos à nação que se pretendia fundar – escravos negros e índios bravos através da substituição do trabalho do primeiro pelo do segundo e posterior fusão entre os remanescentes de ambos, mediante uma política de miscigenação que seria a base para a constituição do povo brasileiro. Sem descartar a busca de imigrantes europeus, que então era abraçada como alternativa pela maior parte da burocracia ilustrada, Bonifácio apostava todas as fichas numa política indigenista107. Na sua visão, o indígena aparecia como uma espécie de salvação para a nação, seria o elemento que possibilitaria, a médio prazo, a supressão da escravidão africana, entendida como o maior entrave para a construção da nação moderna que pretendia criar no Brasil108. Através da miscigenação com ex escravos e brancos, ele seria a base concreta sobre a qual deveria ser edificado o povo brasileiro. Mas a incorporação do indígena, mesmo sendo um dos mais discutidos tópicos do reformismo ilustrado, não era um tema de simples resolução. Pelo menos duas questões se apresentaram como obstáculos maiores à sua incorporação como “elemento útil”: encontrar o melhor método de traze-lo ao “convívio da civilização” e reverter a visão profundamente negativa sobre o indígena que atestava sua incapacidade para a vida civilizada e sua natureza bruta, aspecto este que trataremos melhor no próximo tópico. Estes dilemas já se colocavam para Bonifácio e permaneceram vigentes no interior do IHGB, pautando, respectivamente a elaboração de uma política indigenista e a construção do indianismo historiográfico e literário. Na discussão sobre a melhor política indigenista, Bonifácio partia da dupla crítica ao Diretório Pombalino, vigente de 1755 a 1798, e à Política de Guerra Justa aplicada por Dom João VI a partir de 1808. Ambas eram as políticas de Estado até então adotadas em relação ao indígena. O Diretório Pombalino, para Bonifácio, havia sido bem concebido, na medida que se baseava no controle da política indigenista pelo Estado e não mais pelas escravatura” e “Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil” In SILVA, José Bonifácio de A. Projetos para o Brasil. São Paulo Cia. das Letras, publifolha; 2000. 107 A solução imigrantista foi prioridade para outros luminares do pensamento ilustrado como o visconde de Cairú, José Severiano Maciel da Costa e o presidente do IHGB visconde de São Leopoldo, este último responsável pelas primeiras experiências de assentamento de colonos estrangeiros , ainda na década de 1810, no Rio Grande de Sul (colônia que deu origem à atual cidade de São Leopoldo) e em São Paulo (colônia de Alemães em Santo Amaro). ROCHA, Antônio Penalves. Op. Cit. e para o caso de São Leopoldo FERNANDES, Paula Porta. Op. Cit.,2000. 108 Sobre o projeto de nação moderna de Bonifácio, ver DOLHNIKOFF, Miriam. “Apresentação” In SILVA, José Bonifácio de Andrada e.Op. Cit., 2000.

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ordens religiosas conforme rezava a tradição colonial. Mas a sua execução tinha deixado a desejar, uma vez que os diretores laicos que substituíram os jesuítas se mostraram pouco adequados e empenhados. Já a política joanina, de retomada da guerra justa, era exclusivamente baseada na violência e levaria antes ao extermínio do que à incorporação. A saída preconizada pelo Andrada era a manutenção da concepção geral do Diretório Pombalino, ou seja, o controle pelo Estado da política indigenista, mas com o uso dos métodos de execução característicos dos jesuítas, ou seja, métodos “brandos e persuasivos”. José Bonifácio, sem negar a prevalência do Estado, resgatava positivamente a tradição jesuíta de trato com o indígena. No contexto de fundação do Estado nacional, o método indigenista dos jesuítas era visto como a alternativa mais viável para se construir um povo homogêneo, ao mesmo tempo que se criava uma fonte segura e interna de mão-de-obra. A dupla crítica ao Diretório e à política de guerra justa joanina, juntamente com a defesa da retomada do método brando e pacífico dos jesuíta, não eram exclusividade de Bonifácio, sendo compartilhada por outros funcionários ilustrados do final do séc. XVIII e início do século XIX, constituindo mesmo o programa social da ilustração luso brasileira109. Autores como José Toledo de Arouche Rendon, Ricardo Franco de Almeida Serra e Francisco Rodrigues do Prado, dentre outros, apontam saídas semelhantes à de Bonifácio, baseadas na adoção de métodos brandos de incorporação do indígena110. Todos, com a exceção do próprio Bonifácio, foram resgatados pelo IHGB e publicados nas páginas de sua revista, constituindo-se na base programática de sua política indigenista, que assim nascia como herdeira da tradição ilustrada de tratamento privilegiado da questão indígena. A inexistência de referências explícitas ao Andrada nos textos do IHGB, a que pese a forte identidade entre os respectivos programas indigenistas, se explica pelos ressentimentos políticos que o opunham a figuras importantes do Instituto, a começar pelo fundador e primeiro secretário Januário da Cunha Barbosa e do sócio de destaque José Clemente Pereira. Bonifácio havia sido responsável pelo exílio forçado dos dois durante o processo de independência. Somando-se a isso, o grupo de Aureliano Coutinho que 109

O reformismo ilustrado luso brasileiro foi marcado pela ênfase nas ciências físicas e naturais, principalmente nas aplicadas, sendo secundária a ênfase dada aos estudos de aspectos sociais. FERNANDES, Paula Porta. Op. Cit., 2000. 110 SERRA, Ricardo F. de A. “Parecer sobre o aldeamento dos índios uaicurus e guainás (1803)” RIHGB, Vol. 7, 1845 e PRADO, Francisco R.. História dos índios cavaleiros da nação guaicurú (1795)” RIHG B, Vol 1, 1839.

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dominava a facção áulica, então influente no interior do IHGB, havia se afirmado no Paço de São Cristóvão pela destituição de Bonifácio do cargo de tutor do infante D. Pedro, em 1833. Assim, por divergências político partidárias com os figurões do IHGB, e apesar da identidade profunda com o plano indigenista por ele traçado, o nome de Bonifácio não foi pronunciado no interior do IHGB enquanto seu desafeto Januário da Cunha Barbosa esteve vivo e no comando da instituição111. O projeto de Bonifácio, apresentado em 1823, não pôde ser imediatamente aplicado, mas as suas disposições gerais marcaram profundamente o debate subsequente. Seu plano foi retomado nos anos 1830 quando o aumento da pressão britânica pela abolição do tráfico de escravos impunha à elite nacional a resolução do problema da mão-de-obra. Segundo Jaime Rodrigues, nos anos 1830 formou-se um relativo consenso entre as elites da negatividade da escravidão, o que não significou imediatamente adoção de posturas abolicionistas ou mesmo antiescravismo112. Muito pelo contrário, as elites dirigentes representadas no legislativo federal se posicionaram estrategicamente pela supressão lenta e gradual da escravidão, e submeteram a resolução da questão ao encontro de uma alternativa melhor de mão-de-obra. O tráfico seria abolido quando houvesse condições para tal, o que significava dizer que sem alternativa viável não se deveria romper o tráfico com a África. Os mais empenhados em abolir o tráfico intensificaram então as buscas de alternativas. O tema da força de trabalho marcou profundamente a Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional (SAIN), instituição da qual se originou o IHGB. Apesar de concebida desde 1817, seu idealizador o comerciante baiano Inácio Alves Pinto de Almeida somente recebeu apoio e permissão oficial para a sua efetivação em 1824113, no contexto das discussões que desembocaram na assinatura do tratado com a Inglaterra de 1826 que previa para daí a quatro anos a abolição do tráfico de escravos no território brasileiro. Desta forma, a SAIN nascia marcada pela busca de alternativas de fontes de trabalho, expressa pelo objetivo maior da instituição de incentivar a “indústria nacional” mediante a 111

Após a morte do cônego Januário em 1847, parece ter ficado mais fácil a recuperação do Andrada como herói pelos membros do IHGB. O encargo ficou por conta dos literatos românticos. Em 1857, Araújo Porto Alegre, o amigo inseparável do poeta épico indianista Gonçalves de Magalhães, propunha a edificação de um Monumento aos Andradas em Santos. Ver. “Iconografia Brasileira” In RIHGB, v. 19, 1856. 112 RODRIGUES, Jaime. Op. Cit. Este autor mostra, também como a defesa do fim do tráfico não era entendida como o fim da escravidão, uma vez que pretendia-se reproduzi-la internamente. 113 A SAIN somente é fundada em 1827. ver SILVA, José Luiz Werneck . “Isto é o que me parece. A SAIN (1827-1904) na Formação Social Brasileira. A Conjuntura de 1871 a 1877”. Niterói, (mestrado) UFF; 1979.

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importação de maquinário estrangeiro. O investimento em máquinas seria o modo do Brasil “atalhar a peste moral da escravidão” e fazer o “sacrifício patriótico de extirpar o cancro da escravidão que lhe corrói as entranhas, e o enfraquece na marcha de sua prosperidade”114. A mecanização seria mais um meio de dispensar a mão-de-obra escrava, ao lado da imigração e incorporação de indígenas. No interior da SAIN, o fundador do IHGB cônego Januário, desde o início dos anos 1830 se empenhava em desqualificar o trabalho escravo. Da mesma forma, outro fundador do Instituto, o ex defensor do tráfico brigadeiro Cunha Matos115, em uma memória proferida em 1837, somente um ano antes da fundação do IHGB, mostrava, com todas as letras, o problema que afligia os futuros membros do IHGB: “Todos os políticos estão de acordo na idéia capital da inconveniência da importação da raça Africana para o Brasil: os riscos dessa importação manifestam-se a cada passo: mas o sistema de os substituir tem dado que fazer às cabeças as mais bem arranjadas.”116( Grifos meus). A questão central que se colocava era a da melhor forma de substituição da força de trabalho escrava, substituição esta que deveria seguir o ritmo lento da política monárquica, já que para Cunha Matos, “tudo se há de fazer pouco a pouco”. Como alternativa mais plausível para o problema, Cunha Matos defendia o incentivo à imigração européia e mesmo asiática, contanto que fortemente controlada pela polícia brasileira para evitar desordens e a concentração em atividades urbanas. Também apresentava o indígena como uma saída: “Alguns homens benfazejos tem-se lembrado dos índios ou aborígenes do Brasil, para se empregarem na cultura das terras (...) Mas, Senhores, os índios do Brasil estão condenados irremediavelmente a uma absoluta aniquilação, se, por desgraça, continuar acerca desta gente a mesma indiferença que tem havido até

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ALMEIDA, Inácio A . Pinto de. “Discurso que recitou no faustíssimo dia em que foi instalada a SAIN”. Rio, Tip. Imperial nacional, 1828 apud SILVA, José L.W..op. cit. Pp 70. 115 No seu paciente trabalho de acompanhar as falas dos deputados sobre a escravidão e o fim do tráfico, Jaime Rodrigues mostra como o brigadeiro Cunha Matos era, na década de 1830, o mais ardoroso crítico da ação britânica e o mais empenhado defensor da manutenção do tráfico de escravos. Com o tempo, Cunha Matos foi abrandando sua posição, chegando a defender, em tribuna, a aprovação da lei de proibia o tráfico em 1830. RODRIGUES, Jaime. Op. Cit. Pp 102 a 106. 116 MATTOS, Raimundo J. da Cunha. “Memória Histórica sobre a população, emigração e colonização, que convém ao Império do Brasil” In Auxiliador da Indústria Nacional. vol 5, 1837.

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agora, em que as leis a respeito dela foram medianamente boas; e a sua execução extremamente má.”117 A utilização do indígena seria alternativa viável somente se houvesse uma modificação nos métodos de sua incorporação. Para Cunha Matos, seria necessário retomar o método brando e persuasivo dos jesuítas, uma vez que “os índios do Brasil, cujas aldeias estiveram sujeitas à influência e direção dos Religiosos da Cia. de Jesus, prosperavam por um modo que agora causa admiração aos viajantes, que conheceram a fundo o caráter político e moral daquela célebre Sociedade. Apenas se extinguiu a Companhia, começou a decadência de suas povoações; e os índios também hão de continuar a decair enquanto não tiverem outros catequistas e diretores tão assíduos e zelosos em favor da humanidade”118. Um ano antes de elaborar, com o cônego Januário, a proposta de criação do IHGB, a partir da SAIN, Cunha Matos colocava como condição da substituição do trabalho escravo pelo trabalho indígena, a mudança do método de seu aldeamento, apontando ainda para a necessidade de recuperação do sistema utilizado pelos jesuítas. Esta preocupação primordial com a questão da força de trabalho, acalentada no interior da SAIN, seria transposta para o IHGB, marcando fortemente toda a produção de seus sócios ao longo do séc. XIX. Pouco mais de um ano depois, mal se iniciaram os trabalhos do recém fundado IHGB a questão indigenista veio logo à tona. Na quarta sessão do Instituto, de 4 de fevereiro de 1839, quando começaram a ser apresentados os programas para discussão histórica, os temas relativos aos efeitos nocivos da escravidão e do melhor método de aldear os indígenas foram dos primeiros a serem levantados e tratados pelo fundador Januário da Cunha Barbosa. Com o tratamento dos dois programas “Se a introdução dos Africanos no Brasil serve de embaraço à civilização dos índios” e “Qual seria hoje o melhor sistema de colonizar os Índios do Brasil entranhados em nossos sertões”, introduziu-se no IHGB a questão das alternativas de mão-de-obra que acabou se definindo por uma posição favorável à adoção de uma política indigenista baseada no método jesuítico de incorporação pelo cristianismo.

117 118

Idem, Ibidem. Idem, Ibidem.

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Na memória “Se a introdução dos Africanos no Brasil serve de embaraço para a civilização dos índios”, o cônego Januário expunha a sua aversão à escravidão africana em termos muito semelhantes ao de seu desafeto político José Bonifácio. Iniciava o texto declarando que “não sou patrono da escravidão, nem dos índios nem dos negros; e por isso considero a liberdade como um dos melhores instrumentos de civilização dos povos”119. Relacionando civilização com liberdade, o cônego Januário diferenciava-se logo de saída de um ramo escravocrata da ilustração luso brasileira representada pelo Bispo Azeredo Coutinho, que considerava a escravidão o “primeiro passo para a Civilização das Nações”120. O fundador do IHGB ainda fez referência ao “cancro da escravidão” que havia sido o responsável pelo atraso da lavoura no Brasil, em virtude da “pouca perfeição e adiantamento, que sempre se encontra em trabalhos forçados”. E propôs a substituição dos escravos negros pelos indígenas, lembrando que estes últimos: “não são tão avessos ao trabalho, como os pretendem pintar os patronos da escravidão africana, e (...) que se forem docemente chamados a um comércio vantajoso e a uma comunicação civilizadora, teremos, senão nos que hoje existem habituados à sua vida nômade, ao menos em seus filhos e em seus netos, uma classe trabalhadora, que nos dispense a dos africanos.”121(grifo meu) Januário Barbosa terminava a sua memória “esperando também que penas mais bem aparadas nos tracem algum plano, que mais aproveite à civilização do indígena, e que nos forre ao perigo de introduzir no Brasil livre a raça africana”. Este plano de política indigenista foi traçado pelo próprio cônego Januário na memória “Qual seria hoje o melhor sistema de colonizar os Índios entranhados em nossos sertões”, lida em agosto de 1839, e que pode ser considerada a mais acabada proposta de uma política indigenista elaborada no interior do IHGB. Nela, o que predominava era a louvação do método jesuítico de catequese como a melhor maneira de submeter o indígena ao sistema de trabalho agrícola, contanto que

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BARBOSA, Januário da Cunha. “Se a introdução dos escravos africanos no Brasil embaraça a civilização dos nossos indígenas, dispensando-lhes o trabalho, que todo foi confiado a escravos negros. Neste caso qual é o prejuízo que sofre a lavoura brasileira?” RIHGB, vol. 1, 1839. 120 Apud CUNHA, Manuela Carneiro da . “Prólogo”. In Idem (org.)Legislação indigenista no séc. XIX.São Paulo; 1992. Sobre Bispo Azevedo Coutinho como expoente de um pensamento escravista ver CARVALHO, José Murilo. “Escravidão e razão Nacional” In Idem, Pontos e Bordados. Belo Horizonte: Ed. UFMG; 1998. 121 BARBOSA, Januário da Cunha. Op. Cit., 1839. pp165.

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“rejeitando-se a influência política”122 exercida no passado pelos inacianos. Com esta última ressalva Januário da Cunha Barbosa, como bom regalista e representante do clero ilustrado, não abria mão das prerrogativas do Padroado Régio que preconizava a preponderância do Estado sobre sua aliada Igreja. O que propunha não era a restauração completa do controle pelos jesuítas da mão-de-obra, que deveria permanecer nas mãos do Estado, mas tão somente a utilização de seus métodos cristãos e pacíficos de incorporação. Aparecia assim, no interior do IHGB, a fusão entre o controle estatal da política indigenista, definida pelo diretório de Pombal, e os métodos jesuítas, defendido pelo reformismo ilustrado, à maneira de José Bonifácio. Para o cônego Januário seria necessário ainda diferenciar o tratamento dado aos índios adultos e aos curumins, devendo a prioridade ser dada à catequese destes últimos. Aos filhos dos índios deveria ser dada prioridade na catequese, conforme já afirmava o paulista Arouche Rendon, o que implicava em investir no ensino das línguas indígenas aos catequistas visando a melhor introjeção nos curumins dos valores cristãos. Em sua memória, Januário defendia a instituição, em vários pontos do Brasil, de colégios que ensinassem a língua indígena aos responsáveis pela catequese. Lançava assim uma tradição de incentivo ao estudo das línguas indígenas que marcou fortemente os membros do IHGB e a elite cultural monárquica, desde Francisco de Varnhagen 123 até a elaboração, em 1875, do projeto neo-indigenista do também sócio do IHGB Couto de Magalhães, projeto laico baseado na formação de intérpretes habilitados na língua nheengatú, que substituiriam os missionários. Da mesma forma que Bonifácio, mas com menor ênfase, Januário da Cunha Barbosa defendia a aplicação de uma política de miscigenação uma vez que “o casamento de Índias com homens de nossa associação tem produzido vantagens preciosíssimas à civilização dos índios”, e citava como exemplo histórico o caso de Caramurú124. No contexto deste debate, Machado de Oliveira foi admitido como sócio do IHGB. Podemos supor que o espaço adquirido por ele no interior do Instituto, durante os anos 122

BARBOSA, Januário da C. “Qual seria hoje o melhor sistema de colonizar os índios entranhados em nossos sertões; se conviria seguir o sistema dos jesuítas, fundado principalmente na propagação do Cristianismo, ou se outro do qual se esperem melhores resultados do que os atuais” RIHGB,vol. 2,1840. p 4. 123 VARNHAGEN, Francisco A . “Memória sobre a necessidade do Estudo e Ensino das línguas indígenas no Brasil” RIHGB, vol. 3, 1841. 124 BARBOSA, Januário da Cunha op. cit., 1840. pp17.

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1840 e 1850, foi decorrente da sua experiência direta com populações indígenas. Como experiente militar nas guerras da fronteira sul, conhecera diretamente as populações de índios guaranis, vários deles engajados como soldados sob seu direto comando. Também fora presidente de províncias dotadas de grande população indígena como Pará e Espírito Santo. De forma que sem a mobilização para fins intelectuais desta experiência, dificilmente Machado de Oliveira teria o lugar de destaque que teve no interior do IHGB. Como presidente destas províncias, Machado de Oliveira demonstrou seu interesse na definição de uma política indigenista. Da sua atuação no Espírito Santo, apresentou um parecer sobre o melhor modo de pacificar e aldear os botocudos do Rio Doce. Em 1845, quando navios ingleses já invadiam portos brasileiros em busca de tumbeiros, Machado de Oliveira justificava a pertinência da questão indigenista assinalando que “a religião e a sociedade reclamam altamente a civilização dos indígenas de nossas florestas; o Brasil vai ficar na urgente dependência de braços, que se empreguem na agricultura e noutros trabalhos rurais; e as tribos que habitam as margens do Rio Doce e São Mateus tem-se manifestado com tendências de desprezarem a vida nômada e selvática”125( grifo meu). Em outro parecer para o IHGB, criticou o método de uso compulsório da mão-deobra indígena existente no Pará. Atacava fortemente a escravidão indígena ainda vigente na região amazônica durante o Império. Referindo-se aos índios do Pará, Machado de Oliveira acusava: “o que há poderosamente concorrido para a sua diminuição e aniquilamento, e mesmo para o desaparecimento de algumas povoações catequizadas, é primeiramente o mau método empregado em retirá-los das matas e do estado selvagem, substituindo à sua condição normal um regime duro e restrito, e ao depois a espécie de escravidão em que são postos, a despeito das leis e ordens proibitivas, sendo aplicados ao serviço público e particular por meios bárbaros, aflitivos e diametralmente opostos à sua índole e hábitos primitivos.”126 (grifo meu) Mas se estes trabalhos já apontavam para o seu envolvimento com a questão indígena, ela ficaria mais clara na elaboração do seu principal trabalho sobre o tema: a

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OLIVEIRA, José Joaquim Machado de. “Correspondência. N º 3” In RIHGB, vol. 7, 1845. pp 236. Idem, Juizo sobre as obras intituladas – Geografia paraense, ou descrição física, histórica e política da província do Grão-Pará: por Inácio de Accioli Cerqueira e Silva - e - Ensaio corográfico sobre a 126

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“Notícia Raciocinada sobre as aldeias de índios da Província de São Paulo, desde seu começo até a atualidade”, escrita em 1845. Neste texto, Machado de Oliveira retraçou a história da relação entre colonos e índios e da elaboração da legislação indigenista do período colonial até o seu presente. Denunciou a espoliação dos índios pelo colonizador e não poupou nem mesmo o jesuíta, acusando-o de promover no passado o isolamento dos indígenas para submetê-los mais facilmente ao jugo espiritual e temporal de sua autoridade. Nesta crítica aos jesuítas, Machado de Oliveira revelava a posição dos sócios do IHGB favorável à exclusividade estatal da política indigenista, o que não os impedia de louvar os métodos dos inacianos. Mostrou o processo de decadência dos aldeamentos e atacou o descaso que sofriam no seu presente, reforçando assim o diagnóstico anteriormente apresentado por Arouche Rendon de falência da política do Diretório Pombalino. Finalizava exortando os governantes a reconhecerem “a viva necessidade de promover e garantir a civilização e bem estar dos indígenas”127. Esta memória foi louvada por todos e consagrou Machado de Oliveira como um dos expoentes do Instituto no que se referia à questão indígena. Foi uma das poucas obras de todo o séc. XIX a receber a medalha do IHGB, conferida em 1847. O prêmio, escolhido pelo Instituto e entregue pelo próprio Imperador, foi neste ano excepcionalmente compartilhado por Machado de Oliveira com outro trabalho: a “História da última revolução no Maranhão” do poeta indianista Gonçalves de Magalhães. Eram duas memórias que representavam facetas complementares do projeto imperial de criação de um povo brasileiro ordeiro e produtivo, mediante controle das populações sertanejas e incorporação (também controlada) das indígenas. Ambos os textos eram perpassados por um desejo de ordem, pelo medo da rebelião escrava e pela necessidade de suprimir o escravo negro da realidade brasileira. Enquanto Gonçalves de Magalhães legitimava a repressão e cristianização preventiva dos escravos e das populações rurais potencialmente revoltosas que habitavam os sertões maranhenses, Machado de Oliveira procurava reformar

província do Pará, por Ladislau Monteiro Baena, interposto por declaração do IHGB. Rio de Janeiro: Imprensa Imparcial de F. de P. Brito, 1843. 127 OLIVEIRA, J. J. Machado d’. “Notícia Raciocinada sobre as aldeias de índios da Província de São Paulo, desde o seu começo até a atualidade.” In RIHGB, vol 7, 1845.

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o sistema de aldeamento visando transformar o índio bravo e turbulento em manso e “civilizado” além de possível substituto do escravo africano. O sucesso da ‘Notícia Raciocinada” também pode ser explicado pela sua conveniência como obra legitimadora do Regulamento da Missões, a única lei indigenista de caráter nacional promulgada durante o período monárquico, publicada no mesmo ano de 1845 em que foi lido o trabalho de Machado de Oliveira no IHGB. Esta lei era marcada, a grosso modo, pela combinação do caráter estatista do Diretório Pombalino com a tradição missionária. Buscava-se implantar em todo o território do Império uma prática indigenista que aliasse os métodos “brandos e suasórios” dos jesuítas com a submissão da força de trabalho ao controle do Estado. Os aldeamentos criados deveriam ser governados por um diretor laico, auxiliado por membros de ordens religiosas, incorporados como funcionários do Estado monárquico. Na prática não foram os tão louvados jesuítas, então ainda não reintegrados ao Brasil desde a expulsão por Pombal, mas sim capuchinhos e barbadinhos italianos que atuaram nos novos aldeamentos e acabaram suplantando os diretores laicos e exerceram de fato o comando das missões128. Analisando o sentido do Regulamento das Missões, Manuela Carneiro da Cunha considera como seu objetivo principal a resolução de uma questão de terras, na medida em que, pela concentração dos índios livres nos espaços confinados dos aldeamentos, liberavam-se terrenos preciosos para a expansão da fronteira agrícola. Contudo, para a intelectualidade imperial concentrada no IHGB, a questão indígena aparecia como primordialmente uma questão de mão-de-obra, uma vez que deveria servir como alternativa de substituição do negro escravo, matizando portanto a tendência apresentada por Manuela Carneiro da Cunha. Seja como for, evidenciando as relações entre os planos do IHGB e o Regulamento das Missões, Machado de Oliveira acabou sendo indicado pelo próprio Imperador D. Pedro II, durante a primeira viagem deste à província de São Paulo em 1846, como o primeiro Diretor Geral dos Índios da Província. Assim, o autor do IHGB que mais se destacara no tratamento da temática indígena, era escolhido para pôr em prática, em sua província de nascimento, a política indigenista do Império, que ajudara direta ou indiretamente a 128

Sobre o teor do regulamento das Missões e os resultados de sua aplicação ver CUNHA, Manuela C. Op. Cit., 1992.

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conceber. Não existem estudos sobre o resultado de sua prática como Diretor Geral dos índios de São Paulo, e nem me dispus a realizá-los, pois exigiria pesquisa a parte. Os poucos documentos acessados parecem atestar a existência mais de entraves e dificuldades para pôr em prática o plano de aldeamentos do que propriamente sucessos. O Regulamento da Missões em geral, e particularmente a atuação de Machado de Oliveira, não corresponderam aos interesses dos membros do IHGB de proporcionar uma vigorosa corrente de população substitutiva ao tráfico,

que não os impediu de continuarem

investindo em alternativas indigenistas. Apesar de ter acelerado o processo de expropriação das terras indígenas, como demonstra Manuela Carneiro da Cunha. O importante, para os propósitos de uma estudo historiográfico, é ressaltar a prática de Machado de Oliveira como um dos agentes privilegiados de um projeto, herdeiro do reformismo ilustrado, acalentado no interior do IHGB, que visava criar um povo brasileiro a partir da incorporação do indígena e da sua miscigenação com colonos brancos ou negros. Assim, o ideal do brasileiro a ser construído poderia ser o colono europeu disciplinado, mas apostava-se principalmente no indígena aldeado e seus descendentes mestiçados, devidamente cristianizados, dedicados ao trabalho agrícola e submissos às leis do Estado, algo completamente diferente dos escravos negros e mestiços libertos que demonstraram nas rebeliões dos anos 1830 – Malês, Cabanagem e principalmente Balaiada – o duplo perigo, à elite dominante, da inversão da ordem social e desagregação da unidade nacional.129 Construção de um povo para a jovem nação andava de braços dados com manutenção da ordem e prevenção de rebeliões. Mas havia também a questão da força de trabalho. Ao mesmo tempo, todo o debate indigenista no IHGB se dava no contexto da ameaça à soberania nacional representada pelas ações britânicas pelo fim do tráfico. A dependência de uma fonte extraterritorial de força de trabalho era entendido como fator de instabilidade de um Estado brasileiro em fase de consolidação. Com a proposta de incorporação do indígena como força de trabalho, os membros do IHGB procuravam romper com aquilo que Luis Felipe de Alencastro 129

O imaginário do medo da rebelião escrava, apontado por Célia Marinho de Azevedo no final do séc. XIX, parece ter tido um momento de recrudescimento no final da regência. Ele marcou a obra dos românticos; além do antiescravismo explícito presente nas páginas da Niterói e Minerva Brasiliense, está presente em todas as partes do poema Meditações que Gonçalves Dias escreveu no Maranhão de 1841, sob o impacto da Balaiada. Introduzido no interior do IHGB, dará origem, em 1868, ao romance protoabolicionista Vítimas algozes, do primeiro secretário do Instituto e romancista Joaquim Manuel de Macedo.

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considerou o traço de longa duração da história brasileira; a extra territorialidade da fonte de mão-de-obra130. A política indigenista do IHGB pode ser vista como uma alternativa de internalização da fonte de força de trabalho num contexto de afirmação do Estado nacional autônomo131. Mesmo depois de abolido o tráfico, os membros do IHGB e os indianistas românticos, continuaram defendendo o aproveitamento da força de trabalho indígena, agora visto como alternativa de substituição também dos imigrantes europeus. As principais facetas do projeto indigenista do IHGB foram sintetizadas pelo sócio “dissidente” Francisco A. de Varnhagen, em texto escrito em 1849: “Por que motivo em lugar de irmos (contra os tratados e expondo aos cruzeiros ingleses navios e capitais) buscar africanos além dos mares para os escravizar, não havemos antes dentro do Brasil prender à força os índios bravos para os desbravar e civilizar? Teríamos com eles um aumento de braços menos perigosos que os dos negros, por que daqui a pouco estariam misturados conosco em cor e em tudo; e então teríamos em todas as províncias – povo – classe social que algumas não possuem.” 132 Na fala de Varnhagen encontra-se presente a idéia, compartilhada pelos demais membros do IHGB, da política indigenista como meio de atingir o tríplice propósito de substituição do escravo negro, de internalização da força de trabalho e de criação do povo brasileiro. A nota dissonante de sua posição em relação ao IHGB, foi dada pelo método que defendia como mais eficaz para incorporar o indígena. Para Varnhagen, nada de aplicar os meios “pacíficos e suasórios” dos jesuítas consagrados no Regulamento das Missões, a seu ver caros, lentos e ineficazes133. Com índios bravos, a melhor maneira era empregar os métodos de apresamento pela força, consagrados no passado pelos colonos paulistas. Varnhagen procurava resolver a questão do tráfico africano pela retomada do modelo bandeirante de apresamento da força de trabalho. Sua posição original sobre os métodos da política indigenista (mantendo porém a identidade de objetivos com o Instituto), transformou-o num “dissidente” do IHGB, e

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ALENCASTRO. Luis Felipe. O trato dos viventes.Formação do Brasil no Atlântico Sul, séc. XVI e XVII. P. São Paulo: Cia. das Letras; 2000. 354. 131 Estudando o contexto da abolição do tráfico, Ilmar Matos aponta para o desejo do estado monárquico de internalizar a mão-de-obra. MATTOS, Op. Cit.;1987. 132 VARNHAGEN, Francisco A.. “Memorial orgânico à nação” In Guanabara. Tomo II, 1852. P. 392.

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implicou na sua marginalização no interior da comunidade historiográfica imperial. Também deu origem à maior polêmica historiográfica do séc. XIX brasileiro, polêmica esta em que o colono paulista assumiu lugar de destaque e que estudaremos melhor adiante, após a definição de uma etno-historiografia indianista.

2. 2. b. A etno-historiografia Indianista do IHGB: O índio civilizável, jesuíta civilizador e colono ambicioso.

A prática indigenista, acima apresentada, marcou profundamente a representação da história nacional elaborada pelos membros do IHGB. O destaque que a questão indigenista ocupou nos debates do Instituto acabou definindo as questões de fundo da historiografia assim como a escolha e o tratamento dos principais personagem da história nacional que criaram. Assim, podemos falar em uma etno-historiografia indianista, acalentada no interior do IHGB, e que serviu de legitimação à política indigenista e, de forma mais ampla, ao próprio regime monárquico, entendido como um regime dotado de uma missão civilizadora de formar uma nação pela cristianização de índios e sertanejos. Esta historiografia, pela importância do lugar que tomou na principal instituição de produção do saber histórico do período (IHGB) e pela repercussão que teve no universo cultural do segundo Império, pode ser considerada a versão oficial do passado brasileiro elaborado pela monarquia, contando, inclusive, com o entusiástico apoio do Imperador, que duas vezes saiu pessoalmente em sua defesa134. Assim, à historiografia indianista cabe o papel que alguns estudos tendem a identificar como sendo da obra de Varnhagen. A dificuldade de definir com precisão o caráter desta historiografia se deve ao fato dela ter se materializado na forma de diversos estudos esparsos, normalmente publicados na revista do IHGB ou nos periódicos dos literatos românticos, espécie de complementos das salas do Instituto, como a Minerva Brasiliense e principalmente a Guanabara. Não houve 133

Sobre a crítica de Varnhagen ao Regulamento das Missões ver PUNTONI, Pedro. “O sr. Varnhagen e o patriotismo caboclo: o indígena e o indianismo perante a historiografia brasileira”. 134 Ambas em 1857. Primeiramente o caso já conhecido dos artigos que escreve sob o pseudônimo “o outro amigo do poeta” em defesa do poema épico A Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães, então duramente atacado por José de Alencar ver CASTELO, José Aderaldo. A Polêmica da Confederação dos Tamoios. E no mesmo ano, sugere, em carta de próprio punho, alterações à História Geral do Brasil de Varnhagen, corrigindo os pontos em que o autor contesta a política de catequese e trato brando dos indígenas. ver GUIMARÃES, Lúcia P. Op. cit. , 1994.

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propriamente uma obra síntese desta corrente, sendo o livro Brasil e Oceania do poeta e sócio do IHGB Gonçalves Dias o que mais próximo chegou de uma visão completa, apesar de predominantemente “etnográfica”. Para traçar seus contornos, temos que articular vários textos e autores e, dentre eles, será dado destaque à atuação de Machado de Oliveira. Procurei somente ressaltar o que é comum aos diversos autores, mostrando secundariamente as diferenças de representação entre eles. A historiografia produzida no IHGB filiou-se à tradição intelectual da ilustração, conforme ficou explícito em memória lida pelo Visconde de São Leopoldo logo na fundação do Instituto135. Tratava-se de uma “história filosófica” baseada principalmente na visão linear progressiva da ilustração que buscava compreender a Humanidade em constante avanço através dos seus vários “estágios”, partindo da “Barbárie” em direção à “Civilização”136. Como a ilustração luso brasileira, fonte na qual se alimentava esta visão, era pouco marcada pelos aspectos mais radicais e materialistas do pensamento iluminista europeu, não excluía de todo elementos cristãos. Era uma espécie de iluminismo cristianizado cujo aspecto religioso foi ainda mais reforçado pela consolidação dos valores do espiritualismo eclético compartilhado pelos literatos românticos, embebidos no néocatolicismo vigente na França da “Restauração” (Chateaubriand, Maine de Biran) e da “Monarquia de Julho” (Royer Collard, Victor Cousin). Assim, ao lado da predominante visão progressiva iluminista, mantinha-se forte traço da filosofia cristã da história, representada pelas referências constantes à intervenção da Providência na definição dos caminhos da História137. Para compreender a relação entre a história e a etnografia produzida no IHGB, é importante também considerar o estatuto do conhecimento histórico no período. Num contexto de incipiente especialização do conhecimento em geral, a história assumia o papel de principal forma de discurso sobre o social, exatamente pela referência ao real que lhe 135

PINHEIRO, Fernandes. “O IHGB é representante das idéias de ilustração, que em diferentes épocas se manifestaram em nosso continente.”In RIHGB v.1, 1839. Também GUIMARÃES, Manuel S.. Op. cit. e FERNANDES, Paula Porta, Op. cit. tendem a reforçar o caráter ilustrado da instituição e de sua historiografia. Já Arno Wehling apresenta postura oposta, que tende a reforçar os traços historicistas da historiografia do Instituto, ver WEHLING, Arno. Estado, História e memória. RJ: Nova Fronteira; 1999. p. 35 a 44. 136 FURET, François. “La naissance de l’histoire”. In l’Atelier de L’Histoire. Paris: flamarion, 1982. 137 A permanência dos elementos cristãos na ilustração luso brasileira, e principalmente na sua visão da História, pode ser comprovado pelo análise da produção do Academismo setecentista, reivindicado pelo IHGB na memória de São Leopoldo e estudado em KANTOR, Íris. “De Esquecidos e renascidos. Historiografia acadêmica luso americana (1724-1759)”. São Paulo: Dep. História USP, doutorado; 2002.

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atribuíam. Assim, da mesma forma que então era vista como um ramo da filosofia política, confundida com as belas letras, a semi independente historiografia incluía no interior das suas fronteiras, a área de estudos posteriormente conhecida como etnologia138. De forma que a reflexão empreendida no IHGB sobre o “Homem Americano”, ou seja, a sua etnologia, era parte orgânica da História Filosófica do Brasil que pretendiam escrever, conforme já ficou definido nas primeiras discussões sobre a periodização a se adotar nas elaboração da história nacional139. Em discurso proferido no IHGB em 1840, Januário da Cunha Barbosa apresentava a centralidade da temática indianista no Instituto: “Notareis nessa coleção que nos temos particularmente ocupado do que diz respeito aos indígenas; por que sendo muito obscura a história da Terra de Santa Cruz em sua descoberta, e convindo investigar o grau de civilização a que haviam chegado os povos do novo Mundo antes de aparecerem às vistas de seus descobridores, força era que nos costumes dos índios procurássemos o fio, que nos deve conduzir a tempos muito mais anteriores.” ( grifo meu) A etnografia desenvolvida no IHGB visava primordialmente definir a natureza do selvagem americano. Guiada por uma visão evolucionista da humanidade, característica dos princípios do progressismo ilustrado, dedicou-se à definição do “grau de civilização” do homem americano, num movimento que correspondia à busca das origens dos índios e da própria nacionalidade brasileira. As exigência de elaboração de um imaginário da nacionalidade, levavam ao investimento na construção de uma imagem positiva do índio. Mas o investimento na positividade do índio não se restringia somente aos imperativos convencionais de um discurso identitário nacionalista, como afirmam as diversas análises do indianismo. Ela se submetia também às necessidades da política indigenista acalentada no interior do Instituto. Conforme vimos no tópico anterior, José Bonifácio apresentava, como sendo um dos maiores obstáculos à incorporação do indígena, a superação da visão negativa que sobre ele incidia.

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Sobre história iluminista como ramo da filosofia política e belas letras, ver FURET, Op. Cit. Sobre a imbricação da etnologia na História ver além de Furet, VENTURA, Roberto. Estilo Tropical. SP: Cia.das Letras; 1992. 139 MATTOS, Raimundo José da Cunha. “Dissertação acerca do sistema de escrever a história antiga e moderna do Império do Brasil” In RIHGB, nº 26, 1868.

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Esta visão negativa do indígena, então compartilhada por amplos setores da elite, o representava como sendo um bruto avesso à civilização, um ser no limite da animalidade, e desprovido das condições mínimas de vida social. De um lado, setores da etnografia iluminista européia afirmavam, por meio da ciência natural de Buffon e De Pauw, a irremediável inferioridade da natureza do Novo Mundo e do Homem Americano 140, e do outro, permanecia a aversão secular que os mais diversos setores da população brasileira, principalmente aqueles de áreas de fronteira agrícola, dedicavam aos indígenas141. Os autores do IHGB, mediante a criação da etnografia indianista, consagraram-se à remoção deste importante obstáculo de natureza simbólica à implementação da política indigenista. Procuravam, assim, provar que o índio era compatível com a civilização. Para tanto, não chegaram a negar seu caráter de “bárbaro” primitivo, mas investiram, conforme havia feito José Bonifácio142, na defesa da perfectibilidade de seu caráter e no reforço dos traços de seus costumes que os aproximassem da sociedade européia da época, então considerada o padrão de civilização. Machado de Oliveira foi um dos membros do IHGB que mais se dedicou a consolidar a etnografia indianista e uma imagem do indígena, se não de todo positiva pelo menos perfectível. Atuou, principalmente, durante a década de 1840, tendo elaborado seus escritos principais alguns anos antes do advento do indianismo literário, normalmente datado da publicação, em 1846, dos Primeiros versos, do também sócio atuante do IHGB Gonçalves Dias. Em 1842 e 1844 apresentou dois textos que marcam a sua contribuição para a etnologia indianista. Eram desenvolvimentos de programas levantados pelo Instituto e versavam sobre “Qual era a condição do sexo feminino entre os indígenas do Brasil” e “Se os indígenas do Brasil, conhecidos até hoje, tinham idéia de uma única Divindade”143. O Instituto procurava, com estes dois programas, averiguar se o indígena era capaz de se

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GERBI, Antonello. A disputa do Novo Mundo. História de uma polêmica(1750-1900). SP: Cia. das Letras; 1996. 141 Para a contribuição colonial e missionária na formação desta visão negativa do índio, SOUSA, Laura Melo. O Diabo e a terra de Santa Cruz.SP: Cia. das Letras; 1986. 142 CUNHA, Manuela C. Op. Cit., 1987. 143 OLIVEIRA, J. J. Machado d’. “Qual era a condição do sexo feminino entre os indígenas do Brasil” In RIHGB, V. 4, 1842. E OLIVEIRA, J. J. Machado d’. “Se todos os indígenas do Brasil, conhecidos até hoje, tinham idéia de uma única Divindade, ou se a sua religião se circunscrevia apenas em uma mera e supersticiosa adoração de fetiches; se acreditavam na imortalidade da alma, e se os seus dogmas religiosos variavam conforme as diversas nações ou tribus? No caso de afirmativa, em que diferenciavam eles entre si?” In RIHGB, v. 6, 1844.

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adequar a dois pressupostos dos métodos da catequese indigenista e da vida civilizada: respectivamente, se eram aptos à vida em família e à adesão à religião cristã. A resposta de Machado de Oliveira, expressa no desenvolvimento destes dois programas, foi positiva para ambos os casos. Na contra mão da produção da maioria de seus consócios do IHGB, o cientista bávaro Karl F. Von Martius negava a perfectibilidade do indígena144. Filiado ao pessimismo antiamericanista de De Pauw, considerava o indígena não como um ser cujo espírito estava em progresso, mas como um degenerado. Para Martius, o indígena brasileiro tivera uma origem grandiosa mas decaíra e perdera os atributos positivos que eventualmente outrora possuíra, sendo considerado como uma “ruína humana”. Para Martius a decadência do indígena era entendida como algo já intrínseco à sua natureza. Seu pessimismo etnológico implicava na descrença na possibilidade de reverter a decadência que identificava nos americanos, inviabilizando, a seu ver, a política indigenista defendida pelo IHGB. Se a maioria dos membros do IHGB não compartilhavam com Martius a idéia da degenerescência intrínseca do indígena, acreditavam, porém, que o indígena seu contemporâneo, o indígena existente no séc. XIX, estava em decadência, não por conta de sua natureza, mas por motivos externos a ela. Estabelecia-se uma tensão no interior da elaboração etnológica indianista do IHGB, tensão esta explicitada no título de um dos capítulos de livro do poeta etnólogo Gonçalves Dias que se questionava “Se os Americanos caminhavam para o progresso ou para a decadência”145. Machado de Oliveira resolvia, a seu modo, a questão afirmando que o indígena em si não era decadente, mas tão somente o indígena de seu presente, aqueles guaranis com quem entrara em contato nos campos de batalha do Continente de São Pedro do Rio Grande, ou os tupis aldeados de São Paulo. A este respeito escreveu o interessante texto “A

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CUNHA, Manuela C. da. Op. Cit., 1992. MARTIUS, K. F. Von. “Como se deve escrever a história do Brasil” In Idem, O estado do direito entre os autóctones do Brasil. Belo Horizonte/SP : Ed. Itatiaia/ Edusp, 1982. 145 Gonçalves Dias, de forma conciliatória, defendeu que no momento da descoberta pelo europeu o indígena estava em decadência (como queria Martius), mas que isso somente facilitou a ação dos jesuítas e não era um empecilho à política de catequese (conforme defendiam os demais membros do IHGB). DIAS, A. Gonçalves. O Brasil e a Oceania. Paris; Garnier ed., s/d. Cap. XII.

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celebração da paixão de Jesus Cristo entre os guaranis”146. Por ser o primeiro texto de Machado de Oliveira publicado, este trabalho veio marcado por profundo pessimismo quanto à possibilidade de incorporação do indígena – então visto como em “divórcio irreconciliável” com o homem branco – pessimismo que foi sendo aos pouco substituído à medida que o autor se integrava ao Instituto. No entanto, mais importante neste trabalho foi a tendência de mostrar que o principal motivo da decadência do indígena do “seu presente” havia sido o contato com o homem europeu, decorrente da colonização. Deslocava, assim, a questão da decadência indígena do terreno da etnografia para o da história, retirando o caráter ontológico que von Martius procurava lhe atribuir. Se a etnografia indianista mostrava que o indígena era um bárbaro passível de evolução, a historiografia indianista acusou o processo de colonização européia como o responsável pela degradação das populações indígenas. A visão majoritária no interior do IHGB, e que chamo de historiografia indianista, de fato é baseada, como quer Manuel Salgado Guimarães 147, na valorização de uma certa continuidade com o passado colonial, na medida em que se compreendia a história nacional como o processo de introdução da civilização européia em meio à América selvagem. Tal processo civilizador era entendido, pelos autores, como iniciado com a chegada do europeu. Mas, este passado que os membros do Instituto procuravam recuperar e valorizar não era o do colonizador laico português, como fazia, à revelia de todo o Instituto, o “dissidente” Varnhagen. A tradição à qual os membros indianistas do IHGB procuravam se vincular, ainda que com algumas reservas, era a tradição cristianizadora dos missionários, principalmente jesuítas. Se os membros do IHGB e a própria Monarquia se identificavam com alguma missão civilizadora oriunda do passado colonial, esta era com a tradição dos jesuítas de cristianização dos indígenas e defesa de sua “liberdade” contra a escravidão. O Jesuíta, e não o colono, era, assim, o que mais próximo chegava de um herói civilizador da história brasileira, a despeito de toda a hesitação existente em torno de sua figura.

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OLIVEIRA, J. J. Machado d’ . “A celebração da paixão de Jesus Cristo entre os guaranís. (Episódio de m Diário das campanhas do Sul)” In RIHGB, v.4, 1842. 147 A respeito da historiografia do IHGB, Manuel Salgado Guimarães procurou mostrar como a idéia de Nação dela decorrente, “não se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa; muito ao contrário, a nova Nação brasileira se reconhece enquanto continuadora de uma certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa”, assegurando, desta forma, “a possibilidade de continuidade de Portugal”. GUIMARÃES, Manuel Salgado. Op. Cit. 1989.

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A historiografia indianista via o processo de colonização do Brasil como uma missão cristianizadora determinada pelos desígnios da Providência. Este caráter ao mesmo tempo civilizatório e cristão, estava definido desde os primórdios, desde o momento fundador da chegada de Cabral à terra que significativamente batizara de Santa Cruz. Nas palavras do consocio Joaquim Norberto Sousa e Silva: “Colombo tomara posse da terra com o aparato de um auto real, Cabral contentou-se com hastear uma cruz apoiada no escudo das quinas, simbolizando nos seus braços abertos a conquista pacífica da região que descobrira: o sacrifício da missa santifica as praias manchadas com o sangue dos antropófagos, como outrora o sacrifício do Homem Deus remira o gênero humano do pesado da desobediência; e a voz do evangelho troou das praias de Porto Seguro às entranhas de um império que se escondia ainda nas entranhas de três séculos: respeitando a liberdade dos índios não foi o ilustre capitão quem permutou o cativeiro pela hospitalidade, mas Gaspar de Lemos em contravenção das suas ordens.”148 O evento da primeira missa - incorporado como um dos mais duradouros traços do imaginário nacional brasileiro, repetido à exaustão pelos manuais escolares mais tradicionais – representava o sentido eminentemente cristão da interpretação indianista. A história do Brasil teria uma origem nobre e providencial, sendo inicialmente uma empresa de “conquista pacífica”, baseada na remissão dos pecados da selvageria americana e na manutenção de sua liberdade, mas que logo fora revertida pela ambição escravizadora do colono laico. De forma que, para a historiografia indianista predominante no IHGB, havia a distinção entre dois agentes europeus entendidos, no geral, como antagônicos: o colonizador laico e o missionário. Esta dualidade estrutural da historiografia indianista foi exemplarmente sintetizada pelo sócio Gonçalves Dias em texto publicado na revista do IHGB, em 1854: “Logo no começo da colonização portuguesa, dois interesses distintos e contrários aqui se manifestaram, crescendo com o tempo e avultando com o encontro das pessoas que os advogavam. Eram estes dois princípios – a liberdade e a escravidão dos índios – representados uns pelos colonos e o outro pelas ordens 148

Apud MACEDO, Joaquim Manuel de. “Relatório do Primeiro Secretário.” RIHGB, vol 17, 1854. p.41.

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religiosas. Um personificou-se nos padres da companhia, o outro no senado da câmara. Era a agricultura e a catequese tornadas contrárias. Confiadas a pessoas, que tinham interesses diferentes, estes dois princípios se contrariavam na prática. Uns queriam neófitos, outros trabalhadores.” Para os autores indianistas, a história brasileira era representada como marcada pela contraposição entre colonos e jesuítas que representavam respectivamente os princípios opostos da “ambição/interesses materiais” e do “ideal cristão”, verdadeira chave interpretativa de toda a história nacional. Quando estes agentes europeus, animados por princípios opostos, eram confrontados com os primitivos habitantes da terra, o resultado era o embate entre a escravidão dos indígenas sustentada pela ambição dos colonos versus a defesa da liberdade indígena, vista como ancorada na força civilizadora do cristianismo dos jesuítas. Deste modo a nossa primeira interpretação do passado nacional veio marcada por um tom predominantemente lacrimoso, calcado numa visão a seu modo crítica da herança colonial. Era uma visão que tecia a denúncia da escravidão indígena e de seu extermínio, recusando, portanto, uma louvação direta e irrestrita ao ambicioso colonizador português acusado de introduzir o maior dos males da nacionalidade: a escravidão, fosse indígena, fosse africana. A herança colonial, que identificavam como a mais pesada para a nação, era a do escravismo, principalmente o africano. Neste sentido, alguns autores acabaram identificando as origens dos males da nação na derrota do projeto jesuíta de incorporação “pacífica” do indígena, que acabou resultando no extermínio dos índios e na introdução da escravidão negra. Como afirmava exaltado Gonçalves de Magalhães, em 1857, refutando a obra de Varnhagen: “Si os colonizadores seguissem o exemplo dos padres da companhia, que também dos índios se serviam com muito proveito, si imitassem ao menos aos franceses, que os tinham por amigos; si não quisessem ávidos enriquecer-se do pé para a mão, teriam dispensado os braços africanos, importados pela sórdida cobiça, e pagos com o sangue indígena; maior quantia de índios se teriam cristianizado sem tanta carnificina; e mais aumentada estaria hoje a nossa

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população, sem a escura mescla da raça de Cham, cuja maldição recai sobre o seu próprio trabalho, em maior dano dos que a escravisam 149” Esta interpretação indianista da nossa história, dual e acusatória, se alimentava em dupla fonte: de cronistas jesuítas do séc XVII e da crítica Iluminista ao Colonialismo. Primeiramente os historiadores indianista se apropriaram das crônicas coloniais dos jesuítas portugueses que criaram, no séc. XVII, a “lenda negra” contra os colonos paulistas que atacavam as missões e que os acusavam de reverterem o original sentido cristão da colonização150. Por outro lado, em diversos autores do IHGB, encontramos a citação de autores iluministas como Montesquieu, Willian Robertson e o Abade Raynal151 principalmente, que no séc. XVIII realizaram forte crítica ao modo como os europeus colonizaram o Novo Mundo. Este ataque se dava pelos mais diversos ângulos: condenavam a escravidão dos negros, o extermínio dos indígenas e defendiam, no caso da corrente “revolucionária” de Raynal, a supressão dos laços com as metrópoles, conforme realizado pelos colonos norte-americanos152. Tratava-se de duas tradições historiográficas – cronistas jesuítas e anticolonialismo iluminista - de algum modo críticas a aspectos da experiência colonial dos países ibéricos (quando não ao seu conjunto), que acabaram se mostrando adequadas à definição de uma identidade nacional diferenciada da portuguesa que a ex colônia, transformada em nação, 149

MAGALHÃES, D.J. Gonçalves de. “Os Indígenas do Brasil perante a História.” In RIHGB, 1857, p. 61. No mesmo sentido, o cônego Fernandes Pinheiro refutava Varnhagen: “Nossa terra estava pois fadada à escravidão, não restava senão a escolha entre a dos indígenas, ou a dos africanos!! No meu muito humilde conceito podíamos ter escapado a esse cancro, que corrói as entranhas de nossa sociedade, os indígenas entrariam na vida civilizada pelos meios suasórios: tê-los-íamos convertidos em laboriosos cultivadores, excelentes marinheiros, bravos soldados e inteligentes artesãos, numa palavra, em membros úteis de todas as classes que se dividem a nação. Para que tal resultado porém se conseguisse seria mister seguir o plano adotado por Nóbrega.” PINHEIRO, J. C. Fernandes. “Breves reflexões sobre o sistema de catequese seguido pelos jesuítas do Brasil. ” RIHGB,1857. 150 Sobre a “Lenda negra” elaborada pelos jesuítas sobres os paulistas ver ABUD, Op. cit., cap 1 e 2. E o artigo mais recente de SOUSA, Laura Melo. “Vícios, virtudes e sentimento regional: São Paulo, da legenda negra à legenda dourada”. Revista de História, São Paulo: USP, n º 142, 2000. 151 Além de citado em diversos momentos, Raynal serviu de epígrafe para a Notícia Raciocinada de Machado de Oliveira, evidenciando uma das fontes do teor acusatório da historiografia indianista: “Les deux tiers d’une si grande population des indiens périt parla fatigue, par la faim et par la glaive. Raynal”. (Dois terços de tão grande população de índios pereceu pelo cansaço, pela fome e pela espada). 152 Para uma análise acurada da critica iluminista à colonização e a diferença entre as correntes “reformista” e “revolucionária”, ver NOVAIS, Op. Cit. e VENTURA, Roberto. “Leituras do Abade Raynal na América Latina” In COGGIOLA, O . (Org.). A revolução Francesa e seu impacto na América Latina. São Paulo: Nova Stella/Edusp; 1990. Ainda sobre a interpretação da história do Brasil por Raynal ver CAVALCANTE, Berenice. “Dilemas e paradoxos de um filósofo iluminista” In RAYNAL, Abade. O Estabelecimento dos portugueses no Brasil. Rio: UNB, Arquivo Nacional; 2002.

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necessitava criar. Além de sua potencialidade antilusitanista estas duas tradições foram apropriadas e reelaboradas pelos membros do IHGB tendo em vista também oferecer uma representação do passado nacional que legitimasse a política indigenista que procuravam elaborar como solução para o problema da permanência da escravidão africana, então vista como um dos maiores empecilhos à construção da nacionalidade. No momento em que articulavam uma política indigenista baseada nos métodos brandos dos jesuítas, elaboraram uma representação do passado que recuperou positivamente o método das missões e acabou sendo marcada por um tom acusatório da violência e escravidão presentes numa experiência colonial raramente elogiada. Para o cônego Januário, “os maiores excessos de crueldades a que os índios se entregavam, eram represálias pelas crueldades que sofriam, servindo mais a conquista da América de extinguir, em poucos anos, uns milhões de habitantes; do que de civilizá-los pelas santas máximas do cristianismo. (...) A causa única e original de toda esta destruição e miséria, não foi, nem é outra que a insaciável cobiça e impiedade daqueles moradores, e dos que lá os vão governar; e ainda de muitos eclesiásticos, que sem ciência, nem consciência, julgavam por lícitas estas tiranias”.153(grifos meus). A tradição colonial identificada com o colonizador laico não era positivamente recuperada pela historiografia do IHGB, que apropriando-se do Abade Raynal, antepunha métodos escravocratas a métodos jesuíticos e ainda identificavam a civilização com os últimos e o extermínio com os primeiros154. Neste contexto, de acusação do colono europeu, difundiu-se a idéia de que a população com a qual os portugueses procuraram habitar o Brasil era formada de degredados, muitos deles criminosos, as “fezes da população do reino”, no dizer de um sócio do IHGB155. Para o cônego Fernandes Pinheiro, “Péssimo era o sistema de colonizar adotado por Portugal, consistindo em mandar para as suas possessões d’além mar os criminosos, os réus de polícia, para servirem de núcleo à nova povoação”156. 153

BARBOSA, Januário da Cunha.Op. Cit., 1839. pp 160. Trecho síntese do abade Raynal: “Se alguém duvidar desses venturosos efeitos da benemerência e da humanidade nesses povos selvagens, que compare os progressos que os jesuítas fizeram em tão pouco tempo, na América meridional, com aqueles que as armas e os navios da Espanha e Portugal não puderam fazer em dois séculos. Enquanto milhares de soldados converteram dois grandes impérios civilizados em desertos de selvagens errantes, alguns missionários converteram pequenas nações errantes em grandes povos civilizados.” In RAYNAL, Op. Cit.; pp 428. 155 PINHEIRO, Cônego J. C. Fernandes. “Ensaio sobre os jesuítas” In RIHGB, 1855 156 Ainda, no mesmo texto, afirmava a negatividade da ação inicial dos colonos ambiciosos: “Todos sabem que o nosso belo país que o acaso, ou antes a providência mostrara a Cabral, foi nos verdes anos da sua 154

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Neste momento, a figura do bandeirante foi colocada no centro do debate historiográfico, despertando na Corte do “sono” ao qual havia sido entregue na própria província de São Paulo. Ocorreu, como não poderia deixar de ser, uma revisão completa do sentido que desempenhou na história. Rompia-se com a visão gloriosa e laudatória do antigo paulista pacientemente formada pelos historiadores do séc. XVIII Frei Gaspar e Pedro Taques. O colono paulista apresador de índios e inimigo encarniçado dos jesuítas, passou a ser visto pelos indianistas como o grande vilão da história nacional. Em 1839 o cônego Januário já lembrava “o desumano procedimento, que por esses tempos (séc. XVII) tinham os paulistas para com os miseráveis índios”157 e citava longo trecho do Padre Vieira acusando-os de escravizarem os indígenas. O cônego Fernandes Pinheiro colocava na invenção pelos “ambiciosos colonos” das “bandeiras, espécies de caçadas de índios que lhes forneciam escravos”, a “origem da escravidão de nossos autóctones contra a qual levantaram a sua poderosa voz os heróicos civilizadores do Brasil”158 Mas dentre todos, foi o próprio Machado de Oliveira que se esmerou em desqualificar os colonos paulistas. Na sua já citada “Notícia Raciocinada”, de 1844, constatava que “na província de São Paulo, como nas demais do Brasil, predominou nos conquistadores a idéia fixa de exterminar, trucidar e desolar homens e coisas que aí deparassem, contanto que a sua ambição fosse satisfeita”159. Ou, dentre várias outras citações, no derradeiro texto que publicou na revista do IHGB sobre “Os Caiapós”, de 1860, poucos anos antes de iniciar a feitura do seu Quadro Histórico da Província de São Paulo, falava das “abomináveis façanhas” dos mamelucos que tinham como “fim horroroso” “caçar índios”160. Por fim, a nova versão indianista da lenda negra antibandeirante era demonstrada pelo literato e primeiro secretário do instituto, Joaquim Manuel de Macedo. No discurso final do ano de 1854, escrevia: “Nunca a nossa antiga metrópole mostrou compreender a magnitude desta grande questão de todos os tempos [referia-se à catequese]; muito pelo contrário os

existência entregue a especuladores, que dele tiraram lucros fabulosos, e que se viram pela maior parte iludidos em seus ambiciosos desígnios.” Idem, Ibidem. 157 BARBOSA, Januário da Cunha. Op. cit., 1839. pp 160. 158 PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Op. Cit. pp 388. 159 OLIVEIRA, J J. M d’. “Notícia Raciocinada sobre as aldeias de índios da província de São Paulo.” 160 Idem, “Os Caiapós”, In RIHGB v. 24, 1861.

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atos praticados no Brasil por aqueles mesmos que vinham desempenhar a missão de

governá-lo

parecem

demonstrar

que

predominava

no

espírito

dos

conquistadores antes a idéia da destruição dos aborígenes, do que a de sua catequese e civilização. A espada de Mem de Sá, o sistema assolador de D. Antônio de Salém, a tolerância e mesmo o repetido emprego dum crime a que se dava o nome de bandeiras, contrastavam singularmente os meios bem diversos que eram empregados nas conquistas espanholas pelo célebre Las Casas, e no Brasil pelos discípulos de Loyola.”161 (grifos meus) Mais uma vez repete-se a dualidade maniqueísta básica da historiografia indianista, na qual colonos ambiciosos, aqui representados pelas “criminosas” bandeiras, se antepunham a abnegados jesuítas. Mas estes últimos não deixavam de serem vistos com um certo receio pelos indianistas. A forma como os autores desta corrente representaram o missionário jesuíta veio marcado por forte ambigüidade, decorrente da pecha negativa que pesava sobre o inaciano desde a supressão da Companhia de Jesus, ocorrida não só em Portugal mas em diversas monarquias européias em fins do séc. XVIII, e que perdurou como um dos principais elementos do imaginário político europeu do séc. XIX. Conforme demonstrou em acurado estudo Michel Leroy a cultura do séc. XIX foi marcada pelo “mito jesuíta” que identificava o inaciano como o principal aliado das forças reacionárias do Antigo Regime e da contra revolução restauracionista, sempre empenhado na imposição de uma ordem teocrática162. Era representado como o inimigo da razão, do livre pensamento e da imprensa, sendo identificado como o representante da mais sombria “tutela moral” e do “fanatismo”. Eram vistos como em constante conspiração para controle ou destruição dos poderes do Estado, conforme estes se posicionassem diante dos interesses da Ordem. Ora eram apresentados como sustentáculos de tronos despóticos, ora como regicidas. Os autores do Instituto mostraram-se predominantemente afeiçoados a historiadores que se dedicavam a valorizar o jesuíta e a obra dos missionários na América 163. Mas 161

MACEDO, J. M. “Relatório do Primeiro Secretário” In RIHGB, 1854. pp 577. LEROY, Michel. O mito jesuíta. Lisboa: Roma Editora, 1999. O autor estuda o caso francês e se concentra principalmente nos detratores do jesuíta, dedicando pouca atenção à corrente laudatória de um Muratori, Cretineau Joly ou Chateaubriand, o que talvez evidencie a sua simpatia pessoal pela ordem. 163 Além dos próprios jesuitas, do anticolonialismo ilustrado e de historiadores romântico conservadores como Southey e Chateaubriand, todos favoráveis à ação missionária dos jesuítas, os autores do IHGB, 162

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também não ficaram de todo isentos a alguns aspectos do mito jesuíta, difundido pelo pensamento liberal e racionalista do séc XIX europeu. Além do contato com esta corrente intelectual antijesuítica, havia a fidelidade que os membros do IHGB votavam à predominância inconteste do poder do Estado. Ou seja, permanecia presente no Instituto, uma difusa herança pombalina que identificava, no jesuíta, uma ameaça à autoridade régia. E esta ameaça aparecia nas constantes referências à “tutela política” que os inacianos procuravam exercer ou ainda nas menções à obediência cega que os jesuítas dedicavam ao superior da ordem, o que os colocava como um poder autônomo dentro do Estado. Autores mais vincadamente adeptos do racionalismo iluminista, como era o caso de Machado de Oliveira, ou ainda dotados de inclinações liberais, como Gonçalves Dias, tendiam a estender, aos jesuítas, muitas das acusações que normalmente eram voltadas aos colonizadores laicos, como as de agirem movidos pela cobiça e exclusivamente em interesse da ordem164. De forma que, no interior da produção do IHGB louvava-se o jesuíta como herói civilizador mas sempre com certo receio, por que afinal, para o pensamento do séc. XIX ele também simbolizava as forças mais reacionárias no ocidente, além de ser uma ameaça ao Estado. A obra que procurou solucionar de vez a questão “se os jesuítas haviam sido úteis, ou prejudiciais ao mundo em geral e em particular ao Brasil”165 foi o “Ensaio sobre os jesuítas” escrito em 1855 pelo sobrinho do visconde de São Leopoldo, o Cônego Fernandes Pinheiro. Este, que foi um dos principais literatos do império166, solucionou a indecisão da historiografia indianista, dividindo a ação dos jesuítas em dois momentos; um início heróico e um momento posterior de degeneração. A assim chamada “idade d’oiro dos jesuítas” foi limitadíssima, correspondendo, na Europa e no Brasil, aos primeiros 40 anos de atuação da ordem, quando “santos” como Nóbrega e Anchieta se dedicavam com abnegação e total desprendimento, a defenderem os valores da fé e da civilização dos silvícolas. A partir da ascensão do superior Acquaviva em 1581 impôs-se nova orientação principalmente o especialista no tema, cônego Fernandes Pinheiro, ainda se apropriavam criticamente de GIOBERTI, Il Gesuita Moderno; CRITINEAU-JOLY, Du jesuitisme ancien et moderne e MURATORI, Il Cristianesimo Felice, todos autores favoráveis aos jesuítas. Ver PINHEIRO, C. J. Fernandes. “Ensaio Sobre os Jesuítas” In RIHGB, 1855. 164 A posição ao mesmo tempo crítica e laudatória de Gonçalves Dias em relação ao jesuíta foi sintetizada no texto “Resposta a Religião” In Guanabara, Rio de Janeiro, n º 2, 1851. 165 Idem, Ibidem p. 67. 166 CÂNDIDO, Antônio. Op. Cit., 2000. p. 345.

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para toda a ordem, que passou a ser marcada por “restrições mentais”, busca das “pompas e vaidades do mundo” e a mais funesta intromissão nos assuntos de governo. Os abnegados jesuítas no Brasil vieram a sofrer as conseqüências da decadência da ordem na Europa. De par com a intensificação de um “funesto fanatismo”, deixaram de lado sua proverbial abnegação e passam a atuar somente em proveito próprio, servindo, as missões, somente para dar “aos benditos padres lucros incalculáveis”. Cônego Fernandes Pinheiro, como bom representante do nosso clero ilustrado e regalista, terminava justificando a expulsão dos jesuítas por Pombal. Com a divisão entre o “bom jesuíta” dos primórdios, abnegado e civilizador de índios, e o “mau jesuíta”, ambicioso e submisso à ordem, o autor aliava, simbolicamente, a louvação dos métodos indigenistas dos missionários com a proeminência da razão de Estado, as duas bases da política indigenista do IHGB. Postura muito semelhante havia sido defendida por Machado de Oliveira, no texto “O convento da Penha na Província do Espírito Santo”, de 1843, no qual antepôs o mau missionário, dominado pela ambição e a serviço do conquistador, e o missionário heróico, abnegado e identificado com o jesuíta Anchieta e o franciscano Frei Palácios, fundador do citado convento capixaba167. Desta forma, definiam o contorno básico da representação indianista de nosso passado. Tal historiografia indianista era marcada pelo duplo propósito de conferir sustentação a um discurso de identidade nacional brasileira original, diferente da portuguesa, ao mesmo tempo que deveria legitimar a política indigenista do seu presente, entendida como meio de construir a nação livre da ameaça à segurança coletiva representada pela escravidão internalizada. Centrada no confronto entre a ambição do colono laico português e a abnegação do jesuíta, acusava a escravidão e extermínio do indígena como “pecado original” da nação168, pecado este que deveria ser “redimido” pela política indigenista de incorporação do indígena à nação brasileira e à civilização. Nesta visão indianista do nosso passado, três agentes se destacaram: o indígena, dono original do território, e base do nosso caráter nacional, significativamente visto como selvagem e necessitando, tanto no passado quanto no presente, da tutela do Estado para elevar-se ao estágio de Civilização pela catequese; o jesuíta, herói civilizador da nação a 167

OLIVEIRA, J. J. Machado d’. “O convento da Penha na província do Espírito Santo.” In RIHGB, v. 5, 1843. 168 PUNTONI. Pedro. Op. Cit. p. 1996.

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despeito de sua posterior degradação e intervenção nos negócios do Estado, e o colono laico, escravocrata e ambicioso, unicamente voltado a seus interesses materiais. Esta interpretação indianista não ficou restrita ao âmbito da Corte, tendo marcado profundamente a forma como foi elaborada a interpretação monárquica do passado paulista que passo a analisar.

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Capítulo 3 - O paulistanismo monárquico : Antibandeirismo e fidelidade paulista.

A construção de uma identidade nacional unitária durante o Segundo Reinado não se reduziu somente às tentativas de elaboração de uma história nacional pelos intelectuais reunidos na Corte, conforme acabamos de analisar. Para que esta visão unitária e monárquica do passado brasileiro surtisse o efeito centralizador desejado e para que de fato os habitantes das diversas províncias sentissem que tinham “a mesma origem, o mesmo fundo histórico”, conforme pregava Von Martius, seria importante que as próprias histórias de recorte regional se enquadrassem na matriz interpretativa definida pelo centro, pelo IHGB. O caso paulista foi exemplar neste sentido, na medida em que o Quadro Histórico da Província de São Paulo, elaborado pelo sócio Machado de Oliveira, foi marcado pelo transplante da matriz da etno-historiografia indianista para o caso paulista. Assim, o paulistanismo monárquico foi caracterizado por um viés marcadamente antibandeirista conferido pela historiografia indianista representada por Machado de Oliveira, visão somente contestada pelo historiador dissidente Francisco de Varnhagen, que solitariamente fez o elogio do colono paulista. Mas se a visão sobre o papel do bandeirante na história paulista e brasileira causava acirradas polêmicas historiográficas, um aspecto era ponto pacífico entre historiadores e literatos imperiais: o elogio da “fidelidade paulista”. Mais do que a figura do bandeirante, Amador Bueno foi a personagem do passado colonial paulista que mais interesse despertou na elite monárquica, principalmente a da Corte, a ponto de poder ser considerado o verdadeiro símbolo de um paulistanismo monárquico. 3. 1. Machado de Oliveira e “Os Guaianás”: o antibandeirismo indianista.

Logo no prefácio do Quadro Histórico, Machado de Oliveira afirmava que a força que o orientou na escrita desta obra foi “o amor extreme pela terra em que nasci”. Mas ao contrário do que fizeram os historiadores do Séc. XVIII e fariam os do XX, este “amor extreme” por São Paulo não seria lastreado na louvação inconteste da figura do antigo colono paulista, entendido como herói regional e símbolo maior das virtudes do povo paulista e muito menos pela afirmação de uma especificidade do passado paulista em

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relação ao nacional. O ponto mais saliente da representação do passado paulista elaborada por Machado de Oliveira é o tom predominantemente negativo que confere à figura do bandeirante, o que se explica pela sua vinculação à matriz historiográfica indianista. Assim, como bom súdito de Pedro II, em termos historiográficos Machado de Oliveira dava as costas para a tradição historiográfica paulista setecentista e se mostrava fiel à produção nacionalista monárquica do IHGB, que aliás ajudara a elaborar. O Quadro Histórico é marcado por um paulistanismo profundamente indianista, refletido não somente na visão negativa do antigo paulista caçador de índio, mas no conjunto da representação que traçou do passado regional. Assim, conferia um lugar de destaque ao indígena como agente da história paulista incluindo mesmo uma parte introdutória sobre a etnografia indígena paulista, conforme mandava o figurino do IHGB169, querendo mostrar que as origens também dos paulistas estavam nos seus índios. Apresenta os três grupos existentes dos guaianás, tupis e carijós. Demonstra predileção pelos guaianás, não somente pela bravura demonstrada na defesa de sua liberdade, mas também pelos hábitos civilizados e brandos que possuíam: “tinham civilização a seu modo, costumes brandos e hábitos sedentários; eram estranhos à antropofagia, e acreditavam na metempsicose ou transmigração das almas, provendo aos mortos como que si fossem à segunda vida”170. O Autor reforçava assim o princípio indianista da compatibilidade do indígena com a civilização. Mesmo quando os indígenas não aparecem explicitamente na obra, sua relação com os colonos foi enfatizada na análise. Quando tratou do momento crucial da fundação da capitania, deu destaque à expedição de Martim Afonso; os imperativos patrióticos levaram o autor a louvar este que apresentava como o primeiro colonizador da capitania. Mas esta louvação estava baseada no critério indianista do bom trato adotado pelo colonizador em relação ao indígena. Assim, Martim Afonso era louvado pelo “bom senso em que se houve na fundação de sua colônia; sobretudo, sabendo tomar prevenções contra o abuso da aglomeração intempestiva e imprudente dos colonos e indígenas”, ou seja, o representante da Coroa era louvado por ter preservado os indígenas do contato com os colonos

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Uma das maiores críticas levantadas pelos sócios contra a primeira edição da História Geral do Brasil de Varnhagen foi o fato deste não ter iniciado a sua história brasileira pelo tratamento dos indígenas. O capítulo inicial sobre “etnografia indígena” tornou-se marca registrada da historiografia indianista.

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portugueses, pela proibição do estabelecimento destes últimos no planalto paulista. Mas, ao elogio seguia-se forte acusação a Martim Afonso: “Há, porém, um fato que depõem contra o bom senso, e que a humanidade tomará sempre como um estigma à reputação de Martim Afonso(...) Revela este fato uma iniquidade que perdurou muito tempo; ele significa que a escravidão dos índios de São Vicente foi após a sua mansidão abaixando os arcos, quando podiam com vitória repelir os intrusos de suas terras; e isso se conhece bem distintamente na licença concedida pelo capitão-mor a Pedro de Góes em 3 de março de 1533, de ‘mandar para Portugal nas naus d’el rei dezessete peças de escravos indígenas’”. No relato do simbólico momento da Fundação da capitania de São Paulo, insere-se, desta forma, o tema da escravidão indígena, aos moldes do tratamento dado ao tema por Joaquim Norberto nas páginas da revista do IHGB ao abordar a chegada de Cabral ao Brasil. A despeito de toda a boa vontade de Martim Afonso em relação aos índios, o autor o condenava por ter permitido a introdução da semente do mal em São Paulo, representada pela instituição da escravidão indígena. Mas o maior destaque foi dado à desqualificação dos colonos que se empenharam na caça do índio e na destruição das missões jesuíticas, exatamente aqueles posteriormente qualificados de bandeirantes171. Segundo o autor, as expedições apresadoras de índios foram necessárias pela escassez de mão-de-obra decorrente de contínuos maus tratos e “por que a esse tempo, ainda não era admitida no Brasil a ignominiosa escravidão africana”172. Os colonos paulistas descritos por Machado de Oliveira estavam muito longe de se parecerem com os enérgicos bandeirantes cantados por Pedro Taques e Saint Hilaire. Para o autor indianista, seus antepassados coloniais eram dotados de “hábitos de poltroneria”, viviam “vida ociosa e barregã” e não se expunham a “empresas fortuitas e assaz arriscadas” como eram as expedições de apresamento. Dizia que, preguiçosos, os paulistas convenceram os mamelucos, seus conterrâneos, a apreenderem os índios. Dos mamelucos, o autor apresenta a pior das imagens: são “homens embrutecidos”, “sem obediência ao

170

OLIVEIRA, J. J. Machado. Quadro Histórico da província de São Paulo. São Paulo: Gov. do estado de SP; 1978. p. 16,17. 171 Apesar de Machado de Oliveira usar o termo bandeira e bandeirante em outros artigos, ele não aparece no Quadro Histórico. 172 OLIVEIRA, Machado d’. op. cit. ,1978. p. 86.

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governo e mantendo-se de rapina”.

Sua “nefanda origem” era assim explicada por

Machado de Oliveira: “A emigração nessa época era em sua mór parte de fugitivos, criminosos, desertores e réus de polícia, que alijavam-se às praias de São Vicente de preferência a outro qualquer porto. À sua chegada aliavam-se esses homens às mulheres indígenas, resultando deste cruzamento o acréscimo da classe dos mamelucos, cujo nome odioso foi por historiadores estrangeiros, e por muito tempo, confundido com o de paulistas, aliás formando estes uma classe diferente”173. Para suavizar a desqualificação do paulista colonial, Machado de Oliveira o diferenciou do mameluco e direcionou sobre este último a maior carga de responsabilidade pelas expedições contra as missões. Mas se, para o autor, paulista e mameluco não eram a mesma coisa, eles haviam se unido para escravizar os índios e sobre ambos lançou forte condenação. É interessante observar como descreve a destruição das missões jesuíticas do Guairá pelos colonos de São Paulo, um dos feitos mais louvados pela historiografia paulista do séc. XX. O “cabecilha” da expedição, Antônio Raposo, era acusado de “cruezas contra os índios” e comandar a “devastação” das missões. De forma que “em 1631 já estava consumada a obra do arrasamento do Guairá, fazendo-se horrorosa mão baixa nos índios que tentaram defender suas famílias, aprisionando-se todos que se entregaram à matança, e entregando-se ao incêndio as povoações acometidas”174( grifos meus). O vocabulário empregado evidencia o sentido que o autor procurou dar ao acontecimento. Esta visão essencialmente negativa dos paulistas caçadores de índios do séc.XVII, resultou também em uma original forma de representar um dos temas centrais do imaginário historiográfico paulista: o do fim do bandeirismo, datado normalmente do séc. XVIII. Desde alguns escritos de final do séc XVIII este período é apresentado como de “decadência” da província e do seu habitante, opinião esta compartilhada, conforme vimos anteriormente, por Ricardo Gumbleton Daunt. Mas para Machado de Oliveira, que pouco valor dava às correrias bandeirantes seiscentistas, o sentido do processo é exatamente o contrário. Após a descoberta das minas e proibição da escravidão indígena por decreto de

173 174

Idem, Ibidem, p. 87. Idem, Ibidem, p. 90.

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D. José I, ao invés de decadência, o que ocorreu foi a “regeneração dos costumes e antigos hábitos dos paulistas”175. Proibidos de caçar índios pela “vigilância e zelo do Marquês de Pombal”, os paulistas lembraram-se de recorrer aos trabalhos agrícolas. A partir do momento que deixaram de caçar índios e se sedentarizaram, dedicando-se a lavrar a terra e criar gado, “foram os paulistas corajosos sem crueldade”, segundo o autor. Desta forma, Machado de Oliveira relacionava intimamente a supressão do bandeirismo com a regeneração dos costumes paulistas, pretendendo mostrar que nada, além da coragem dos bandeirantes, havia sido transmitida para seus descendentes. Para ele, o paulista moderno não herdara os traços negativos do paulista antigo. A representação do autor sobre os paulistas antigos mudou de tom no que se referia às expedições de exploração do território e de descoberta das minas. Neste caso, o paulista colonial, detratado na maior parte do livro, passou a ser valorizado positivamente. Quando a questão de fundo deixou de ser a questão indígena para se transformar na questão territorial, a representação monárquica da tradição paulista mudou de tom. Um outro ramo da historiografia monárquica do IHGB, mais ligado à geografia, valorizava as expedições paulistas de conquista do território. Como mostra Demétrio Magnoli, alem da questão indígena, o IHGB foi foco de elaboração de uma historiografia territorialista. Fruto da fusão da geografia com a história, encarregou-se de definir o processo de construção do território nacional pelo estudo das levas coloniais de ocupação e dos diversos tratados de limites assinados pela antiga metrópole. Tratava-se de uma historiografia encarregada de dar subsídios históricos às reivindicações do governo brasileiro nas disputas com países limítrofes através da delimitação das fronteiras imperiais, ainda muito mal definidas no período176. Na maior parte das vezes, foi elaborada por diplomatas como Duarte da Ponte Ribeiro, Francisco de Varnhagen, ou o visconde de São Leopoldo. Também Machado de Oliveira se inseriu nesta corrente, tendo entrado em choque com a posição oficial do governo brasileiro a respeito do

175

Idem, Ibidem, p. 154. Sobre Imaginário geográfico imperial e o contexto de produção da historiografia territorialista ver MAGNOLI, Demétrio.Op. Cit., 1997. 176

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tratado de limites de 1851, o que parece ter levado à sua marginalização política dentro do Instituto177. No geral, a historiografia territorialista tendia a valorizar positivamente a ação dos paulistas coloniais. Recuperava o elogio feito pelos historiadores setecentistas, e conferiam a eles um sentido unitário ao considerar os “sertanistas paulistas” como colaboradores da obra de construção da unidade territorial da nação. Calcados na doutrina das fronteiras naturais, louvavam os paulistas por terem tomado posse, para a Coroa, do território “naturalmente” definido entre o Amazonas e o Prata. O expoente desta visão da história brasileira e da missão territorialista dos paulistas, José Feliciano Fernandes Pinheiro, visconde de São Leopoldo, era natural de Santos na então capitania de São Paulo, mas estudara em Portugal nos últimos anos do séc. XVIII, pertenceu ao grupo dos reformistas ilustrados próximos ao conde de Linhares, chegando a ser representante da sua província natal nas Cortes de Lisboa em 1820. São Leopoldo afirmou-se mais como um funcionário do Estado monárquico do que membro da elite liberal paulista e acabou por enraizar seus interesses na província do Rio Grande do Sul. Este que foi um dos ministros do imperador d. Pedro I, e primeiro presidente do IHGB, em obra publicada em 1819, escrevia: “(...) a ilesa conservação destes territórios [sertão da Vacaria no RS] no senhorio português é mais um testemunho do zelo e do entusiasmo patriótico, que instigava os paulistas para os altos feitos, em que á custa de suas fazendas e vidas tanto se extremaram; propensos por gênio e por educação a empresas árduas, não só defenderam, mas ainda alargaram as raias deste Estado, que sem eles é provável estivessem hoje reduzidas a mais estreitos limites; por isso a história daquela província será também a história geral do Brasil.”178 A última frase deste parágrafo – “a história da província de São Paulo será também a história geral do Brasil” - teve um futuro de sucesso. Ela foi apropriada, primeiramente, por Machado de Oliveira, que a transformou em epígrafe de seu livro. Com isso reforçava a imagem do paulista bom servidor da Coroa e fiel á Monarquia. Posteriormente, já no contexto republicano, serviu de lema para o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo 177

Sobre a repercussão das críticas de Machado de Oliveira no interior do IHGB ver MAGNOLI, Demétrio. Op. Cit. , 1997. p. 257, 258. . 178 PINHEIRO, J. F. Fernandes. Anais da província de São Pedro. Rio: Imprensa Nacional; 1946. p. 31.

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(IHGSP), fundado em 1894. Então, o sentido de serviço à Coroa que a frase originalmente encerrava foi reformulado, passando a exprimir os anseios por controle hegemônico da política e da econômica nacional por parte da elite do Estado de São Paulo. De qualquer forma, São Leopoldo reintroduziu o tema setecentista do paulista como construtor e defensor das fronteiras territoriais nacionais, adequando-o ao contexto de constituição do Estado nacional monárquico. Esta visão positiva do paulista, decorrente de sua ação territorialista, foi reelaborada para um territorialismo a serviço da Monarquia, e assim transposta no Quadro Histórico. Machado de Oliveira representou os paulistas que descobriram as minas da seguinte forma: “homens esforçados que tinham banido de si o ócio, e o viver em círculo doméstico, voltaram face para as regiões setentrionais do Brasil, e penetraram os longínquos sertões, que se estendem até ao rio Amazonas”179. Os paulistas aparecem, então, como “corajosos” e afoitos “homens de ferro”. A expedição de Antônio Raposo ao Amazonas é apresentada pelo autor como movida pelo propósito territorialista de avassalar “terra e mar pelo seu rei”, e seus seguidores são descritos positivamente como “audazes e aventurosos”180. Assim, a centralidade da questão territorial no período imperial possibilitou que Machado de Oliveira atenuasse as pesadas acusações que lançava sobre seus antepassados, revelando mesmo um papel positivo das excursões paulistas pelos sertões do Brasil. Mas essa atenuação não anulava o predominante antibandeirismo presente nas páginas do Quadro Histórico. Nessa obra, como foi indicado antes, os jesuítas eram representados como o elemento que possibilitara unir o presente ao passado na condição de conciliadores dos dois polos em constante conflito (colonos e índios) e alternativa pacífica para a introdução efetiva da civilização na colônia. Neste sentido, o autor elogiava a intervenção pacificadora de Nóbrega e Anchieta no episódio da confederação dos Tamoios e o acolhimento pelos padres das acusações indígenas nas cotidianas lutas contra a exploração dos colonos181. Machado de Oliveira procura ainda mostrar as melhores condições de trabalho que os jesuítas proporcionaram a seus aldeados, “e isso por que os padres com a brandura do

179

OLIVEIRA, Machado d’. Op.Cit., 1978 p. 109. Idem, Ibidem, p. 109. 181 “... a estes queixumes eram tentos os jesuítas de Piratininga, aos quais recorriam os índios como o único queixume a tantos vexames.” Idem, Ibidem, p. 80. 180

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seu trato, com os meios de insinuarem-se com docilidade nas mentes de seus neófitos, antes do que impressioná-la com ameaças, com o tino de faze-los persuadir para o trabalho em vez de obrigá-los para ele, não podiam ter por competidores a homens brutais e ríspidos em seu mando nas exigências para a servidão”. Neste trecho, a visão dicotômica reaparece, mas cabe ressaltar que ela não ficou restrita ao trabalho deste autor. Ela era inerente à matriz indianista, que marcou também o único romance indianista ambientado exclusivamente na São Paulo colonial. Trata-se do interessante livreto Os Guaianás. Romance histórico da fundação de São Paulo, cuja primeira edição apareceu em 1860, de autoria do então estudante de direito José Vieira Couto de Magalhães, que, aliás, era mineiro e não paulista. O interesse do jovem Couto do Magalhães pela literatura indianista parece ter surgido da leitura do poeta Bernardo Guimarães, também mineiro e estudante em São Paulo, cujos versos são usados como epígrafe do romance. Junte-se a isso a reveladora colaboração de Magalhães no jornal O Guaianá, editado por Homem de Melo, e teremos o pano de fundo da elaboração do romance182. A convivência acadêmica possibilitou a Couto do Magalhães costurar a literatura romântica praticada por Bernardo Guimarães ao entusiasmo pelo passado paulista compartilhado com o colega Homem de Melo, resultando nesse original romance histórico indianista, ambientado nos primórdios de São Paulo. O romance segue as características gerais do gênero romântico, com descrição inicial da natureza de Piratininga, ambientação de época e uma trama amorosa que orienta a feitura dos capítulos. O autor reconstitui o momento fundador de São Paulo através da narrativa das desventuras de um casal de guaianás aldeados na Piratininga de 1554, Iná e Caá-Ubi, que sonham em concretizar seu amor através do enlace matrimonial, a ser consagrado pelo bom jesuíta Pe. Manuel de Paiva, mas que são impedidos pelos colonos paulistas - ambiciosos e sensuais - que raptam a heroína, desencadeando os mais diversos episódios romanescos. As personagens do romance e as suas caracterizações são as mesmas consagradas pela historiografia indianista: tupis aldeados, abnegados jesuítas e colonos ambiciosos. A “fundação de São Paulo” apontada no título da obra é entendida como a união da raça

182

Homem de Melo faz uma crítica do romance, publicado em HOMEM DE MELO, Francisco I. M. Estudos Históricos e literários. Rio: Laemmert, tip. Quirino & irmãos; 1868.

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guaianá redimida pelo cristianismo dos jesuítas. Nesta representação das origens, os colonos laicos são os inimigos maiores dos índios e jesuítas, e no limite, desvirtuadores da síntese indianista-cristã que estava na base da civilização paulista, conforme a entendia o autor. A citação de uma simples digressão do narrador basta para evidenciar a aplicação, também neste romance, da visão dicotômica indianista: “Enquanto os portugueses que corriam para Santo André procuravam fazer com que os índios trabalhassem como escravos, os jesuítas faziam-nos trabalhar como filhos; enquanto os primeiros procuravam como que à força introduzir entre eles o uso da língua portuguesa, os segundos estudavam a língua do Brasil; não é difícil prever-se a quem caberia a vitória. As paixões políticas tem constantemente pintado os jesuítas como ambiciosos ferozes; eles o foram, talvez, na Europa; mas na América seu poder foi sempre doce e benfazejo. O jugo a que submetiam suas tribos indianas era severo, mas não cruel: sabiam misturar o trabalho ao divertimento, o esforço ao descanso, o crescimento físico ao desenvolvimento moral.183” A nota original na representação do passado paulista feita no livro ficou por conta da transposição para o espaço da dicotomia jesuíta X colono, representada pela oposição entre as vilas de Piratininga e de Santo André da Borda do Campo. No romance o iminente confronto entre ambas, marca toda a trama. Piratininga seria o bastião da civilização resguardada pelos jesuítas e identificada com as figuras fundadoras de Nóbrega e Anchieta, enquanto Santo André seria um foco de colonos como Pero Lopes, possuidor de uma “alma mesquinha e cobiçosa” e “de uma sensualidade verdadeiramente brutal”, identificado com a figura de seu fundador João Ramalho. Este último personagem concentrou sobre si o ódio dos autores indianista, transformando-se em uma espécie de anti-herói da história paulista e brasileira, síntese de todos os vícios atribuídos aos colonos. Com a exceção de Machado de Oliveira que tendia a ver João Ramalho como um conciliador ao modo dos jesuítas, a historiografia do séc. XIX tendeu a demonizar a sua figura pelo papel, atribuído pelas crônicas coloniais, de ter sido caçador de índios, notório traficante de escravos e inimigo dos jesuítas, o que levou alguns

183

MAGALHÃES , J. V. Couto de. Os Guayanás. Conto Histórico sobre a fundação de São Paulo. São Paulo; Tip. Espindola, Siqueira & Comp.; 1902. pp 15

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historiadores à acusação (muito grave, para fervorosos católicos que eram) de que fosse judeu184. A desqualificação definitiva de João Ramalho foi realizada por um sócio do IHGB, o ultramontano Cândido Mendes de Almeida nas sua “Notas para a História Pátria” publicadas na revista do Instituto de 1876 a 1878. É interessante observar como a inserção de Couto de Magalhães no universo do indianismo se iniciou pela literatura indianista para, somente num segundo momento, reverter em uma ativa prática indigenista. Diferenciava-se, assim, de Machado de Oliveira que seguiu trajetória contrária, tendo planejado escrever um romance indianista somente após assumir o cargo de Diretor Geral dos Índios da província. De fato, a elaboração de Os Guaianás, mais do que simples aventura intelectual de juventude, foi a sua porta de entrada para o universo do debate nacionalista e indianista uma vez que, juntamente com a memória sobre a Revolta de Felipe dos Santos em 1720, serviu como requisito para a sua admissão como sócio do IHGB185. A fusão do debate indianista, travado no seio do Instituto, com a experiência pessoal adquirida como presidente das províncias de Goiás (1862-64), Pará (1864-66) e Mato Grosso (1866-68), todas de grande população indígena, motivou o deslocamento de seu primordial entusiasmo indianista para um sisudo empenho indigenista, concretizado com a criação, em 1871, do Colégio de Línguas Princesa Dona Isabel, voltado ao ensino de crianças indígenas e, principalmente, com a publicação, em 1876, do livro O Selvagem. Escrito a pedido do Imperador para a Exposição Universal de Filadélfia (1876), O Selvagem apresentava o plano de Couto de Magalhães de incorporação dos indígenas brasileiros como força de trabalho. Tratava-se de, nada menos que a renovação, mediante a adequação ao contexto da modernização dos anos 1870, do projeto indigenista originário do IHGB. O indigenismo laicizado do liberal monárquico Couto de Magalhães pode ser considerado como um elo entre o indianismo romântico do IHGB e o “novo indianismo”, marcado pelos ideais naturalistas e cientificistas de finais do séc. XIX, de um Capistrano de

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FERRETTI, D. & CAPELATO, M. H. R.. “João Ramalho e as origens da Nação: os paulistas comemoram o IV Centenário do descobrimento.” In Tempo, Rio de Janeiro, vol. 4, n º 8, 1999. 185 As informações biográficas de Couto de Magalhães apresentadas são retiradas dos estudos da Prof. ª Maria Helena Machado. MACHADO, Maria Helena P. T. “Introdução” In MAGALHÃES, J. V. Couto de. Diário Íntimo. Série Retratos do Brasil ; Cia. das Letras: SP; 1998. Ou ainda MACHADO, Maria Helena P. T. “Um Mitógrafo no Império: a Construção dos Mitos da História Nacionalista do séc. XIX.” In Estudos Históricos, n º 25, 2000.

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Abreu ou Teodoro Sampaio, autores de grande importância para a elaboração da historiografia paulista do séc. XX. Mas em 1860, no momento em que foi publicado Os Guaianás, o contexto cultural era outro, marcado pelos sucessos, principalmente dos romances do conservador escravocrata José de Alencar, que conferia um tratamento ao tema do confronto entre indígena e colono, mais marcado pela submissão voluntária do primeiro ao segundo, diferente, portanto, do apresentado por Couto de Magalhães em que o ódio do índio CaáUbi ao colono português Pero Lopes irrompe a todo momento. Neste ponto, o autor de Os Guaianás parecia estar muito mais próximo do indianismo acusatório do extermínio e da escravidão dos índios, característico da primeira geração romântica, fortemente ligada ao IHGB186. Assim, mesmo não tendo nenhuma relação direta entre si, as representações do passado paulista elaboradas, quase na mesma época, por Machado de Oliveira e por Couto de Magalhães apresentaram traços muito semelhantes e remetiam a um mesmo imaginário da nacionalidade relacionado diretamente ao caso paulista. Como já apontamos anteriormente, o tratamento que Machado de Oliveira conferiu à história de São Paulo pode ser considerado como uma evidencia da eficácia do projeto historiográfico centralizador acalentado pelo IHGB. O que encontramos é a elaboração de uma identidade provincial que não reforça traços de especificidades regionais, mas, ao contrário, procurava levantar os pontos em comum da tradição provincial com a matriz de história nacional una, no caso marcadamente indianista, que os grupos centralizadores esboçaram. A história, para Machado de Oliveira, não era usada como instrumento político de afirmação de uma especificidade provincial que servisse para lastrear reivindicações de maior autonomia regional. Muito pelo contrário, a história foi por ele utilizada como instrumento de afirmação de pertencimento dos paulistas à comunhão brasileira, pela submissão da representação do passado regional ao modelo indianista elaborado pelos intelectuais da Corte, e mesmo de adesão e fidelidade à causa da monarquia constitucional,

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Segundo Alfredo Bossi, o indianismo de Alencar, diferente daquele acusatório de Gonçalves Dias, é baseado essencialmente em um mito sacrificial do indígena, normalmente de caráter voluntário, que legitima a dominação dos superiores/colonos pela louvação da submissão consentida dos subalternos/indígenas. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização, São Paulo: Cia. dasLetras; 1994. Cap. 6.. Pedro Puntoni aprofunda a discussão mostrando como o mito sacrificial indianista não é exclusividade da corrente abertamente conservadora e escravocrata de Alencar, estando também presente no poema épico Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães. PUNTONI, Pedro. Op. Cit.; 1996.

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conforme fica claro no tratamento conferido pelo autor ao episódio da Aclamação de Amador Bueno, que analisaremos melhor a seguir. Assim, a identidade paulista que emerge da representação do passado elaborada por Machado de Oliveira acabou sendo marcada pelas mesmas características do padrão monárquico de identidade: a identidade nacional indianista. Tratava-se de um “paulistanismo” também monárquico e indianista, calcado na centralidade do indígena, na valorização do jesuíta e detração do antigo colono, exceto quando este conquista territórios para sua majestade, e na acusação do extermínio e escravidão do primeiro. A identidade regional aparecia como submetida à identidade nacional que o Império se propôs criar. E a história antes de ser o suporte de um discurso da especificidade regional era o instrumento de inserção da província nos quadros da nação unitária e centralizada. Mantendo a mesma submissão do regional ao quadro nacional, Varnhagen rompeu com a matriz indianista, por ele denominada pejorativamente de “cabocla”, acabando por representar positivamente, em todos os seus aspectos, o bandeirante e o paulista antigo.

3. 2. Varnhagen e a louvação monárquica do colono paulista.

O historiador sorocabano Francisco Adolfo de Varnhagen, a despeito de ter sido o único a realizar o objetivo maior do IHGB de escrever uma história una do Brasil não colheu os louros que pretendia e acreditava merecer. Longe disso, por conta da maneira como escreveu esta história nacional, engalfinhou-se com as maiores autoridades no assunto, seus contemporâneos, desencadeando a maior polêmica historiográfica de todo o séc XIX brasileiro. Esta polêmica está bem estudada187, e mostra como a causa maior da rejeição de Varnhagen foi a sua oposição à matriz historiográfico-identitária indianista. Aqui apresentarei, brevemente, o impacto de sua peculiar representação do passado colonial paulista. Varnhagen se recusava a identificar, no indígena, a origem de nosso caráter nacional, posicionando-se por uma irrestrita louvação do colono português entendido como o verdadeiro e exclusivo agente civilizador e construtor da nacionalidade. Na raiz do posicionamento historiográfico antiindianista de Varnhagen encontrava-se uma original 187

PUNTONI, Pedro. Op. Cit., 2003.

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proposta indigenista. Ao contrário dos colegas do IHGB que pretendiam retomar a tradição jesuíta de incorporação “branda” e “pacífica” do indígena, Varnhagen propunha no seu ‘Memorial Orgânico” de 1849, nada menos do que a adoção do modelo bandeirante de apresamento de mão de obra: pelo uso da força os proprietários, organizados na guarda nacional, apresariam os índios bravos, adquirindo o direito de uso por quinze anos de seus serviços. A imagem do colono paulista elaborada por Varnhagen era completamente diferente daquela elaborada pelos demais indianistas. Predominava o sentido positivo, uma vez que para o autor os antigos paulista haviam por experiência percebido que métodos brandos não eram eficazes e, colocando a razão de Estado acima de qualquer outro valor, partiam para o apresamento direto, possibilitando o crescimento da colônia. Além da determinante posição indigenista, a defesa das tradições paulistas e do bom nome dos habitantes da província também influíam na argumentação de Varnhagen contra os diversos detratores do bandeirismo seiscentista. Em 1844, fazendo a crítica às acusações que Abreu e Lima teceu contra os mamelucos e paulistas apresadores de índios, escreveu: “Eu, como paulista, mostraria ter em mui pouco a glória de o ser, se deixasse sem grave censura a repetição de uma sediça injúria, dirigida ao passado de meus compatriotas, os ousados descobridores dos sertões Brazílicos até o Paraná, a cujos esforços, e derrotas, que deram aos espanhóis, o Império deve hoje a extensão vasta de seus limites ocidentais(...)”188. Quando ainda não havia se iniciado a polêmica contra os indianistas, Varnhagen defendia o bom nome dos paulistas usando o argumento territorialista da “descoberta de sertões” e definição dos “limites ocidentais”, aceito por todos durante o Império. Mais adiante, em 1857, quando a polêmica com os indianistas estava no seu auge, sua defesa dos colonos paulistas era explícita e a referência à valorização das tradições provinciais era usada como conclusão de seus argumentos: “Ostente por embora falsamente, à custa dos índios, o escritor estrangeiro e não cristão, todo o luxo de pseudo-filantropia que sacie o seu Rousseauniano

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VARNHAGEN, F.A.. “Primeiro Juízo submetido ao IHGB pelo seu sócio, acerca do ‘Compêndio da História do Brasil’ pelo Sr. Jose Inacio de Abreu e Lima” In RIHGB, v.6,1844. p. 80

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entusiasmo filo-selvagem; um historiador nacional e cristão tem outros deveres a cumprir; e um filho de São Paulo não poderia deixar de seguir as opiniões que temos a fortuna de partilhar, sem faltar o respeito à memória do Buenos, dos Ramalhos, dos Lemes, dos Paes, dos Rendons, dos Toledos e de outros que alargaram, à custa de vitórias sobre os Bugres ou índios bárbaros as raias da civilização da pátria dos dois Gusmãos, e de tantas ilustrações, que contribuem não pouco à glória do Império Brasileiro.- Disse.” (grifos meus)189 Os paulistas antigos, para Varnhagen, eram agentes da civilização e da glória do Império, e o tão acusado ataque aos índios era apresentado como uma vitória sobre as forças da barbárie. Na sua visão, longe de merecer os ataques recebidos pelos nacionalistas caboclos, os antigos paulistas organizadores de bandeiras deveriam ser louvados por apresentarem, para o presente do séc. XIX, o modelo de solução da questão da mão-deobra. Como mostrou Pedro Puntoni, Varnhagen não acusava a instituição da escravidão de ser naturalmente injusta, considerando-a mesmo, na senda do bispo Azeredo Coutinho, uma forma de chamar os bárbaros escravos ao “grêmio da civilização”. Mas, ao mesmo tempo, acusava a escravidão negra como perigosa à segurança do Estado independente. Se alguma escravidão era legitimada pelos escritos de Varnhagen esta era a escravidão indígena, era a retomada do modelo paulista colonial, do modelo bandeirante, que propunha como solução, juntamente com a imigração européia do duplo problema da fonte de trabalho e de constituição do povo brasileiro. Justifica, desta maneira, o apresamento de índios pelos paulistas antigos, como alternativa à importação de negros, vistos como elementos indesejáveis principalmente pela insegurança que causariam à nação independente. Na História Geral do Brasil afirmava que “Os Paulistas sentindo demasiado a falta de braços, desde que do Rio, Bahia e Pernambuco não lhes podiam ser levados os escravos trazidos pelos negreiros d´África, se lançaram de novo aos sertões, a fim de buscar neles outros braços para os ajudar em seus trabalhos. Segundo as nossas idéias, menos mal faziam ao Brasil do que os traficantes negreiros, que estavam já começando a entulhar de negrería algumas cidades do litoral.”190

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VARNHAGEN, Francisco Adolfo. Os índios perante a nacionalidade brasileira. In Anuário do Museu Imperial, Petrópolis, 1948, p. 236. 190 VARHAGEN, F. A . História Geral do Brasil. Rio; Laemmert; 1875

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O paulistanismo de Varnhagen era decorrência, e ao mesmo tempo reforçava, seu anticaboclismo. Se compararmos sua posição com a de Machado de Oliveira, poderemos compreender como, no Segundo Império, a questão de fundo do debate sobre o bandeirante era a questão indígena, que acabou marcando também as formas de tratamento do regional. Isso talvez explique a insólita situação do ultra centralizador Varnhagen afirmar, com intensidade, seu paulistanismo e o descentralizador Machado de Oliveira, também paulista, ser tão comedido na louvação do passado regional. Mas se Machado de Oliveira, contrário à centralização, divergia tão fortemente de Varnhagen, centralizador, quanto à representação do antigo colono paulista, ambos se identificavam na louvação da figura de Amador Bueno, que acabou se transformando na figura histórica mais característica da identidade paulista monárquica.

3. 3. Amador Bueno: paulistanismo monárquico.

Fato relativamente raro no período, o episódio histórico da tentativa de Aclamação de Amador Bueno a rei de São Paulo em 1641 recebeu um tratamento especial pelos literatos imperiais, tendo sido tema de duas peças teatrais, além de ter merecido destacado trecho na obra de Machado de Oliveira. Em 1847 o mesmo Varnhagen oferecia ao imperador o seu Amador Bueno ou A coroa do Brasil em 1641, qualificado pelo autor como “drama épico-histórico Americano” (publicado em segunda edição em 1858). Em 1843 o literato e sócio do IHGB Joaquim Norberto Sousa e Silva acabava de escrever a peça Amador Bueno ou a fidelidade paulistana, publicada em 1855 como volume da Biblioteca Guanabarense. Nestas peças, os autores procuravam reelaborar simbolicamente o episódio, descrito pelo cronista setecentista Frei Gaspar da Madre de Deus, da tentativa (e recusa) de aclamação do paulista Amador Bueno como rei de São Paulo, por parte de colonos de origem espanhola temerosos da restauração do trono bragantino em 1641. Aqui, mais importante do que saber se o episódio realmente ocorreu é recuperar o uso político que os autores dele fizeram, e como ele marcou a forma de representar a identidade paulista em

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meados do séc. XIX191. Neste sentido, o tratamento dado pelos intelectuais monárquicos à aclamação de Amador Bueno se inseria no conjunto de iniciativas culturais empenhadas em criar e reforçar a legitimação do Império unitário bragantino. A questão central, portanto, era menos a da criação do povo-nação, mais identificada com o caso do indianismo, do que a do reforço das instituições políticas vigentes, no caso as da forma monárquico constitucional192. Como mostra Iara Sousa, a teoria da legitimidade monárquica, que identificava no rei a cabeça do corpo social cujo poder advinha de uma origem divina, era requentada no reinado de D. João VI pelos escritos do Marques de Penalva e pela versão mais moderna, de uma “monarquia temperada” pela escolha dos homens, de Antônio Ribeiro dos Santos193. No processo de enraizamento das tradições monárquicas no Brasil independente, a forma monárquica tradicional, cuja soberania era de origem divina, teve que se defrontar com as novas demandas de representação coletiva e laicização do poder. Mesmo mantendo referências à matriz teológico-política, representadas pela instauração da cerimônia de coroação (inexistente na tradição portuguesa) na qual se conferia um certo caráter divino ao poder do imperador brasileiro, a monarquia brasileira se afirmava essencialmente pela noção moderna de contrato entre o rei e os representantes do povo das diversas províncias194. Este contrato social entre o Monarca e seu povo era exatamente consumado na cerimônia da aclamação, quando em todo o império, nas mais longínquas vilas, se rendia homenagem ao retrato do Monarca, fonte da ordem e sede do poder. 191

Luiz Felipe de Alencastro, questiona a ocorrência efetiva do episódio, considerando que ele “cheira a mistificação” da historiografia paulista. Reforçando sua posição atesta a fraca base documental referente ao episódio, representada por um único escrito de inícios do séc XVIII e por uma tradição oral transmitida pelos cronistas setecentistas. ALENCASTRO, Luíz Felipe. O trato dos viventes. São Paulo: Cia. das Letras; 2000. Apêndice 4. 192 Para Claude Lefort, a forma monárquica de poder incorporava na figura do príncipe, que conservava no seu próprio corpo, ao mesmo tempo mortal e imortal, a “garantia e a representação da unidade do reino” 192. Ao contrário da forma democrática, na qual o lugar do poder è um lugar vazio identificado abstratamente com o “povo” e a “sociedade”, na monarquia a figura do monarca representava e encarnava a unidade da nação e da sociedade. A monarquia a qual se refere Lefort era aquela do Antigo Regime, desenvolvida numa matriz teológico-política, matriz esta compartilhada pela monarquia portuguesa ainda nos últimos anos do séc. XVIII. LEFORT, Claude. “A questão da democracia” In Pensando o político. Rio: Paz e Terra, 1991.p. 32 193 SOUSA, Iara Lis Carvalho. Pátria Coroada. O Brasil como corpo político autônomo.São Paulo: ed. Unesp; 1999. Cap. 1. 194 Segundo Iara Sousa, a forma como se deu o arranjo da tradição dos reis portugueses com a lógica do “rei cidadão” característica de um regime constitucional, constitui-se em uma “questão espinhosa”, de não fácil resolução. Para discussão mais profunda ver IDEM, Ibidem, p. 256 a 183.

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Assim, a escolha por parte de Varnhagen e Joaquim Norberto do tratamento de um episódio histórico de aclamação de um monarca bragantino (no caso, D. João IV) tocava diretamente na fonte de legitimidade do poder vigente. Tratava-se de um tema carregado de sentido político numa época, o início dos anos 1840 (momento da escrita das referidas peças), quando se procurava consolidar o ramo “genuinamente brasileiro” da casa de Bragança, recém alçado ao trono pelo golpe da maioridade. Era a forma simbólica de consolidar o processo de nacionalização das casas reais tão bem descrito por Eric Robsbawn. Na dedicatória que escreveu ao Imperador, Varnhagen era explícito quanto ao alto sentido político – unitário e bragantino - da obra: “Senhor: O assunto desta composição envolve o pensamento da unidade do Brasil em virtude da aclamação geral nele da Casa de Bragança – V. M. I., hoje Representante desta casa e símbolo da integridade do Império, a honraria sobremaneira Dignando-se de ser dela indulgente protetor – Seja-o Senhor!(...)”.195 Mais precisamente, com o tratamento do tema da aclamação de Amador Bueno os autores colocavam no centro da cena a questão dos laços que uniam o povo paulista à Monarquia bragantina. Esta questão era mais do que pertinente no contexto imediatamente posterior ao ato de insubordinação representado pelo levante liberal de 1842. As duas peças apresentam uma estrutura semelhante, divergindo em alguns detalhes. No geral, procuram apresentar as maquinações de colonos de origem espanhola, juntamente com a plebe paulista, para aclamar Amador Bueno rei de São Paulo, com o único propósito de impedir a aclamação do rei português. No interior da trama podem ser identificados elementos de um mito conspiratório196, anti-monárquico e anti-unitário, em que conspiradores hispânicos procuravam manipular o povo paulista, incutindo-lhes idéias de autonomia visando o enfraquecimento da monarquia bragantina. Os conspiradores ou “conjurados”, no dizer de Joaquim Norberto, eram todos identificados como estrangeiros e procuravam agir em segredo, dois elementos característicos do mito da conspiração conforme definido por Raoul Girardet. Mas ao contrário do que aponta este autor, os nossos conspiradores não tinham a ambição de

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VARNHAGEN, F.A. Amador Bueno, ou a Coroa do Brasil em 1641. Madri, 1858. Um estudo da estrutura do mito político da conspiração pode ser encontrada em GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Cia. das Letras; 1987, principalmente cap. “A conspiração”. O mito 196

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conquistar o mundo, como ocorria com judeus, maçons e jesuítas, no caso europeu. Eram muito mais modestos: lhes bastava incorporar a capitania de São Paulo à Monarquia espanhola. Em Varnhagen, a personagem do conspirador estrangeiro era o “Agente”, um paraguaio soturno que pretendia evitar a aclamação de D. João IV para unir São Paulo ao Paraguai. Na obra de Joaquim Norberto o grande conspirador é o também estrangeiro, no caso “espanhol”, Garcia Valdez, posteriormente desmascarado como sendo plebeu e cigano. Neste autor, a mobilização dos elementos do segredo e da ação nas sombras, está presente, no primeiro capítulo, significativamente denominado de “O festim dos conjurados” no qual num ambiente soturno, “fechado por gelosias e rótulas”,197 articula com os outros espanhóis a aclamação de Amador Bueno rei de São Paulo. Em meio a elementos românticos do enredo, procurava-se incutir valores políticos. Estes apareciam na desqualificação da mobilização popular, identificada como o principal dos “artifícios” que os conjurados lançaram mão contra a casa de Bragança. A participação ativa do povo, identificado com a “revolução” na obra de Joaquim Norberto ou “anarquia” na de Varnhagen, era mostrada como um vil instrumento de estrangeiros para a desunião da América portuguesa e infidelidade à casa de Bragança. “O povo! O Povo! (irônico) Mar que se ergue em escarcéus medonhos ao sopro do tufão, e que recua ante as frágeis barreiras que lhe prescreveu o Eterno!”,

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afirmava o paulista Francisco Rendom,

temeroso da agitação em praça pública199. Contra o tumulto da plebe incitada pelo ardiloso estrangeiro, nos dois textos, antepõe-se a figura heróica de Amador Bueno e seus correligionários, no caso o Abade beneditino e alguns paulistas, como o citado Francisco Rendon. Amador Bueno era descrito como um proprietário de grande influência entre os seus pares aristocratas. Em Varnhagen, ele é proprietário de fazenda de açúcar e dono de escravos, imagem completada com um toque de benevolência, evidenciado pela doação anônima de rezes ao hospital da

conspiratório presente nas peças sobre a aclamação de Amador Bueno somente em parte se aproximam da estrutura apresentada por Girardet. 197 SILVA, Joaquim Norberto Sousa e. Amador Bueno ou A Fidelidade Paulistana. Rio: Tip. Dous de Dezembro; 1855. 198 Idem , Ibidem, p. 62. 199 Ou ainda, da boca de Luis Bueno, um dos fiéis paulistas: “A plebe aparece por toda parte, mescla-se nos mais altos negócios dos estados e intervém em todos os feitos sem que seja necessária despertá-la; é a cauda

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Misericórdia. O comportamento político de Amador Bueno é o de um moderado e conciliador: “as intenções são todas conciliadoras” afirma a respeito da reintegração dos jesuítas; “moderação, meus patrícios, moderação!” exortava a volúvel plebe que se voltava para linchar o Agente, que minutos antes apoiara. Pois será este mesmo Amador Bueno, espécie de “paulista modelo” para Varnhagen - aristocrático, escravocrata e moderado – que, movido pela fidelidade à Monarquia bragantina, se recusará a aceitar a Coroa paulista oferecida pela maioria popular, submetendo assim o princípio da soberania popular ao da legitimidade monárquica. Desta forma, na base do episódio da Aclamação de Amador Bueno estava a contraposição entre, de um lado, uma conjuração de estrangeiros e povo, antinacional e de cunho “republicano” e do outro, uma ação legitimista por parte de um proprietário fiel aos valores monárquicos. O que estava em jogo no episódio da Aclamação de Amador Bueno era o confronto entre o igualitarismo republicano hispânico e a legitimidade monárquica luso americana, como podemos perceber em trecho decisivo, no qual Amador convence seus conterrâneos paulistas a aclamarem o monarca bragantino: "AGENTE: Que ides a decidir senhores? Consentis que se vos diga, que tão ignorante sois que não há entre vós quem vos governe? Não tendes um homem só, tendes muitos. Podeis aqui organizar uma república tão florescente como noutro tempo a de Veneza, ou ainda a como a atual da Holanda. Por que não proclamais a igualdade? UM DO POVO: Sim: Sim: viva a igualdade! VOZES: Viva! AMADOR BUENO: Que fazeis senhores? Quereis então vós (para o Agente) com uma só palavra tão bela quanto enganadora perder este bom povo, e sepultá-lo na anarquia? Amigos. Não nos é dado a nós igualar o que Deus desigualou. Poderiam jamais quaisquer leis terrestres igualar o tigre à inofensiva cotia?”200 (grifos meus). Combatendo os argumentos igualitários e republicanos, sintomaticamente colocados na boca de um hispano americano, o monarquista Amador Bueno lembrava a seus que se une a todos os partidos em todas as revoluções, como um membro necessário do corpo”. SILVA, Joaquim N. S..Op. cit. pp 68. 200 VARNHAGEN, Op. Cit., 1858.

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conterrâneos a desigualdade natural entre os homens, convencendo-os a aclamarem imediatamente D. João IV Rei de Portugal. O tratamento do episódio da Aclamação de Amador Bueno mobilizava, e ao mesmo tempo reforçava, a contraposição entre a ordem e unidade da Monarquia brasileira à desordem das repúblicas hispano americanas, característica do imaginário político brasileiro do séc XIX. O episódio seiscentista da aclamação era apropriado por Varnhagen e Joaquim Norberto para reforçar nos seus contemporâneos, independente de qual província fossem, os valores da unidade nacional e da fidelidade às instituições monárquico-constitucionais. Mas se a rememoração do episódio poderia ser instrutiva para todo súdito brasileiro, ela tinha uma maior eficácia para os paulistas. Para estes, o episódio assumia um sentido político mais preciso na medida que as peças procuravam reforçar simbolicamente a fidelidade dos paulistas à causa monárquica, entendida como tendo sido colocada à prova pelos eventos recentes da rebelião antiregressista de 1842. A importância do episódio de Amador Bueno para as visões monárquicas sobre o regional estava em afirmar a fidelidade à monarquia como traço distintivo do caráter regional paulista, anulando qualquer possibilidade de utilização política do discurso da “liberdade dos antigos paulistas” ou do seu caráter “indômito” e “insubmisso” – presente abundantemente nas crônicas coloniais e esboçado por Saint Hilaire - como instrumento simbólico na luta pela afirmação da autonomia regional201. Assim, o tratamento que deram ao episódio não era guiado por um enfoque nativista, tão em voga na cultura historiográfica oitocentista, que procurava identificar no passado manifestações do espírito de liberdade do brasileiro e oposição à coroa portuguesa, entendido como precursor da independência nacional202. Procuravam, antes, criar um evento do passado regional, assim como um personagem que o representasse, que reforçasse a identificação do paulista com a monarquia bragantina pela louvação de sua fidelidade e rememoração do pacto que os 201

Que a visão do paulista como “livre” ou “altivo” era marcada por uma carga política vista como “perigosa” para a sua adequação à ordem centralizada, pode ser percebida na fala de Pedro Bueno da peça de Joaquim Norberto, mostrado pelo autor como “seduzido” pelas armações castelhanas: “Por que não havemos nós ser independentes e ter um rei próprio? Não somos nós um povo ilustre; os descendentes desses paulistas desinteressados e generosos, porém altivos,(...) ?” A altivez paulista é assim apresentada como uma ingenuidade nociva por estar aberta às manipulações dos inimigos da pátria. (p. 68). 202 Sobre a presença e os sentidos do nativismo na historiografia brasileira, ver FORASTIERI, Rogério. Colônia e Nativismo: A História como “biografia da nação”. São Paulo; HUCITEC; 1997.

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unia203. A louvação da figura de Amador Bueno procurava lançar para a ordem da tradição, conferindo-lhe assim solidez, o contrato dos paulistas com a monarquia materializado no episódio da aclamação que, como vimos, representava o elemento legitimador das instituições políticas monárquicas. Dentre todos os episódios do passado paulista o da fidelidade de Amador Bueno deveria ser relembrado pelos paulistas pelos séculos afora, como uma verdadeira lição de civismo monárquico. “ Nós transmitiremos aos nossos filhos esse legado de heroicidade, e será ele a maior glória, o mais pomposo brasão e o mais nobre orgulho dos Paulistas ainda nos futuros tempos do Brasil”, vaticinava o bom paulista Francisco Rendon. Ou ainda: “possa a fidelidade do maior Paulista de nosso século, servir de novos estímulos a nós e à posteridade”, dizia o Abade dos beneditinos204. O caráter exemplar e didático do episódio estava em divulgar um paulistanismo que se afirmava pela submissão do interesse próprio da província, em nome da unidade da nação futura. Era um provincianismo que se auto anulava, sendo marcado pela afirmação dos valores da “abnegação” e “generosidade”. Ele era usado politicamente para introjetar nas mentes e corações dos súditos, principalmente das elites paulistas, a necessidade de abrir mão dos interesses particulares provinciais em favor do interesse “geral” identificado com a unidade da nação, encarnada, por sua vez, pelo monarca bragantino, a quem devia-se “lealdade”. Era, assim, um símbolo de caráter fortemente unitário e, mais do que isso, centralizador. A figura histórica de Amador Bueno transformava-se em um símbolo de caráter político que unia os termos Monarquia, nação e povo paulista em um único conjunto coerente e harmônico. Era, por isso, o símbolo maior de um paulistanismo especificamente monárquico, que tinha como finalidade exorcisar o perigo da descensão e mobilizar os paulistas em torno à adesão à monarquia bragantina de D. Pedro II. De fato, tanto Varnhagen quanto Joaquim Norberto faziam parte do grupo de intelectuais áulicos, próximos pessoalmente ao Imperador, e membros atuantes do IHGB. Neste sentido, o lugar 203

A idéia da aclamação como pacto entre o rei e os paulista parece explicitamente neste trecho da peça de Joaquim Norberto: “BARTOLOMEU RODRIGUES: Queremos um rei próprio. (...) AMADOR BUENO: “Temo-lo no Sr. rei Dom João IV! E havemos (com força) respeitar as leis da monarquia como no-lo ordena D. João III na doação e foral celebrados com nossos avós, certo de que os seus netos respeitariam o pacto concertado entre o rei e o seu povo (...)” (grifos meus) (p. 72) 204 Idem, Ibidem, pp 94.

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social do qual reelaboravam a memória do episódio de Amador Bueno era o do grupo centralizador do Rio de Janeiro, o que reforçava o caráter legitimador e monárquico das obras. Neste sentido, não deixa de ser significativa a homenagem feita a Amador Bueno por ninguém menos que o próprio monarca Pedro II. Quando de sua visita, em 1846, às província sulistas para consolidar sua autoridade em regiões até há pouco em rebelião (os farroupilhas do Rio Grande largaram as armas no ano anterior e a derrota de 42 ainda não fora esquecida pelos liberais paulistas) o imperador fez questão de exercitar na paulicéia seu habitual “turismo cívico patriótico”. Da mesma forma como visitaria nas adjacências do Recife, no ano de 1855, os testemunhos ainda existentes da gesta da restauração pernambucana, em São Paulo fez questão de ir ao mosteiro de São Bento para pessoalmente conhecer o túmulo de Amador Bueno e, assim, render homenagem a este “paulista velho que decidiu não ser aclamado rei”205. O monarca consolidava sua autoridade através do reforço da figura de Amador Bueno. Mas não eram somente os áulicos, ou o próprio representante da dinastia de Bragança, que se apropriavam da figura de Amador Bueno. A centralidade que conferiram ao episódio marcou as visões sobre a paulistanidade de todos os monarquistas do período, fossem saquaremas ou liberais. Os próprios revolucionários de 1842 não deixavam de frisar que pegavam em armas visando defender o trono do jovem Pedro II das ameaças da oligarquia centralizadora. O próprio Rafael Tobias de Aguiar, líder maior da rebelião de 42, concitava os paulistas às armas apelando para o exemplo de Amador Bueno: “ Paulistas! Os fidelíssimos sorocabanos vendo o estado de ação a que se acha reduzido o nosso Augusto Imperador, o Sr. D. Pedro II, por essa oligarquia sedenta de mando e de riqueza, acabam de levantar a voz (....). Mostremos ao mundo inteiro que as palmas colhidas nas campinas do Rio da Prata não podem definhar nas do Ipiranga.

205

RICCI, Monica. Assombrações de um padre regente: Diogo Antônio Feijó (1784-1843). Campinas: ed. Unicamp; 2001. P. 49. Sobre a visita do imperador a Pernambuco, ver MELO, Evaldo C. Op. Cot.

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Os descendentes do ilustre Amador Bueno sabem defender os seus direitos a par da fidelidade que devem ao trono.”206 Aqui, para o líder liberal, a referência a Amador Bueno servia para ressaltar o caráter monárquico constitucional da rebelião, afastando qualquer suspeita de republicanismo separatista. Também Machado de Oliveira, um liberal paulista de boa circulação entre os áulicos, transpôs para o seu Quadro Histórico uma versão da aclamação de Amador Bueno com sentido semelhante ao dado por Varnhagen e Joaquim Norberto. O historiador paulista, como bom monarquista, frizava que “o despreendimento aos encantos da realeza em Amador Bueno, a sobranceria ao pungimento do egoísmo, que dominou essa alma cheia de fidelidade e de honra, é uma lenda, é um axioma glorioso que mais bem aquilata o caráter dos paulistas no tempo em que era um timbre esse nome”207( grifos meus). Também endossava a o caráter antipopular do episódio ao ressaltar a volubilidade da plebe, afirmando: “sirva isto de lição aos que confiam cegamente nas imposições populares por maior que seja a magnificência com que se ostentem.” Com a louvação de Amador Bueno como herói paulista e representante do caráter do habitante da província, Machado de Oliveira reforçava a sua filiação à visão oficial do passado brasileiro elaborado pelos intelectuais do centro. Arrematava, assim, a elaboração da visão monárquica sobre o passado paulista.

206

“Documento Histórico” In Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1876. São Paulo: Imprensa Oficial, 1983. P. 14. 207 OLIVEIRA, José Joaquim Machado d’. Op. Cit., 1978 pp 99.

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PARTE II ESBOÇO E INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UMA VISÃO REPUBLICANA DA HISTÓRIA DE SÃO PAULO (1870-1916)

O período que vai do início da propaganda republicana (1870) até o início dos preparativos para as comemorações do Centenário da Independência, marcado pela posse do historiador Afonso de Taunay como diretor do Museu Paulista (1917), representou um momento importante para a construção de uma nova identidade paulista. A elite paulista, subitamente transformada pelo café no setor economicamente mais importante do país, esboçou os primeiros traços e procurou institucionalizar – mediante a criação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) em 1894 - um discurso identitário próprio, não somente autônomo em relação ao discurso identitário indianista emanado da Corte mas, em diversos pontos, francamente em oposição a ele. A emergência de um discurso identitário regional não mais subordinado ao nacional, é, ao mesmo tempo, resultado e produto de um novo contexto marcado por profundas transformações que levaram à crise das instituições do Segundo Reinado. Para compreender a nova identidade paulista esboçada no período, procuro analisar a nova posição da Província de São Paulo e de sua elite política no processo de progressivo desmanche das instituições centralizadoras, tanto no terreno político quanto no cultural. O período analisado foi de constante modernização e diversificação inter-regional, o que propiciou o reaparecimento, no terreno político, da bandeira federalista, possibilitando à elite provincial autonomista, representada principalmente pelo grupo republicano, recolocar em novas bases a questão da especificidade do caráter paulista e da história de São Paulo. Ao mesmo tempo, o terreno cultural foi marcado pelo surgimento de uma nova geração de intelectuais críticos (a “geração de 1870”) que questionaram a matriz identitária monárquico indianista e sua etno historiografia correlata. A identidade paulista em elaboração será considerada à luz deste confronto entre a legitimidade declinante do regime monárquico e a nova legitimidade que os republicanos paulistas procuravam construir e consolidar após a instauração do novo regime.

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Capítulo 4 –Desatando o nó da centralização: modernização e crise do Império.

Apesar do quadro internacional de crise econômica do capitalismo, a década de 1870 foi de intenso desenvolvimento econômico e progresso material no império do Brasil. A aceleração econômica observada desde meados dos anos 60 foi marcada por forte incremento de infra-estrutura de vias de comunicação e intensificação da ocupação agrícola do interior, representada de forma exemplar pela expansão do café no oeste paulista. A forma regionalmente desigual de como se dava este desenvolvimento rompia com o relativo equilíbrio entre as províncias que a política monárquica centralizadora buscara estabelecer. Velhos problemas de integração reapareciam na medida em que o Império se modernizava e se diversificava regionalmente. Com diferenças de crescimento econômico entre as várias regiões, provocava-se uma diferenciação cada vez mais forte entre o Norte, visto como estagnado economicamente e dependente da Corte, e o Sul que recebia os influxos do progresso da época. Esta situação deu ensejo a que se levantasse a bandeira federalista como forma mais adequada de conciliar a crescente diversidade regional visando a manutenção da unidade nacional. Independentemente da diversidade de ritmo entre as regiões, em geral, o Brasil vivia os efeitos de sua paulatina inserção no movimento da modernização capitalista de finais do séc. XIX, mantendo, porém - quando não atualizando - práticas rotineiras e tradicionais208. Uma vez consolidada, no curso dos anos 1850, a unidade nacional e a ordem social pela hegemonia da política saquarema de centralização, aos poucos, ao longo dos anos 1860, a questão central para diversos setores das elites nacionais deixava de ser a da unidade e passava a ser a da modernização do Brasil. Estudos recentes têm procurado ressaltar que antes mesmo da proclamação da República e da abolição da escravidão a questão da modernização já estava colocada para as elites imperiais, dando origem a diversos projetos de transformação modernizadora da ordem monárquica209. 208

José Murilo de Carvalho, parafraseando Arno Mayer, fala da “força da tradição” no período de modernização brasileira. CARVALHO, J. M. “Brasil 1870-1914: A força da Tradição”. In Pontos e Bordados. Belo Horizonte: Ed. UFMG; 1998. 209 Parece que o neoliberalismo dos anos 90 deslocou, no terreno historiográfico, o debate sobre a modernização para a questão do sentido da herança estatal “ibérica” brasileira e de seu contrário liberal “americanista”, voltando a atenção dos pesquisadores para o contexto da dissolução da ordem Imperial. Talvez o inicio de um novo debate sobre o americanismo modernizador tenha sido o texto de VIANA, Luiz Werneck. “Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos” In BASTOS, Elide

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Segundo Angela Alonso, se programas modernizadores não eram estranhos ao período imperial, uma nova onda de propostas de modernização surgiu a partir de um movimento de contestação que, esboçando-se desde os anos 1860, tomou forma definitiva nos anos 1870210. A identificação entre todas as propostas se dava pelo desejo de questionamento da ordem monárquica - escravocrata e centralizada - estabelecida nas décadas de 1840 e 50 com a consolidação do status quo saquarema. Alguns visavam reformar as instituições monárquicas no sentido de sua adequação às necessidades da modernização capitalista, enquanto outros acreditavam que para esta efetiva adequação era necessário o rompimento com a Monarquia e a adesão à forma republicana. De maneira que, seja na forma do reformismo monárquico ou da ruptura republicana, o impacto das pressões modernizadoras, a partir dos anos 1860, levou ao questionamento da ordem centralizadora da Monarquia e à conseqüente crise do Segundo Império. Os grupos reformistas apontavam para a necessidade de desatar os nós da centralização, o que implicou no duplo movimento interdependente da “maré democrática” e do “bando de idéias novas”. No terreno político, a “maré democrática” buscou a liberalização das instituições vigentes, através da defesa da bandeira federalista e nos casos mais radicais, da forma republicana. No cultural, o “bando de idéias novas”, marcado pelas novas correntes cientificistas e evolucionistas, questionou o ecletismo romântico vigente e sua correlata matriz identitária indianista, possibilitando a diversificação dos grupos envolvidos no debate nacional e a correspondente emergência de outros discursos identitários com maior grau de autonomia em relação à ação centralizadora dos intelectuais

Rrugai & MORAES, João Quartim. O Pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Ed. Unicamp; 1993. Seguindo esta senda, Maria Alice Rezende de Carvalho estuda as alternativas de reforma modernizadora da ordem Imperial através de três figuras paradigmáticas dos anos 1870 e 80: o conservador Alfredo de Taunay, o moderado Joaquim Nabuco e André Rebouças, identificado como representante de uma vertente radical do americanismo liberal. ver CARVALHO, M. A. R. O Quinto Século. André Rebouças e a construção do Brasil. Rio: Revan, IUPERJ-UCAM;1998. Estudo mais amplo, incluindo os diferentes grupos republicanos e articulando o universo político com o cultural, está em ALONSO, Angela. Idéias em movimento. A geração 70 e a crise do Brasil Império. Tese (doutorado), dept. Ciências Sociais, USP, 2000. Neste mesmo debate historiográfico pode ser incluído o estudo de FERREIRA, Gabriela Nunes. Centralização e descentralização no Império. O debate entre Tavares Bastos e visconde de Uruguai. São Paulo: dept. Ciências Políticas USP, Editora 34; 1999. O debate desenvolvido nestas obras constitui a referência principal para a presente pesquisa. 210 A autora identifica no séc. XIX três ondas modernizadoras, representadas por reformas empreendidas pelo estado imperial. Primeiramente no gabinete Paraná de 1850, quando se aprovou a nova lei de terras e se proibiu definitivamente o tráfico de escravos. O segundo momento corresponde ao contexto aqui estudado, e foi representado pelo gabinete de 1871 do visconde do Rio Branco e, por fim, haveria a última tentativa

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e instituições culturais da Corte. Seja no terreno político, seja no cultural, a hegemonia incontestável do grupo centralizador da Corte, estudada nos capítulos anteriores, passou a ser questionada e paulatinamente desmontada. Pretendo primeiramente compreender a reordenação que se efetuou no terreno do debate e das forças políticas, para depois compreender a redefinição correlata no terreno da cultura e da historiografia.

4.1. Novos liberais e americanismo: crítica à centralização.

No terreno das forças políticas, diversos foram os grupos que então se formaram, cada qual com seu projeto nacional modernizador e crítico à ordem saquarema. De um lado, o reformismo monárquico era representado pelos novos liberais 211, na sua maioria nordestinos (o alagoano Tavares Bastos, o pernambucano Joaquim Nabuco e os baianos André Rebouças e Rui Barbosa eram seus expoentes). De outro, havia os grupos republicanos que se dividiam entre os positivistas-jacobinos e os liberais republicanos212, ambos sediados principalmente na cidade do Rio de Janeiro. Por fim, havia o grupo que mais nos interessa: os republicanos paulistas, que estudaremos melhor no próximo capítulo e que se assemelhavam, em termos programáticos e de composição, aos republicanos mineiros e gaúchos. Também os defensores da ordem monárquica, concentrados em sua maioria no Partido Conservador, foram atingidos pelas pressões modernizadoras dos grupos dissidentes, derivando daí uma divisão no grupo, formando-se uma ala modernizadora e outra mais ortodoxa. Originou-se, a partir do início dos anos 1870, um grupo de saquaremas modernizadores que, sob o comando do visconde do Rio Branco, se apropriou de várias bandeiras dos novos liberais e republicanos, implementando-as parcialmente durante o gabinete que assumiu em 1871. As diversas medidas modernizadoras aí adotadas pelo conservador Rio Branco (1871-1875) – lei do ventre livre, incentivo à imigração,

monárquica de auto-reforma modernizadora representada pelo gabinete Ouro Preto de 1889. ALONSO, A. Op. Cit. 2000. 211 Sobre o novo liberalismo, além de ALONSO, Ângela. Op. Cit., 2000.; FERREIRA,Gabriela Nunes. Op.Cit.,1999; VIANA, Luis Werneck, Op. Cit. 1993. e CARVALHO, Maria Alice Rezende. Op. Cit., ; ver também BOSI, Alfredo. “A escravidão brasileira entre dois liberalismos” In Op. Cit.1992. 212 Sobre os positivistas jacobinos, além de ALONSO, Ângela, Op. Cit., 2000. ver também QUEIROZ, Sueli R. Os radicais da república. Jacobinismo: ideologia e ação (1893-1897). São Paulo: Brasiliense; 1986 e

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investimento em infra-estrutura ferroviária, laicização do Estado, etc - representaram a tentativa de auto-reforma das instituições monárquicas com a manutenção da ordem e controle do poder político pelos saquaremas213. Por outro lado, como resposta a estas mudanças, ocorreu o fracionamento interno do Partido Conservador. Formou-se um grupo de conservadores “emperrados”, dedicados ao fortalecimento da ortodoxia saquarema e, próximo a eles, se posicionou um grupo de ferrenhos católicos ultramontanos214. Ambos – saquaremas “emperrados” e ultramontanos procuravam manter as instituições do Segundo Reinado, como a escravidão e a centralização política, e também radicalizar os aspectos conservadores do regime monárquico, como foi o caso dos ultramontanos e sua luta pelo primado da Igreja. A emergência de grupos modernizadores levou à reformulação da agenda política brasileira. Alguns entraves para a construção de um país moderno foram apontados pelos grupos dissidentes, cada qual priorizando questões diferentes. O liberal e reformista monárquico alagoano Aureliano Cândido Tavares Bastos, expoente desta “maré democrática” em crescimento, foi o autor que primeiro sistematizou os novos temas do debate político, definindo questões que atravessaram toda a discussão subseqüente, podendo, portanto, ser tomado como ponto de partida para a compreensão do debate e das novas posições que marcaram a conjuntura da crise do Segundo Império. As suas críticas a diversos aspectos da ordem monárquica tomavam uma forma coerente e integrada pela referência ao exemplo norte-americano. A via de modernização brasileira apresentada pelos novos liberais, principalmente por Tavares Bastos e André Rebouças, era lastreada na busca de implantação de aspectos de um certo modelo da civilização norte-americana à realidade do Brasil monárquico. De forma original, este plano americanista também seria apropriado pelos republicanos paulistas, daí a importância de seu tratamento. Sua proposta modernizadora era essencialmente um programa americanista. Já em 1862, Tavares Bastos escrevia: CARVALHO, José Murilo.Op. Cit.,1990. O termo “liberais republicanos” foi retirado de ALONSO, op. Cit. 2000. 213 Para a reforma realizada pelo gabinete do visconde do Rio Branco ver ALONSO, A. Op. Cit.,2000. tópico 1.3. “A reforma dentro da ordem”. 214 Para o impacto das demandas modernizadoras no grupo conservador e a conseqüente diferenciação entre saquaremas modernizadores e “emperrados”, me baseio em ALONSO, Ângela. Op. Cit. 2000.

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“A meu ver o Brasil caminha para a sua regeneração moral e econômica tanto quanto mais aproxima-se da Inglaterra, da Alemanha e dos Estados Unidos. No meu cosmopolitismo, pois, entra uma grande parte de interesse real pelo pais, o verdadeiro patriotismo que eu conheço. Queremos chegar á Europa? Aproximemo-nos dos Estados Unidos. É o caminho mais perto essa linha curva.”215 Os Estados Unidos eram tomados como exemplo, não somente pelos modernizadores brasileiros, mas por diversas elites latino-americanas neste final de século XIX. Dentre todas, se destacava a Argentina, principalmente os setores congregados em torno dos intelectuais liberais da chamada “geração de 1837”: Domingo Sarmiento, Esteban Echeverría, Juan Baustista Alberti, Bartolomé Mitre216. Para esses modernizadores, brasileiros inclusive, os Estados Unidos apareciam como exemplo de nação do continente que conseguia se destacar como potência econômica emergente, baseados nas mais liberais e democráticas instituições políticas da época. O segredo do sucesso norte-americano parecia estar na mistura do espírito empreendedor capitalista com a liberdade e independência política de extração liberal, materializado o primeiro numa intensa política de ocupação territorial e exploração econômica de vasta área “desocupada” (a Conquista do Oeste) e o segundo na prevalência de instituições políticas liberal-democráticas eficientes e enraizadas na tradição nacional. “Duas coisas me tinham feito desejar inspecionar pessoalmente os Estados Unidos. A colonização e a prática do sistema eleitoral, o modo de povoar o deserto e a maneira de prover o governo da sociedade”217, escrevia o argentino Domingos Sarmiento, demonstrando o fascínio das elites americanistas do Sul, respectivamente, pela força econômica e pelos valores políticos do vizinho do Norte. Também os americanistas brasileiros, quando se olhavam no espelho norte-americano, buscavam a miragem de um país dotado de instituições políticas consideradas “livres” e “democráticas” e de uma economia vigorosa, em flagrante contraste com um Brasil bragantino, cuja monarquia

215

TAVARES BASTOS. A. C. Cartas do Solitário. Rio de Janeiro: s/ed.; 1863. Carta XXX, p. 345. KATRA, William. La Generación de 1837. Buenos Aires: Emecé; 2000. 217 SARMIENTO, D. Viajes por Europa, África i América. Madri, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Rio e Janeiro: ALLCA XX/EDUSP; 1996. p. 353. 216

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centralizada era apresentada como eivada de resquícios absolutistas e lastreada em um mundo econômico paralisado pela força da escravidão. O reformismo americanista dos novos liberais, versão nacional do americanismo compartilhado pelas demais elites latino-americanas do período, procurava definir os obstáculos que impediam o Brasil de atingir o mesmo estágio de progresso e civilização que identificavam nos EUA. Tavares Bastos defendia a necessidade premente de reformulação da relação entre o centro e as províncias, para que desse conta dos desequilíbrios intra-regionais decorrentes do próprio desenvolvimento regionalmente desigual da economia deste fim de século218. Em outros termos, atacava violentamente a centralização imperial e reivindicava a adoção de reformas federalistas e descentralizadoras para a modernização das instituições políticas do Império, base e condição para todas as outras reformas. Como mostrou Luiz Werneck Viana, o americanismo de Tavares Bastos conferia prioridade à reforma do Estado monárquico como meio de construir o moderno. Identificava numa propalada onipresença asfixiante do Estado sobre o indivíduo empreendedor a causa maior dos males da nação. O Estado Centralizado - sobre o qual se edificara toda a ordem política do Segundo Reinado- era identificado como o grande inimigo do progresso brasileiro e empecilho maior para sua entrada no mundo moderno, sendo a federação a principal reforma a se fazer 219. Além da descentralização, Tavares Bastos tocava no próprio cerne da ordem sócioeconômica imperial ao defender a necessidade de rápida abolição da escravidão, tema que passou para primeiro plano na elaboração de Nabuco e dos republicanos positivistas, sendo, contudo, estrategicamente marginalizado pelos republicanos paulistas. À abolição Tavares Bastos ainda atrelava a defesa da vinda de grande população imigrante. Seu projeto era fortemente imigrantista e branqueador, tendências compartilhadas por todos os setores modernizadores das elites do período e legitimadas pelas novas teorias raciais hegemônicas. Como condição para a atração de levas de imigrantes - principalmente os protestantes de origem germânica e anglo-saxã, preferidos pela sua pretensa maior energia

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Sobre o contexto dos anos 1870 como marcado pelo aumento das diferenças econômicas interregionais, com o Norte se diversificando do Sul, ver MELO, Evaldo Cabral de. O Norte agrário e o Império. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira; 1984. 219 VIANA, Luiz Wernek. Op. cit., 1993. p. 372.

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e iniciativa - Tavares Bastos defendia a laicização intensiva do Estado brasileiro com a adoção de medidas como o casamento civil e a liberdade de culto, postura esta também defendida pelas alas liberal e positivista do republicanismo220. Isto implicava romper com o monopólio cultural da religião católica, reconhecida pelo governo monárquico como religião oficial do Estado e pela intelectualidade imperial áulica, embebida, como vimos, num espiritualismo eclético, como princípio unificador e ordenador da sociedade. Tavares Bastos ainda lutava pela adoção de uma intensiva política de implantação de infra-estrutura viária, como a construção de estradas de ferro e a abertura da navegação fluvial, como no caso do Amazonas, que possibilitariam o estreitamento das relações comerciais com os países do capitalismo central, com destaque para os Estados Unidos, evidenciando assim a sua adesão ao mais radical laissez-faire econômico221. De maneira geral, o novo liberal Tavares Bastos, pioneiro da “maré democrática” que marcou a progressiva liberalização da agenda imperial, apresentava, ainda nos anos 60, as principais questões que definiram o debate político dos anos de 1870 e 80 e teriam peso decisivo também no plano dos republicanos paulistas: federação, abolição da escravidão, imigração, separação Estado/Igreja, ensino livre, implantação de infra-estruturaviária, povoamento e exploração do território. Nos dizeres de um dos expoentes da geração modernizadora, ninguém menos que Euclides da Cunha, Tavares Bastos definira “o programa mais avantajado do nosso desenvolvimento”, segundo Alfredo Bosi ele foi o “primeiro ideólogo de nossa modernização capitalista”222. A uma ordem imperial, não de todo laicizada, politicamente centralizada e economicamente estruturada sobre a agricultura escravista, apresentava um plano modernizador americanista essencialmente baseado, segundo Luis Werneck Viana, em “reformas políticas liberais mais capitalismo agrário moderno”223. No mesmo caminho de reforma americanista, mas levando as posições aos limites de sua radicalidade, havia a figura do engenheiro baiano André Rebouças, estudada por 220

Sobre a crítica dos setores liberais e positivistas à união entre Estado e Igreja ver ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós; 1979. 221 Sobre a luta de Tavares Bastos para a abertura da navegação do Amazonas, considerada como fruto de uma concepção “cosmopolita” de relação com as nações estrangeiras, ver FERREIRA,G. N. Op. Cit. Cap. 3, tópico 2. Outra interpretação – pelo viés nacionalista - para o episódio é apresentada por LUZ, Nícia Vilela. A Amazônia para os negros americanos. Rio: ed. Saga; 1968. 222 CUNHA, Euclides. “Entre o Madeira e o Javarí” In Contrastes e confrontos. Rio: Record; 1975. P. 157. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização, p.224.

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Maria Alice Rezende de Carvalho224. Figura típica da elite modernizadora do final do XIX, Rebouças representava uma geração imediatamente posterior à de Tavares Bastos. Propunha, nos anos 1870, a radicalização da reforma americanista mediante a implantação de uma “democracia rural”. Esta se basearia na liberalização não somente das instituições políticas (a federação) mas principalmente do mundo do trabalho e da terra, implicando um forte abolicionismo, seguido de reforma agrária. Esta teria o propósito de transformar os ex-escravos em uma massa de pequenos proprietários, que seriam triplamente incumbidos de anular as conseqüências de séculos da escravidão, ocupar economicamente o território inexplorado e conferir a base material e social de sustentação do mundo democrático ianque que se pretendia construir. O ianquismo de Rebouças era inseparável do abolicionismo e da transformação dos ex-escravos em farmers, pequenos proprietários rurais, através de ampla reforma agrária. Se, nos anos 70, Rebouças pensava que o melhor meio de reformar a sociedade seria a partir “de baixo”, da ação dos indivíduos em defesa de seus interesses particulares, nos anos 80 passou a identificar como meio ideal para a reforma a ação diretora “pelo alto”, a partir de um Estado monárquico regenerado, como no caso dos Estados unificadores italiano e alemão225. Evidenciava, assim, a aproximação nunca rompida dos novos liberais com a forma monárquica, apesar das constantes críticas reformistas. Coube ao setor mais descentralizador da elite cafeicultora paulista a tarefa de dar uma forma republicana ao americanismo lançado no contexto brasileiro pelos novos liberais, conforme veremos no próximo capítulo. Porém o questionamento dos novos grupos modernizadores não ficava restrito ao universo das instituições políticas e sociais, atingindo também o terreno da cultura letrada. A mudança da pauta política ocorria juntamente com a redefinição dos termos do debate intelectual deste fim de século, ocasionando a ressignificação das representações sobre o passado nacional.

223

VIANA, L. Werneck. Op. Cit.1993. pp 372. CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Op. Cit., 1998. Ver também as relações do americanismo de Rebouças com o entusiasmo pela tecnologia moderna, discutida em FOOT-HARDMAN, Francisco. Trem Fantasma. A modernidade na Selva. São Paulo: Cia. das letras; 1991.p. 79 a 84. 224

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4.2 Crise do Indianismo e visão cosmopolita do nacional.

A crítica que os grupos modernizadores levantaram às instituições monárquicas acabou se espraiando para o universo cultural, colocando em xeque a própria matriz de identidade nacional característica do Segundo Império. Ao mesmo tempo em que se propunha a reforma do Estado, apresentavam-se novas visões sobre a identidade da Nação. Contemporâneo à crítica dos novos liberais às instituições políticas centralizadas, tivemos, no terreno das letras, o ataque à matriz identitária indianista. Marco decisivo desta crise foram as polêmicas travadas contra o romancista José de Alencar, em 1872, pelo pernambucano Franklin Távora e em 1875 por Joaquim Nabuco, ambos ligados a novas tendências modernizadoras, respectivamente o cientificismo da Escola do Recife e o novo liberalismo em seu ramo abolicionista226. Nos anos 1870, José de Alencar representava a face mais popular e conservadora do projeto indianista. Seus romances atingiam um público que nenhum dos indianistas mais próximos do aparato oficial (Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias) conseguira conquistar. Ao mesmo tempo, no terreno político, Alencar, que nunca fizera parte do grupo de literatos palacianos, distanciou-se ainda mais do Imperador e reforçou seu proverbial conservadorismo alinhando-se aos saquaremas “emperrados” na defesa explícita da escravidão e da centralização. O literato conservador tornou-se o adversário maior dos novos intelectuais críticos, representando a encarnação dos valores culturais e políticos da ordem saquarema que pretendiam reformar. Alencar transformou-se, desta forma, no alvo ideal para um jovem liberal como Nabuco, que o atacou pelos jornais, desencadeando acirrada polêmica literária. Da discussão travada entre ambos, interessa ressaltar o questionamento de Nabuco, de dois pontos importantes da matriz indianista identificada com Alencar: primeiramente o jovem liberal criticou a visão do nacional como afirmação de uma singularidade brasileira e, num segundo momento, rejeitou a identificação desta singularidade na presença do elemento indígena e de sua fusão com o europeu. Nabuco questionava a visão romântica do nacional com ênfase na busca da singularidade e especificidade brasileiras, programa que corresponderia a uma fase de 225

CARVALHO, Maria. Alice Rezende. Op. Cit. 1998. Principalmente Cap 5 “O Piemonte Brasileiro”. Sobre as polêmicas sigo ALONSO, Ângela. “Epílogo do Romantismo.”In Dados, Rio de Janeiro, vol.39, nº 1, 1996. 226

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consolidação do processo de autonomia nacional e que era apresentada como anacrônico diante das necessidades dos novos tempos. Num momento em que o país buscava sua inserção no movimento da modernização capitalista a questão central passava a ser menos a da singularidade, e mais a da supressão do atraso que o separava das nações consideradas civilizadas. A perspectiva de compreensão do nacional que estava na base da visão de Nabuco era marcada pela consciência do atraso brasileiro e o desejo de integrar o país ao ritmo do progresso dos países do Hemisfério Norte – Europa Ocidental e Estados Unidos – entendidos como modelos de sociedades civilizadas a serem aplicados à realidade brasileira227. Nabuco apresentava os primeiros traços de uma nova visão do nacional mais afinada com valores cosmopolitas que se esboçava no período e se tornaria predominante entre as elites nacionais na passagem do século XIX para o XX, vigorando até pelo menos meados dos anos 1910, quando o novo movimento nacionalista repôs em primeiro plano a questão da singularidade brasileira228. Neste novo contexto, mais do que definir o que o brasileiro tinha de específico (postura não de todo descartada, mas relegada a segundo plano) cabia à nova intelectualidade, empenhada no debate sobre o nacional, mapear os entraves apresentados pelo Brasil à sua entrada na civilização, realizando assim uma espécie de “diagnóstico do atraso brasileiro”229. Nesta nova compreensão sobre o nacional, a matriz identitária indianista, para o qual a originalidade do povo brasileiro estava na fusão do indígena com o europeu, também passava a ser fortemente questionada. A centralidade do elemento indígena como esteio do específico nacional, deixava de ter sentido em um contexto no qual os projetos de formação do povo brasileiro, defendidos pelas elites modernizadoras, apontavam para o abolicionismo e o imigrantismo, ou seja, a necessidade de se considerar a forma de incorporação, simbólica e concreta, do escravo negro libertado e principalmente a introdução maciça do trabalhador branco europeu. 227

ALONSO, Op. Cit. 1996. pp 144. Esta visão cosmopolita do nacional sustentava o anseio de “civilização” e “regeneração” da belle époque brasileira. Ela teria como exemplo maior de sua efetivação as reformas urbanas por que passaram as principais capitais brasileiras na virada do século, com destaque para a reforma do Rio de Janeiro, que a partir de 1904 substitui a cidade de linhas coloniais e lusitanas por modernos boulevares de inspiração parisiense. O impacto desta visão cosmopolita foi estudado, no terreno da cultura e sociedade, por SEVCENKO, Nicolau. A Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense; 1989. E por NEEDEL, Jeffrey. Belle Époque tropical. São Paulo: Cia. das Letras; 1993. 228

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De fato, na década de 1870, várias mudanças levaram à redefinição da questão nacional e conseqüente desprestígio da matriz indianista. Neste contexto, surgiu um novo tipo de intelectual crítico, ligado diretamente aos movimentos políticos de contestação à ordem saquarema acima descritos e identificados, menos por uma origem social comum do que pela situação de exclusão das instituições culturais oficiais 230. Esse grupo entraria em choque com os intelectuais monárquicos (burocratas ilustrados e literatos românticos) que nos anos 1870 e 80 ainda controlavam os cargos das principais instituições culturais imperiais, como eram o Colégio Pedro II, o convalescente IHGB e as renovadas Biblioteca Nacional e Museu Nacional. Os novos intelectuais proporcionaram também uma mudança no paradigma intelectual com o qual era realizado o debate sobre o povo-nação. Ao contrário dos intelectuais monárquicos seus antecessores, não mais se baseavam na etnologia iluminista ou no ecletismo espiritualista que investiam, respectivamente, na perfectibilidade e na cristianização do selvagem e dos sertanejos para formar o povo brasileiro. Para realizar suas críticas ao status quo monárquico, a partir dos anos 70 esse intelectuais se apropriaram do “bando de idéias novas” a que fez menção Sílvio Romero, constituído pelas mais diversas teorias cientificistas, evolucionistas e deterministas, elaboradas originalmente na Europa imperialista de finais do séc. XIX231. A questão da natureza do povo brasileiro passou então a ser pensada em termos de raça e uma etnografia biologizante serviu de parâmetro intelectual para as discussões do período, influindo profundamente no debate sobre o nacional. De forma que a ciência passou, paulatinamente, a substituir a literatura romântica como instrumento privilegiado do debate sobre o nacional, como ficava evidente nas críticas levantadas por Távora e Nabuco a José de Alencar232. O que unificava o debate da época sobre o povo brasileiro era

229

ALONSO, Op. Cit.,1996. p. 153. Ver ALONSO, A. Op. Cit.,2000. Principalmente Cap. 4.tópico 2. Também para Lilia Schwarcz, “durante o Segundo Reinado era visível o amadurecimento de grupos intelectuais distintos. As formações eram diversas, as aspirações profissionais variavam em função das particularidades de cada especialização, assim como tornava-se mais difícil a definição de um só perfil sócio-econômico para os membros dessas instituições.” SCHWARCZ, Lilia M. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 18701930. São Paulo: cia. das Letras; 1993. P. 25,26. 231 SCHWARCZ, Lilia, Op. Cit.; VENTURA, Roberto. Estilo tropical. História cultural e polêmicas literárias no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras; 1991 e SKIDMORE, Thomas. Preto no branco. Raça e Nacionalidade no Pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1989. 232 ALONSO, A . Op. Cit. 1996 .p. 157. 230

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o desejo predominante nas elites de supressão dos traços negros e indígenas da população e de criação de um povo brasileiro eminentemente branco, o que era entendido como passaporte inquestionável para a modernidade. Neste contexto, as propostas indigenistas, ainda apresentadas pelo livro O Selvagem de Couto de Magalhães, de 1875, quando não atacadas, como foram por Sílvio Romero, eram solenemente desprezadas pelos intelectuais modernizadores, com a exceção dos positivistas ortodoxos que mantiveram a preocupação com a incorporação dos indígenas, mas em termos diferentes daqueles defendidos pela elite monárquica233. Em geral, a nova intelectualidade crítica reforçava a visão do indígena como problema, como um empecilho ao rápido avanço da fronteira agrícola sobre seus territórios. Desta forma, o que se pretende ressaltar é o fato de que, a partir da década de 1870, o projeto cultural oficial da Monarquia bragantina, identificado com o indianismo, seria questionado pelos intelectuais críticos nas suas três dimensões: política indigenista, literatura indianista e etno-historiografia indianista. Com o imigrantismo triunfante, uma política indigenista perdia a relativa importância que tivera para grupos de burocratas ilustrados monárquicos. Por outro lado, como comprovam as críticas de Franklim Távora e Joaquim Nabuco a José de Alencar, a literatura indianista passava a ser questionada pelos grupos modernizadores como ineficaz na definição do nacional, devendo ser substituída pela ciência ou ainda por uma literatura naturalista. Por sua vez, a etno-historiografia indianista, acalentada nos anos 40 e 50 no interior do IHGB, se esvaziava juntamente com a laicização da cultura, a diminuição do ritmo de atividade do Instituto e o revigoramento de diferentes enfoques do passado nacional. Contudo, isso não significa que o indianismo tenha desaparecido completamente no período. O indianismo etno-historiográfico parece ter passado por uma tentativa de renovação nos anos 70 e 80 por parte de uma nova leva de intelectuais monárquicos (Couto de Magalhães, Teodoro Sampaio, Joaquim Serra e mesmo Capistrano de Abreu, a seu modo), afinados com os valores da modernização e centrados no renovado Museu Nacional, tentativa esta muito pouco estudada234.

233

Para o debate indigenista de finais do séc. XIX e a posição dos positivistas, ver GAGLIARDI, Mauro. O indígena e a República. São Paulo: HUCITEC, Edusp; 1989. 234 Sobre as tentativas de renovação do indianismo, principalmente aquelas realizadas no Museu Nacional, ver FREITAS, Marcus Vinícius. Charles Frederick Hartt, um naturalista no Império de Pedro II. Belo Horizonte: Ed. UFMG; 2002. Principalmente Cap. VI.

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No terreno historiográfico, o advento conjunto da “maré democrática” e do “bando de idéias novas”, do federalismo político e do cientificismo cultural, repercutiu de forma a diversificar a produção de representações sobre o nosso passado. Diretamente relacionada à formação da historiografia republicana paulista, ocorreu a redefinição de duas matrizes historiográficas: a matriz liberal e a matriz territorialista. Elas haviam lançado suas raízes no ambiente intelectual imperial, mas eram eclipsadas pelo destaque dado à matriz indianista, então dotada de um caráter oficial. No contexto posterior a 1860, quando se acirraram as críticas à centralização, a matriz liberal foi retomada pelos novos liberais americanistas, Tavares Bastos à frente. Ao mesmo tempo, refletindo sobre o avanço da fronteira agrícola e a difundindo a tese do determinismo geográfico, a matriz historiográfica territorialista ganhou destaque, tendo sido reelaborada por Capistrano de Abreu, que também se empenhou em atualizar a historiografia indianista. Tanto a matriz liberal quanto a territorialista definiram as questões que estiveram na base da historiografia do bandeirante elaborada pelos republicanos paulistas ao longo da Primeira República, merecendo, por isso, a nossa atenção. Conforme veremos melhor mais adiante, a matriz liberal retomada pelos americanistas sustentou a crítica, compartilhada pelos republicanos paulistas, à tradição estatista e centralizadora monárquica. Por sua vez, a historiografia territorialista de Capistrano colocou novamente no centro do debate historiográfico, de uma forma em geral positiva, a figura do bandeirante, tão desqualificada pela historiografia indianista, conforme analisamos nos capítulos anteriores. 4.3 Americanismo e passado: “absolutismo colonial” explica o atraso brasileiro.

A matriz liberal de interpretação do passado brasileiro tinha suas raízes diretamente nas lutas políticas da Regência e do Segundo Reinado. Fora sustentada principalmente por políticos, a maioria ligada ao Partido Liberal, através da forma do panfleto, gênero que fundia a apresentação de programas políticos com diagnósticos do Brasil 235. Estes

235

Para análise dos principais panfletos ver MARSON, Isabel A. “O Império da revolução: matrizes interpretativas dos conflitos da sociedade monárquica” In FREITAS, Marcos C. (org.) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. Ver também MAGALHÃES Jr. Três panfletários no segundo império. São Paulo: Cia. Ed. Nacional; 1956.

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diagnósticos, por sua vez, se baseavam em análises da trajetória do passado nacional que seguiam um método definido por Walquíria Leão Rego como “histórico genético”, uma vez que identificavam no tempo recuado das origens a explicação para os problemas políticos do presente236. Panfletos como Libelo do Povo (1849), do então liberal Sales Torres Homem, a Circular dedicada aos eleitores de Minas (1860), de autoria de Teófilo Ottoni, ou mesmo os escritos do já estudado Homem de Melo, evidenciavam a imbricação predominante entre o debate político partidário e a elaboração de representações do passado nacional. Para o estudo do período colonial, a matriz liberal teve sua principal sistematização historiográfica na obra do maranhense João Francisco Lisboa, principalmente naquela que Maria de Lourdes Janotti considera a sua “segunda fase”, iniciada após a sua viagem a Portugal em 1858. A partir deste momento, o autor deixou a questão indígena para segundo plano e passou a se preocupar com a forma de organização do poder na colônia, fazendo então a crítica da autoridade absoluta do governo metropolitano e o elogio da autonomia dos colonos representados nas Câmaras Municipais, entendidas estas como espécie de embrião da vontade popular nacional e origens da consciência liberal brasileira.237 Ao contrário da matriz indianista, de caráter oficial e baseada numa interpretação moral da história nacional - que a entendia como movida pela oposição entre moral cristã X moral do interesse (representada na oposição abnegação X cobiça, ou ainda, jesuíta X colono laico, quando projetada nos agentes históricos) - a matriz liberal se caracterizava por ter uma interpretação política do passado brasileiro. Considerava a história do país como marcada pelo embate autoridade X liberdade (ou “liberdade X tirania” de que fala Torres Homem), dinâmica válida para a compreensão tanto dos embates da colônia quanto do período independente. Nesta visão, o papel do Estado e da Coroa portuguesa, normalmente identificados com o pólo da autoridade, tendia a ser desqualificado, enquanto se louvavam os representantes da liberdade, normalmente identificados com o “povo”, os “colonos”, as “Câmaras Municipais”, ou, numa chave nacionalista, como “brasileiros”.

236

REGO, Walquíria D. Leão. “Tavares Bastos e Oliveira Vianna: contraponto.” In BASTOS, Élide & MORAES, João Quartim (orgs.) O Pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Ed. UNICAMP; 1993. 237 JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. João Francisco Lisboa, jornalista e historiador. São Paulo; Ed. Ática; 1977.

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No contexto de crítica à centralização, os liberais americanistas também fizeram uso do passado, retomando, para isso, o enfoque característico da matriz historiográfica liberal, adequando-a, porém, ao debate político e intelectual do período. Tavares Bastos recuperou a forma do panfleto para realizar a crítica do Estado centralizado do Segundo Império, conforme transparece no seu texto pioneiro Os males do presente e as esperanças do futuro, de 1861. Nesta obra, o autor não realizou propriamente um trabalho de cunho historiográfico, dispensando a pesquisa de fontes primárias. A história é resgatada como parte da argumentação política e seu interesse reside na interpretação geral que realiza do sentido do passado colonial. Neste opúsculo, Tavares Bastos sistematizou, em breves traços, a interpretação americanista da história brasileira e para tanto, se apropriou de elementos do elogio da colonização norte-americana realizado pelo filósofo político francês Alexis de Tocqueville. Para realizar sua crítica à centralização monárquica, Tavares Bastos foi buscar no passado remoto, no tempo das origens, as causas da pouca liberdade existente no Império do Brasil. “A origem dos nossos males não está só nos recentes erros de ontem, como de ordinário se diz. Não! Para descobri-la é preciso remontar ao curso de mais de um século, a muitos dias passados(...)”238. Neste aspecto, Tavares Bastos dialogava com Tocqueville, autor citado no texto e seu interlocutor privilegiado239, para quem “os povos se ressentem sempre de sua origem”, 240 sendo, portanto, necessário recuperar este tempo dos primórdios para se compreender o princípio diretor da sociedade analisada. Tocqueville se preocupava em compreender as causas que levaram a democracia a se constituir no princípio ordenador das instituições políticas e da sociedade dos Estados Unidos. Na sua visão, a explicação para o vigor e sucesso da democracia norte-americana estaria em um conjunto de fatores que possibilitaram o enraizamento, desde os primórdios, de uma ordem política livre e de uma ordem social igualitária. Estes fatores incluíam desde a disposição “providencial” do meio natural americano, até a condição social igualitária241 passando pelos valores religiosos puritanos dos seus primeiros habitantes. Mas, dentre

238

TAVARES BASTOS, A. C.. Os Males do Presente e as esperanças do futuro. São Paulo: Cia. Ed. Nacional; coleção brasiliana; 1939. pp 27. 239 Sobre o uso que Tavares Bastos faz da obra de Tocqueville, ver FERREIRA, Gabriela Nunes. “Os usos da Democracia na América” In. Op. Cit. P. 175-195. 240 TOCQUEVILLE, Aléxis de. De la Démocratie en Amerique. Paris: Garnier Flammarion; 1981. p. 86.

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todos, Tocqueville conferia um peso especial à forma de colonização implantada pelos ingleses na América e, mais especificamente, às instituições políticas legadas pela metrópole colonizadora. Simpatizante da tradição representativa britânica, o aristocrata liberal Tocqueville reconhecia a dívida que os americanos do norte tinham com sua antiga metrópole. Muito do seu sucesso era apresentado como decorrência do espírito liberal vigente na matriz britânica da qual procediam. A colonização implantada pelos britânicos na Nova Inglaterra, na sua opinião, nada teve de despótica ou tirânica. Ela se pautara pela generalização do “governo comunal”: instâncias locais de representação dos colonos, identificadas pelo autor como “germe fecundo das instituições livres” e garantia de sustentação do “dogma da soberania do povo”242. Para Tocqueville, enquanto a Europa sucumbia sob o peso do absolutismo, as treze colônias inglesas da América eram colonizadas tendo por base instituições políticas livres, pautadas pelo princípio democrático do self government, do regime representativo. Assim, Tocqueville procurava mostrar que a liberdade e a democracia estavam nas origens dos Estados Unidos, sendo parte indissociável de sua formação social. No caso norte-americano, o passado, em vez de representar um empecilho à modernização da sociedade, entendida esta como conquista das liberdades representativas, era visto como origem e condição destas mesmas liberdades. Para Tocqueville, os Estados Unidos representavam um caso original no qual a liberdade e as tradições coloniais não eram termos opostos. A reflexão de Tocqueville sobre a forma de colonização dos Estados Unidos serviu de pano de fundo e referência teórica principal da representação sobre o passado brasileiro elaborada por Tavares Bastos e adotado pela crítica americanista à centralização monárquica, republicanos paulistas incluídos. Como Tocqueville, também o liberal alagoano era um profundo admirador do sistema de colonização adotado pelos ingleses, tanto no período colonial quanto no séc. XIX. No seu livro A Província, de 1870, Tavares Bastos elogiava o liberalismo e a grande autonomia política que o sistema de colonização adotado pelo Império Britânico conferia, em sua própria época, à Austrália e ao Canadá. 241

Para Tocqueville os peregrinos era originários das “classes médias”, setor visto pelo pensamento político do séc. XIX como sustentáculo dos princípios políticos representativos. 242 Idem, Ibidem, Pp 87.

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Em traços gerais, para Tavares Bastos, tratava-se do mesmo sistema de colonização que pela sua “ausência de peias” possibilitara “aos povos da Nova Inglaterra a sua nobre independência e rápida prosperidade”, conforme escreve em Os males do presente243. Ainda nesta obra, Tavares Bastos convergiria com o entusiasmo tocquevilliano pelo sistema colonial norte-americano, ao afirmaria que as instituições livres e democráticas dos Estados Unidos não eram fruto da revolução da independência, ao contrário, “elas existiam dantes; tinham suas raízes nas livres cartas, sob cujo regime se haviam engrandecido as colônias inglesas”244. Porém, o mais sistemático elogio de Tavares Bastos ao sistema de colonização que os ingleses implantaram nos EUA está em uma de suas Cartas do Solitário: “(...) os ingleses foram mais prudentes e justos a respeito de suas colônias. E é por isso que ainda hoje possuem um império tão vasto. Invoco a história. Como é que uma simples colônia, a Nova Inglaterra, pôde de repente transformar-se na poderosa, rica, vasta, ilustrada, livre, inteligente, generosa, audaz república dos Estados Unidos da América? Por que, desde os seus começos, desde a primeira povoação, fecundou-se o espírito liberal da reforma protestante, a moralidade, o amor ao trabalho, (...) o zelo da independência pessoal, que são o verbo do evangelho e constituem os grandes característicos das raças do norte do globo. Com efeito, em vez de suportarem a ignara opressão dos ridículos capitães-mores e o fanatismo estúpido dos padres católicos do séc. XVI, os Estados Unidos foram povoados por quakers e outras seitas independentes, e governados por lords ingleses. Eis o mistério.”245 Na realidade, o quadro traçado sobre a liberdade dos EUA serviu como contraponto para o caso brasileiro. A originalidade da apropriação americanista da matriz historiográfica liberal estava exatamente em pensar a colonização do Brasil em oposição à colonização norte-americana. Mais do que qualquer outro autor brasileiro do período, Tavares Bastos pensava o caso brasileiro tendo como referência o espelho norte-americano,

243

TAVARES BASTOS, Aureliano Cândido Op. Cit, 1939. Pp 31. Idem, Ibidem, P. 31. 245 TAVARES BASTOS, Aureliano Cândido. Cartas do Solitário. Rio: s/ed.; 1863.carta XXVIII, p. 324. 244

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conforme a feliz metáfora de Richard Morse246. Para o novo liberal brasileiro, se a explicação para o progresso e democracia dos Estados Unidos estava na forma de colonização “livre” e “democrática” implantada pelos ingleses, por sua vez, a causa do atraso brasileiro e da pouca liberdade aí existente também poderia ser creditada ao seu passado colonial “despótico” e “absolutista”. Escreve Tavares Bastos: “Se alguma coisa explica o embrutecimento do Brasil até o começo do século presente, a geral depravação e bárbara aspereza de seus costumes, e, portanto, a ausência do que se chama espírito público e atividade empreendedora, é de certo o sistema colonial. Não recai sobre Portugal somente esse crime de ignorância e egoísmo; mas, é inegável que em parte alguma, foi o regime observado com mais severidade e mais solícita avareza do que na metrópole.”

247

(grifo meu) De forma inequívoca, para Tavares Bastos, os problemas do Brasil teriam sua origem em um sistema colonial lusitano, descrito como “Absolutista”, que impediu a liberdade política e o princípio do self government. No Brasil, desde os primórdios, a autoridade e o poder da Coroa portuguesa se impuseram sobre todo o restante da sociedade, impedindo qualquer margem de liberdade e ação para os colonos “brasileiros”. Se o sucesso dos norte-americanos era devido à “ausência de peias” de seu sistema colonial, o atraso dos brasileiros era entendido como decorrência do excesso de controle por parte do Estado metropolitano “despótico”, que a tudo dominava e a todos controlava. O tema do “despotismo colonial” que sustentara o discurso dos liberais monárquicos (Sales Torres Homem, Teófilo Ottoni,etc.) era retomado por Tavares Bastos e colocado no centro da explicação do atraso nacional. Como salientou Luis Werneck Viana, o diagnóstico histórico promovido por Tavares Bastos pode ser considerado como precursor das interpretações historiográficas (algumas vigentes até hoje) que identificam no absolutismo do sistema colonial herdado da matriz lusitana a explicação para o atraso brasileiro248. De fato, sua interpretação é 246

Para Morse os contatos entre a Anglo e a Ibero América têm sido marcados, há 200 anos, por uma relação especular, onde cada um encontra sua própria imagem invertida ao se mirar no exemplo do outro. MORSE, R. M. O Espelho de Próspero: cultura e idéias nas Américas. São Paulo: Cia. das Letras; 1988. 247 BASTOS, A. C. Tavares. Op cit, 1939. p. 31. 248 Neste sentido, para Werneck Viana, Tavares Bastos seria precursor de Raimundo Faoro e Simon Schwartzman. VIANA,L. Werneck. Op. Cit., 1993 p. 372.

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representativa das novas visões sobre o passado brasileiro que se afirmam neste final de séc. XIX, interpretações que condenaram, em bloco, o sistema colonial implantado por Portugal. Segundo Evaldo Cabral de Melo, “a contestação ideológica dos dois últimos decênios do Império terminará vitimando por tabela a colonização portuguesa. Quase todas as novas tendências surgidas naqueles anos, evolucionismo, o germanismo da ‘Escola do Recife’, republicanismo, abolicionismo, propaganda imigratória, conterão implicitamente a rejeição de nosso passado lusitano”249. Assim, em Tavares Bastos se apresenta a nova visão do passado nacional que então tomava forma. Visão desprovida do caráter oficialista da historiografia indianista, sendo marcada por um forte sentido crítico ao papel desempenhado pelo Estado. Ao contrário da historiografia produzida no seio do IHGB, que segundo o cônego Januário Barbosa teria a finalidade política de orientar a “pública administração” na senda da moderação e formar as elites da nova nação para evitar maiores radicalismos políticos, a matriz liberal era usada pelos americanistas como arma para atacar o poder vigente, conforme estava constituído de forma centralizada. Como Tavares Bastos, outros setores modernizadores lastreavam suas críticas à ordem saquarema no diagnóstico histórico que identificava na colonização lusitana, despótica e escravocrata, como razão dos males do país. O abolicionismo do novo liberal Joaquim Nabuco manteve, no livro de 1883 O Abolicionismo, o diagnóstico que identificava as causas do atraso nacional no sistema colonial português, dando, porém, ênfase à escravidão.250 Também os republicanos, fossem paulistas ou jacobinos cariocas, conforme veremos, apresentaram uma visão crítica à colonização portuguesa que compartilhava muitos pontos da crítica americanista traçada por Tavares Bastos. O próprio Tiradentes, símbolo maior do imaginário republicano, poderia, conforme a leitura que dele se fizesse, ser enquadrado na matriz historiográfica liberal, na medida em que era também 249

MELO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. O Imaginário da Restauração Pernambucana. Rio: Nova fronteira; 1986. p. 381. 250 A diferença entre Nabuco e Tavares Bastos estaria na ênfase que conferiam a cada um dos princípios que caracterizariam o Período Colonial : absolutismo e escravismo. Enquanto Tavares Bastos dava prioridade a uma interpretação política da colonização – portanto com a predominância do absolutismo como principal fator de atraso – Nabuco entendia a colonização pelo viés econômico, conferindo destaque à escravidão com principal fator. Sobre o diagnóstico da colonização presente na obra de Nabuco, ver ALONSO, Angela. Op.Cit, 2000.

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interpretado como um “mártir da liberdade”, sacrificado pelo “despotismo” da coroa portuguesa251. Em resumo, para todas essas correntes políticas a história do Brasil era entendida como o embate entre a autoridade e a liberdade, a primeira representada pelo Estado absoluto e centralizado e a segunda pelos colonos e proprietários. Atacando o “Absolutismo Colonial”, tinham em vista atacar o Estado monárquico centralizado, que consideravam como uma extensão desse passado no presente. Outra matriz interpretativa da história nacional que tomou forma no período e muito marcou a representação do passado elaborada pela elite paulista, foi a interpretação territorialista, na versão de seu representante maior, o historiador cearense Capistrano de Abreu. Também ele se dedicou à explicação do atraso brasileiro, articulando-a, porém, com a questão mais antiga da especificidade nacional.

4.4 Capistrano de Abreu: neo indianismo, história do sertão e reavaliação do bandeirismo.

O historiador cearense Capistrano de Abreu é considerado, por vários estudiosos, o expoente da historiografia brasileira da passagem do século XIX para o XX, tendo também contribuído diretamente para a afirmação da historiografia republicana paulista, merecendo, portanto, especial atenção. Se não bastasse o fato de ter sido mestre dos principais historiadores paulistas do séc. XX, como Afonso de Taunay e Paulo Prado, o estudo de sua obra mereceria atenção especial por ter iniciado o processo de reavaliação positiva do papel do bandeirante na história brasileira, auxiliando a romper com a visão negativa sobre este personagem construída pela historiografia indianista. Uma chave importante para compreender a historiografia de Capistrano parece localizar-se na relação que manteve com o projeto cultural monárquico que lhe é anterior, questão que suscita divergências entre os estudiosos de sua obra252. O sentido de sua

251

Sobre a incorporação de Tiradentes ao imaginário republicano, ver CARVALHO, José Murilo. A formação das Almas. O imaginário da república no Brasil. SP: Cia. das Letras; 1990. Principalmente cap. 3 “Tiradentes um herói para a República”. 252 Enquanto José Honório Rodrigues, o autor da mais acurada análise de seus trabalhos, reforça os elementos de inovação e de ruptura com a tradição historiográfica anterior, Arno Wehling chama a atenção para as permanências existentes entre Capistrano e o historiador monárquico Varnhagen. Ver RODRIGUES, José Honório. “Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira”. In Idem, (org. ) Correpondência de Capistrano

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historiografia será aqui entendido à luz do seu posicionamento frente ao contexto apresentado neste capítulo, que se caracteriza pela crise do indianismo monárquico e a ascensão de novas visões do nacional calcadas nas teorias cientificistas. Procurarei compreender o papel de Capistrano de Abreu em uma conjuntura marcada pelo embate entre intelectuais monárquicos indianistas e a nova intelectualidade crítica, cientificista e republicana.

4.4.a. Entre a intelectualidade crítica e a renovação do indianismo.

Como sua obra, também a localização social de Capistrano de Abreu caracterizouse pela convivência e circulação entre os grupos antagônicos. Ao mesmo tempo em que se identificava com os grupos de intelectuais críticos (republicanos, positivistas e abolicionistas), no seio dos quais se formou, não deixou de manter estreitos contatos e compartilhar posições com intelectuais que eram verdadeiras encarnações da cultura monárquica, como foram Eduardo Prado, o barão do Rio Branco e, mais do que todos, José de Alencar. Oriundo do ambiente de agitação da “geração de 1870”, Capistrano acabou se inserindo nas principais instituições culturais monárquicas de caráter oficial como a Biblioteca Nacional, o Colégio Pedro II e o IHGB, evidenciando, também neste aspecto, seu trânsito entre espaços diferentes. Ainda no Ceará natal, Capistrano de Abreu participou, entre 1870 e 1874, da chamada “Academia Francesa”, grupo de jovens intelectuais que difundiam as novas teorias cientificistas, renovando o ambiente cultural da província. Foi nestes anos que, conforme informaria em correspondência posterior, tivera pela primeira vez a idéia de escrever uma história do Brasil, inspirado pela leitura de autores cientificistas como Taine, Spencer, Buckle e Agassis e cujas características principais podem ser deduzidas dos seus estudos de crítica literária, escritos ainda no Ceará, em 1874253. Neste período de juventude, era um típico representante dos grupos de intelectuais modernizadores,

de Abreu, vol I. Rio: Instituto Nacional do Livro; 1954. E WEHLING, Arno. Op. Cit., 1999. Principalmente cap 8. 253 Os primeiros escritos de Capistrano foram de crítica literária e já prefiguram algumas das questões que marcarão sua reflexão historiográfica, como a preocupação com o papel desempenhado pelo meio físico na criação de uma originalidade brasileira. Ver ABREU, J. Capistrano de. “A literatura Brasileira Contemporânea” In Idem, Ensaios e Estudos. 2 ª série. Rio: Civ. Brasileira: 1976.

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orientação que manteve mesmo depois que deixou sua terra natal, em 1875, movido pelo intuito de desenvolver seus dotes intelectuais no Rio de Janeiro, então o centro inquestionável da intelectualidade nacional. Na Corte, aprofundou seus contatos com os novos intelectuais críticos, se envolvendo com abolicionistas (a única vez que voltou ao Ceará foi para cobrir como jornalista a precoce abolição da escravidão na Província, em 1882), acompanhando regularmente as leituras apresentadas no apostolado positivista e, a partir de 1879, atuando como crítico literário para a Gazeta de Notícias, periódico que Angela Alonso considera o principal representante do novo jornalismo dos intelectuais críticos. Conviveu, então, com figuras de destaque do movimento republicano como Valentim Magalhães, o escritor naturalista e jacobino Raul Pompéia, o gaúcho Assis Brasil e o chefe político paulista, também abolicionista, Ubaldino do Amaral254, além do separatista paulista Martim Francisco de Andrada III. De Assis Brasil tornou-se amigo pessoal. Procurou aproximá-lo de abolicionistas cariocas como José do Patrocínio255 e ainda serviu como seu interlocutor na elaboração do clássico República Federativa, sugerindo epígrafes e elogiando a obra, com algumas ressalvas que não explicita em sua farta correspondência pessoal. O próprio Capistrano parece ter sido simpatizante da República, conforme informou algumas vezes em correspondência pessoal256, mas nunca se engajou explicitamente em atividade política, buscando sempre manter distância das lutas partidárias de sua época. Seu aparente apoliticismo talvez possa ser explicado por dois 254

Em carta de 19 de nov. de 1882, Capistrano escrevia a Assis Brasil: “Ubaldino do Amaral está com a idéia de publicar anualmente alguns livros sobre a história do Brasil, para servir de veículo a uma propaganda. Você quer se encarregar de escrever a história da revolução do Rio Grande, em um volume, como o seu ou o do Alcides Lima?” Depois desta carta não se encontra mais notícias do projeto editorial de Ubaldino. RODRIGUES, J. Honório (Org.). Correspondência de Capistrano de Abreu. Vol. I. Rio: Min. da Cultura: 1954. P. 85. 255 Em carta a Assis Brasil de 11 de março de 1881, Capistrano escrevia do Rio de Janeiro: “Venha, venha. Não tenha medo do meio; não tenha medo de nada (...)Vou comunicar sua vinda provável a Patrocínio. Quer isso dizer que v. há de fazer uma conferência; apronte-se, pois, desde logo. Peço-lhe, porém, um obséquio: escolha o dia 25, que é dia santo e não é Domingo. Nos domingos assisto a umas leituras positivistas a que não posso faltar.” Idem, ibidem, p. 73. 256 Nos dias seguintes à proclamação da República, Capistrano demonstrou sua adesão ao novo regime. Em carta ao barão do Rio Branco, então defensor da monarquia, escreveu: “digam o que quiserem, a República hoje é a pátria unida; a restauração seria a secessão”. Ver RODRIGUES , J. Honório (Org.) Op. Cit. 1954 p. 127. Uma discreta profissão de fé republicana aparece em artigo na Gazeta de Noticias de 8/nov./1881, no qual comentava um discurso político publicado pelo positivista republicano Teixeira Mendes. Para Capistrano as propostas de abolir o governo hereditário e implantar a forma republicana propalada por Mendes, eram medidas que “estão quase todas na consciência pública, e a questão é simplesmente de tempo e promulgação”. In Idem, Ensaios e Estudos, 4ª série. Rio: Civilização brasileira; 1976. Pp 322.

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motivos: a descrença na mudança de regime político como meio de transformação efetiva do país257, e a crença na necessidade de independência do intelectual frente à política. De fato, durante toda a sua vida Capistrano procurou se afirmar antes de tudo como um estudioso, não tendo desenvolvido nenhuma atividade que não fosse relacionada a ensino ou produção intelectual. Diferia, neste ponto, do perfil dos intelectuais do séc. XIX, normalmente ligados às carreiras da burocracia estatal, quando não diretamente empenhados nas lutas partidárias258. Neste sentido, nos primeiros anos de vida na Corte, sua atuação pública mais acentuada parece ter sido a luta contra a submissão do trabalho intelectual e literário aos interesses políticos. Capistrano pretendia que a República das Letras se regesse exclusivamente pelos critérios do mérito intelectual dos autores e da qualidade das obras e não pela prática do apadrinhamento e da submissão da produção cultural aos propósitos da luta política. Empenhou-se em combater o que considerava uma indevida intrusão da política e das relações pessoais em seara alheia, negando veementemente comentar em sua coluna de jornal qualquer obra relacionada a política. Comentando um livro do positivista Luís Pereira Barreto, deixou de lado parte da obra pois “trata-se aí de política, e este elemento está banido destas colunas”259. Neste ponto, chegou a atacar diretamente a própria forma como se regia o universo da cultura no Segundo Império, em geral marcada, como vimos anteriormente, pelo destaque exclusivo de alguns literatos próximos do Imperador e dos favores do Estado. Entre 1879 a 1882 quando exercia a crítica literária junto à Gazeta de Notícias, opôs-se à forma exclusivista pela qual se orientavam as principais instituições culturais da

257

Este ponto ficou claro em artigo de 16/ out/1880 que escreveu para a Gazeta de Notícias. Comentando um livro de autor anti-republicano, Capistrano negava a necessidade da Monarquia mas, ao mesmo tempo, considerava a República “ineficaz e impotente” para a efetiva transformação do país. A seu ver, a ciência provava que “o estágio rudimentar em que nos achamos, não pode ser modificado pela simples mudança da forma de governo.” Idem, Ibidem, p. 155. Sua descrença na eficácia da luta política parece ter marcado inclusive sua concepção da história, desprovida, como foi, de maior interesse na forma de organização do poder no passado. No seu primeiro texto de síntese, escrito em 1875, Capistrano afirmava a este respeito: “Uma revolução política pode modificar as relações dos estados, as condições dos governados; as manifestações da autoridade; não modifica a estrutura social. Sete de setembro transformou a colônia em povo soberano; não aboliu a outra dependência mais funda, industrial, mental, moral, social em suma, em que estamos da Europa” (grifo meu). ABREU, J. C. “literatura brasileira contemporânea” In Idem, Op. Cit. 2 ª série. 1976. 258 Sobre o perfil do historiador brasileiro dos séc XIX e início do XX, ver GOMES, Angela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Ed. FGV- CPDOC; 1997.

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Monarquia, atacando os dois maiores bastiões da cultura oficial: o colégio Pedro II e o IHGB. Com relação ao primeiro, além de questionar a competência e autoridade intelectual de vários membros de seu corpo docente, como o gramático Mota Azevedo e o lente de história Matoso Maia, criticou os critérios arcaicos pelos quais a instituição se regia, exigindo, dentre outras coisas, a “secularização do colégio, [e] a liberdade de opiniões”260. Quanto ao IHGB, considerava-o uma instituição paralisada, dormindo um “sono de crisálida”, marcada ainda por um cerimonial ultrapassado e pela presença de poucos autores capacitados261. Era, em suma, uma instituição que em tudo representava negativamente “os efeitos da proteção sobre a literatura”, o que não o impedia de afirmar, com certa ironia, o desejo de participar de seus quadros 262. Capistrano realizava, no universo cultural, a crítica que, segundo Ângela Alonso, os republicanos faziam à Monarquia no terreno político, ou seja, de que esta era marcada por instituições fechadas e exclusivas, cuja forma de acesso era condicionada antes por relações pessoais e de prestígio político do que por critérios de mérito individual. Estes elementos poderiam sugerir um alinhamento imediato de Capistrano de Abreu com os grupos modernizadores e mesmo antimonárquicos, reforçando a idéia de inovador que se atrelou à sua imagem. Mas a sua localização no universo das disputas políticas e culturais do período era mais complexa do que poderia parecer à primeira vista, uma vez que laços pessoais o ligavam à cultura monárquica que tanto criticava, evidenciando elementos de permanência onde a historiografia preferia apontar rupturas. Aspecto pouco considerado pelos estudiosos, mas fundamental para se compreender a inserção de Capistrano no ambiente cultural e político do Rio de finais do séc. XIX, é a relação profunda que o ligava a ninguém menos do que o adversário maior dos intelectuais modernizadores: José de Alencar263. 259

Artigo da coluna “Livros e Letras”, de 22 de maio de 1880. ABREU, João Capistrano, Op. Cit. 4 A. série, 1976, p.224. . 260 As críticas ao Pedro II e ao lente Mota Azevedo estão no artigo da Gazeta de 18/nov/1879. As críticas à História do Brasil escrita por Matoso Maia, estão nos artigos de 17 de abril e 29 de julho de 1880 da Gazeta de Notícias. Idem, Ibidem, p. 131 a 139. 261 Crítica contundente ao corpo de sócios do IHGB é feita no artigo de 17 de abril de 1880, no qual, referindo-se à montagem de uma comissão para escrever uma “história física e política do Brasil”, afirmava que “de 187 sócios do Instituto podem servir bem 26; podem servir condicionalmente 3; são perfeitamente inúteis 158.” Idem, Ibidem, p. 92. 262 Artigo de 18/ nov/1879. Idem, Idibem, p. 105. 263 As análises de José Honório Rodrigues, apesar de continuarem sendo os melhores trabalhos sobre Capistrano, resvalam, algumas vezes, para o panegírico e, na busca de afirmar a originalidade do historiador,

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De fato, fora o maior romancista indianista, também cearense, que “descobriu” o jovem estudioso Capistrano em Maranguape, interior do Ceará, em 1874, quando se restabelecia do esforço exigido pelas polêmicas há pouco travadas na Corte. Notando grande dedicação e potencial intelectual no jovem conterrâneo, Alencar o apoiou no intento de embarcar para a Corte, responsabilizando-se, a partir desse momento, pela sua colocação nos meios intelectuais cariocas. Em outros termos, Capistrano devia sua inserção na república das letras fluminense à intervenção pessoal de José de Alencar, que o recomendou ao jornalista Joaquim Serra, sendo logo admitido na Gazeta de Notícias como revisor. A dívida de Capistrano para com José de Alencar não ficaria restrita à mera gratidão pessoal, marcando inclusive a sua própria reflexão e a maneira como se posicionou nos embates do período. Capistrano incorporou o legado intelectual de José de Alencar, fato este que marcou toda a sua produção historiográfica pelo traço indianista nela presente. A ligação profunda com Alencar, auxilia a explicar o aparentemente insólito alinhamento do cientificista Capistrano em defesa do indianismo renovado do liberal monárquico Couto de Magalhães, atacado, em 1875, por outro expoente da nova intelectualidade, o crítico Sílvio Romero. Em artigo escrito no mês de janeiro de 1876, no mesmo momento em que Alencar duelava com Nabuco, e publicado no mesmo O Globo em que se dava a polêmica, Capistrano cerrava fileira junto ao mestre e defendia a matriz identitária indianista contra os ataques dos novos intelectuais embebidos de cientificismo e empenhados na guerra de deslegitimação simbólica da Monarquia264. Capistrano escreveu artigo contundente contra um velho desafeto265, o crítico literário sergipano Silvio Romero, que levantara contra o indianismo de Couto de

deixam na sombra os laços profundos que o uniam a Alencar. O biógrafo e conterrâneo de Capistrano, José Aurelio Câmara, por outro lado, chamou a atenção para as relações entre ambos. CAMARA, J. A . Saraiva. Capistrano de Abreu. Rio: José Olímpio Ed.; 1969.Cap.1, tópicos 21 e 22. Atualmente Marta Amoroso, em texto que procura resgatar a visão indianista de Capistrano, também ressalta a importância da sua relação com Alencar. Ver AMOROSO, Marta Rosa. “Capistrano de Abreu e os índios” In REIS,Elisa & ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. & FRY, Peter.(org.). Política e cultura: visões do passado e perspectivas contemporâneas. São Paulo : ANPOCS, Editora Hucitec, 1996. 264 Sobre a guerra simbólica para deslegitimar a Monarquia, ver ALONSO, Angela. Op. Cit. 2000. E sobre os ataques ao indianismo ver ALONSO, Op. Cit; 1996. 265 A relação entre Capistrano de Abreu e Silvio Romero foi marcada por constante tensão. Os embates se iniciaram com uma rusga acadêmica quando Capistrano, com apenas 16 anos, e Romero, com 18, conviveram rapidamente na faculdade do Recife, em 1870. ver CÂMARA, José Aurelio S. Op. cit. p.38. Os atritos se

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Magalhães uma série de criticas muito semelhantes às que, na mesma época, Nabuco lançava contra Alencar. Romero defendia que o elemento predominante no povo brasileiro era o português, afirmando ainda que a originalidade do tipo nacional se devia à presença do negro e não do indígena, prefigurando suas posições em defesa do mulato como tipo nacional por excelência. Não bastando isso, o crítico literário ainda invocava a ciência e o que chamava de “filosofia atual” para atacar o “romantismo jurídico” de Alencar. A reação de Capistrano foi incisiva e não ficou restrita ao artigo de 1876, tendo se desdobrado em uma série de outros três textos de polêmica contra Silvio Romero, publicados em 1880 na Gazeta de Notícia266. Eles nos interessam na medida em que, além de explicitar o alinhamento do autor junto ao grupo defensor do projeto indianista (ao lado dos intelectuais monarquistas Alencar e Couto de Magalhães) contra a ofensiva dos intelectuais modernizadores, também nos permite entrever a natureza do indianismo reelaborado por Capistrano. O que diferenciava o indianismo de Capistrano daquele defendido pelos seus antecessores era o caráter cientificista, já desprovido de qualquer traço espiritualista e católico que tanto marcara os indianistas românticos. No início da polêmica com Romero o jovem autor cearense deixava claro, citando Spencer e Buckle, que estava duelando com as mesmas armas do adversário; ou seja, Capistrano se colocava no terreno das novas teorias cientificistas e deterministas também usadas por Romero, anulando assim a pretensão de superioridade teórica aventada pelo adversário. Esta adesão às novas teorias deterministas implicava na reformulação da questão nacional por parte do autor. Na realidade, a reflexão indianista de Capistrano era parte de sua visão mais ampla sobre a originalidade nacional brasileira, tema explicitado neste debate com Romero. Ao contrário do adversário, Capistrano considerava que a originalidade brasileira seria resultado da transformação do colono português pela ação de dois fatores: o contato com o meio físico americano e com o elemento indígena. “A minha tese é a seguinte: o que houver de diverso entre o brasileiro e o europeu, atribuo-o em máxima parte ao clima e ao indígena. Sem negar a ação do elemento africano, penso que

estenderam pelo resto de suas vidas, com maior ou menor intensidade, gerando algumas polêmicas analisadas em VENTURA, Roberto. Op. Cit., 1991.

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ela é menor que a dos dois fatores, tomados isoladamente ou em conjunto”, escrevia o autor em 1880267. Capistrano atualizava a matriz indianista à luz da teoria do determinismo geográfico de Buckle e do evolucionismo de Spencer, ao mesmo tempo em que desqualificava o negro como fator de originalidade nacional, ponto defendido pela nova intelectualidade crítica, aqui representada por Romero. Em termos da historiografia elaborada por Capistrano, a identificação da originalidade brasileira como decorrente da ação do meio físico e do elemento indígena, resultaria no destaque que concedeu ao estudo de temáticas territoriais e indígenas, os dois temas que estruturam toda a sua obra. O indianismo renovado de Capistrano se desenvolveu principalmente nos aspectos da etno-historiografia indianista, não tendo maiores desdobramento em termos literários (ao contrário, Capistrano foi um dos maiores entusiastas da corrente estética naturalista, principalmente de Raul Pompéia e Euclides da Cunha) e muito menos em política indigenista, o que também o diferenciava do indianismo oficial do IHGB. Mesmo na dedicação à etno-historiografia, Capistrano parece ter se interessado mais em estudar os índios em termos etnológicos e lingüísticos do que propriamente históricos, apesar de não desprezar o estudo da participação do índio no passado colonial 268. Mas na quase totalidade da sua obra historiográfica, o interesse pelos indígenas teria que conviver com o maior investimento numa história de caráter territorialista, baseada no estudo do povoamento do sertão; tal investimento é decorrência de seu posicionamento diante de outro dissidente da cultura imperial - Francisco de Varnhagen.

4.4.b. Historiografia territorialista e o projeto da história sertaneja. O “dissidente” José de Alencar legou a Capistrano o indianismo, e o “dissidente” Varnhagen legou a ele o projeto de elaboração de uma história nacional una (Capistrano 266

O artigo de 1876 é intitulado “O caráter nacional e as origens do povo brasileiro” e está em ABREU,J. Capistrano de. Op. Cit.. 4 ª Série.1976 p. 3 Os outros três intitulam-se “História Pátria” e estão em Idem, Op.Cit. 3 ª Série.1976. p. 103 a 125. 267 ABREU, J. C. “História Pátria” In Idem, Op. Cit. 3 ª série.1976. p. 106. 268 Sobre as atividades indianistas de Capistrano, consultar AMOROSO, Marta. Op. Cit.1996. e AMOROSO, Marta & SÁEZ, Oscar Calavia. “Filhos do Norte: O indianismo em Gonçalves Dias e Capistrano de Abreu.” In SILVA, Aracy L. & GRUPIONI, Luis D. B. (org.) A temática indígena na escola. Brasília: MEC/MARI/UNESCO; 1995.

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elogiava o critério “brasileiro”, nacional, com que Varnhagen escreveu sua história), com destaque para um enfoque territorialista, que buscaria também reformular. Desta forma, o posicionamento polêmico do jovem Capistrano frente ao sistema cultural monárquico, que o levava a atacar de frente os bastiões da cultura imperial e seus critérios personalistas de admissão, não pode ser confundido com uma rejeição ao projeto cultural monárquico, marcado pela defesa de uma matriz identitária indianista e a elaboração de uma história nacional una. Buscando conciliar a crítica ao sistema cultural monárquico com a adesão aos pontos fortes do projeto cultural monárquico, Capistrano recuperou a obra dos dois autores que levaram o projeto cultural do Segundo Reinado ao seu limite, mas que, ou nunca foram aceitos nos postos mais altos dos bastiões da cultura oficial (caso de Alencar), ou foram deles marginalizados (caso de Varnhagen). A autofiliação de Capistrano à obra destes dois intelectuais monárquicos ficou evidenciada nos dois artigos que escreveu como necrológio dos autores mortos respectivamente em 1877 e 1878269, entre os primeiros de sua lavra. Sobre o balanço realizado da obra de Alencar e Varnhagen, Capistrano de Abreu definiu o seu próprio programa intelectual. Este foi marcado por um compromisso entre o passado e o presente que redundava na renovação da tradição intelectual monárquica mediante a aplicação das novas teorias cientificistas às antigas questões indianistas e territorialistas. Assim, o pensamento historiográfico de Capistrano foi marcada pela ruptura dentro da continuidade. Tanto no necrológio de Varnhagen quanto na série de três artigos publicados em 1882 na Gazeta270, Capistrano fez um balanço da obra do historiador monárquico e definiu seu próprio programa historiográfico. Este se estruturaria como preenchimento das lacunas da obra do predecessor, identificadas em dois elementos: a não aplicação à história nacional das teorias sociológicas deterministas e o pouco interesse de Varnhagen pela temática da ocupação do interior do território nacional. Os “claros” que Capistrano identificava na obra de Varnhagen apontavam para a elaboração de uma história

269

O necrológio de Alencar foi publicado na Gazeta de Notícias de 13 de dezembro de 1877 e o de Varnhagen, famoso pelo fato de Machado de Assis ter rasgado seu próprio artigo após ler o escrito pelo jovem e então desconhecido Capistrano, data de 16 e 20 de dezembro de 1878. O primeiro está publicado em ABREU, J. C. Op. Cit. 4ª série, 1976. p.42 e o segundo em Op. Cit. 2ª série, 1976. 270 Os artigos em que analisa a obra de Varnhagen foram intitulados “Sobre o Visconde de Porto Seguro” e aparecem nos dias 21,22 e23 de novembro de 1882 na Gazeta de Notícias. In. ABREU, J. C. Op. Cit. 2 ª série, 1976.

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territorialista renovada, e renovada exatamente pela aplicação das modernas teorias cientificistas à temática da formação territorial. Vimos, no capítulo anterior, que além do investimento em uma etno-historiografia indianista, desde sua fundação, o IHGB também foi o lugar de produção de uma historiografia territorialista, que se caracterizava por estudar o processo de construção do território nacional. Tratava-se de uma outra matriz interpretativa, calcada em uma visão geográfica do passado nacional, parte integrante de um imaginário geográfico que, durante o Segundo Reinado, desempenhou um papel político fundamental na medida em que, além de auxiliar na tarefa de construção simbólica da nação, teve o sentido pragmático de levantar subsídios para a diplomacia brasileira defender os interesses do país nos tumultuados embates pela definição das fronteiras nacionais, ainda por se realizar na sua maior parte271. Assim, durante toda a segunda metade do séc. XIX, a historiografia territorialista era antes de tudo uma historiografia diplomática, voltada para o estudo dos tratados de limites e da formação das fronteiras nacionais. Diplomatas também eram os seus principais expoentes, com destaque para o próprio Varnhagen, que nesta corrente se distinguiu272. No balanço da obra deste autor, Capistrano deu o devido crédito ao esforço do historiador sorocabano em definir este e outros assuntos históricos não diretamente ligados à matriz territorialista. Mas Capistrano também levantou problemas. Chamou a atenção para o descaso com que Varnhagen tratou o séc. XVII, com descobertas “que não tiveram grande importância”, preferindo se concentrar quase que exclusivamente no estudo da guerra holandesa. E chamou a atenção para o tratamento insuficiente de temas ligados à ocupação e povoamento do território interior do Brasil. Em 1882 Capistrano reclamava: “Há a história das sesmarias, em que ninguém se atreveu ainda a tocar. Há a história das municipalidades, que Lisboa foi o primeiro a entrever. Há a história 271

No momento da independência somente 17 % dos atuais limites terrestres nacionais estavam delimitados. Coube ao nascente Estado monárquico a tarefa de delimitar as fronteiras, definindo com precisão 51% dos limites do território nacional, do “corpo da pátria”. Os demais 32% foram obra republicana. Sobre imaginário geográfico da monarquia ver MAGNOLI, Demétrio. Op. Cit. 1997. Os dados apresentados nesta nota estão na p. 242. 272 Sobre o papel central de Varnhagen na definição de uma história diplomática, entendida como parte de um imaginário geográfico da nação, ver MAGNOLI, Demétrio. Op. Cit.1997. Sobre o desenvolvimento da história diplomática, na passagem do séc. XIX para o XX, ou seja, exatamente no período em que Capistrano escreve e publica, ver o estudo de MALATIAN, Teresa. Oliveira Lima e a construção da nacionalidade. Bauru, SP: EDUSC, FAPESP; 2001.

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dos bandeirantes, que jaz esparsa pelos livros e pelos arquivos. Há a história dos Jesuítas (...) Há a história das minas ... (...)Por que ainda não foi escrita a história da Casa da Torre, que começa com Tomé de Sousa e atravessa todo o período Colonial? Por que não se escreveu ainda a história das estradas?” Com exceção do interesse nas municipalidades (tema caro à matriz liberal e que Capistrano logo descartaria) e nos jesuítas (compreensível pela sua proximidade com a matriz indianista) todos os demais temas –sesmarias, bandeirantes, minas, Casa da Torre, estradas - se relacionavam com a ocupação e povoamento do interior brasileiro. Neste, como em vários outros trechos de seus escritos do período, emergia o perfil de um programa historiográfico que mantinha a preocupação da matriz territorialista em produzir uma história calcada no diálogo com a geografia, mas que inovava ao redirecionar o olhar dos limites do território, das suas fronteiras externas, para o seu interior, para a região central, o imenso Sertão, o “deserto interior brasileiro”, de cuja ocupação e colonização cabia buscar a história. Para Capistrano, portanto, o ideal de história do Brasil seria menos uma história da formação dos limites externos do que uma história da ocupação e povoamento do interior do país. “Fronteira”, para Capistrano, seria antes frontier que border e nisso ele se diferenciava da historiografia territorialista monárquica273. Sua historiografia seria antes de tudo uma historiografia sertaneja, uma historiografia do processo de ocupação e povoamento do sertão brasileiro, e neste programa, conforme veremos, o estudo das bandeiras teria papel de destaque. Para Capistrano, como para os demais historiadores territorialistas seus contemporâneos e seguidores (Teodoro Sampaio, Basílio de Magalhães, Orville Derby), a nova história do Brasil deveria ser entendida como o processo do “emprazamento lento do território: do avanço da civilização e do refluxo da barbaria”274 Para Capistrano, portanto, o processo de formação nacional mais uma vez corresponderia, nos termos do vocabulário evolucionista, ao avanço da civilização sobre a barbárie, entendido este processo não como a vitória da liberdade sobre a autoridade (como

273

A lingua inglesa estabelece a distinção entre os termos frontier e border que no português aparecem sobre a forma indistinta de fronteira. Frontier seria o que chamamos de “fronteira de ocupação”, ou seja, a área ocupada economicamente por população nacional e border seria os limites entre países diferentes.

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na matriz historiográfica liberal) nem como a vitória da abnegação cristã sobre a cobiça e a selvageria pagã (como na matriz indianista clássica) mas sim como a vitória do homem sobre a natureza, o meio físico americano. O autor considerava, nestes últimos anos do séc. XIX, que a história do Brasil deveria ser construída a partir do reconhecimento de “que a luta territorial é a grande, a importante, a fundamental questão, sem a qual nenhuma outra pode ser completamente resolvida.” (grifos meus)275. Nesta afirmação, que colocava a “luta territorial” como verdadeiro motor e chave interpretativa da história brasileira, Capistrano transpunha para o terreno historiográfico as teorias do determinismo geográfico que constituíam um dos elementos centrais das novas correntes cientificistas do período e ponto fundamental do imaginário da modernização brasileira de finais do oitocentos. Vale ressaltar que, não somente em termos de raça, mas também em termos de território e meio geográfico, a elite intelectual modernizadora passou a pensar a modernização do país. Os anos 1870 foram marcados pela emergência de uma nova concepção sobre o territorial, refletido na historiografia de Capistrano de Abreu e à qual ela serve como legitimadora. O tema do sertão (versão nacional de seus correspondentes norteamericano da wilderness276 e argentino do desierto), de sua natureza e principalmente das formas de sua ocupação, entrou para a ordem do dia, constituindo-se em “categoria absolutamente essencial”277 para a compreensão do nacional e dos caminhos de sua inserção à modernização capitalista. Se o determinismo racial adotado pela elites modernizadoras explicava o atraso do país, a ele viria se juntar um determinismo geográfico, representado num primeiro momento pelas teorias do historiador inglês Buckle, não menos pessimistas. A fórmula deste autor - que afirmava ser a Civilização o resultado da vitória e controle do homem sobre a natureza - acabou se transformando em um dos principais princípios teóricos que orientavam a reflexão das elites modernizadoras.

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ABREU, J. Capistrano. “Variedades. Gravetos de História Pátria”, Gazeta de Notícias, 9/dez/1881. In Idem, Op. Cit. 4 ª série.1976 p. 310. 275 Idem, Ibidem. P. 311. 276 Sobre os sentidos da wilderness ver JUNQUEIRA, Mary Anne. “Ao Sul do Rio grande. Imaginando a América Latina em Seleções: Oeste, Wilderness e fronteira (1942-1970)” São Paulo: Doutorado dep. Historia USP; 1998. e os vários artigos publicados em Lúcia Lippi. OLIVEIRA Americanos. Representações da identidade nacional no Brasil e nos EstadosUnidos. Belo Horixzonte: ed. UFMG; 2000. 277 AMADO, Janaína. “Região, Sertão, Nação”. In Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n º 15, 1995. P. 146.

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A natureza brasileira, pujante e impositiva, deixava de ser simplesmente um motivo de orgulho nacional, como o fora para a intelectualidade romântica, e passava a ser vista pela intelectualidade cientificista como um óbice ao progresso na medida em que se acreditava que o seu predomínio sobre o homem, no caso do Brasil, explicava a pouca civilização do país. A reversão desta tendência se daria quando o Homem dominasse e se sobrepusesse ao meio físico. Sem a vitória sobre o sertão não haveria civilização e progresso no país. Tratava-se exatamente da “luta territorial” a que fazia menção Capistrano. Este desejo difuso de conquista territorial e ocupação do sertão - que não era estranho ao início do séc. XIX278, mas que recrudesce e assume dimensões inusitadas neste final de século - formava a base de um imaginário geográfico voltado a legitimar a rápida expansão da fronteira agrícola e o surto ferroviário e integracionista que tomou conta do Império nestes anos 1870 e 80, ao ritmo do aprofundamento da modernização. O imaginário da ocupação do sertão, no qual a figura do Bandeirante se destacaria, era, desta forma, um dos componentes nacionais de um imaginário mais amplo de uma modernidade entendida em termos territorialistas. Pois neste final de século XIX forjava-se a crença que segundo Antônio Carlos Robert de Moraes se tornaria comum ao longo do séc. XX - de que “modernizar é, entre outras coisas, reorganizar e ocupar o território, dotá-lo de novos equipamentos e sistemas de engenharia, conectar suas partes com estradas e sistemas de comunicação” 279. O posicionamento de Capistrano de Abreu diante destas práticas concretas de ocupação do interior e conquista do sertão não foi de alheamento. Apesar de procurar, ao 278

Ele está presente na própria produção do IHGB, conforme lembra Manuel Salgado Guimarães, mas até o os anos 1870 é deixado em segundo plano pelo empenho na definição dos contornos, dos limites externos do território. Sobre elaboração no IHGB de um discurso geográfico voltado á ocupação do território, ver GUIMARÃES, Manuel S. Op. Cit, 1985. 279 MORAES, Antônio C. R. Território e História no Brasil. São Paulo: HUCITEC, AnnaBlume; 2002. capítulo “Ideologias geográficas e Projetos nacionais no Brasil”. Vale também lembrar que o tema do sertão não foi somente veículo de um imaginário modernizador, tendo servido para as mais diversas finalidades, entre elas se destacando um discurso de tinturas romântico-antimoderna que tendia a representá-lo como uma espécie de lugar sagrado, depositário de uma cultura nacional, autêntica e tradicional, avessa aos modernismos cosmopolitas do litoral. Neste versão romântica, o sertão deveria ser preservado e exaltado, ao invés de “incorporado” e “vencido” conforme a interpretação modernizadora deste imaginário e que era a compartilhada por Capistrano. Sobre o riquíssimo debate sertanejo da passagem do séc. XIX para o XX ver: ALMEIDA, Angela Mendes & ZILLY, Bertold &LIMA, Eli Napoleão (orgs.). De Sertões, Desertos e Espaços Incivilizados. Rio: Faperj, MUAD; 2001. LIMA, Nísia Trindade. Um Sertão chamado Brasil. Rio: IUPERJ, REVAN; 1999.

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máximo, veicular uma auto-imagem de isenção intelectual e distanciamento do mundo externo à República das Letras, Capistrano se manteve, durante a maior parte de sua vida intelectual, em contato direto com representantes de importantes setores diretamente empenhados em políticas territorialistas. A sua aproximação com estes indivíduos foi lenta e gradual, sendo decorrência do duplo movimento, ocorrido ao longo de toda a década de 1880, de definição de seu projeto historiográfico territorialista individual e de sua inserção nas principais instituições culturais monárquicas que antes tanto atacara280. Pode-se definir pelo menos três grupos com os quais o autor travou contato neste período e com os quais se relacionaria pelo resto de sua vida: o dos diplomatas ainda empenhados na delimitação das fronteiras externas brasileiras (Barão do Rio Branco, seu ex-aluno Pandiá Calógeras, Domício da Gama), o dos engenheiros e geólogos que implantavam a infra-estrutura ferroviária da modernização saquarema e que continuariam com sua “geografia militante”281 na República (Orville Derby, Teodoro Sampaio, John Casper Branner e Miguel Arrojado Lisboa, este responsável pela implantação em 1906 da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, voltada a “vencer” o sertão nordestino), e o dos intelectuais paulistas, empenhados na ocupação do sertão de seu Estado pela colonização e expansão da fronteira agrícola cafeeira (Martim Francisco III, Domingos Jaguaribe, Eduardo Prado, Paulo Prado). O que havia em comum entre todos eles era o envolvimento direto com questões relacionadas à delimitação e ocupação do território nacional, ainda que com finalidades diferentes em cada caso. Vários deles, inclusive, se destacaram no estudo laudatório das Bandeiras, que se tornou o referencial histórico não somente da identidade paulista mas principalmente de uma visão territorialista e modernizadora da nação. Os contatos e o diálogo que Capistrano travou com estes agentes, flagrado na sua abundante epistolografia, evidencia os grupos territorialistas como o principal lugar social a partir do qual Capistrano elaborou sua representação do passado brasileiro. O que ajuda 280

Em 1879 era admitido por concurso na Biblioteca Nacional, instituição que desde 1876 passava por uma reforma dinamizadora, sob o comando de seu diretor Ramiz Galvão. A seguir foi admitido como lente do Colégio Pedro II, em 1883 (seria exonerado em 1899), e como sócio do IHGB, em 1887. A estabilização social e financeira daí decorrente, possibilitou a Capistrano travar relações com figuras importantes do universo intelectual e político nacional, datando daí o estreitamento do contato com os grupos atuantes nos projetos territorialistas modernizadores, alguns deles seus ex alunos do colégio Pedro II. 281 O termo “geografia militante” é de autoria do engenheiro Teodoro Sampaio e evidencia de forma exemplar o empenho do grupo em práticas concretas territorialistas.

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inclusive a compreender o seu livre trânsito entre monarquistas e republicanos, uma vez que a ocupação econômica e definição dos limites território era um objetivo comum a todos os setores produtores da sociedade brasileira. Em certa medida, o sentido político de sua obra é dado pela legitimação das práticas de ocupação, controle e povoamento do território levadas a efeito na passagem do séc. XIX para o XX. Capistrano consolidou através de sua obra historiográfica o papel de ideólogo maior da conquista do sertão e do esforço de povoamento e colonização do interior do país, uma vez que transformou este mesmo esforço no princípio explicativo da formação nacional brasileira, uma vez que, para Capistrano, entender o Brasil era entender a ocupação e povoamento de seu território.

4.4.c. Visão fragmentada da formação nacional e reavaliação do bandeirismo.

Além de renovar o indianismo monárquico e apresentar um novo programa de uma historiografia territorialista renovada, a obra de Capistrano também é importante por um terceiro aspecto, representado pela elaboração de uma visão fragmentada da nacionalidade. Esta visão implicava uma leitura do passado nacional que, pela ênfase na diversidade natural entre as regiões brasileiras, abria a possibilidade tanto de uma historiografia de recorte regional quanto da reavaliação positiva do fenômeno da Bandeira, dois temas que facilitaram a aproximação de Capistrano com a intelectualidade paulista. Como bem mostrou Demétrio Magnoli, o pensamento geográfico foi um poderoso instrumento político utilizado pelo governo monárquico. Para este autor, um dos pontos centrais do imaginário nacional monárquico foi o investimento no que chamou de “Mito da ilha Brasil”. Ainda segundo Magnoli, os geógrafos e historiadores do Império, reunidos no IHGB (com destaque para Varnhagen), seguindo a doutrina das fronteiras naturais, afirmavam que o território brasileiro era um todo unido e coerente, semelhante a uma ilha, formada pela junção das bacias do Amazonas e do Prata. Através deste mito geográfico, a intelectualidade monárquica naturalizava a unidade nacional, apresentando-a como dado inscrito na formação física do território, legitimando assim a ordem una e centralizada vigente no Segundo Reinado. A historiografia territorialista de Capistrano de Abreu possibilitou, por seu lado, a superação do sentido centralizador inerente a esta visão na medida em que, ao invés de

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ressaltar uma unidade natural do território brasileiro ( que de todo não negava 282), chamou a atenção para a diversidade natural interna ao território nacional. Capistrano, apesar de se empenhar em construir uma história una do Brasil, apresentou uma visão fragmentada da nacionalidade brasileira e de nosso passado colonial, fragmentação esta decorrente da própria conformação geográfica do território brasileiro e dos diferentes núcleos humanos originais de povoamento. Para Capistrano, o dado geográfico determinante da história brasileira foi a sua ocorrência em um cenário físico marcado pela diversidade e desagregação, representadas por um quadro natural que não era uno e inteiriço como sugere a idéia de uma grande “Ilha Brasil”, mas caracterizado por um mosaico de quatro macro-regiões. Para ele, “As montanhas preparam e os rios esculpem no planalto brasileiro quatro divisões bem distintas: o chapadão amazônico (...); o do Parnaíba, inserido entre o primeiro e o do São Francisco (...); finalmente o do Paraguai-Uruguai (...). As relações existentes entre estes chapadões atuaram sobre o povoamento do território” 283. Tratava-se, na sua visão, de um território fragmentado e diverso que marcou fortemente a história colonial, atuando como a principal força condicionante da formação nacional, conforme os pressupostos do determinismo geográfico de Buckel e a versão mais elaborada da antropogeografia de Ratzel. O Brasil, para Capistrano, seria resultado, entre outros fatores, da interação do homem europeu com este quadro naturalmente fragmentado, interação esta que se daria a partir de cinco núcleos iniciais de povoamento: Pará, Maranhão, Pernambuco e Bahia ao Norte e São Paulo ao Sul. Assim, não somente a nossa base física mas também nossa história colonial seria fragmentada, marcada como foi pelo desenvolvimento paralelo de cinco grande levas de ocupação, que conformaria como que cinco histórias diferentes, cada qual com sua especificidade e movimento próprio. Desta forma, a historiografia de Capistrano naturalizava, não a unidade, mas a diversidade do território nacional e de sua formação histórica, transferindo, para o terreno simbólico, o sentimento da diversidade regional emergente no contexto de crescimento 282

Capistrano de Abreu não rompe completamente com doutrina das fronteiras naturais nem mesmo com o mito da Ilha Brasil, conforme se pode depreender de texto de 1899 em que chega mesmo a aplicar a terioria do espaço vital de Ratzel ao caso brasileiro. Ver ABREU, João Capistrano de. “Sobre uma história do Ceará” In ABREU, J. Capistrano. Capítulos de História Colonial & Os Caminhos antigos e povoamento. Brasília: Ed. UNB; 1963. p. 355. 283 Idem,Ibidem,p. 35.

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econômico de finais do séc. XIX e a correspondente reivindicação federalista por descentralização284. Ao naturalizar a diversidade regional brasileira Capistrano proporcionava, talvez sem intenção, a possibilidade de se romper com a visão unificada da nacionalidade que a cultura monárquica pretendera criar através de uma história nacional. Seria precipitado afirmar que, com a naturalização das diferenças regionais, preconizada por Capistrano, ele tivesse o propósito consciente e declarado de legitimar intelectualmente as reivindicações políticas federalistas e descentralizadoras, pois não existem documentos que atestem cabalmente esta suposição, apesar de sua proximidade a expoentes do federalismo como Assis Brasil e mesmo a um separatista paulista como Martim Francisco III. Mas sua visão fragmentada do território e da história nacional em tudo era compatível com as diversas afirmações dos grupos descentralizadores, com os quais mantinha estreito contato, a começar pelo próprio Manifesto Republicano de 1870 que afirmava que “no Brasil, antes ainda da idéia democrática, encarregou-se a natureza de estabelecer o princípio federativo”285. O que deve ser destacado é a mudança em relação à visão orgânica e unitária que a Monarquia pretendeu criar da formação nacional. A obra do historiador cearense correspondia ao momento de emergência de uma nova visão do nacional constituída de uma unidade precária, afirmada sobre uma diversidade de ordem natural e histórica predominante. Seria uma visão do nacional marcada por aquilo que Lia Osório Machado chamou de “senso dos contrastes”286. Esta visão geográfica e fragmentária da formação nacional preconizada por Capistrano seria apropriada, com fins políticos, pelas elites regionais descontentes com a centralização monárquica, com vistas a legitimar reivindicações de autonomia regional ou mesmo propostas separatistas, conforme foi o

284

Sobre a emergência da consciência da diversidade regional a partir dos anos 1870 ver MACHADO, Lia Osório “Origens do pensamento geográfico no Brasil: Meio tropical, espaços vazios e a idéia de ordem” In CASTRO, Iná Elias de (et alli.). Geografia Conceitos e Temas. Rio: Bertrand ; 1995. Esta autora adverte que “Para pensar um país imenso, quase desocupado, e mal articulado, onde a questão da distância física se impunha como uma realidade, foi agregada a questão da distância social, não só entre grupos sociais como entre culturas regionais crescentemente diferenciadas pelo aparecimento do ‘elemento modernizador’”. p. 335. 285 O trecho segue afirmando que “A topografia do nosso território, as zonas diversas em que ele se divide, os climas vários e as produções diferentes, as cordilheiras e as águas estavam indicando estavam indicando a necessidade de modelar a administração e o governo local acompanhando e respeitando as próprias divisões criadas pela natureza física”. “Manifesto Republicano aos nossos concidadãos”. In CHACON, Vamireh. História dos Partidos Brasileiros. Brasília: Ed. UNB; 1981. 286 MACHADO, Lia Osório. Op. Cit. 1995. p. 337.

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caso dos paulistas Martim Francisco de Andrada III e, já no século XX, de Alfredo Ellis Jr287. Mas para Capistrano, nem tudo era fragmentação e dispersão, uma vez que também interpretava a história nacional como a progressiva integração deste quadro duplamente fragmentado (pelos diferentes ambientes naturais e pelos diversos núcleos humanos de povoação) mediante a abertura dos caminhos coloniais. Os caminhos coloniais, tema de tanto peso na sua historiografia, desempenhariam o papel de linhas de união entre os diverso núcleos humanos originais e as respectivas áreas geográficas. Eles serviriam, não somente como vias de ocupação e povoamento do sertão, mas também para “costurar” estes “retalhos” dispersos, representados pelas áreas geográficas e os núcleos iniciais de povoamento, constituindo assim a unidade da nação brasileira. Desta forma, ao frisar o caráter integrador dos caminhos coloniais – e aí as Bandeiras se destacavam - Capistrano se reconciliava com o propósito unificador da historiografia monárquica, mesmo mantendo, ao contrário desta, a ênfase na diversidade interna do pais. Na base do interesse de Capistrano pelo estudo dos caminhos territoriais está um compromisso com a obra de construção da unidade, não uma unidade vista como monolítica síntese orgânica das partes e naturalmente definida por uma “Ilha Brasil”, mas sim uma unidade como soma precária e tênue de regiões diversas. Para a historiografia paulista, que lhe é posterior, esta concepção integradora do papel histórico dos caminhos coloniais foi importante na medida em que possibilitou o início da reabilitação do episódio histórico das Bandeiras, no âmbito nacional e não somente para o grupo paulista. Pois, para Capistrano, o fenômeno das Bandeiras se confundia com a abertura de caminhos e estradas durante o período colonial, merecendo, por este motivo, uma atenção até então muito pouco dispensada pelos historiadores brasileiros e estrangeiros. A partir de 1883, a temática das Bandeiras transformava-se no

287

Procurando rebater o centralismo varguista Ellis Jr escrevia em 1933: “Quando falam em nacionalidade brasileira, representam-na como se fosse uma entidade tão una, tão sólida, tão compacta como a francesa, a inglesa ou a norte-americana. (...) É preciso não esquecer do que Capistrano de Abreu já dizia no seu Capítulos de História Colonial: ‘Cinco grupos etnográficos, ligados pela comunhão ativa da línguae passiva da religião, moldados pelas condições ambientes de cinco regiões diversas(...) NÃO SE PREZANDO PORÉM UNS AOS OUTROS DE MODO PARTICULAR – eis em suma ao que se reduziu a obra de três séculos.’ Essas palavras de Capistrano espelham uma nítida verdade, que ainda não entrou na inteligência dos que tem refletido no problema” (destaque do autor) In ELLIS JR., Alfredo. Confederação ou separação. São Paulo: S/ ed; s/d. p. XIV.

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centro de seu programa historiográfico, conforme evidenciava em carta a Antônio Macedo Soares: “Estou tratando da fundação de uma sociedade histórica menos pomposa e menos protegida que o Instituto Histórico, porém quero ver se mais efetiva. Há de intitular-se Clube Taques, em honra de Taques Paes Leme, e deve ocupar-se quase que exclusivamente das bandeiras e bandeirantes, caminhos antigos, meios de transporte e história econômica do Brasil. O meu plano é começar pelo séc. XVI, tomando os impressos e manuscritos conhecidos e utilizáveis, e incumbindo cada sócio de examinar um ou mais.”288 A carta evidencia o lugar central conferido à temática das Bandeiras, que levava Capistrano a pensar na criação de um Instituto alternativo ao IHGB, somente dedicado à nova linha de estudos historiográficos. Transparecia sua indisposição com o oficialismo do Instituto Histórico, ao qual, contudo, seria admitido como sócio em 1887. Sem romper completamente com a visão negativa que a matriz indianista conferia ao fenômeno bandeirante, Capistrano iniciou o processo de revalorização positiva destas expedições, ao colocar em primeiro plano os seus aspectos territoriais. Assim, estas incursões realizadas pelos paulistas seiscentistas passaram a ser vistas sob um novo ângulo que ressaltava seu papel fundamental no processo de integração das várias regiões da colônia e, portanto, de constituição da unidade nacional. As bandeiras, para Capistrano, assumiam também um papel unificador na história nacional. Mas, ao contrário do que afirmavam os historiadores ligados à elite paulista, para Capistrano a Bandeira não era um fenômeno exclusivo de São Paulo, havendo bandeiras baianas, pernambucanas, maranhenses e paraenses. Para o reconhecimento nacional da reabilitação do episódio das Bandeiras, era fundamental que além da intelectualidade paulista, outros se empenhasse nesse movimento: este papel foi desempenhado por Capistrano. Num contexto em que setores das elites regionais e principalmente o Estado Imperial ansiavam pela integração com fins políticos dos pontos extremos do vasto território brasileiro, e em que a conquista dos sertões pela ferrovia passava a ser entendida como condição para a modernização econômica do país, Capistrano de Abreu apresentava uma nova interpretação do fenômeno das Bandeiras que, pela ênfase no seu caráter 288

RODRIGUES, J. H. Op. Cit, 1954.

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integrador, possibilitaria o início da mudança do sentido do símbolo bandeirante. Entendida sob um ponto de vista territorialista, a figura do bandeirante se transformava em um dos pontos centrais de um imaginário da modernidade nacional. De símbolo maior dos vícios originais da nacionalidade, como a entendia a historiografia indianista, a Bandeira passava, paulatinamente, a representar um evento de importância central na constituição da nação brasileira, na medida em que, além de ocupar o interior, “costurava” os dispersos núcleos de povoamento, possibilitando a integração e constituição da unidade do território nacional, objetivo almejado pelas elites modernizadoras de finais do séc. XIX. Esta revalorização positiva da Bandeira se deu através de um movimento feito de avanços e recuos do qual o próprio Capistrano não esteve isento, uma vez que suas ligações com o indianismo o impediam de glorificar incondicionalmente as expedições paulistas seiscentistas. Para o historiador cearense, ainda marcado pela visão crítica do extermínio indígena, o “despovoamento e depredação” constituíam o “característico essencial e inseparável das bandeiras”289. Porém, se nos anos 1880 Capistrano chamava a atenção para a importância do tema, o processo de revalorização da Bandeira somente pôde ser desenvolvido com o esforço da própria elite paulista. Por esta mesma época, a ala republicana da elite paulista começava a elaborar um discurso identitário regional voltado, dentre outras coisas, para legitimar as suas reivindicações de autonomia política: o bandeirante se transformava em uma alternativa atraente de símbolo identitário regional. Para compreender esta retomada do bandeirante, passo a tratar da emergência desta nova identidade regional paulista decorrente de um novo projeto nacional federalista e republicano elaborado por setores da elite paulista.

289

ABREU, J. C. Capítulos de História Colonial & Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília: Ed. UNB; 1963 p. 124.

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Cap. 5. Republicanismo paulista: identidade ianque e esboço de uma nova visão do passado de São Paulo.

5.1. Agroexportação cafeeira, republicanismo e americanismo paulista.

Nas raízes do investimento da elite paulista na construção de uma nova identidade e historiografia para São Paulo está a onda modernizadora que varreu a província na esteira da afirmação da cultura cafeeira. Em duas décadas (1860/70), o café do oeste desbancou o correspondente valeparaibano e o açúcar ituano e campineiro, transformando o oeste da província de São Paulo na principal região agroexportadora do Império, interligando diretamente os interesses da elite cafeicultora paulista com os mercados dos países de capitalismo central do Atlântico Norte. Setores consideráveis da elite paulista tornavam-se parceiros privilegiados do capital britânico. Ao conseguir um lugar dependente mas privilegiado na divisão internacional do trabalho, a agricultura cafeeira também desencadeou um surto de modernização que transformou a província e alterou sua relação com o resto do país, possibilitando a formação de um grupo republicano autonomista que questionava os entraves impostos pela centralização monárquica. Na conformação social de São Paulo, modificaram-se os dois extremos da pirâmide. Na base, devido à alta demanda de mão-de-obra, ocorreu um significativo aumento de população escrava, e São Paulo se tornou, dos anos 1860 a 80, juntamente com a província do Rio de Janeiro, a principal meta do tráfico interno de escravos. Junto à população de caipiras livres pobres e um contingente imigrante que até 1886 manteve-se relativamente pequeno, o considerável aumento da população de escravos transformou a província em um dos principais focos de tensão social de todo o país, principalmente no contexto que estudamos dos anos 70 e 80290. A despeito de uma imagem progressista da elite cafeicultora paulista, São Paulo de finais do séc. XIX era um dos bastiões do escravismo nacional. No outro extremo, a par de um esboço de classe média, afirmava-se a força de uma elite paulista ligada diretamente à agroexportação cafeeira. Constituiu-se uma forte e

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Sobre a população escrava em são Paulo ver WISSEMBACH, Maria Cristina C. Sonhos africanos, vivências ladinas. Escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Hucitec; História Social-USP; 1998. Sobre as tensões sociais dos últimos anos da escravidão em São Paulo, ver AZEVEDO, Célia Maria

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autoconfiante burguesia cafeeira, que segundo Renato Perissinoto, poderia ser dividida internamente em duas frações autônomas de classe: a “lavoura”, dedicada exclusivamente à produção agrícola e o “grande capital cafeeiro”, que além da produção de café havia diversificado suas atividades investindo em infraestrutura ferroviária, bancos e casas comerciais291. Para o presente trabalho, mais vale considerar a elite paulista em sua unidade social, sendo mais importante procurar compreender as clivagens no terreno político, pois foram estas as que mais diretamente marcaram a produção cultural e historiográfica do período. O quadro político dos últimos 20 anos do regime imperial na província de São Paulo não divergia, em seus traços gerais, do conjunto do Império anteriormente traçado. Havia os partidos monárquicos bastante fortes e consolidados no poder, normalmente esquecidos pelas análises, congregando figuras proeminentes da burguesia cafeeira paulista. Desde a derrota liberal de 1842 havia um Partido Conservador dominante, que a partir de 1879 se dividiu em duas alas concorrentes. Os saquaremas paulistas se dividiram entre uma ala mais tradicional, comandada por João Mendes de Almeida, e a dissidência da União Conservadora, liderada por Antônio Prado, que então se constituía na principal figura política da Província. Apesar de pouco estudada, no centro desta cisão do Partido Conservadorparece estar a divergência sobre dois pontos importantes do debate do período: a questão da força de trabalho e a questão da laicização do Estado. Desde 1871 João Mendes de Almeida parece ter se indisposto contra o ferrenho escravismo de Antônio Prado, assumindo uma posição favorável à abolição gradual da escravidão292, apesar de outros partidários da sua ala conservadora se manterem ardorosos escravocratas, como os já estudados Ricardo Gumbleton Daunt e Estevão Leão Bourroul. Mas o traço mais marcante da ala conservadora liderada por João Mendes foi a sua proximidade com o importante movimento ultramontano, que se consolidava em São Paulo Marinho de. Onda Negra, medo branco. O negro no imaginário das elites- séc. XIX. Rio: Paz e terra; 1987. 291 PERISSINOTO, Ricardo. Classes dominantes e hegemonia na república velha. São Paulo: ed. UNICAMP; 1994. 292 O trabalho que mais se estende sobre a cisão conservadora em São Paulo, e mesmo assim de forma insuficiente, é a pesquisa de Darell Levi sobre a família Prado. Nele encontrei a afirmação de que o abolicionismo de João Mendes foi o pivô da crise. LEVI, Darell. A Família Prado. São Paulo: Cultura 70; 1977.

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desde a consagração de Dom Antônio Joaquim de Melo como bispo, em 1851293, e que intensificava seu vigor na proporção direta do aumento da ação das forças sociais modernizadoras dos anos 70, as quais procurava anular. Republicanos e ultramontanos, cada qual representando um extremo do espectro político, formariam os dois grupos paulistas mais combativos desse fim de século, e aqueles que mais se apropriaram da história para defender seus pontos de vista, conforme será visto. Os utramontanos, adeptos de uma versão oitocentista de um catolicismo ortodoxo e antimoderno, formaram um grupo bastante coeso que transcendia as divisões partidárias, uma vez que em suas fileiras se juntavam liberais como Brasílio Machado, lente de direito da faculdade do largo São Francisco e filho do brigadeiro Machado de Oliveira294, e uma maioria de conservadores como o próprio João Mendes, seu filho João Mendes Júnior e o advogado Estevão Leão Bourroul, além de representantes do clero como os padres José Vieira Valadão e Francisco de Paula Rodrigues. Procuraram mesmo, a partir dos anos 70, criar um partido católico que, contudo, não vingou295. Todos se uniram para reagir contra as pressões modernizadoras dos setores críticos que lutavam, dentre outras coisas, pela laicização do Estado brasileiro. Mais do que manter a unidade entre Estado e Igreja (postura compartilhada também pelo Imperador e o conjunto da elite monárquica), os ultramontanos lutaram pelo fim da submissão da Igreja ao Estado, conforme definida pelo padroado régio, o que os indispôs com o próprio Estado monárquico, conforme explicitado na questão religiosa de 1874296. Mas esta indisposição não significou ruptura, uma vez que se mantiveram entre os principais defensores do Império centralizado, tendo estes “sebastianistas”, após a proclamação da República, fornecido os maiores contingentes do movimento de restauração da Monarquia297. Esta defesa da Monarquia pelos ultramontanos era somente o aspecto político de uma visão de mundo mais ampla que tinha como objetivo maior combater a “Revolução”, termo com o qual designavam todas as forças transformadoras surgidas no ocidente nos 293

WERNET, Augustin. A Igreja paulista no séc. XIX: a Reforma de D. Antônio Joaquim de Melo (18511861). São Paulo: Ática; 1987. 294 MACHADO, José de Alcântara. Brasílio Machado (1848-1919). Rio: José Olímpio; 1937. 295 Sobre os ultramontanos na São Paulo do final do séc. XIX, ver GAETA, Maria Aparecida. Percurso do Ultramontanismo em São Paulo. (1873-1894). São Paulo tese (doutorado) Dept. História FFLCH-USP; 1992. 296 BARROS, Roque Spencer M. “A Questão Religiosa” In HOLANDA, S.B. (org.) História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Monárquico, vol. 4, tomo II. São Paulo: Difel; 1974.

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séc. XVIII e XIX e que, com a radicalização da geração de 70, começava a se intensificar no Brasil: liberalismo político, livre pensamento, defesa de uma sociedade laicizada e mesmo o igualitarismo dos socialistas, que entre nós poucos adeptos angariou. Em outros termos, os ultramontanos eram a força auto-intitulada reacionária, que tinha como objetivo manter uma ordem social estática, de origem divina, vista como naturalmente hierarquizada, e combater os setores modernizadores, defensores da “soberania popular” e da “evolução social”, identificados com os diversos ramos do republicanismo e do abolicionismo. Por outro lado, a União Conservadora, a ala que então passou a ser dominante no Partido Conservador, parece ter representado uma versão paulista dos “conservadores progressistas” identificados por Angela Alonso, empenhados como estavam na manutenção da ordem centralizada e na implementação de melhoramentos materiais e medidas imigrantistas necessárias à modernização econômica de São Paulo, mantendo porém, até 1887, a defesa intransigente da escravidão. Este empenho em consolidar a modernização econômica cafeeira os aproximava dos republicanos, com os quais realizavam alianças políticas estratégicas e momentâneas, convergência que provocava severas críticas da parte dos conservadores “emperrados”, como as que João Mendes de Almeida externa no seu Manifesto ao Partido Conservadorde São Paulo, de 1882. O sucesso do republicanismo na província devia-se principalmente ao descontentamento de setores da elite paulista com os aspectos fiscais da centralização monárquica, então apontados como um dos principais empecilhos ao avanço da economia cafeeira regional, tão bem articulada ao mercado internacional. Afirmava-se que a Província de São Paulo pagava ao governo central mais do que este nela investia, resultando daí uma situação de tutela que transformava a Província numa “feitoria imperial”, segundo as palavras de Alberto Salles298. Em decorrência disto, a elite republicana paulista entrava em confronto direto com a Corte. Reaparecia a velha bandeira autonomista da elite paulista, agora impulsionada pela idéia republicana e a defesa dos interesses da cafeicultura.

297 298

JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Os Subversivos da República. São Paulo: ed. Brasiliense; 1986. SALLES, Alberto. A Pátria Paulista. Brasília: Ed. UB; 1981. P. 45.

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Alguns autores tem procurado chamar a atenção para a diversidade interna ao movimento republicano da província de São Paulo299, mas em nenhum momento chegam a invalidar a predominância do setor cafeeiro nas suas bases sociais. Conforme mostrou Enio Casalecchi, no ato oficial de fundação do Partido Republicano Paulista - a conhecida “Convenção de Itu” de 1873 - cerca de 58% dos presentes eram lavradores (78, num total de 133, todos, porém, “homens de posse”)300. Formado majoritariamente por produtores descontentes com o Estado monárquico centralizado, os republicanos paulistas engrossaram os já estudados grupos críticos ao status quo imperial, e encontraram na bandeira federalista a base de seu projeto nacional modernizador. Seu objetivo central seria o de combater o estado centralizado criado pelos saquaremas desde os anos 1840. O republicanismo paulista, baseou-se em um ideário essencialmente liberal que em algumas figuras do movimento, como Alberto Salles e Pereira Barreto, se misturava com princípios teóricos positivistas, principalmente na versão spenceriana, cuja ênfase de origem darwinista no strugle for life, na seleção dos mais fortes, mais se adequava aos valores competitivos do liberalismo. Conforme afirma Joseph Love, talvez a publicação em 1870 do libelo federalista A Província de Tavares Bastos, tenha marcado a formação do republicanismo paulista tanto quanto o próprio Manifesto Republicano lançado no mesmo ano na Corte301. O certo é que, da mesma forma como o novo liberal alagoano, os republicanos paulistas também elaboraram um projeto nacional modernizador essencialmente americanista. Para os republicanos paulistas o progresso dos Estados Unidos - e mesmo de algumas Repúblicas sul americanas como a Argentina, então governada pelos liberais americanistas Mitre e Sarmiento, expoentes da “geração de 37” 302 - se transformavam na

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Para Maria Stella Bresciani, em São Paulo o grupo republicano era formado por duas alas diferenciadas por aspectos ideológicos: a dos liberais e a dos positivistas ilustrados que, apesar das diferenças, em muitos pontos convergiam. Ver BRESCIANI, Maria Stella.“O Cidadão da República. Liberalismo versus positivismo; Brasil: 1870-1900”. In Revista USP, 1993. Dossier Liberalismo/néo-liberalismo. Já Silvana Mota Barbosa Blanco questiona a própria unidade do republicanismo paulista, buscando levantar diferentes grupos e projetos republicanos através da imprensa paulista dos anos 70 e 80 dos oitocentos. Ver BLANCO, Silvana B. M. “República das letras. Discursos republicanos na província de São Paulo (1870-1889)”. Campinas; Dissertação ( Mestrado) UNICAMP; 1995. 300 CASALECCHI, José Enio. O Partido Republicano Paulista. São Paulo: Brasiliense; 1987. P. 50. 301 LOVE, Joseph. A Locomotiva. São Paulo na federação brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1982. 302 A contraposição entre o progresso das republicas americanas e a lentidão da monarquia brasileira foi o argumento com o qual se iniciou a pregação do primeiro jornal republicano da capital. Em 1875 o órgão conservador Diário de São Paulo lançava aos republicanos a questão: “que país, à exceção dos Estados

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prova maior da superioridade da forma republicana sobre a monárquica, representada pelo “atrasado” Império brasileiro: “a república norte-americana caminha altiva na vanguarda da civilização moderna, olhando com desprezo para os obstáculos e com as vistas cravadas na ridente estrela do futuro, enquanto que no status quo permanece o imenso gigante sul americano (...). (...) os norte-americanos de há muito conhecem o gozo da liberdade e vivem debaixo de um regime puramente democrático, enquanto que nós os brasileiros sucumbimos ao peso de um regime opressor, que tudo aniquila, esteriliza e mata.”303 Como podemos ver pelas enfáticas palavras de Alberto Salles, a referência constante ao exemplo da República norte-americana foi o elemento mais saliente do imaginário dos republicanos paulistas304, podendo-se falar na existência de um americanismo paulista, em diversos pontos semelhante ao americanismo dos novo liberais estudado por Luiz Werneck Viana. O núcleo central do projeto nacional americanista dos republicanos paulistas também estava na defesa da “liberalização do mundo da política mais capitalismo agrário moderno”, os dois aspectos definidores do americanismo brasileiro conforme a análise de Werneck Viana. Ou seja, no caso dos republicanos paulistas, a “liberalização do mundo da política” seria marcada pela luta contra o Estado monárquico centralizado e dinástico, a ser substituído por uma república federativa que respeitasse a autonomia das províncias e se baseasse em uma nova legitimidade, Unidos, o qual pela índole e educação de seu povo não pode servir-nos de confronto, que país já prosperou tanto como o Brasil em 52 anos, idade de nossa autonomia política?” O jornal republicano recém fundado A Província de São Paulo iniciava sua atuação respondendo à provocação: “para o colega que julga nossas instituições excelentes, o progresso do Brasil pode parecer surpreendente; para nós, porém, não. (...)julga o colega inadmissível o confronto com os Estados Unidos por serem diversas a índole e a idade dos dois povos. Sem concordar em absoluto, pelas razões que apresentaremos depois, fazemos-lhe esta concessão. Há de permitir, porém, que lhe demos para confronto o Chile e mesmo a república Argentina. Aquela nação tem incontestavelmente progredido mais do que a nossa, e esta, não obstante as contínuas lutas intestinas, em muitos pontos não nos é inferior e em alguns outros nos é superior.” 303 SALLES, Alberto. A instrução pública nos Estados Unidos e no Brasil. In Almanaque Literário para a Província de São Paulo para o ano de 1879. Ed. Facsimiliar. São Paulo: Imprensa Oficial ; 1982. P. 167. Daqui em diante os Almanaques Literários serão designados pela sigla ALPSP, seguido do respectivo ano. 304 José Murilo de Carvalho chama a atenção para a importância do modelo norte-americano na concepção de república dos republicanos paulistas: “Em São Paulo existia, desde 1873, o partido republicano mais organizado do país (...) Para esses homens, a república ideal era sem dúvida a do modelo norte-americano. Convinha-lhes a definição individualista do pacto social.” CARVALHO, José Murilo de. Op. Cit. , 1990. p. 24.

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identificada no princípio liberal-democrático da “representação popular” materializada na eletividade do presidente, conforme existente nos Estados Unidos da América do Norte. Ao mesmo tempo, a luta pela afirmação do “capitalismo agrário moderno” seria interpretada pelos paulistas como a implantação dos principais elementos do que se chamou posteriormente de “sistema cafeeiro”. Este seria marcado pela articulação entre expansão da fronteira agrícola do café - o que implicava em forte traço territorialista da elite paulista - mediante a ocupação do sertão. Por sua vez, esta se daria pela implementação de uma ampla rede de vias de comunicação ferroviária, e uma forte política populacional marcada pela criação de diversos núcleos de ocupação povoados predominantemente por população imigrante de origem européia. Os republicanos paulistas projetavam uma expansão territorial sobre o sertão brasileiro, tendo como exemplo a “Corrida para o Oeste” que os norte-americanos então realizavam nestas segunda metade do séc. XIX. Por outro lado, as diferenças do americanismo dos republicanos paulistas em relação ao dos novos liberais ultrapassavam a defesa da República pelos primeiros e da Monarquia pelos segundos. Elas se originavam das características sociais do grupo paulista, marcado como estava pela dependência da produção cafeeira, amparada na grande propriedade e ainda no trabalho escravo. Apropriado por latifundiários escravocratas ou setores a eles ligados, como eram na sua maioria os republicanos da província, o americanismo dos paulistas veio desprovido dos traços mais radicais e socialmente transformadores do americanismo dos novos liberais, principalmente da vertente representada por André Rebouças. Longe de implicar na luta pela liberalização da terra e do trabalho (reforma agrária e abolicionismo) o americanismo dos republicanos paulistas estava comprometido com a manutenção do latifúndio e a indefinição estratégica – “oportunista”, diria Love - quanto ao trabalho escravo305, preferindo ao abolicionismo investir na saída conciliatória representada

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Segundo Joseph Love, os republicanos paulistas adotaram uma postura marcada pelo “oportunismo político” frente à questão da escravidão, o que resultou em assumir uma postura dúbia e, no limite, complacente com a instituição, que deveria ser solucionada conforme o interesse de cada província e mediante indenização dos proprietários. O “oportunismo” dos republicanos frente à escravidão não impediu que diversos deles tenham aderido pessoalmente ao movimento abolicionista. Ver LOVE, J. Op. Cit. pp 151. Também CASALECCHI, José Enio. Op. Cit., 1987 e PERISSINOTO, R. Op. Cit, 1994 ressaltam a dubiedade paulista frente a abolição.

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pelo imigrantismo306. Em outros termos, o americanismo paulista abria mão de priorizar a criação do farmer, do pequeno proprietário livre que seria, no plano de um Rebouças, a base material para o mundo da política liberal segundo os moldes ianques. Em seu lugar, adotava um americanismo conciliado com a grande propriedade, no qual o trabalhador livre, ao invés de pequeno proprietário, era pensado como proletário rural307. Este projeto nacional americanista dos republicanos paulistas, exclusor e autoritário, também marcou a representação da identidade regional paulista que então elaboraram. Conforme veremos a seguir, os republicanos de São Paulo procuraram representar o “povo paulista” como sendo dotado das mesmas qualidades que identificavam nos norteamericanos, e pretendiam identifica-lo como sendo o verdadeiro “ianque sul-americano”. Por sua vez, esta identidade ianque que criavam para o paulista, também definiria os pontos fortes da historiografia sobre o passado colonial paulista que os historiadores ligados ao republicanismo elaborariam, conforme veremos no último tópico deste capítulo. 5.2. – Construindo a identidade regional: o paulista como “ianque sulamericano”.

Os republicanos paulistas, como vimos, procuraram combater os efeitos centralizadores da Monarquia propondo o redesenho liberalizante e federalista do Estado brasileiro, visto como condição para a modernização do país. Esta busca de autonomia política provincial também se espraiou pelo terreno identitário, levando à contestação da identidade paulista que havia sido definida pelos intelectuais monárquicos, estudada no terceiro capítulo. Assim, o impulso principal para a elaboração de um discurso identitário regional estava ligado à questão política do federalismo. Os autores como Alberto Salles, 306

Segundo análise de Alfredo Bosi, o imigrantismo da elite paulista, ao contrário do dos novos liberais, não se contrapunha de forma irreconciliável à escravidão. Muito pelo contrário, o seu imigrantismo era uma forma conciliatória que permitia a manutenção da escravidão enquanto esta não fosse satisfatoriamente substituída. Ver BOSI. Alfredo. “Escravidão entre dois liberalismos” In Idem,Op. Cit. 1992. 307 No seio do republicanismo paulista as propostas de instituição da pequena propriedade sempre foram marginais. Até mesmo os núcleos coloniais, que conferiam pequenas propriedades de terra a imigrantes, nasceram com o intuito de servir de suporte ao latifúndio cafeicultor, na medida em que deveria fornecer-lhe um contingente fixo de mão-de-obra. Ver HOLLOWAY, T. Imigrantes para o café. Café e sociedade em São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1984. Apesar da retórica liberal da elite paulista afirmar o contrário, poucos foram os imigrantes que se tornaram proprietários. Segundo Love, pouco mais de 10 % deles conseguiram se tornar pequenos proprietários antes da crise da cafeicultura nos anos 30. LOVE, Op. Cit., p. 116.

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Júlio Ribeiro, Martim Francisco e Américo Brasiliense que se dedicaram à definição do espírito paulista através do estudo de seu passado, eram ativos defensores autonomia política provincial, vários deles chegando ao limite do separatismo. Assim, mais do que apresentar uma nova visão da identidade do povo paulista, os republicanos procuraram inverter a relação entre a identidade nacional e as identidades provinciais vigentes no Segundo Império. Seu empenho foi no sentido de romper com a predominância da primeira sobre a segunda, visando afirmar, também no terreno identitário, a autonomia do regional frente ao nacional. Esta valorização de uma identidade regional autônoma - entendida como diferente, dotada de originalidade frente ao padrão identitário nacional - assumiu formas diversas no caso paulista. De um lado, havia a concepção do regional como preponderante sobre o todo nacional, que pensava a “parte” São Paulo como a verdadeira construtora do “todo” Brasil. Esta concepção visava legitimar a hegemonia de São Paulo no conjunto do país, e já aparecia esboçada neste período da propaganda republicana pela forma de um discurso nativista (que será estudado no tópico 5.3.b), tornando-se predominante durante a Primeira República. De outro lado, havia a concepção do regional como contraposto ao nacional, de São Paulo como uma realidade irreconciliável com o Brasil, que somente se manifestou em momentos de intenso radicalismo federalista, servindo para basear as reivindicações separatistas de 1887. Além do motivo político de legitimação da luta federalista, um dos elementos que certamente possibilitou o desencadeamento deste investimento na identidade regional no final do séc. XIX, foi o relativo incremento por que então passou o ambiente cultural paulista. Paralelo ao aquecimento da economia paulista durante os anos 1860 e 70, e o crescimento populacional decorrente, parece ter ocorrido uma significativa diversificação e melhoramento da atividade cultural provincial, da qual são eloqüentes testemunhos, dentre outros, a proliferação de gabinetes de leitura nas cidades do interior paulista

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, o

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O crescimento havia chamado a atenção de um dos principais jornais da Corte, a prestigiada Gazeta de Notícias, que pela pena do então jovem crítico Capistrano de Abreu dedicava um artigo exclusivo ao movimento de idéias da província. Em 1880, atestava: “Ultimamente tem havido ali [São Paulo] uma efervescência mental considerável. A mocidade com o estouvamento sublime dos primeiros anos colhe ou antes arranca flores de que enastra a fronte, e funda jornais, trava polêmicas, forma clubes, prepara-se de todos os modos para entrar na grande batalha da existência.(...)Os mais velhos não ficam atrás.(...) A imprensa serve de campo a renhidas lutas fecundantes. A “Biblioteca Útil”, espalha pela população os resultados mais modernos do saber positivo.(...) As estradas de ferro abertas, os terrenos explorados, os

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crescimento da imprensa e a abertura de diversos colégios particulares que possibilitaram a embrionária constituição de um sistema cultural paulista309. A intensificação da produção e circulação de idéias na São Paulo dos anos 70 e 80 não significava, porém, uma ameaçava à primazia cultural do Rio de Janeiro, que então mantinha a inquestionável hegemonia em todo o país. Mesmo assim, já despontava a estruturação de um ambiente cultural próprio, paralelo ao do Rio de Janeiro, que possibilitaria a elaboração de um discurso identitário regional a partir da própria província e com maior independência frente às determinações da intelectualidade da Corte. O lugar de produção da identidade paulista se deslocava do Rio de Janeiro - onde se concentraram nos anos anteriores Machado de Oliveira, Varnhagen, Joaquim Norberto, Homem de Melo - para o “pequeno mundo letrado da província” de São Paulo310. Um dos elementos que muito contribuiu para a gestação de um ambiente cultural provincial tendencialmente autônomo foi a propaganda republicana. Os republicanos se lançaram a uma série de iniciativas educacionais, jornalísticas e editoriais que tinham como propósito contribuir para a “reforma dos espíritos”, pela divulgação dos princípios “científicos” e “democráticos’ do regime que procuravam constituir. Nesta agitação cultural republicana, podemos identificar o verdadeiro lugar social de elaboração de um novo discurso sobre a identidade paulista, merecendo por isso a atenção aqui dispensada. A educação despontou desde os primeiros anos da propaganda como um dos pontos centrais da ação política e cultural dos republicanos. A luta pela criação e difusão de escolas laicas, baseadas em ensinamentos científicos e práticos, era vista como um meio poderoso de “apagar de vez o fogo sinistro da superstição”311 que, a seu ver, prevalecia no parco e limitado ensino oficial monárquico, muitas vezes entregue a religiosos. Também à escola era reputado o progresso vertiginoso dos Estados Unidos, sendo a luta pela difusão ramos de indústrias introduzidos, a expansão comercial, o aumento de produção, os progressos materiais em suma, foram pródromos apenas de progressos mentais correspondentes” In ABREU, J. Capistrano. Ensaios e Estudos , 4 ª série. p. 218 e 219. 309 Antônio Cândido, estudando o universo letrado da capital paulista, identifica no período subsequente aos anos 1870 a intensificação de uma vida cultural própria, externa à academia de direito, que ainda continuava a possuir lugar de destaque. Ver SOUSA, Antônio Cândido Melo. Op. Cit., 2000b. 310 O termo “pequeno mundo letrado da província” foi retirado do título do primeiro capítulo de FERREIRA, Antônio Celso. “A epopéia paulista: imaginação literária e invenção histórica.” Assis: UNESP, LivreDocência,1998. 311 SALLES, Alberto. A Instrução pública nos Estados Unidos e no Brasil In Almanaque Literário de São Paulo para o ano de 1879. Ed. Facsimiliar. São Paulo: Imprensa Oficial ; 1982. P. 153. Daqui em diante os almanaques literários serão designados pela sigla ALPSP, seguido do respectivo ano.

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da educação renovada um dos mais fortes traços do americanismo dos republicanos paulistas312 Em termos concretos, os republicanos estiveram ligados com a criação de pelo menos duas importantes iniciativas educacionais do período, o prestigioso colégio campineiro “Culto à Ciência” e o “Colégio Pestana”, da capital, pioneiramente voltado para a educação feminina, sendo de propriedade do jornalista e também republicano Rangel Pestana313. Estes colégios proporcionaram as condições materiais mínimas para uma produção letrada sobre a história paulista, tendo acolhido como professores alguns dos autores que analisaremos, como os republicanos Américo Brasiliense, Alberto Salles e Júlio Ribeiro. Mas a principal atividade de propaganda ficou por conta do jornalismo. Não mencionando as diversas folhas acadêmicas e os periódicos das cidades do interior, os republicanos paulista foram responsáveis pela direção de pelo menos quatro grandes jornais: A Gazeta de Campinas, o Comércio de Campinas, e, na capital, A Província de São Paulo (APSP) e o Diário Popular. Com exceção do Comércio de Campinas, todos os outros três órgãos contaram com a colaboração do empresário editorial, jornalista republicano e abolicionista José Maria Lisboa, figura de destaque no nascente meio cultural paulista. Português de nascimento, mas desde 1856 radicado na província de São Paulo, Lisboa não somente era um dos principais editores da província como era, sem dúvida, o mais ativo organizador de iniciativas editoriais republicanas. Entre estas, além da publicação do compêndio Lições de História Pátria, do também republicano Américo Brasiliense, que, conforme veremos, foi uma das principais iniciativas de caráter historiográfico do período, Lisboa também publicou uma série de almanaques, dentre eles o Almanaque Literário Paulista (ALP), editado de 1876 a 1885 e estudados acuradamente,

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Alberto Salles afirmava que “desde o berço foi a escola a única preocupação do povo americano, o objeto de seus constantes cuidados, como o verdadeiro baluarte de suas liberdades e seguro preservador da unidade nacional.” Idem, Ibidem, p. 157. O futuro presidente Campos Salles não ficava para trás no elogio do apreço ianque pela instrução popular: “Em países mais adiantados e particularmente nos Estados Unidos, já não é novo ver-se um homem consagrar grande parte de sua fortuna (...) à causa da instrução popular. Os cidadãos daquele maravilhoso país, (...) quando querem para si o título de nobreza perdurável e capaz de perpetuar o seu nome na memória das gerações futuras, em vez dos brasões de uma fidalguia ridícula e absurda, tem o bom senso de procurar antes grava-lo na fachada de um templo, que possa recolher o povo para ensiná-lo a meditar e a raciocinar”. In ALP de 1876, p. 179. 313 Sobre iniciativas de propaganda republicana dos paulistas, ver ALONSO, A. Op. Cit. p. 104 a 110.

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em seus colaboradores e temas tratados, por Antônio Celso Ferreira314. Analisando-os à luz do contexto de sua produção, percebe-se que os ALP não foram um despretensioso exercício editorial; mais do que isso, foram parte importante da propaganda republicana. Os ALP nos interessam por terem sido o principal esforço da elite regional em delimitar os contornos de uma nova identidade para a Província de São Paulo e para os seus habitantes. Segundo Bourdieu, o discurso regionalista é um poderoso meio utilizado para instaurar a região, estando ligado a políticas concretas de reordenação do território315. No caso analisado, para que a reivindicação por autonomia política provincial fosse concretizada por meio da adoção da forma federativa, o grupo republicano paulista empenhou-se em “fazer conhecer” a região São Paulo pela definição simbólica de sua identidade. Um dos pontos centrais do discurso dos republicanos paulistas fortemente federalistas foi, desta forma, a ênfase na construção da própria identidade regional 316. No caso de São Paulo, este trabalho de representação da região e sua identidade foi pioneiramente esboçado nos ALP. Este objetivo era explicitado pelo próprio Lisboa nos textos introdutórios dos volumes. No primeiro número, de 1876, explicava que a intenção central do empreendimento era realizar “um livro curioso e interessante, escrito simplesmente por Paulistas e sobre assunto da província”317. Na introdução do volume de 1878, reforçava o objetivo de “tornar esta publicação uma modesta galeria das glórias passadas e presentes da província de São Paulo, manifestadas nos feitos de seus filhos nos diversos ramos dos conhecimentos humanos”318. Relacionados diretamente à construção de uma identidade paulista, nos ALP foram publicados materiais escritos dos mais diversos tipos: ensaios e documentos sobre a história de São Paulo, prosa e versos de escritores paulistas, monografias sobre cidades da

314

FERREIRA, Antônio Celso. Op. Cit. 1998. BOURDIEU, Pierre. “A identidade e a representação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região”. In. Idem, O poder simbólico. Rio: Bertrand Brasil; 1998. 316 Segundo Angela Alonso: “tanto gaúchos quanto paulistas expressam feições regionais acentuadas. A celebração localista está na recuperação de personagens e eventos da história de cada uma das provínciascomo veremos adiante. Está também na opção por se estabelecer na terra natal depois de diplomados ao invés de buscar a carreira na Corte, destoando da regra do Segundo Reinado” Ver ALONSO, Op. Cit. 2000. pp 113. 317 LISBOA, J. M. “Duas palavras” IN ALP de 1876. Pp III. 318 Idem, ALP de 1878, p. I 315

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província, biografia de paulistas ilustres, etc.319. Os ALP não somente “faziam ver” os progressos da província, como abriam um dos raros espaços para a apresentação da produção intelectual dos poucos intelectuais provincianos. Tratavam-se de escritos produzidos pelos mais significativos letrados da província, independente da filiação partidária, mas com inconteste predominância de republicanos. Neles, procurou-se ainda apresentar tanto uma visão sobre o paulista do presente, ou seja, do fim do séc. XIX, quanto uma visão do paulista do passado, do paulista do período colonial. Seguiremos esta elaboração tomando os artigos do ALP como eixo do estudo, agregando porém textos de republicanos publicados em outros veículos como complemento da análise. A característica da província de São Paulo e do paulista que mais se destacou nos textos do período, e que se constituirá na pedra angular de todo a identidade paulista construída pela elite republicana, é a idéia de São Paulo e seus habitantes como uma exceção de progresso e liberdade no conjunto do Brasil. Essa visão aparece algumas vezes de forma explícita, em outras pode ser percebida nas entrelinhas dos discursos proferidos pelos republicanos. Traçando a biografia do republicano e futuro presidente Campos Salles, o também republicano Lúcio de Mendonça, considerava-o como o protótipo do verdadeiro tipo paulista, um “representante desta altiva democracia paulista” que era caracterizada pelo “seu elevado caráter, pela sua energia cívica, pelo trabalho constante e convicto”, sendo, por todos estes atributos, “a melhor porção da raça brasileira, os eleitos deste povo de israelitas curvados em adoração indecente ao bezerro.... não, à vaca de ouro da Monarquia.”320 O contraste não poderia ser maior: enquanto os “brasileiros” se curvam diante do bezerro monárquico, o povo “paulista”, apresentado como “povo eleito”, mantém sua “energia cívica” republicana e demais atributos positivos. Já Alberto Salles era mais explícito na caracterização. Para ele a província de São Paulo apresentava um “progresso material, que é visível e chega mesmo a encher de admiração todos aqueles que nos visitam, ao ponto de nos considerarem como avis rara no meio

da

profunda

e

geral

apatia

em

que

vivem

mergulhadas

as

outras

319

Um minucioso estudo da composição dos artigos e perfil dos colaboradores dos ALPSP está em FERREIRA, Antonio Celso. Op. Cit. cap. 1. “O pequeno mundo letrado da província”. 320

“Dr. M. F. de Campos Salles” In ALP de 1879, p. 51.

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províncias(...)”321(grifo meu). Notamos que os republicanos estabeleciam uma clara distinção entre os “brasileiros” em geral, e os “paulistas”, vistos como grupo dotado de originalidade. Os republicanos paulistas, quando se referiam ao povo brasileiro utilizavam uma representação essencialmente negativa, que ressaltava os traços da falta de energia e iniciativa, da apatia, da submissão política ao governo central, da impotência e incapacidade de manifestar sua opinião. Em texto de 1872 o próprio Campos Sales referiase ao brasileiro como “fraco”, “vacilante”, incapaz de “encarar de frente as questões de interesse geral”322. Mais adiante, Martim Francisco III podia tirar lições políticas, afirmando que “o brasileiro é um povo decadente, apático. Exceção no descalabro do Império, o paulista vai compreendendo que a separação é o único porto de salvamento”323. Mais do que simplesmente apontar as deficiências do povo brasileiro, os republicanos as apresentavam como sendo decorrência direta da “tutela governamental”, da ação asfixiante do Estado monárquico centralizado. Afinal, perguntava-se o redator de A Província de São Paulo, em 1875, “um povo que vê o governo intervindo em todos os atos do cidadão, sempre a importuná-lo com uma proteção que se reduz à vexação, por que os regulamentos viciosos atacam a liberdade e a ação do indivíduo, pode ser ativo e empreendedor?”

324

. Sem dúvida, para a elite republicana de São Paulo, a resposta era

negativa e este povo sem espírito empreendedor e inativo era antes o conjunto do povo brasileiro do que a sua porção paulista. Esta caracterização negativa do conjunto dos brasileiros, pode ser explicada, dentre outros aspectos, pela própria dinâmica da elaboração identitária que, para melhor definir os contornos da identidade coletiva, necessita a definição do seu contrário. No caso da

321

SALES, Alberto . A Pátria Paulista. P. 52. Ou ainda: “A obra da província de São Paulo espanta principalmente pela singularidade que neste ponto [progresso material] ela oferece com as outras províncias do império. Enquanto que por toda parte são construída as estradas à custa do tesouro imperial, em nossa província são os capitais particulares que se congregam sob a forma do anonimato e realizam essas grandes empresas de viação(...) Não é nosso propósito fazer a apologia da província; apenas constatamos um fato(...) O que, porém, ninguém pode negar é que se os paulistas passam por ser em todo o império aqueles em que mais predomina o espírito provinciano, razão de sobra existe para este provincianismo arraigado e intransigente: é uma justa expansão de seu orgulho, como uma população laboriosa, rica, progressiva e independente. ” ( grifos meus) . 322 Apud BLANCO, Silvana Mota. Op. Cit. p. 99. 323 ANDRADE, Martim Francisco R. . Propaganda Separatista. São Paulo independente. SP: tip. União; 1887. Pp 43. 324 APSP. 31/01/1875

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identidade paulista, o seu contrário, mais do que o habitante da Corte e o brasileiro em geral, foi o “nortista”. O habitante do “Norte”, com o passar do tempo, foi transformado pela elite republicana regional no principal contraponto à imagem do paulista. Espécie de brasileiro no superlativo, detentor das principais características do Brasil tradicional e arcaico que os americanistas paulistas procuravam suprimir, o “nortista” se transformou no “outro” do paulista. Na origem desta contraposição ao Norte está a insatisfação da elite paulista com a proximidade que as elites das principais províncias nordestinas, principalmente Bahia e Pernambuco, adquiriram junto ao governo central no quadro de rearranjo de poder decorrente do regresso conservador dos anos 1840325. Neste sentido, em 1882, antes portanto do movimento separatista, Alberto Salles reclamava daquilo que considerava os favores da Corte para com o Norte, em detrimento de São Paulo. O autor ainda contrapunha a estagnação da economia pernambucana à pujança da lavoura paulista, reforçando uma visão do Brasil como um corpo cindido entre dois pólos: um Norte estagnado e dependente dos favores da Corte monárquica, e um Sul, cujo centro seria São Paulo, independente, progressista e ao mesmo tempo desprezado pela Corte326. Na base do provincianismo paulista que se solidificava havia, assim, um sentimento do Brasil como uma “nação cindida”, formada pela consciência de uma unidade precária e mal consolidada, visão compartilhada pela intelectualidade crítica da geração de 1870, conforme analisamos anteriormente no caso de Capistrano de Abreu. Para Alberto Salles, “enquanto ao norte do império morrem as populações à mingua de recursos, implorando a proteção do governo, em São Paulo realizam-se festas majestosas para comemorar a inauguração de mais uma linha férrea”327. Esta visão foi exacerbada pelo movimento

325

Como explica Sérgio Buarque de Holanda, o Segundo Reinado foi marcado pela predominância de Baianos nos cargos chave da burocracia imperial, sendo seguido por representantes do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, ficando São Paulo submetido a uma posição secundária. HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Do Império à República”. In História Geral da Civilização Brasileira, tomo II, Vol.5, São Paulo: Difel; 1985, p. 271-275. 326 “Umas [ províncias], apesar de consideravelmente desenvolvidas em seus recursos morais e econômicos, são consideradas de segunda categoria, enquanto outras, muito inferiores e que muitas vezes não vivem de seus próprios recursos, se acham na primeira categoria. As duas províncias de São Paulo e Pernambuco (...) fornecem um paralelo bastante edificante da administração imperial.”In SALLES, A. Política Republicana. Rio: Leuzinger & Filhos; 1882. p. 387. 327 SALES, Alberto, “Como o clima da província de São Paulo influi sobre o caráter dos seus habitantes” In ALP de 1880, p. 184.

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separatista de 1887, a ponto de levar à defesa da ruptura da unidade nacional. Emergiam daí as principais representações negativas do nortista como o “outro” do paulista. Em 1887 o romancista republicano Júlio Ribeiro se questionava: “Que laços nos prendem ao império, ao centro, ao Norte? Com franqueza, com verdade – nenhum. Mesologicamente, ethnologicamente, genealogicamente nós somos um povo à parte. (...) Nós, paulistas, bem como nossos irmãos mineiros e paranaenses, somos gente muito diversa da gente do Norte que nos governa. Nosso sangue é outro(...). ”328 Para o separatista Ribeiro, a consciência da diferença em relação ao Norte, difusa entre uma elite fortemente endogâmica e federalista como a paulista, era levada ao seu paroxismo, ocasionando até mesmo a dissolução dos tênues laços simbólicos de unidade nacional que o próprio regionalismo federalista não chegava a romper. Para Júlio Ribeiro, não haveria unidade possível entre as partes, devido a diferenças irreconciliáveis. E, para o também separatista Martim Francisco III, a grande diferença entre São Paulo e o Norte, cujo núcleo seria a Bahia, estava, mais uma vez, na independência e atividade do primeiro e na inércia e submissão do segundo frente ao poder do Estado monárquico. Exemplo desta visão desqualificadora do Norte está na peça O casamento do Mano, escrita por Martim Francisco no auge da polêmica separatista. Nela o autor representava o Brasil como uma grande família onde o pai era o Império e a mãe a Bahia, representando a união entre a Corte e o Norte que tanto exasperava os federalistas paulistas. “Paulo” (São Paulo) seria o filho trabalhador que sustentava a casa e desejava se casar com a Sra. “Liberdade” para fugir da exploração à qual era submetido pelos pais e irmãos. Os estados do Norte - Ceará, Sergipe - eram apresentados como vivendo a sua indolência e paralisia sempre a pedir dinheiro para o trabalhador Paulo329. No contexto de crise do Segundo Império, a elite separatista e federalista de São Paulo cristalizava visões sobre a relação de sua província com a “Corte” e o “Norte” que seriam retomadas em conjunturas

328

RIBEIRO, Júlio. Procelárias. São Paulo: ed. Cultura brasileira; s/d/ p. 97. Sobre as representações mobilizadas na polêmica separtista ver ADUCCI, Cássia Chrispiniano. A Pátria Paulista. São Paulo: Arquivo do estado/ Imprensa Oficial; 2000. 329

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diversas, ao longo de todo o séc. XX330. Elas serviriam também para criar o terreno propício ao vigoroso preconceito contra o migrante nordestino, crescente a partir dos anos 1930 e até hoje vigente. Esta visão negativa e pessimista frente ao brasileiro não era exclusividade dos republicanos paulistas, sendo antes característica marcante da visão cosmopolita sobre o nacional difundida pelo conjunto da intelectualidade crítica nos anos 70 e 80, conforme analisamos no capítulo anterior. Mas o que conferia originalidade à visão da elite republicana paulista era o fato de isentar o paulista desta caracterização negativa. Mais uma vez a São Paulo integrada ao mercado internacional e enriquecida pelo café era mostrada agora por Campos Salles e nas páginas do ALPSP de 1879 - como uma exceção de progresso em meio ao atrasado Brasil bragantino: “Eis porque a província de São Paulo chegou a constituir-se no vasto império americano uma exceção verdadeiramente surpreendente, que a todos pasma e admira. A sua riquíssima lavoura e o seu importante comércio servidos por uma extensa rede de estradas de ferro já em tráfego (...); a introdução de colonos europeus (...) em geral o desenvolvimento mais ou menos vigoroso das suas indústrias; tudo isso, como produto direto da iniciativa particular, bem demonstra que na realidade há aqui uma exceção, que abre-se como um fenômeno social, a despeito das peias e dos embaraços criados pela lei. Sim; o espírito de iniciativa jamais poderá ser contestado aos paulistas, por que para atestá-lo bastaria invocar a eloquência dos fatos, que aí estão assinalando os seus grandiosos feitos”331. ( grifos meus) O que mais interessa neste descrição é que o progresso paulista era representado pelos elementos característicos do que definiam como sendo o modelo ianque: colonização do sertão por população imigrante, vigorosa política ferroviária, desenvolvimento industrial e, para concluir, uma população paulista dotada de originais “espírito de iniciativa” e independência frente ao Estado, valores também identificados pelos republicanos como

330

A contraposição Norte (ou seu “sucessor” Nordeste, a partir da década de 1920) dependente, tradicional e inerte X São Paulo moderno, ativo e progressista foi analisada para o contexto do séc. XX por ALBUQUERQUE Jr. Durval. M. A Invenção do Nordeste e outras artes. Recife, São Paulo: Ed. Massangana, ed. Cortez; 1999. P. 101 a 106.

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característicos dos norte-americanos. Seria como se São Paulo de finais do séc. XIX fosse um laboratório pioneiro de criação de uma sociedade ianque no Brasil, uma utopia liberal do Brasil futuro, um Brasil que procurava construir, à imagem e semelhança daquilo que entendiam ser os Estados Unidos. A representação de São Paulo presente no discurso de Campos Salles procurava “fazer crer” que os paulistas construíam nos sertões da sua província algo semelhante a um enclave de civilização ianque. Era isso que também sugeria outro artigo de A Província de São Paulo, de 1875, para quem “se é certo que no Brasil os melhoramentos impõem-se vagarosamente, não é menos certo que na Província de São Paulo as coisas marcham de outro modo(...) parece que temos dado testemunho de nós e que temos procurado provar estarmos na América, tendo diante dos olhos o invejável exemplo dos americanos do norte”332 (grifos meus). Assim, os adjetivos utilizados pelos republicanos de São Paulo para caracterizar o “espírito paulista” eram os mesmo utilizados na qualificação dos norte-americanos. O mesmo “espírito de iniciativa”, a mesma “liberdade”, o mesmo “espírito empreendedor”, a mesma aversão a um poder estatal repressor unia ianques e paulistas. Distanciado dos demais brasileiros, identificados estes com o atraso e a dependência estatal, o paulista passava a ser aproximado simbolicamente do outro grande modelo que povoava o discurso republicano: o modelo norte-americano, o representante da humanidade redimida do despotismo. Em suma, a identidade paulista que estava sendo gerada pela elite republicana provincial, além de considerá-lo como uma exceção de progresso em meio a um Brasil bragantino, considerava o paulista um ianque brasileiro. Neste sentido, pelas páginas do ALP de 1878 o republicano Américo de Campos qualificava a cidade de São Paulo como “o nobre coração da mais enérgica e mais americana das províncias brasileiras”333. Segundo Joseph Love, em 1885, o especialista holandês em café Van Delden Laërne considerava que os paulistas “com justiça ganharam

331

SALES, Campos. “O espírito de iniciativa em Campinas.” In ALP de 1979. p. 4 A Província de São Paulo, 5/1/1875. O articulista do mesmo jornal, em 26/8/75, comentando a inauguração de duas estradas de ferro –Mogiana e Paulista - afirmava o americanismo dos paulistas com entusiasmo: “Honra aos paulistas! Paladinos da liberdade e do trabalho, lutam e ensinam às demais províncias como é possível dominar a pertinácia dos obstáculos que nos empecem a expansão natural à seiva [sic] de uma nação americana.” 333 CAMPOS, Américo de. “A cidade de São Paulo em 1877” in ALP de 1878. p.9. 332

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o epíteto de ianques do Brasil”334. Mas se no final do século XIX os republicanos já começavam a comparar o paulista com o norte-americano, a mais acabada definição, neste sentido, foi realizada em plena Primeira República pelo mineiro, historiador das Bandeiras e republicano Basílio de Magalhães. Em 1913, referindo-se aos paulistas, ele escrevia: “O segredo de sua força, o segredo de seu progresso, está na portentosa iniciativa de seus filhos, que podem, com razão, ser chamados – os ianques da América do Sul”335. O termo “ianque da América do Sul”, utilizado por Basílio de Magalhães para designar a essência do caráter paulista, era uma pequena variação do “ianque hispanoamericano” que remete ao programa do expoente dos americanistas argentinos, Juan Bautista Alberdi. Em 1852, Alberdi lançava o seu livro Bases y puntos de partida para la organización política de la República Argentina, obra considerada por Luis Werneck Viana como a bíblia do pensamento americanista latino-americano336. Nela, Alberdi não somente apresentava um novo desenho para o Estado argentino, como apontava a necessidade de criação de uma nova ética para o conjunto dos povos ibéricos, uma ética adequada aos valores laicos, científicos, industriosos e democráticos do modelo americano que procurava aplicar. Em outros termos, Alberdi apontava a necessidade de criar o “ianque hispano-americano”, concebido como um verdadeiro projeto de Homem Novo da modernidade americanista. Este “ianque hispano-americano”, fruto de uma nova educação científica e prática, seria caracterizado, segundo Alberdi, por uma “febre de atividade e empreendimento” e pela capacidade de “vencer o grande e opressivo inimigo de nosso progresso: o deserto, o atraso material, a natureza bruta de nosso continente”337. Além disso, deveria ser um

334

Apud LOVE, Joseph. Op. Cit. p. 108. MAGALHÃES, Basílio. O estado de São Paulo e o seu progresso na atualidade. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio; 1913. 336 VIANA, L. W. “Op. Cit., 1993. Também Willian Katra apresenta depoimento de contemporâneos que afirmam o caráter paradigmático do livro em relação ao ideal modernizador das elites liberais argentinas de meados do séc. XIX. KATRA. W. La Generación de 1837. Los hombres que hicieron el país.. Pp 190 a 199. 337 ALBERDI, Juan Bautista. Fundamentos da organização política da Argentina. Campinas: ed. Unicamp; 1994. P. 67. Cabe mencionar a íntegra do trecho em que Alberdi fala do ianque hispano-americano: “Em nossos planos de instrução devemos fugir dos sofistas, que se tornam demagogos, e do monarquismo, que faz escravos e caracteres dissimulados. (...) Poderá o clero dar à nossa juventude os instintos mercantis e industriais que devem distinguir o homem da América do Sul? Tirará de suas mãos essa febre de atividade e de empreendimento que o faça ser o ianque hispano americano?”( grifos meus) Idem, Ibidem. 335

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cidadão dotado de uma cultura política à altura da forma de governo representativo e republicano. Espírito empreendedor, conquista do deserto e cultura política livre republicana definiam os contornos da ética característica do protótipo do homem moderno dos países ao sul do Rio Grande: o ianque hispano-americano. A imagem que os republicanos paulistas se auto-atribuíam em muitos pontos se assemelhava a este “ianque hispano americano” definido pelos americanistas argentinos. A identidade paulista delineada pelos republicanos de São Paulo frisava os mesmo aspectos de independência, espírito de iniciativa, empreendimento, conquista do sertão e republicanismo que Alberdi considerava dever ser a essência do futuro habitante da América do Sul e que já era apanágio do norte-americano. Os paulistas se apresentavam como dotados de todos os atributos do ‘ianque sul americano”, afirmação que tinha o propósito de mostrar aos demais brasileiros que eles, paulistas, eram os mais adequados para a construção do Brasil moderno. Exemplo maior deste caráter ianque auto atribuído, está naquele que transformou-se em um dos principais símbolos regionais: a bandeira do estado de São Paulo. A “bandeira das treze listras”, cantada em versos pelo poeta Guilherme de Almeida durante o levante de 1932, e até hoje símbolo oficial do estado, foi concebida como uma imitação, em outras cores, da bandeira norte-americana. O seu autor foi o romancista republicano Júlio Ribeiro, que vimos acima clamar pela separação e defender a originalidade paulista. Pelas páginas do jornal O Rebate, de 16/7/1888, ele apresentava o desenho e as explicações do símbolo, que foi concebido originalmente para ser o pavilhão nacional brasileiro, tão logo se proclamasse a República. Enquanto o novo regime não era instituído a bandeira podia ser vista na sede do Partido Republicano Paulista (PRP), agremiação política com a qual passou a ser identificada. Uma vez vitoriosa a República, ele passou a ser símbolo do estado de São Paulo, representando os anseios e a auto imagem ianque com a qual se identificavam membros da elite regional. Refletindo a identificação dos paulistas como “ianques brasileiros”, o pavilhão estadual procurava mesclar elementos ianques e brasileiros. Ianque seria a própria disposição dos motivos, compostos por treze listras inspiradas pela bandeira norteamericana que, por sua vez, procurava com cada listra representar uma das treze colônias britânicas da América que deram origem aos Estados Unidos. Já os elementos brasileiros

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seriam representados pelo mapa nacional colocado no canto superior esquerdo; pelas quatro estrelas que “representam o Cruzeiro do Sul, a constelação indicadora da latitude austral”, além, é claro, da coloração diferente das listras, que “simbolizam de modo perfeito a gênese do povo brasileiro, as três raças de que ele se compõem – branca, preta e vermelha”338. Antes mesmo de proclamada a República, os republicanos paulistas já apresentavam no pavilhão projetado o símbolo da nova pátria que queriam criar: uma pátria aos moldes da norte-americana, mas com as especificidades nacionais do território (representado pelo mapa) e da raça ( representados pelas cores adotadas). Mas nem todos, no período, aceitaram esta identificação do paulista como representante do espírito americano no Brasil. A crítica mais contundente, neste sentido, veio do campo do novo liberalismo, de um autor que tivera sua fase americanista, mas que concentrara sua luta reformista, não na federalização do Estado monárquico, e sim na abolição da escravatura. O pernambucano Joaquim Nabuco foi, assim, um importante crítico desta nova auto-imagem elaborada pelos paulistas. Em seu livro O Abolicionismo, de 1883, Nabuco ironizava a pretensão a representante das forças modernas, difundida pela elite paulista: “Tem-se exagerado muito a iniciativa paulista nos últimos anos, por haver a província estradas de ferro sem socorro do Estado, depois que viu os resultados da estrada de ferro de Santos a Jundiaí; mas, (...) os paulistas não são, como foram chamados, os ianques do Brasil, o qual não tem ianques – nem São Paulo é a província mais adiantada, nem a mais americana, nem a mais liberal de espírito do país; será a Lousiana do Brasil não o Massachusetts – (...)”339 Na visão irônica do abolicionista, a “libérrima” São Paulo era comparada com a Lousiana, um dos Estados norte-americanos de maior tradição latifundiária e escravagista. Nabuco colocava a nu uma das maiores contradições da elite paulista que, no discurso, se apresentava livre e independente e, no nível das práticas concretas, teimava em defender a escravidão e o latifúndio. Apesar das críticas, os republicanos paulistas não abriram mão de difundir a identidade regional que então elaboravam. Procuraram “fazer crer” que o habitante de São

338 339

RIBEIRO, Júlio. O rebate. Apud RIHGSP. NABUCO, Joaquim. Op. Cit. p. 134.

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Paulo nada mais tinha a ver com o velho tropeiro de poncho e as mulheres de mantilha que tanto povoavam as representações sobre o paulista difundidas pelos demais brasileiros ao longo de todo o séc. XIX. O paulista apresentado pelos republicanos se distanciava muito da imagem do habitante de São Paulo visto como desconfiado, reservado, soturno e alheio ao contato com gente de fora, imagem esta tão difundida pela literatura de viagem e pelos estudantes da faculdade de direito originários de outras províncias. Esta visão do paulista como reservado e pacato passava cada vez mais a ser identificada com o tipo caipira, que também começava a ser explorado pela literatura provincial, assumindo, ao longo do tempo, formas diversas como demonstrou Antônio Celso Ferreira340. Mas o caipira, o paulista popular, não era mais o representante por excelência da identidade regional. Quando a intelectualidade republicana falava no paulista tout court, normalmente tinha em mente a elite regional, e não os setores populares. Desta maneira, a elite republicana paulista procurou legitimar sua luta política por autonomia provincial afirmando a especificidade da identidade regional, invertendo os termos da forma como a identidade regional era concebida pela intelectualidade monárquica. Ao invés de uma visão centralizada, na qual o regional se submetia ao nacional, em que se ressaltavam as semelhanças da identidade paulista com um padrão identitário nacional-indianista, a nova visão republicana e federalista da identidade paulista autonomizava o regional em relação ao nacional, fazendo ver as diferenças entre ambas esferas, ressaltando as especificidades do caráter paulista. Este era entendido não somente como uma mera variante de um padrão identitário nacional hegemônico, mas como uma verdadeira “exceção”, uma “singularidade”. Como vimos afirmar Alberto Salles, o paulista era uma “avis rara”. Mais do que simplesmente representar o paulista como uma exceção de progresso no Brasil, os republicanos se lançaram à consolidação simbólica desta identidade, mediante o esboço de uma visão específica – republicana - de um passado paulista dotado de originalidade frente ao passado das demais províncias. Este esboço sobre o passado paulista pode ser considerado o primeiro passo do processo de criação de uma historiografia paulista, processo permeado por conflitos, incongruências e descontinuidades, que atingiria seu clímax com os autores atuantes nos anos 1920. 340

FERREIRA, Antônio Celso. Op.Cit. 1998. principalmente tópico “ Almas caboclas” pp 174 a 198.

163

5.3. Um passado colonial diferente: A História explica a “exceção paulista”

O discurso identitário elaborado pelos republicanos paulistas e a visão do paulista como uma exceção de progresso e liberdade no Brasil foram lastreados em uma determinada representação sobre o passado de São Paulo que começou a ser esboçada, nas décadas de 1870 e 1880. A investigação sobre personagens e eventos ligados à história paulista passou a ser valorizada, invertendo o relativo descaso com a temática regional predominante no auge do Segundo Reinado. A louvação dos feitos dos paulistas antigos, se transformou, desta forma, em um dos mais importantes elementos do imaginário político dos republicanos paulistas. Ao contrário de republicanos jacobinos e positivistas cariocas - que investiram em Tiradentes e na figura feminina da República, que apontam para uma visão unitária do país341 - os paulistas, em função da centralidade que conferiam à questão federalista, colocaram a temática regional no centro de sua pregação política. O investimento em um discurso regional, que tomava a paulistanidade como “exceção”, tinha um sentido político de crítica à ordem monárquica unitária, sendo por isso praticado principalmente por republicanos. Nas décadas de 1870 e 1880, notamos o aparecimento de uma série de obras que se dedicaram a elaborar representações do passado paulista. De diferentes naturezas, e qualidade, estes trabalhos interessam por apresentarem um início de debate sobre o passado paulista, o qual foi pouco estudado nesse período342. Eles incluem desde ensaios historiográficos a romances históricos, passando por discursos políticos e obras calcadas em pesquisa original de fontes. Apesar de precários e normalmente desprovidos de pesquisa empírica original (exceto a obra de Azevedo Marques), estes estudos são importantes pois esboçaram os traços principais da representação do passado paulista, desenvolvido posteriormente pela historiografia institucionalizada no IHGSP.

341

Para o imaginário dos republicanos jacobinos e positivistas da corte, ver CARVALHO, José Murilo. Op. Cit. , 1990.. 342 Kátia Abud apesar de considerar como um único período os anos de1870 a 1930, centra sua análise exclusivamente nos autores dos anos 20. Ver ABUD, Kátia. Op. Cit. 1985. cap3. Já Antônio Celso, devido ao recorte diferente que adota, confere mais atenção aos autores do final do séc. XIX. Cita vários deles, mas não

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Fruto de vários anos de pesquisa empírica, em 1872 já se encontravam redigido os Apontamentos Históricos, geográficos, biográficos, estatísticos, noticiosos da província de São Paulo, obra escrita por Manuel Eufrásio de Azevedo Marques e somente publicada, a expensas do Imperador, em 1879. Além desta obra, também foram publicados o ensaio historiográfico Precursores da Independência (1874) de Martim Francisco III, o compêndio escolar Lições de História Pátria (1875) de Américo Brasiliense e, em 1876, A Província de São Paulo, trabalho estatístico, histórico e noticioso, obra oficial de propaganda para a exposição internacional de Filadélfia, escrita pelo senador paulista Joaquim Floriano de Godoy. No mesmo movimento, em 1876, também Júlio Ribeiro apresenta o romance histórico Padre Belchior de Pontes. Em 1886, João Mendes de Almeida publicava Algumas notas genealógicas, que também apresentava parte importante de estudos sobre o passado colonial paulista e, no ano seguinte , 1887, com o movimento separatista surgem a Pátria Paulista de Alberto Salles e Propaganda separatista, São Paulo independente de Martim Francisco III. Juntem-se a estes estudos, os diversos textos sobre passado paulista publicados nos ALPSP de 1876 a 1884. Deste total de oito trabalhos que apresentavam representações do passado paulista, inegavelmente ligados ao movimento republicano temos quatro obras: as de Júlio Ribeiro, Américo Brasiliense, Alberto Salles e o trabalho separatista de Martim Francisco. O primeiro livro de Martim Francisco - Precursores da independência - e a obra de Azevedo Marques, se aproximam muito do pensamento republicano, apesar de seus autores não terem ligação formal com o partido. Azevedo Marques mesmo tendo sido eleito na década de 1860 para a assembléia provincial, há tempo se afastara da política, sendo o seu livro fruto do privilegiado acesso à documentação oficial que tinha, por sua condição de funcionário público, no posto de oficial da Secretaria da Província 343. Apesar de não ser republicano, contribuiu para a elaboração de uma nova visão do passado paulista, diferente da visão monárquica. Martim Francisco, por seu lado, apesar de apresentar princípios nitidamente federalistas e até republicanos – estando eivado de elogios à “causa democrática” - não se

aprofunda o estudo da representação do passado paulista que estabelecem. FERREIRA, Antônio Celso. Op. Cit. 1998. cap 1.

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filia ao partido, sendo antes eleito deputado provincial pelas fileiras do Partido Liberal. Sua adesão a este partido monárquico talvez se explique mais por conveniência eleitoral e familiar do que por convicção programática. Em 1884, com a morte de seu pai bandeia para o lado republicano, podendo, portanto, ser considerado representante do pensamento federalista deste partido344. De todos estes trabalhos, somente os livros do senador Godoy e o do chefe conservador João Mendes de Almeida não se alinharam ao republicanismo. O trabalho deste último era, conforme veremos, o mais significativo exemplo de visão da história dos grupos ultramontanos de São Paulo. Já a obra do senador Godoy era um trabalho de cunho oficial, escrito por um senador alinhado aos saquaremas modernizadores, que simplesmente reproduzia a versão monárquica de Machado de Oliveira (oposição abnegados jesuítas X colonos cobiçosos, elogio da fidelidade monárquica de Amador Bueno, etc.), com algumas ressalvas diante da ascensão, no seu tempo, dos ultramontanos345. Assim, o lugar social dos autores que produziram a maioria das obras, foi o nascente movimento federalista e republicano, estruturado em torno das publicações, jornais, escolas e demais iniciativas apresentadas no tópico anterior. E o perfil do homem de letras dedicado à história, na São Paulo dos anos 1870 e 1880, apontava para a predominância de figuras da elite regional paulista (com as exceções do maranhense João Mendes e do mineiro de extração popular Júlio Ribeiro), intimamente envolvidos na luta político-partidária da província (exceto Azevedo Marques, para este período), sendo, na sua maior parte, ligados ao republicanismo. A produção da história neste período seria marcada por um intenso caráter político que, se colocado em segundo plano, impossibilita a compreensão dos embates sobre o passado regional empreendido.

343

Sobre a biografia de Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, ver o prefácio de Afonso de Taunay a MARQUEZ, Manuel Eufrásio de Azevedo. Apontamentos Históricos, geográficos, biográficos, estatísticos, noticiosos da província de São Paulo. São Paulo: Comissão do IV Centenário; 1954. 344 Os Andrada, junto aos Barros e aos Sousa Queiroz, eram tradicionalmente membros do Partido Liberal em São Paulo. Segundo Aducci, que estudou a trajetória de Martim Francisco III, permanece controversa a data de sua saída do Partido Liberal, ocorrida entre 1884 e 1887. ADUCCI. Cassia. Op. Cit.2000. p. 65, 66. Segundo Luíz Correa Melo, sua adesão ao partido republicano ocorre imediatamente após a morte de seu pai em 1884. Sobre MELO, L. C. Dicionário de autores paulistas. São Paulo: Comissão do IV centenário; 1954. P. 49. 345 Sobre paulistas e jesuítas: “Eis aí a única e verdadeira origem da luta entre jesuítas e paulistas: foi a ambição cega de uns e a abnegação de outros que deu lugar à deplorável guerra(...)” ; ou ainda, sobre Amador Bueno: “Foi nesse século que o paulista Amador Bueno da Ribeira deu o mais estrondoso exemplo

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A historiografia sobre o passado colonial paulista, esboçada pelos republicanos neste período, também estava em íntima relação com a imagem do paulista moderno que criaram, do paulista como uma exceção: livre e progressista. Esta representação do passado regional era parte constitutiva da nova identidade ianque e progressista que a elite paulista se auto-atribuía. Num certo sentido, os republicanos projetaram para o passado a nova imagem que elaboravam do paulista moderno, criando uma “tradição paulista” em nada contrária aos valores da modernidade americanista e liberal que defendiam. Como vimos, esta nova identidade paulista se caracterizava por dois pontos: considerava o paulista uma exceção no conjunto dos brasileiros, e sua originalidade era marcada pelo seu progressismo, identificado com uma maior liberdade frente ao governo, maior energia e espírito empreendedor. Também a nova representação do passado que elaboram se pautou por estes dois pontos: afirmar a originalidade do passado paulista e identificar este passado como marcado pela maior liberdade e atividade. Para explicar a exceção de liberdade identificada no passado paulista, os autores republicanos se vincularam à matriz historiográfica liberal, a mesma de que o americanista Tavares Bastos se apropriou para realizar a crítica do Estado monárquico centralizado. A visão liberal ficava clara nas referências ao despotismo colonial como causa do atraso nacional, aproximando os republicanos paulistas do diagnóstico dos males da nação definidos por Tavares Bastos, conforme indicado no capítulo 4. Como ele, também os republicanos paulistas pensavam a história brasileira em contraposição à norte-americana. Afirmavam que o atraso nacional era decorrência do absolutismo imposto pela colonização portuguesa, enquanto o progresso norte-americano era explicado pela maior liberdade de sua colonização346. Neste sentido, Alberto Salles apresentou trecho paradigmático no qual

de fidelidade a seu rei”. In GODOY, Joaquim Floriano de. A Província de São Paulo. Trabalho estatístico, histórico e noticioso. São Paulo: Gov. do Estado; 1978. Respectivamente, p. 53 e 62. 346 Mais uma vez, Alberto Salles apresenta o mais acabado elogio à colonização norte-americana surgido das fileiras do republicanismo paulista. Sua referência teórica é a mesma de Tavares Bastos e dos americanistas argentinos: Tocqueville, ou o “eminente autor da Democracia na América”, citado no texto. Escreve Sales : “E é justamente em sua origem [do povo americano] que se descobre o segredo de sua prosperidade, a razão de seu maravilhoso adiantamento, a chave verdadeira do enigma: a república norte-americana teve por origem uma revolução, por que outra coisa não foi a partida dos peregrinos. (...) A partida dos peregrinos das plagas européias foi ainda mais do que uma revolução; foi o triunfo esplêndido da liberdade de consciência e do pensamento, que é hoje o dogma fundamental das sociedades modernas. E a sua chegada às terras americanas foi o primeiro fato da vida de um grande povo, um protesto solene contra os privilégios e absurdos das velhas monarquias teocráticas.” In SALES, Alberto. “A instrução pública nos Estados Unidos e no Brasil” In. ALP de 1879, p. 155,156.

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contrapunha a formação colonial livre dos EUA à formação colonial absolutista/despótica do Brasil: “(...) a nação americana visa a liberdade desde o berço, enquanto que pesavam em nossos pulsos as algemas do absolutismo português.; é que a América sentiu logo a consciência de sua personalidade, enquanto o Brasil foi sempre tratado escravo. E as causas do nosso atraso geral devem ser procuradas no absurdo sistema de colonização adotado por Portugal, cujas conseqüências ainda perduram e que só a custas de muitos esforços poderão desaparecer.”347 (grifos meus). Para os republicanos paulistas, o “atraso brasileiro” era conseqüência do regime colonial absolutista e despótico adotado pelos portugueses348. Mas, ao contrário de Tavares Bastos, para estes americanistas de São Paulo, o Brasil não era um todo homogêneo e compacto, sendo antes compreendido como dotado de uma unidade precária, marcada por cisões intra-regionais, conforme vimos anteriormente. E a principal cisão era entre um Norte atrasado e dependente da Corte e um Sul dinâmico e autônomo, cujo centro seria São Paulo. Para os republicanos paulistas - esta era exatamente a pedra angular sobre a qual se elevava todo o edifício da historiografia paulista: existia uma diferença marcante entre a formação histórica colonial como se deu ao Norte e como se deu ao Sul do Brasil. Introduzia-se, desta forma, a questão da originalidade da formação histórica paulista, inexistente nas obras dos demais autores da matriz liberal, Tavares Bastos inclusive. Em seu livro Precursores da independência, de 1874, o futuro separatista Martim Francisco III já apresentava a diferença de formação entre o Norte e o Sul. Ao tratar do impacto da bula papal proibindo a escravização dos índios, no séc. XVII, afirmava que “nas povoações do norte do império a leitura da bula papal não acarretaria dano algum; no sul porém havia maior trabalho, mais agricultura, mais adiantamento e sobretudo mais

347

Idem, Ibidem, p. 169. Esta visão transparece de forma exemplar no ALPSP de 1878 quando, sob o título de “O Brasil Colônia”, publicavam o seguinte trecho: “O Brasil não era mais do que uma feitoria agrícola e mineira, onde as manufaturas que acabavam de despontar em Minas, foram proibidas; era-lhe vedado toda a comunicação com o gênero humano, e a não ser com Lisboa ou Porto, onde reinava o despotismo ateado pela inquisição. Senador Vergueiro.” (Grifos meus). P. 29. 348

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independência, o que fazia desdenhosa a obediência passiva a um poder qualquer (...)”349. Aqui, a diferenciação entre Norte e Sul é apenas apontada sem merecer maior desenvolvimento. Ela reaparecia no ALP de 1879, em texto de Carlos Ilidro da Silva: “O Brasil, colonizado sob o regime despótico, foi dividido em capitanias ou territórios (...). Os colonos eram servos dos donatários, e veio a população a compor-se de aventureiros, criminosos e soldados, com exceção da capitania, hoje nossa província de São Paulo (...), motivo por que foi a única que logo prosperou.”350( grifos meus). Para o autor, não somente no presente, mas também no passado, São Paulo era uma exceção no Brasil, sugerindo uma colonização diferente. Em contraposição a esta original colonização paulista, realizada por “casais de famílias distintas”, o autor apresentava o Pernambuco do séc. XVII, como “uma penitenciaria sem idéia filosófica, um desterro inútil sem conseqüências nem moralisadoras nem repressivas”351, sendo este o “método oficial de colonização portuguesa”. Em meio a este esforço dos intelectuais paulistas para traçar a linha divisória entre sua formação e a dos demais brasileiros, um auxílio poderoso veio do ambiente historiográfico de Portugal. O expoente da cientificista e republicana “geração de 1870” daquele país, ninguém menos que Oliveira Martins, um dos intelectuais mais considerados pelos grupos críticos brasileiros352, publicou em 1880 a obra historiográfica O Brasil e as colônias Portuguesas, na qual apresentava diversas passagens em que contrapunha as formações das colônias ao Sul e ao Norte do Brasil353. Para este autor, entre o final do séc. 349

ANDRADA, Martim Francisco R. Precursores da Independência. São Paulo: Tip. Alemã; 1874. P. 29. SILVA, Carlos Ilidro. “Contraste do Brasil com os Estados Unidos da América do Norte”. In ALP de 1879, p. 197. 351 Idem, Idibem. 352 Angela Alonso atesta o sucesso da obra de Oliveira Martins junto à intelectualidade crítica da geração de 70 brasileira, quando o intercâmbio intelectual entre Brasil e Portugal era bastante intenso. Sua obra historiográfica foi referência fundamental para a elaboração de um dos clássicos do pensamento social brasileiro do período: o livro O Abolicionismo de Joaquim Nabuco. ALONSO, Ângela. Op. Cit. 2000. p. 138. Também o historiador pernambucano Oliveira Lima, segundo Teresa Malatian, foi marcado pelas concepções historiográficas de Oliveira Martins. MALATIAN, Teresa. Oliveira Lima e a construção da nacionalidade.Bauru, SP:EDUSC; 2001. Cap. 2 “Discípulo de Oliveira Martins”. Em compensação Capistrano de Abreu considerou seu livro generalizador e inexato, realizando acurada crítica. ABREU, J. C.,Op. Cit., 1976, 4ª série. pp157 a 164. Procuro complementar a visão destas autoras chamando a atenção para a importância da obra do historiador português para a construção do ideal de paulistanidade defendido pela elite republicana paulista. 353 “Apesar dos embaraços que as missões criavam ao franco desenvolvimento do Brasil (...) a colônia caminhava a passos largos no desenvolvimento da povoação, da riqueza e da exploração interior. E o Sul, 350

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XVII e o início do XVIII, “apresentam-se-nos, na América portuguesa, como duas grandes províncias, cuja história é diversa, porque os seus caracteres naturais e adquiridos foram diferentes até a unificação selada com a independência”354(grifo meu). Com trechos como este, Oliveira Martins rompia com a unidade da história colonial brasileira, consagrando assim, sem o saber, a fórmula definitiva da originalidade da formação histórica de São Paulo, prontamente acolhida pelos autores paulistas. Passagens de seu livro serviriam de epígrafe para todas as principais obras historiográficas produzidas ao longo da Primeira República, por autores ligados à elite republicana paulista: em 1903 aparece em artigo, transformado em 1918 no livro Capitania de São Paulo de Washington Luís, em 1924 no primeiro volume da História Geral das Bandeiras Paulistas de Afonso de Taunay; e em 1926, está citada no Raça de Gigantes de Alfredo Ellis Jr. Sobre ela, já em 1887, Alberto Salles assentava toda a sua argumentação a favor da separação de São Paulo: “O Sr. Oliveira Martins, referindo-se a este zelo com que sempre foi tratado o norte do Brasil, enquanto que o sul jazia em abandono e entregue a si mesmo, nos assegura que ‘a nação brasileira desenvolve-se colonialmente ao norte, orgânica e espontaneamente ao sul. Semi-independente a região de São Paulo – Minas, com a grande baía do Rio de Janeiro, capital natural do império futuro, está na sobra elaborando uma construção orgânica, enquanto o Brasil oficial, o Brasil brilhante, opulento, o Brasil dos vice-reis e governadores, assenta ao norte, na Bahia e em Pernambuco.’ Daí a razão de irem quase todos os deportados e criminosos para o norte.”355 Sob a interpretação de Alberto Salles, a passagem de Oliveira Martins era apropriada para consagrar a contraposição entre duas histórias paralelas e diferentes. Não havia uma única formação nacional e, nesta nova representação republicana do passado, era onde o regime de colonização livre era dominante, progredia mais segura, embora menos opulentamente, do que as colônias do litoral do Norte. No Sul desenvolviam-se de um modo espontâneo os elementos de uma nação futura, enquanto o Norte sujeito a uma administração corrupta e meticulosa, dependente da introdução de negros e de uma cultura exótica, pagava a opulência com uma vida menos estável e uma população menos homogênea. Sem exagerar demasiado o valor deste termo, pode dizer-se que, pelos fins do XVI século, a região de São Paulo apresentava os rudimentos de uma nação, ao passo que a Bahia e as dependências do Norte eram uma fazenda de Portugal na América.”(grifos meus) In OLIVEIRA MARTINS, O Brasil e as colónias portuguesas. Lisboa: Guimarães & Cia. editores; 1978. pp 38. 354 OLIVEIRA MARTINS, Op.cit. 1978. p. 75. 355 SALES, Alberto. A Pátria Paulista, Brasília: ed. UNB; 1981. p.102.

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como se todos os males da colonização absolutista lusitana - definidos anteriormente pela matriz liberal representada por Tavares Bastos - fossem identificadas com o Norte, esta enorme “fazenda de Portugal”, caracterizada pela dependência do poder absoluto metropolitano e predominância de forte escravidão africana. Enquanto o Sul, e principalmente São Paulo - pelo seu benéfico “isolamento” - apresentaria um passado “autônomo”, livre das duas forças consideradas pelo pensamento liberal e republicano da época como explicações do nosso atraso: o Estado despótico/absolutista ibérico e a escravidão negra. Livre, nas suas origens, destas duas forças paralisantes, São Paulo poderia percorrer a senda do progresso. Pela representação de um período colonial paulista diferente, original e livre, os republicanos de São Paulo procuravam explicar a exceção de progresso e liberdade que identificavam na Província e seus habitantes de finais do séc. XIX. Assim, os republicanos colocavam no centro da sua representação do passado regional o tema da liberdade do paulista primitivo, balizando seu programa historiográfico: definir as origens da liberdade do paulista. A visão do paulista colonial como marcado por um original espírito de liberdade e autonomia não era de todo nova, tendo já aparecido em 1851 no estudo historiográfico do viajante francês Saint Hilaire. Para este autor, que neste ponto rendia tributo ao indianismo, a liberdade dos antigos paulistas era decorrência do forte componente indígena de sua população. Os republicanos não negaram Saint Hilaire - antes se apropriaram de suas arrebatadas descrições da “raça de gigantes” insubmissos - mas procuraram caracterizar a liberdade paulista assentando-a sobre a oposição que os antigos colonos de Piratininga desempenharam contra os dois poderes que, então (fins do séc. XIX), procuravam deslegitimar: o poder do trono e do altar. A origem da liberdade do paulista seria explicada menos pela presença indígena, do que pela tenaz oposição que os paulistas antigos desenvolveram contra a teocracia jesuítica e o absolutismo da coroa portuguesa. E isto ficaria claro pelo tratamento privilegiado que, nos anos 1870 e 80, os historiadores regionais dedicaram a dois episódios do passado colonial paulista: o da expulsão dos jesuítas em 1640 e o do confronto com a coroa portuguesa representado na Guerra dos Emboabas nos anos 1720. Excluídos dos bastiões da cultura monárquica e dos principais cargos políticos do Império, os intelectuais republicanos elaboraram uma visão do passado paulista que pode

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ser considerada como uma verdadeira contra-história republicana356, uma vez que invertia o sentido estabelecido pela visão monárquica, escolhendo novos personagens e ressignificando os já consagrados. Se a visão monárquica do passado paulista se baseava no antibandeirismo de origem indianista, na louvação do jesuíta como personagem civilizador e principalmente na valorização do episódio de Amador Bueno e a correspondente definição da fidelidade como atributo principal do paulista, a visão republicana seria marcada por profundo antijesuitismo, pela ressignificação do episódio de Amador Bueno e pela revalorização do bandeirante, todos os episódios tomados como representativos da liberdade primitiva do paulista. Convém analisá-los separadamente. Primeiramente, concentro-me no estudo do antijesuitismo republicano, traço mais saliente da discussão historiográfica do período, passando, num segundo momento, para o estudo do tema da ressignificação de Amador Bueno e do bandeirante.

5.3.a. Os paulistas contra o altar: antijesuitismo republicano e a absolvição do colono paulista.

Nos anos 1870 e 80 a figura histórica do jesuíta foi a que mais concentrou a atenção dos intelectuais da Província, republicanos ou não. Fosse para louvar sua ação ou para criticá-la, o tema mobilizou a intelectualidade regional, auxiliando, conforme veremos, a revalorização positiva do bandeirante, tão desqualificado pela historiografia monárquica. Os intelectuais monárquico-indianistas, conforme vimos, haviam realizado uma contida e ponderada louvação do jesuíta, então entendido como símbolo de abnegação e modelo de incorporação do indígena de forma civilizada e cristã ao povo brasileiro. Na crise do Segundo Reinado a figura do jesuíta receberia outra representação, desencadeando, principalmente em São Paulo, acirrada guerra simbólica. Na base desta transformação de sentido do símbolo jesuíta estava o fortalecimento do movimento ultramontano na Província. Se nos anos de 1840 a 1860 havia uma louvação moderada do jesuíta, de origem

356

Segundo Marc Ferro, o discurso da contra-história “aparece ou reaparece toda vez que um grupo social, ou étnico, e até mesmo a instituição que o encarna, sente-se dominado, explorado, privado de história. Então ele ressuscita seus trabalhos e seus dias, e essa história é um projeto político, uma ação.(...) Quando é história paralela, ela questiona a história institucional, apoiando-se em uma instituição rival” In FERRO, Marc. A História vigiada. SP; Martins Fontes; 1989. P. 44, 45. Diana Quatrocchi-Woisson procura afinar o

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indianista, a partir dos anos 1870, surgiu um jesuitismo radical, fruto da ação ultramontana. Na realidade, os próprios termos “jesuíta” e “ultramontano” então se imbricaram, acabando por serem tomados como sinônimos357. Inimigos figadais dos republicanos e avessos às reivindicações de laicização do Estado e da sociedade, os ultramontanos se apropriaram da figura do jesuíta na batalha simbólica pela defesa do primado da Igreja Católica e da ordem centralizada monárquica. Nos anos 70, este grupo de católicos ortodoxos retomou uma visão ultra laudatória do jesuíta, semelhante àquela estudada no cap. 1, esboçada nos anos 1850 por Ricardo Gumbleton Daunt. Nesta nova conjuntura, quando os grupos laicizantes se uniam para comemorar o centenário do Marquês de Pombal, Daunt trouxe a público as suas elucubrações históricas, anteriormente restritas ao universo da epistolografia privada. Criou-se, então, uma nova versão ultramontana do passado nacional, suprimindo completamente as poucas restrições e receios que a intelectualidade monárquica levantava sobre a ação histórica dos jesuítas. O livro que melhor explicitou esta visão ultramontana do passado brasileiro e paulista, foi o Algumas Notas Genealógicas (1886) de João Mendes de Almeida. Maranhense de nascimento, advogado, chefe da ala mais ortodoxa do Partido Conservador paulista. O autor fazia parte de uma verdadeira dinastia familiar de ultra católicos, da qual faziam parte, entre outros, seu irmão o senador saquarema Cândido Mendes de Almeida, sócio ativo do IHGB e advogado de defesa dos bispos do Pará e Olinda na Questão Religiosa, e seu filho João Mendes Jr., lente da Faculdade de direito do Largo São Francisco, político e futuro membro de destaque do IHGSP. O livro destoava de toda a produção intelectual do período, na medida em que contestava abertamente todo tipo de cientificismo e determinismo então em voga, apresentando uma visão exclusivamente religiosa e providencialista da realidade presente e passada do Brasil. Se na historiografia monárquica do IHGB o providencialismo cristão estava presente, misturado a um predominante progressismo ilustrado, em João Mendes, talvez pela primeira vez desde o séc. XVIII, a filosofia da história cristã reinava soberana.

conceito, relacionando-o ao universo da memória. QUATROCCHI-WOISSON, Diana. Un nationalisme de déracinés. Argentine, pays malade de sa mémoire. Paris: ed. du Seuil., 1992. 357 FAUSTINO,Evandro. Catolicismo em São Paulo no Segundo Reinadoe o dilema da modernidade. São Paulo. dissertação (mestrado), Dept.História - FFLCH-USP: 1991.

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No seu pensamento o providencialismo não era resquício intelectual, mas a base sobre qual se assentava toda sua concepção da história. João Mendes remetia a Santo Agostinho e, a partir do messianismo do Padre Vieira, recuperava as profecias de Isaías sobre a predestinação da cristianização das terras brasileiras. Por todo o livro, o uso da documentação histórica servia como sinal comprobatório de que a cristianização do Brasil independia da vontade dos homens, estando inscrita no plano sagrado de Deus. Sinal maior desta predestinação cristã da nação estava na escolha do nome de Santa Cruz, dado pelos primeiros descobridores à nova terra. João Mendes renovava um dos pontos principais da visão cristã da história brasileira ao identificar, na mudança do nome de Santa Cruz para Brasil, o início da desvirtuação da missão sagrada que estaria nas origens da nação, decorrendo daí os males do país. Na sua visão, a situação somente não foi de total descalabro e perda da colônia e da nação, por conta da criação, também providencial, da Cia. de Jesus: “Felizmente, ao passo que o comércio e o contrabando do ibira-pitangá conseguiram apagar o nome de Santa Cruz, dado por cavaleiros da Ordem de Cristo, para o substituírem pelo de Brasil, Deus inspirava em 1534 a Inácio de Loyola, (...) a fundação da Companhia de Jesus, (...) para dar inúmeros missionários, que como Manoel de Paiva, Manoel da Nóbrega, José de Anchieta, João de Almeida,(...) Antônio Vieira e tantos outros, estrangeiros e nacionais, resgataram para a Cruz milhares e milhões de almas no Novo Mundo. E cousa notável! A época 1534-1540, da fundação da Companhia de Jesus, coincide com a da divisão das terras do brasil em capitanias para a colonização, por El-Rei D. João III! Altos desígnios de Deus! Em verdade, sem diminuir o valor dos grande serviços das diversas ordens religiosas, é lícito afirmar que o Brasil foi obra mais dos Jesuítas, do que dos donatários e do governo de Portugal. Ainda mais: é lícito afirmar que, se não fora a Companhia de Jesus, a terra de Cabral recairia na barbaria, reassentando-se seus povos nas sombras da morte(...)”358( grifos meus) A nação brasileira, na visão de João Mendes, seria fruto da ação civilizadora dos jesuítas, que foram mandados para reparar os erros dos homens do século, erros estes 358

ALMEIDA, João Mendes de. Algumas notas genealógicas. SP: ed. Baruel, Pauperio & Cia.; 1886. P. 52

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representados pela mudança do nome de Santa Cruz para Brasil, sinal da troca do ideal cristão pelo interesse comercial rasteiro. Tal qual novo jesuíta, o “sebastianista” João Mendes impregnava seu livro de um caráter de cruzada e de um desejo de reconciliar a “desgarrada” nação brasileira com os planos cristianizadores da Providência. Sua historiografia teria a função de servir como um agente de moralização da nação brasileira: “Por Deus! A nação brasileira insta por uma reanimação moral”359, exclamava

na

conclusão do trabalho. E esta moralização se identificava com o clamor por “uma reconstituição cristã, NO NOME, NOS PRINCÍPIOS E NOS FATOS”360 da nação brasileira. Este programa de recristianização radical de todas as instâncias da sociedade brasileira foi seguido a risca pelos ultramontanos, guiados pela encíclica Syllabus, na qual o papa Pio IX rejeitava as principais inovações do séc. XIX. Mirando o exemplo dos antigos jesuítas, eles se lançaram ao combate a partir do Seminário Episcopal. Este edifício, localizado no bairro da Luz, em São Paulo, fora fundado em 1856 pelo bispo D. Antônio Joaquim de Melo para formar a juventude paulista no espírito do catolicismo. Era apresentado como a antítese da ilustrada Academia de Direito e considerado o verdadeiro quartel general da comunidade ultracatólica paulista, chegando a ser considerado uma versão local da Bastilha por um inflamado republicano361. Os ultramontanos criaram jornais como A Sentinela, O Apóstolo e O Monitor católico. Sustentaram as missões evangelizadoras do capuchinho italiano Frei Caetano de Messina, atuantes nas cidades do vale do Paraíba362. Infiltraram-se na faculdade de direito onde fundaram clubes e folhas e, a partir dos anos 1870, sob o iniciativa do advogado e futuro fundador do IHGSP Estevão Leão Bourroul, tentaram até mesmo criar um partido católico. Fundaram diversas escolas católicas regidas por congregações estrangeiras, com

359

Idem, Ibidem, p. 493. Idem, Ibidem, p. 52. 361 No ALP de 1880, Estevão Leão Bourroul publicou interessante artigo intitulado “O Seminário Episcopal de São Paulo”, no qual criticou o ensino das escolas particulares, várias delas de propriedade de republicanos, alertando que “o mundo está perdido se as gerações que devem governar não se cristianizam. A questão é de defesa social”. Neste artigo está a menção ao Seminário como uma Bastilha paulistana. Ver ALP de 1880 p. 55 a 61. 362 As missões de frei Caetano foram asperamente criticadas pela imprensa republicana. Ver “As missões do obscurantismo” APSP 21/06/1876, e a série de caricaturas no jornal humorístico O Polichinelo. Em defesa do frade, Estevão Leão Bourroul escreveu um de seus tantos trabalhos biográficos: Frei Caetano de Messina. Estudo Histórico Religioso. São Paulo : Jor Stockler; 1879. 360

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destaque para estabelecimentos femininos como o “Seminário das Educandas” na capital e o “colégio do Bom Conselho” em Taubaté, ambos comandados pelas francesas irmãs de São José. Mas principalmente o polêmico colégio São Luís de Itu, onde desde 1867 um ramo estrangeiro dos jesuítas se instalou, rompendo com mais de um século de expulsão da ordem por instâncias do marquês de Pombal. A abertura de uma escola dirigida por legítimos jesuítas no coração da província que se pretendia a mais moderna e progressista foi vista, pela intelectualidade crítica paulista, como um retorno anacrônico de forças reacionárias. Ela parece ter desencadeado, antes mesmo da Questão Religiosa (1874), uma significativa onda de anti-clericalismo que atingiu, em graus diferentes, diversos grupos provinciais, com destaque para aqueles ligados à maçonaria e às tendências republicanas ou liberais radicais. Rememorando, nos anos 1930, o ambiente de sua juventude estudantil na São Paulo da década de 1880, Afonso de Carvalho afirmava que “com raras exceções, a capital paulista daquele tempo parecia bracejar numa onda de ceticismo e incredulidade”363. E o combustível intelectual desta vaga incrédula, contrária à igualmente forte vaga ultramontana, foi o imaginário antijesuíta, construído em outras terras e reapropriado por republicanos, liberais e maçons paulistas. Se os ultramontanos legitimavam sua prática cristianizadora apelando para a identificação entre jesuítas e nação, os grupos modernizadores laicizantes inverteriam o sentido do símbolo jesuíta, identificando-o a uma força reacionária e antiprogressista, voltada ao controle de corpos e consciências. Segundo o acurado estudo de Michel Leroy, aquilo que chama de “mito jesuíta”, esteio do imaginário antijesuítico dos nossos republicanos, apesar de começar a ser elaborado ainda no séc. XVI, foi retomado com forte intensidade na França da Restauração (1814-1830) e da Monarquia de Julho (1830-1848). Tratava-se de um mito político com repercussões literárias, sendo iniciativa de grupos liberais de diversos matizes, temerosos do retorno de aspectos do Antigo Regime, como o controle da Igreja sobre a cultura, a política e a sociedade em geral. Surgiu então uma série de escritos de natureza diversa (folhetins, romances, obras historiográficas, discursos parlamentares), escritos por figuras

363

Citação feita em artigo de jornal paulistano dos anos 1930 ou 40, sem referência do nome do periódico ou data de publicação, pertencente à coleção particular de Angelo Zioni, avô do pesquisador. Tratava-se de uma conferência realizada por Alvaro de Carvalho no Clube Piratininga, notório reduto de perrepistas durante o Estado Novo.

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de peso como os historiadores Michelet e Quinet, romancistas como Eugène Sue, Stendhal e Balzac e até políticos do porte de Thiers, todos identificando no inaciano o maior inimigo das conquistas revolucionárias e liberais364. Dentre todas estas obras, as que mais auxiliaram a difundir para um amplo público o imaginário antijesuíta foram os folhetins Mystères de Paris (1842) e principalmente Le juif errant de Eugène Sue. Esta última obra, começou a ser publicada em 1844, suspeitase que mediante o financiamento do liberal Thiers, interessado em identificar seu opositor, o doctrinaire Guizot, como defensor dos jesuítas. Nela, segundo Michel Leroy, “o leitor encontrava os principais elementos do mito jesuíta na França de 1832: a atividade prejudicial de uma sociedade secreta com numerosas e poderosas ramificações, a busca obstinada da riqueza e do poder através dos meios mais criminosos, a astúcia, a violência e a perseguição de uma família protestante de geração em geração, a obtenção de heranças, a influência exercida sobre as mulheres através da confissão.”365 E exatamente de Eugène Sue veio a principal inspiração simbólica da luta dos setores críticos paulistas contra os ultramontanos. No ano de 1866, imediatamente anterior à volta dos jesuítas de seu exílio pombalino, com a fundação do colégio São Luiz de Itu em 67, um grupo de liberais radicais criava na capital o periódico ilustrado e humorístico O Cabrião. Os editores Américo de Campos - boêmio inveterado, maçom, então liberal radical, e futuro republicano – Antônio Manoel dos Reis (que ironicamente seria, anos depois, editor de jornais católicos)366 e o ilustrador Angelo Agostini, davam início à imprensa satírica voltada a difundir o imaginário antijesuíta na província. Os personagens principais do periódico paulistano – Cabrião e Pipelet – eram inspirados diretamente no romance Mystéres de Paris em que Eugène Sue antecipava o antijesuitismo do Juif errant. Logo no primeiro número já apresentava caricaturas de jesuítas, afirmando com todas as letras, no número 2, que “O Cabrião foi criado para moer a paciência dos jesuítas, para amolar os vinagres, para enforcar todos os cascudos [membros do Partido Conservador]

364

LEROY, Michel. O Mito jesuíta. De Béranger a Michelet. Lisboa: Roma editora; 1999. Sobre a mitologia jesuíta ver também GIRARDET, Raoul. Op. Cit 1987. 365 LEROY, Op. Cit. p. 95,96. 366 Rápida biografia dos editores está em SANTOS, Délio Freire. “Primórdios da Imprensa caricata paulistana: O Cabrião.” In CABRIÃO: semanário humorístico editado por Angelo Agostini, Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis. Introdução Délio Freire dos Santos. S P: Ed. UNESP/Imprensa Oficial do Estado; 2000.

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existentes e por existir”367. O ataque conjunto aos ultramontanos e saquaremas, via imaginário antijesuíta, fazia parte de uma mesma estratégia simbólica de cunho essencialmente político levada a efeito pelos liberais radicais, logo bandeados para o republicanismo. Como O Cabrião, em 1876 também O Polichinelo, sob a direção do exrepublicano e abolicionista Luis Gama e com ilustrações de Vergara, dava continuidade ao ataque368. Também a imprensa republicana convencional se empenhava em atacar simbolicamente os ultramontanos. Como exemplo, a A Província de São Paulo, propriedade do mesmo Américo de Campos que anos antes fundara O Cabrião, em 1876, atacava as missões de Frei Caetano de Messina, os colégios católicos e ainda acusava o governo monárquico de ser condescendente com as imposições do Vaticano, apontando para o fantasma da união entre os poderes “despóticos” do trono e do altar369. Mas a guerra simbólica em torno da figura do jesuíta não ficou restrita aos jornais. Ela passou para o terreno historiográfico, modificando a forma de se representar o passado colonial paulista. A oposição entre abnegados jesuítas e colonos paulistas ambiciosos, que marcou a visão monárquico-indianista do passado paulista, passou a ser reavaliada. Pelo menos nos historiadores não alinhados com o ultramontanismo, o movimento foi de paulatina inversão da valoração: o jesuíta cada vez era menos valorizado enquanto o paulista antigo passava a ser representado sob um prisma tendencialmente positivo. O primeiro sinal da mudança aparece na obra de Azevedo Marques, a única do período a se basear em pesquisa documental original, desde 1872 já escrita, e somente em 1879 publicada, como ato de benevolência do Imperador à viúva do autor. Sua obra Apontamentos Históricos, formada por diversos verbetes sobre temas e personagens da história e geografia paulista, em diversos pontos questionava abertamente a obra de Machado de Oliveira. Azevedo Marques mesmo citando este autor monárquico, apresentava interpretações diferentes, principalmente no que dizia respeito aos jesuítas,

367

Idem, Ibidem. p. 10. O POLICHINELO. Ed. Fac-similiar./ introdução de Ana Maria de Almeida Camargo. São Paulo: Imprensa Oficial: Arquivo do Estado; 1981. 369 Respectivamente: “As Missões do Obscurantismo” 21/6/1876; “Funesta propaganda”, série de 5 artigos publicados de 6 a 14/12/1876; “Assunto Grave” 28/6/1876, onde se lê: “enquanto os grupos partidários agitam-se em volta das urnas de outubro(...) o gabinete de S. Cristóvão e o Vaticano preparam juntos a grande calamidade que deve reduzir o mísero povo brasileiro ao feudo terrível da intolerância, perseguição e 368

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aliás o verbete mais extenso dos Apontamentos, formado por 13 páginas. Entre a obra de um e outro autor havia a emergência do imaginário antijesuíta e a luta federalista, levando à modificação das representações do passado regional. Azevedo Marques ainda mantinha a diferenciação, consagrada pelos historiadores monárquico-indianistas do IHGB, entre os abnegados jesuítas dos primeiros tempos, e aqueles posteriores ao séc. XVII, mais preocupados com assuntos terrenos. Louvava, sem entusiasmo excessivo, os fundadores Nóbrega e Anchieta. Mas, ao contrário da maioria dos historiadores monárquicos, carregava nas críticas aos inacianos, detendo-se nos conflitos entre estes e os paulistas. Ao contrário da historiografia indianista que apresentava este conflito como o embate entre a defesa da liberdade pelos abnegados jesuítas contra a escravidão pelos ambiciosos paulistas, Azevedo Marques igualava moralmente os contendores, apresentando ambas as partes como movidas pelo mesmo objetivo: a defesa do interesse próprio. Na sua opinião, os jesuítas adotaram “vistas interesseiras”, sendo movidos pelo “desejo imoderado do próprio engrandecimento”370. A propalada “abnegação” jesuíta não passava, a seu ver, de “aparente brandura”: um dos tantos artifícios enganadores usados para vencer os paulistas. Porém, mais do que isso, os jesuítas mobilizaram contra os colonos de Piratininga “o monopólio da direção das consciências, meio infalível naquela época”371. Por fim, após a expulsão e restauração dos jesuítas na Capitania, estes seguiram no seu propósito de “sorrateiramente apoderar-se de tudo e de todos (tal parecia ser a missão da Companhia chamada de Jesus)”372. Nestas breves passagens, Azevedo Marques projetava na sua representação do passado paulista importantes componentes do mito jesuíta, conforme analisado por Michel Leroy: o da Companhia como “instrumento de conquista e do exercício de poder”; o da “hipocrisia” jesuíta que fazia da máscara o seu símbolo maior; e o do “controle das consciências”373 que os transformava nos maiores inimigos do livre pensamento. Contudo, o mais importante é que a desqualificação do jesuíta abria a possibilidade de absolver o

predomínio legal e consolidado da cúria ultramontana! É a grande política dos Bourbons e dos Papas: o mando social assente na compressão da consciência e sistemático abafamento intelectual dos povos.” 370 AZEVEDO MARQUES, Manuel Eufrásio de. Op. Cit. Vol 1. verbete “índios”. 371 Idem, Ibidem, Vol 2. verbete “jesuítas”, p. 17. 372 Idem, Ibidem, p. 27.

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colono paulista, o bandeirante caçador de índio, das acusações lançadas pela etnohistoriografia indianista. Em Azevedo Marques a absolvição está somente indicada, tendo sido plenamente realizada por outros dois autores do período que se apropriaram de suas pesquisas e com os quais compartilhava forte antijesuitismo: de uma forma moderada por Américo Brasiliense e de uma forma mais radical pelo futuro separatista Martim Francisco III. No seu compêndio escolar Lições de História Pátria, escrito em 1873, o republicano Américo Brasiliense dedicava parte significativa da obra para tratar especificamente da história paulista. Aí reforçava o imaginário antijesuíta vigente no período, tendo em vista reavaliar positivamente a figura do paulista antigo. Vale, contudo, ressaltar a postura moderada de Brasiliense, moderação e transigência também presentes em sua prática política374. Ao tratar do tema dos jesuítas, que mereceu destaque nas suas lições, o autor iniciava afirmando que sua posição perante os inacianos “está no justo meio”, nem ultralaudatória nem completamente depreciativa. De fato, Brasiliense segue Machado de Oliveira (constantemente citado) e toda a historiografia monárquica ao considerar os primeiros jesuítas - Nóbrega e Anchieta – como “verdadeiros agentes da civilização” por terem descoberto “o melhor sistema de catequese”375. Mas na maior parte da obra predomina um tom crítico aos jesuítas, amparado nas pesquisas de Azevedo Marques. Brasiliense construiu uma representação da atuação da Cia. de Jesus fortemente marcada pelo imaginário antijesuítico. Em sua obra aparece a idéia da conspiração jesuíta (“envolveu-se nas intrigas da corte, e chegou até, como dizem vários escritores, a tomar parte em conspirações”), da sua vontade irrefreável de mando (“procurando governar a sociedade, dominar o rei e os povos”), dos jesuítas como agentes a serviço da teocracia e desvirtuadores do verdadeiro cristianismo (“os jesuítas tornaram-se não os apóstolos do 373

LEROY, Michel. Op. Cit. Principalmente a Segunda Parte, “A imagem dos jesuítas e da Companhia de Jesus”, p. 119 a 229. 374 Apesar de republicano, chegou em 1878 a bandear para as hostes do Partido Liberal, quando este sobe ao poder na Corte, conseguindo inclusive um cargo como presidente de província. Sua vida política seria ainda marcada pelo episódio da indicação como presidente do estado de São Paulo, em 1891, sob sugestão do presidente Deodoro da Fonseca, contra a facção dominante do Partido Republicano Paulista (PRP) à qual anteriormente pertencia. No tempo que ficou no poder estadual, Brasiliense se indispôs com os demais republicanos paulistas por procurar integrar ao governo notórios monarquistas, vários deles restauracionistas, evidenciando sua propensão à transação política. 375 BRASILIENSE, Américo. Lições de História Pátria. São Paulo: Typ. da Província; 1875. pp26.

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espírito evangélico, mas antes os propagandistas de princípios que davam à autoridade religiosa uma supremacia indefinida”), todos tópicos do mito jesuíta376. Sob o prisma do antijesuitismo, o confronto entre colonos paulistas e inacianos tingia-se de outras cores: “Os paulistas, dotados de espírito empreendedor, levados pelas idéias do tempo, invadiram as missões dirigidas pelos jesuítas, e os perturbaram nesta feliz tranqüilidade em que viviam, aproveitando-se dos trabalhos das populações embrutecidas na subserviência e que só se moviam aos acenos de seus diretores.(...) Pede a verdade que se diga que ao menos a ignorância, o estado de infância intelectual, permita-se-me esta frase, em que se achavam os paulistas pode relevar seus erros. Estarão nas mesmas condições os jesuítas, que com a mais refinada hipocrisia preparavam, educavam, e alcançavam ter sob suas aldeias e trabalhando para eles os infelizes indígenas, mantidos no mais abjeto servilismo? Não certamente, a má fé não tem justificação: a ignorância pode merecer desculpa.”377 Se Azevedo Marques, anteriormente, havia equiparado moralmente bandeirantes paulistas e jesuítas, neste trecho Brasiliense ia além: invertia a valoração consagrada pela historiografia indianista. Os jesuítas passavam a ser acusados e os paulistas absolvidos. Os acusados passavam a ser os jesuítas, que intencionalmente transformavam as suas missões em exemplos de controle servil das consciências e corpos dos índios. Enquanto os paulistas, movidos pelo espírito empreendedor, eram absolvidos por sua pouca ilustração. Ao contrário da maioria dos cronistas coloniais, Brasiliense ressaltava o fato de a expulsão dos jesuítas pelos paulistas ter ocorrido a “13 de julho”, como a sugerir uma correspondência com o 14 de julho francês, o que simbolicamente transformaria o episódio paulista em uma versão regional da queda da Bastilha, o marco por excelência da luta contra o absolutismo. O “13 de julho” paulista – quando em 1640 os colonos expulsaram os jesuítas - era tomado como o evento emblemático do passado colonial regional que deveria ser relembrado pelas novas gerações. Brasiliense já podia colocar o paulista antigo no lugar de herói do qual havia sido destituído pelos historiadores indianistas, apontando-o como um exemplo de conduta para o presente:

376 377

Idem, Ibidem, respectivamente, p. 25; 25 e 24. Idem, Ibidem, p. 115.

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“Eu aplaudirei sempre essa virilidade de sentimentos dos paulistas das eras passadas. E se o jesuitismo moderno continuar na carreira, que trilha, procurando abertamente estabelecer, (...) sua preponderância ou dominação no país, eu não duvidarei achar-me ao lado daqueles que quiserem, imitando os antigos paulistas, reproduzir um 13 de julho, para conter os ambiciosos em seus desatinos. Em tais casos não vacilo em dizer - que pertenço ao partido da revolução.”378 No mais, nas Lições de História Pátria já se realizava aberto elogio ao “povo paulista, (...) [que] praticou memoráveis feitos revelando o espírito altamente empreendedor, de que era dotado”379. O tom laudatório da historiografia bandeirante já está presente nesta obra do começo da propaganda republicana, relegando ao passado as recriminações monárquico-indianistas ao bandeirante preador de índios. Porém, conforme indica no prefácio de sua obra, Brasiliense não tinha a intenção de publicar suas lições. Mas diante da insistência de José Maria Lisboa, o principal empresário editorial dos republicanos e responsável pela criação dos ALP, enfeixou-os em um volume, estrategicamente publicado em 1876, no contexto imediatamente seguinte ao debate da Questão Religiosa. As reações provocadas pela recepção do livro são bastante significativas da guerra simbólica que então se travava entre ultramontanos e republicanos380. Mas se Brasiliense irritava os ultramontanos com sua crítica ainda cheia de concessões à grandeza dos primeiros missionários (elogios estes que devem ter ajudado na sua aceitação como sócio correspondente do IHGB), motivo maior teriam aqueles de reclamar da obra do então jovem estudante de direito Martim Francisco Ribeiro de Andrada. Amigo por toda a vida de Capistrano de Abreu; membro de uma das mais

378

Idem, Ibidem, p. 98 Idem, Ibidem, pp 41. 380 O porta voz republicano APSP elogiava a perspectiva diferenciada de sua historiografia, que se distanciava de um tipo de história “muito acadêmico, muito próprio das instituições oficiais, e muito talhado para uso dos delfins”. Diferente desta visão, a obra de Brasiliense era identificada como uma “história por cujas páginas passou o sopro quente mas vivificante da democracia” na qual “o povo é o grande protagonista de seu livro, a liberdade é o Deus ex-machina que preside a história da humanidade” (“Lições de História Pátria”; APSP; 13/10/1876). Por outro lado, os católicos militantes não pouparam críticas ao livro. O núcleo da discórdia estava exatamente no tema jesuíta. O jornal O Apóstolo escrevia: “Pela rápida leitura que fizemos podemos afirmar que o ilustrado autor das Lições de História Pátria não descreve os fatos com aquela fidelidade que era para desejar e mostra-se assaz apaixonado quando fala da Cia. de Jesus, faltando à verdade histórica de um modo censurável. É pois nossa opinião que semelhante livro não pode de modo 379

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importantes famílias da elite paulista, o poderoso clã dos Andrada, historicamente ligados ao Partido Liberal da província, Martim Francisco III realizou no seu livro Precursores da Independência uma crítica vigorosa e sem concessões aos jesuítas, seguida do mais forte elogio dos paulistas antigos produzido no período da crise do Segundo Império. Escrito em 1874, o opúsculo, espécie de ensaio historiográfico, era a forma diferenciada de iniciação do autor no terreno das letras, servindo de preparação para sua carreira política que se iniciou no ano seguinte, quando foi eleito deputado provincial pelo Partido Liberal. O livro evidenciava a preocupação do autor com a consolidação da imagem do paulista como “exceção de progresso”, o que o levava a identificá-lo como sendo dotado, desde suas origens, de autonomia e liberdade. Este investimento na identidade regional, por sua vez, estava articulado à sua luta pela autonomia política da província que o levaria, em meados dos anos 1880, a romper com a Monarquia e aderir à causa republicana e separatista381. Neste momento ainda inicial de sua luta autonomista, Martim Francisco III se valia do imaginário antijesuíta para apresentar uma nova imagem positiva do paulista, ligando-o aos valores modernos da luta contra a tirania do altar e do trono. A obra se articulava em torno de três eixos temáticos: a expulsão dos jesuítas da capitania de São Paulo em 1640, a aclamação de Amador Bueno e a Guerra dos Emboabas. A que mereceu mais atenção por parte do autor foi o episódio, tornado emblemático pelo imaginário republicano paulista, da expulsão dos jesuítas pelos colonos paulistas, sobre o qual me concentrarei neste tópico. O elemento mais importante da representação do passado paulista elaborada por Martim Francisco, é a identificação, na época colonial, de um período de autonomia e semi independência na Capitania de São Paulo. Ao contrário de Saint Hilaire, que entendia esta “liberdade primitiva do paulista” como decorrência do sangue indígena, Martim Francisco a explicava através de argumentos históricos, remetendo-se à União Ibérica de 1580 que “se foi dura para Portugal, abriu um período de felicidade para o Brasil, e principalmente

algum servir de compêndio nas escolas, por que não está escrito com a verdade e imparcialidade que requerem tais livros.” (Apud APSP, 1/11/1876.) 381 Sobre o separatismo paulista de 1887 e a trajetória de Martim Francisco ver ADUCCI, Cássia. A Pátria Paulista. Após a proclamação da República, Martim Francisco desiludiu-se com o novo regime, tendo se reconvertido ao monarquismo nos primeiros anos do séc. XX.

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para a capitania de São Vicente”382. Com a submissão do reino português ao espanhol, as colônias americanas pouca atenção recebiam, com exceção daquelas produtoras de metais preciosos como México e Peru. Para Martim Francisco, “isto foi paulatinamente acostumando os vicentistas a contar somente com suas próprias forças para a continuação da guerra encarniçada contra os indígenas, para a fundação de novas colônias”383. Formava-se um espírito autônomo e uma prosperidade que distinguia, no período colonial, os paulistas dos demais brasileiros. “À frente das outras capitanias estava a de São Vicente. Estremava-se ela das suas irmãs em prosperidade, em riqueza, em população e sobretudo em colonização”384. Martim Francisco simplesmente projetava para o séc. XVI a riqueza da São Paulo cafeeira de finais do XIX, representando o período colonial como uma época de prosperidade e autonomia, que somente não pôde ser transformada em uma verdadeira “época de ouro” por que a isso se antepôs o chamado “partido jesuíta”. Contra os inacianos Martim Francisco mobilizava todo o imaginário antijesuíta, tanto aquele moderno, quanto aquele de origem pombalina, aqui reincorporado pela obra dos cronistas coloniais paulistas, principalmente Pedro Taques, agora novamente valorizado. Começava por afirmar a negatividade intrínseca à Companhia, afirmando a impossibilidade de defesa de qualquer de seus atos: “Obstáculo fortíssimo ao progresso humano, inimigos dos movimentos liberais (...) os jesuítas nulificaram sempre, é verdade, as justas tentativas dos espíritos adiantados, mas contra eles eleva-se o espectro das gerações que se lhe seguiram gravando em sua face o estigma do desdém! Bem poucas instituições humanas tem sido julgadas em tão merecida sentença! Há atualmente quem possa dizer que a Companhia de Jesus prestou serviços por exceção; não existe, porém, quem tente defender o jesuitismo em suas bases e os jesuítas em seus atos.” Para Martim Francisco os jesuítas eram indefensáveis. E contra quem afirmava o contrário, o autor mobilizou todos os argumentos de que dispunha, realizando a crítica mais radical de sua época à Cia. de Jesus. Martim Francisco duvidava que os jesuítas viessem

382

ANDRADA, Martim Francisco Ribeiro de. Op. Cit. 1874. P. 6 Idem, Ibidem, p. 6. 384 Idem, Ibidem, p. 7. 383

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para catequizar os indígenas385; acusava Nóbrega e Anchieta de consolidarem o “absolutismo teocrático” da Cia. de Jesus no Brasil; considerava a sua entrada na Capitania de São Vicente como uma “invasão”; e, invertendo os termos da acusação lançada pelos historiadores indianistas contra os paulistas, chegava a acusar os jesuítas de serem os verdadeiros organizadores das Bandeiras caçadoras de índios386. O jovem Andrada realizava assim uma representação do passado paulista profundamente maniqueísta. A radicalização das posições políticas no contexto do embate entre grupos críticos e ultramontanos em torno da laicização do Estado brasileiro, levava o jovem Martim Francisco III a representar o passado regional como a contraposição de “maus jesuítas” e “bons colonos paulistas”. Para Martim Francisco III, a heroicidade do paulista estava exatamente na expulsão dos jesuítas da capitania, que acusa de terem se transformado em cobiçosos “senhores de engenho” interessados em impor a toda a sociedade o seu domínio de natureza teocrática: “Parece assunto digno de profunda meditação o aniquilamento do poder teocrático de uma sociedade que não estava ainda regularmente constituída. Todas as nações que ensaiam os primeiros passos na vida política curvam a cerviz diante da figura do padre, quer seja este um sacerdote sincero, quer um fingido adepto de teorias que não compreende. O sobrenatural é a origem do despotismo! Entretanto os paulistas marcharam por um caminho diverso: nas primeiras horas de sua existência social trabalharam para alcançar a liberdade religiosa.”(grifos meus) A identidade paulista por ele descrita é uma identidade marcada pelos valores modernos da luta contra o despotismo e a teocracia, e uma modernidade projeta no passado regional, sendo assim integrada, por intermédio da explicação historiográfica, à própria natureza invariável do paulista. O autor representava a luta entre colonos paulistas e jesuítas sob o original viés interpretativo da matriz liberal, como sendo a luta entre os valores universais da liberdade contra o despotismo, do progresso contra o atraso, 385

“Que vinham eles fazer ao Brasil? Catequizar os indígenas, responderão os seus defensores. Mas a diversidade de linguagem não seria um obstáculo insuperável a este desígnio, que seria nobre se tivesse existido na mente cobiçosa dos paladinos da consciência alheia?(...)”Ibem, Ibidem, p. 14. 386 Martim Francisco citava trecho de Antonio Henriques Leal, outro expoente do antijesuitismo: “Em vez de conversos e atraídos (os índios) ao grêmio da civilização, moviam-lhes guerra os padres, organizando bandeiras ou descidas, verdadeiros corpos militares, para os caçar como feras, preá-los e conduzi-los manietados às missões, onde reduzidos ao mais duro cativeiro eram empregados (...) e castigados rigorosamente quando se esquivavam do trabalho” Idem., Ibidem pp 16.

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identificando o primeiro polo positivo sempre com os paulistas. A tradição que o jovem Andrada construía para São Paulo era uma tradição afinada com os valores modernos da democracia, autogoverno e defesa da liberdade de pensamento, em evidente contraste com as demais regiões do Brasil. Para afirmar esta “tradição de modernidade”, Martim Francisco III procurou negar toda e qualquer presença jesuíta na formação paulista, chegando até mesmo a destituir Nóbrega e Anchieta do posto de “fundadores” de Piratininga387. Baseando-se no livro de Martim Francisco, o romancista republicano Júlio Ribeiro, que chegou a se converter ao protestantismo, também contribuiu com sua pena para o movimento de desqualificação dos inacianos e louvação dos antigos paulistas. Mediante o incentivo do republicano Francisco Quirino dos Santos, Ribeiro enfeixou em livro os capítulos que publicara anteriormente em jornal de Sorocaba, publicado com o nome de Padre Belchior de Pontes388. Esta obra parece ter desempenhado, para o ambiente da província de São Paulo, papel vulgarizador correspondente àquele desempenhado pelo Juif errant de Eugéne Sue para o ambiente parisiense. Seria interessante confrontar o folhetim de Ribeiro com o romance indianista Os Guaianás, de Couto de Magalhães, cuja análise vimos anteriormente. Num certo sentido, o republicano Padre Belchior de Pontes (1876) invertia o sentido da trama do indianista Os Guaianás (1860). Enquanto este narrava a história de colonos paulistas “ambiciosos” e “lascivos” que impediam o amor (consagrado pelos jesuítas) de dois jovens índios guaianás, numa alusão à síntese original do “povo paulista”, o livro de Júlio Ribeiro narrava a História de cruéis jesuítas que, para realizar o seu plano de criar uma Teocracia Universal a partir do planalto de Piratininga, acabavam separando os jovens paulistas apaixonados Belchior de Pontes e Branca Rodrigues. No primeiro romance, a tensão se dava entre bons índios e jesuítas contra maus colonos paulistas; no segundo, os jesuítas se transformavam no pólo negativo enquanto os paulistas eram o positivo, vítimas dos

387

Segundo o autor, “São Paulo de Piratininga fundada em 1553 por Teviriçà, João Ramalho e demais colonos provenientes de São Vicente”. Para Martim Francisco os jesuítas chegam depois da vila ter sido fundada. Idem, Ibidem, p. 7. 388 Ver introdução da obra, “ Ao Leitor” in RIBEIRO, Júlio, Padre Belchior de Pontes. RJ: Ediouro; s/d -a

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primeiros; os índios quase desapareceram da trama, somente sendo lembrados por seu espírito traiçoeiro389. No romance de Julio Ribeiro, por meio de mil astúcias, o geral da ordem conseguia fazer com que o jovem plebeu Belchior – descrito como um típico paulista antigo, ágil e intemerato – fosse incorporado como membro da Companhia de Jesus, impedindo, para toda a vida, a consumação de seu amor por Branca Dias. O livro se estruturava assim em torno da narração da transformação do paulista Belchior em jesuíta, descrevendo os efeitos perniciosos da introjeção do fanatismo jesuítico na alma do paulista, representada como naturalmente nobre e independente. Ribeiro contrapunha a liberdade do paulista à disciplina jesuítica, descrevendo esta como “um minotauro moral que lhe devorava as afeições”. Como bem ressalta Antônio Celso Ferreira390, neste romance, Júlio Ribeiro já prenunciava a crítica à repressão das paixões que marcou A Carne, seu romance mais polêmico e conhecido, considerando-a porém sob o prima do imaginário antijesuítico. Além da representação minuciosa dos efeitos negativos do jesuitismo para a vida pública e privada do povo paulista, Ribeiro também abordava o tema da Guerra dos Emboabas, que estudaremos melhor no próximo tópico. Com Belchior de Pontes, o autor concluía um conjunto de produções simbólicas sobre o passado paulista que, para o acanhado ambiente cultural em que ocorreu, não deixa de merecer algum destaque. Ao contrário do longo período do séc. XIX anterior aos anos 1870, que viu a publicação na província de duas obras que abordavam o tema da São Paulo colonial - o Quadro histórico (1864), de Machado de Oliveira, e Os guaianás (1860), de Couto de Magalhães - os quatro anos que vão de 1872 a 1876 viram a finalização de quatro obras que conferiam destaque ao estudo do passado regional, evidenciando um investimento simbólico inédito da elite paulista na construção de uma identidade para São Paulo, investimento este contemporâneo à luta pela autonomia política regional.

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Ribeiro, ao descrever a cena em que um escravo ladrão deve ser açoitado mas não encontra ninguém que o queira fazer de bom grado, divaga sobre a alma indígena: “Para vergonha da Humanidade há sempre um judas que por trinta moedas de prata atraiçoa seu amigo, seu mestre(...) Aliciados pela esperança de mesquinha retribuição três índios mansos e um preto apresentam para desempenhar o horroroso mister.” Idem, Ibidem. p. 115. 390 Para uma análise completa do romance Padre Belchior de Pontes, ver. FERREIRA, Antônio Celso. Op. Cit. 1998 p. 132-149.

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Em um contexto em que a luta pela laicização do Estado e da sociedade eram uma das reformas modernizadoras mais reivindicadas, uma das formas de afirmar o caráter livre e progressista do paulista, moderno até, foi relembrando a sua participação na expulsão dos jesuítas de sua capitania. O antijesuitismo foi o meio encontrado pela elite republicana paulista para romper com a visão monárquica do passado paulista, e absolver o paulista antigo da condenação lançada pela historiografia indianista. Ele afirmava o caráter livre e independente do povo paulista diante do despotismo teocrático representado pelas forças do altar. Visando complementar esta explicação de caráter histórico sobre a exceção paulista, a elite também se empenhou em mostrar a liberdade paulista diante do poder do trono. Os homens de letra regionais voltaram então sua atenção para os episódios da Aclamação de Amador Bueno e a guerra dos Emboabas, envolvendo-os em uma narrativa de cunho nativista.

5. 3. b- Os paulistas contra a Coroa: A Guerra dos Emboabas ou a negação de Amador Bueno.

Outro tema que concentrou a atenção dos autores paulistas dos anos 1870 e 80 foi o do combate entre colonos paulistas e portugueses pela posse das minas de ouro durante o séc. XVIII, episódio conhecido como Guerra dos Emboabas. No tratamento dado ao tema, os autores empregaram um enfoque nativista, utilizando-o, porém, com o propósito de engrandecer a figura do paulista antigo. Rogério Forastieri estudou os diversos e contraditórios sentidos que a historiografia brasileira aplicou ao nativismo. Na maioria da vezes os movimentos nativistas são identificados como aqueles que visam “fundar os alicerces da nacionalidade”, ocorrendo principalmente no período colonial.391 Seriam os momentos de emergência de uma consciência nacional brasileira, marcados pela oposição à metrópole e a busca de autonomia, o que os transformava em “precursores da independência” nacional, termo não por acaso adotado como título do livro de Martim Francisco. Forastieri identifica, no século

391

FORASTIERI, Rogério. Colônia e Nativismo. A história como “biografia da nação”. SP: HUCITEC; 1997.

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XX, a maior incidência do enfoque nativista na nossa historiografia. Contudo, sua emergência se deu no séc. XIX, sendo encontrada no interior do IHGB, onde parece ter se iniciado com o programa escolhido na 83 ª sessão, no ano de 1842, que questionava sobre “quais foram os indivíduos que primeiro tentaram obter a independência do Brasil”. O enfoque nativista surgia aí como um do pontos centrais do discurso nacionalista que caberia à historiografia monárquica construir392. No cerne da abordagem nativista está a visão característica da matriz historiográfica liberal que identificava na oposição autoridade X liberdade o motor e a chave explicativa da história nacional. Mais precisamente, o enfoque nativista pode ser compreendido como a junção de um sentido patriótico, nacionalista, a esta matriz liberal na medida em que o embate é entendido como luta do povo brasileiro em busca de sua liberdade contra a autoridade absolutista da Coroa Portuguesa. Este caráter ao mesmo tempo liberal e patriótico do nativismo auxilia a explicar o sucesso que este enfoque assumiu nas representações do passado elaboradas por republicanos. Ele era adequado a um regime – a República - que propunha outra legitimidade baseada exclusivamente na “causa democrática”, em que o “povo” era apresentado como a única fonte do poder. Por isso ele seria o principal agente da história contra um poder tirânico externo, sendo a figura de Tiradentes – entendido como mártir do povo brasileiro em busca de sua liberdade contra a tirania da coroa portuguesa - o ponto alto do enfoque nativista sob o prisma republicano. Também entre os republicanos paulistas o enfoque nativista foi mobilizado na luta simbólica contra a autoridade monárquica, coincidindo, porém, com um viés regionalista na medida em que procuravam mostrar que o primeiro movimento de autonomia nacional, o ponto zero da liberdade brasileira, havia ocorrido em São Paulo. Procuravam assim trazer para São Paulo o mérito de ter sido berço da liberdade nacional, que os republicanos cariocas atribuíam às Minas Gerais de Tiradentes. Para isso, concentraram as atenções no episódio da Guerra dos Emboabas, abordado com destaque na segunda parte dos livros

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Segundo a ótica nacionalista adotada pelos historiadores oitocentistas, que somente há poucos anos começou a ser contestada, a nação brasileira, assim como a consciência de seu pertencimento, antecediam à formação do Estado Nacional brasileiro, cabendo ao historiador exatamente indicar os momentos em que emergia pela primeira vez esta consciência nacional. Da perspectiva contemporânea considera-se o enfoque nativista como um anacronismo vinculado pela historiografia nacionalista, na medida em que esta transfere para o passado colonial uma consciência de pertencimento à nação brasileira que somente começa a tomar forma nos anos 1820, conforme atestam pesquisas de JANKSÓ & PIMENTA. Op. Cit. 2000.

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Precursores da Independência (1874), de Martim Francisco III, e Padre Belchior de Pontes (1876), de Júlio Ribeiro. Anteriormente, um autor monárquico e liberal como Machado de Oliveira havia se detido longamente no episódio da Guerra dos Emboabas, sem, contudo, conferir-lhe qualquer sentido nativista ou de afrontamento à coroa393. Postura inversa seria realizada pelos autores “democráticos”, que se apropriaram do acontecimento para conferir-lhe um sentido anti-monárquico. A desqualificação da monarquia bragantina já estava dada desde a primeira frase com que Martim Francisco iniciava o tratamento do episódio, ao afirmar que “muitas páginas de sangue escreveram os reis portugueses nos anais da história brasileira”. E ela continuava ao longo do texto, manifestando-se principalmente nas críticas ao “regimento despótico” que os reis portugueses impuseram à região das minas com o propósito de cobrar os impostos sobre a produção do ouro. “Quantas mortes não praticaram os potentados governadores para assegurar ao rei o pretenso direito de quintação?”, questionava-se Martim Francisco III394. Na obra deste autor, os delegados da coroa metropolitana eram apresentados como inimigos da riqueza dos colonos, sendo descritos como “gatunos” e a cobrança dos impostos qualificada de “gatunice do governo”

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. A desqualificação da imagem da

autoridade monárquica estatal, realizada por Martim Francisco, apelava para o sentido despótico inerente à tributação, algo que deveria surtir grande impacto na elite produtora paulista de finais do séc. XIX, tão empenhada como estava em criticar exatamente os aspectos tributários da centralização monárquica. Agindo sob a autoridade da Coroa havia ainda os Emboabas, portugueses que recebiam reforços do Rio de Janeiro e do Norte. Na busca de se apoderar das riquezas dos colonos da terra, emboabas e agentes da Coroa entram em choque com colonos paulistas. Estes eram descritos, mais uma vez, sob o prisma da liberdade, independência frente ao poder monárquico e energia evidenciada pelas expedições pelo sertão. Os paulistas 393

ver OLIVEIRA, José Joaquim Machado d’. Quadro Histórico da província de São Paulo. São Paulo: Governo do Estado; 1978. 394 ANDRADA, Martim Francisco R. de. Op. Cit. p. 56. 395 “Para os homens governadores da colônia em nome da metrópole, a riqueza era um crime, a prosperidade um atentado sem qualificação: o ouro encontrado lhes turbava a vista, lhes sugeria o desejo de aumentar os bens dinheirosos, e os enviados dos reis portugueses transformavam-se em gatunos!” Idem, Ibidem p. 53. “Além disso, os enormes impostos estabelecidos pela gatunice dos governos, (...) apresentou na prática um estado onerosíssimo para os povos.” Idem, Ibidem, pp 62.

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haviam estabelecido em Minas Gerais um governo semi-independente do Rio de Janeiro, contribuindo para o conflito com a coroa e os emboabas. Este conflito era descrito por Martim Francisco como um embate entre os emboabas “depositários do poder” e os paulistas defensores da “independência dos cidadãos”396. Por seu turno, Júlio Ribeiro seguia de perto as representações presentes na obra de Martim Francisco, à qual se remetia nominalmente, aprofundando, porém, a oposição liberdade X autoridade, além de conferir um caráter patriótico e nacionalista ao evento: “Enfim representadas pela vez primeira por dois exércitos defrontavam-se a metrópole européia e a colônia americana. (...) Encastelados no forte, alapardados por trás de suas muralhas como uma idéia retrógrada em consciência poluta, os Europeus dir-se-iam o transunto dos evos caliginosos, do monarquismo feroz, do espírito do passado. Avançando de peito aberto, leais, temerários, poderiam considerar-se os Americanos a encarnação do verbo da liberdade que se espaneja ao sopro da revolução, como um filhote de águia aos raios quentes do sol. Antagonismo implacável – no forte os Emboabas, grupo de titãs do realismo; no campo os Paulistas, legião de gonfaloneiros da democracia; no forte o direito dinástico; no campo, os forais do povo; no forte os tempos de Luiz XI; no campo, a aurora de noventa e três.”397 Pela ardorosa pena de Júlio Ribeiro, o episódio da guerra dos emboabas colocava em confronto duas legitimidades diferentes: de um lado a liberdade democrática dos colonos americanos/paulistas e, de outro, o monarquismo atrasado da metrópole européia398. O autor não deixava dúvida sobre o sentido político do tratamento do episódio da Guerra dos Emboabas.

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“A resistência aos depositários do régio poder, a reunião de exércitos, a autonomia individual, a iniciativa por parte daqueles que preferiam o mando à obediência, o medo dos governadores que vinham ao Brasil pobres como Jó e tornavam à pátria perfeitos Crasos, e ainda outros acontecimentos ensinaram aos emigrante [paulistas] que a independência do cidadão é a sólida base onde se levanta o edifício de um povo livre!” Idem, Ibidem, p. 62,63. 397 RIBEIRO, Júlio. Padre Belchior de Pontes. 398 Estudando o discurso republicano na imprensa paulista dos anos 1870 e 80, Silvana Mota Blanco afirma que “a oposição soberania real versus soberania popular perpassava os artigos do Correio, do Diário e da Gazeta, denotando que o discurso republicano, em seus mais diferentes matizes, apoiava-se nesse princípio comum.”evidenciando as articulações entre discurso político republicano, mesmo que fosse do ainda monarquista Martim Franscico III, e representação do passado. BLANCO, Silvana Mota B. “República das

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Num contexto de luta contra o estado monárquico centralizado, os autores ligados ao republicanismo, e que se destacariam anos depois como expoentes do separatismo, decidiram relembrar às novas gerações o episódio da Guerra dos Emboabas, conferindo-lhe um sentido anti-monárquico, provincianista (em Martim Francisco III, tendencialmente separatista) e filopopular. Invertia-se completamente o sentido antipopular, pró-unitário e pró-monárquico que autores monarquistas atribuíram ao episódio da Aclamação de Amador Bueno. Amador da Veiga, herói da guerra dos emboabas, era apresentado como o anti-Amador Bueno, o paulista que recusou o poder. Os autores republicanos alteravam a forma de representar a identidade regional, procurando romper com a idéia do “paulista fiel à monarquia”, substituindo-a pela do “paulista livre e independente”, ou, nas palavras de Ribeiro, do paulista como “gonfaloneiro da democracia”. No seu entusiasmo “democrático” Martim Francisco chegava mesmo a contradizer abertamente a opinião de literatos monárquicos do IHGB, como Cônego Fernandes Pinheiro, afirmando que “São Paulo, apesar da opinião em contrário sustentado pelo sr. Cônego Pinheiro, era a terra donde partiam homens armados e aguerridos, onde a fidelidade à monarquia lusitana manifestava-se em mínima escala”399(grifos meus). Diante deste ataque simbólico sistemático à identidade regional monárquica, os republicanos não deixaram de abordar diretamente a figura de Amador Bueno, símbolo maior desta identidade. Mais uma vez, Martim Francisco, na mesma obra Os Precursores da Independência, foi o que mais a fundo tratou do tema. O autor manteve a afirmação da historiografia monárquica de que o episódio da aclamação fora obra dos espanhóis residentes na capitania, mas rompeu com a desqualificação completa do movimento realizada por aquela. Primeiramente, a restauração bragantina era apresentada não como garantia da paz e unidade da nação futura (como queria Varnhagen), mas como “a volta ao jugo português”, após largo período de semi-independência para a capitania de São Vicente. Martim Francisco também não desqualificava o pensamento de separação de São Paulo, implícito no episódio da Aclamação, revelando clara tendência separatista de seu letras: discursos republicanos na Província de São Paulo.” Campinas: dissertação de mestrado, dept. História IFCH-Unicamp; 1995. Pp 68. 399 Idem, Op. Cit., 1874. p. 63.

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provincianismo. Na sua opinião, “alguém poderá acoimar de desvario e loucura semelhante idéia [separação de São Paulo] ? Acreditamos que não.”400 Sob o enfoque federalista e “democrático” do jovem Andrada, Amador Bueno - condenado por ter preferido ser vassalo a tornar-se rei - era desbancado do altar em que havia sido posto pela monarquia. Adotando um ponto de vista estritamente provincianista, Martim Francisco negava o patriotismo de Amador Bueno, e questionava sua fidelidade, atacando diretamente o símbolo maior do paulistanismo monárquico401. Juntamente a esta desqualificação de Amador Bueno, os discursos políticos republicanos fizeram, diversas vezes, menção elogiosa ao episódio de sua aclamação, mas sob uma nova leitura, em que aquilo que era louvado não era a abnegação e fidelidade de Amador, mas sim a iniciativa autonomista e de independência diante da Coroa dos antigos paulistas que o aclamaram. Como um exemplo entre vários, segundo Joseph Love, o republicano Martinico Prado afirmava na Assembléia Provincial “a grandeza e independência do caráter paulista” que havia aclamado Amador Bueno rei de São Paulo em 1640402, com o intuito de indispor seus coprovincianos com a monarquia. Quando não desqualificado, o símbolo Amador Bueno era ressignificado, transformando-se, a sua aclamação, em evento de caráter “democrático” e filopopular.403 Contudo, é importante considerar que os diversos episódios do passado paulista privilegiados pelos autores republicanos – a expulsão dos jesuítas, a Guerra dos Emboabas, e a tentativa de aclamação de um rei paulista em 1640 – eram entendidos como dotados de uma unidade. Eram vistos todos como manifestações diferentes de uma mesma época. Eles 400

O autor apresentava a separação como uma possibilidade tentadora: “A preponderância exercida pelos filhos de Piratininga sobre os de outras capitanias, as suas riquezas, a sua valentia, o terror que seu nome inspirava, as dificuldades que encontrariam os exércitos da metrópole para debelar os revoltosos, a facilidade de defesa que a posição especial da futura nacionalidade apresentava e ainda outras causas fariam estabelecer-se solidamente e defender-se com eficácia o trono de que Amador Bueno seria rei se não tivesse preferido ser vassalo!” Idem, Ibidem, p. 37. 401 Para Martim Francisco, Amador não seria patriota por que “o patriotismo prende o indivíduo ao lugar do nascimento (...). E Amador Bueno com a sua recusa insistente acarretou o atraso de seus patrícios, não atendeu às necessidades de seu berço natal”. Também tinha sua fidelidade questionada: “Seria um súdito fiel? Talvez... mas fiel a quem? Ele descendia ao mesmo tempo de espanhóis e portugueses; qual seria o móvel de sua simpatia para com os derradeiros? ”. Idem, Ibidem, p. 41. 402 LOVE, Joseph. Op. Cit., 1982. p. 107. 403 O episódio da aclamação era relembrado, com este novo sentido, também por Júlio Ribeiro no contexto do embate separatista ao afirmar que “tempo houve em que nós aclamanos um rei paulista, em que nós expulsamos de Piratininga os jesuítas que a queriam dominar.... Não seremos mais os mesmos? Terá degenerado o sangue dos velhos bandeirantes, que nos correm nas veias?” RIBEIRO, Júlio. Procelárias. São Paulo: ed. Cultura brasileira; s/d. p. 99.

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apontavam para a definição ainda tênue e fragmentária de uma representação a respeito do passado colonial paulista, apresentado como uma época de ouro, que se caracterizaria por uma maior liberdade e autonomia e que esboçaria os contornos de uma democracia primitiva paulista, representada, entre outras coisas, pelo vigor das Câmaras Municipais locais. Dentre todos os autores que abordaram o tema, novamente Martim Francisco III foi o que conferiu um tratamento mais preciso. No seu livro Precursores da Independência, ao abordar a expulsão dos jesuítas, dava forma, pela primeira vez, a um ponto central da visão republicana da história de São Paulo, que seria reelaborado posteriormente pelos autores perrepistas (membros do PRP) Washington Luís e Alfredo Ellis Jr: o da existência na Capitania de São Paulo de um período colonial livre e independente, não sujeito ao despotismo do estado metropolitano, que vigorava nas demais regiões do país. Martim Francisco identificava, na expulsão dos jesuítas, um mito de origem de uma a “democracia paulista”: “A expulsão dos jesuítas foi o primeiro movimento democrático de nossa pátria. Há lugares predestinados... A província de São Paulo é assim”404. Assim, o autor procurou definir as origens da liberdade paulista, balizando cronologicamente um período no qual São Paulo assumiria uma situação de semi independência, identificado como tendo início com a União Ibérica de 1580. Em Martim Francisco ainda não se trata de verdadeira idade de ouro, por que os Jesuítas presentes na capitania impediam a completa autonomia paulista, o que levou ao movimento de sua expulsão. Nos poucos anos entre a expulsão dos jesuítas(1640) e sua restituição(1653) Martim Francisco vislumbra a sua efêmera idade de ouro paulista, quando, além do crescimento econômico por que passava a capitania, o autor sugeria um revigoramento da vida municipal. “Bons tempos eram aqueles em que as Câmaras Municipais livremente eleitas formavam um baluarte inexpugnável dos direitos da plebe!”405. Também Júlio Ribeiro identificava na São Paulo colonial a vigência de um espírito democrático, evidenciado nas diversas descrições de ajuntamentos populares, reuniões e conselhos onde os paulistas discutiam as medidas a tomar na luta contra os despóticos emboabas. Descrevendo um destes concelhos setecentistas, verdadeira transposição

404 405

ANDRADA, Martim Francisco. Op. Cit, 1874. . Idem, Ibidem. p. 34.

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retrospectiva dos meetings republicanos, Ribeiro fazia evidente profissão de fé em defesa da soberania popular, quando colocava na boca do paulista Amador Bueno da Veiga (neto do aclamado) as seguintes palavras: “Chefe vosso por vontade vossa, eu sou igual a cada um de vós, e a congregação de nós todos é que é verdadeiramente soberana. Legislar sem vossa placitação [sic] seria usurpar um direito que me não pertence”406. Com passagens como esta, complementadas ainda com frases de efeito como “no exército paulista ninguém governa” ou “os paulistas não têm chefe”407, pronunciadas por orgulhosos paulistas diante de atônitos emboabas, Ribeiro reforçava a idéia de um passado democrático e livre em Piratininga, um passado que fazia do paulista um “gonfaloneiro da democracia”. Mas a principal referência a respeito da existência de uma democracia primitiva na São Paulo colonial veio do republicano Américo Brasiliense. No seu livro O programa dos Partidos no Segundo império, de 1878, em que definia o programa e a trajetória das agremiações políticas então existentes, deu destaque aos republicanos de São Paulo. Ao contrario do que fez com todos os outros partidos, Brasiliense lançou para o passado colonial paulista as origens do movimento republicano de São Paulo: “É certo entretanto que em seu passado se encontra uma série de fatos, revelando a altivez e independência do espírito paulista, o seu entusiasmo pelos princípios liberais, e notavelmente uma expansão da vida municipal, fecunda em benefícios, e admirável relativamente aos tempos, que eram de pouca ilustração. Não se prendiam as municipalidade a considerações de hierarquia administrativa, não perdiam o tempo em consultas às autoridades superiores, não pediam a estas as aspirações para bom procedimento. (...) Se apareciam casos em que medidas de certa gravidade deveriam ser postas em prática, (...), as câmaras não procediam só por sua deliberação. Então convidavam o povo para uma, e às vezes mais reuniões, apresentavam a idéia, ouviam pareceres, e afinal punham em execução aquilo que havia sido decidido por todos ou pela maioria. As câmaras associavam assim à sua a responsabilidade dos munícipes.”408 (grifos meus)

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RIBEIRO, Júlio. Op. Cit. s/d-a. p. 112. Idem, Ibidem, p. 149. 408 BRASILIENSE, Américo. O programa dos partidos e o segundo império. São Paulo: Tip.Jorge Stockler;1878; p. 96, 97. 407

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Desta descrição do funcionamento das Câmaras na São Paulo colonial, Brasiliense apresenta o retrato acabado da democracia primordial paulista. E ao estabelecer uma relação direta entre esta democracia primordial e a criação do Partido Republicano Paulista (PRP), Brasiliense conferia um sentido político preciso para a sua representação do passado, transformando o tema da democracia primordial paulista em um mito de origem perrepista. Arrematava-se assim o primeiro esforço dos republicanos em definir uma outra representação do passado colonial paulista, diferente da monárquica. Os diversos episódios do passado privilegiados para estudo, apontavam para uma imagem dos primórdios de São Paulo como uma verdadeira Idade de Ouro, marcada pelo isolamento e maior independência e autonomia frente à Coroa portuguesa absolutista. Os autores republicanos, ainda de forma precária e limitada, esboçavam a idéia da existência de uma democracia primitiva na Piratininga seiscentista. Inventavam uma outra tradição para São Paulo, uma tradição de independência frente à autoridade estatal monárquica. E para tanto tiveram que atacar e desqualificar os personagens e episódios do passado sobre os quais se assentava o paulistanismo monárquico: o jesuíta e Amador Bueno. Se o pensamento liberal do período identificava no despotismo colonial ibérico uma das principais causas do atraso brasileiro, os republicanos paulistas ressaltavam que São Paulo tivera outra formação, baseada num passado colonial livre e democrático. Da mesma forma que Tocqueville declarara que a chave para explicar a democracia dos EUA estava na liberdade de suas origens coloniais, identificadas com a predominância do governo comunal, célula do self government, os republicanos paulistas - sem qualquer referência direta ao autor francês que, contudo, bem conheciam - dedicaram-se a inventar uma tradição de liberdade, independência e democracia para São Paulo, marcada por uma versão própria do self government, identificada com as Câmaras Municipais. De forma mais específica, esta nova representação do passado colonial paulista foi usada para legitimar a identificação entre os paulistas e a causa republicana, transformando o tema da liberdade primitiva do paulista, ao mesmo tempo na fundamentação da identidade regional paulista e também em um mito de origem perrepista. Mas não era somente a história – através da luta contra o despotismo do trono (emboabas) e do altar (jesuítas) - que explicava a exceção paulista. Afinados com as teorias

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deterministas vigentes no período, uma vez iniciado o movimento separatista em 1887, os republicanos paulistas mobilizam a ciência, procurando explicar a exceção paulista através da “raça” e do “meio”. 5.4. Separatismo paulista: “meio” e “raça” explicam a exceção Paulista.

Como vimos no tratamento da Guerra dos Emboabas por Martim Francisco III e Júlio Ribeiro, a representação historiográfica elaborada pelos autores republicanos, por meio da utilização de um viés nativista, procurava aliar as dimensões do regional e do nacional. A perspectiva nativista presente nas obras analisadas de Martim Francisco III e Júlio Ribeiro não apresenta a identidade regional como contraposta e irreconciliável à identidade nacional. Ao contrário disso, o regional se valorizava pela centralidade que assumia na construção do nacional. A “parte” São Paulo se destacava por ter sido a criadora do “todo” Brasil. São Paulo era entendida como parte, mas uma parte dotada de originalidade e diferença capazes de transformá-la no agente privilegiado da construção da liberdade do todo nacional. Assim, no discurso historiográfico que elaboraram, pelo enfoque nativista empregado, a identidade paulista era apresentada como autônoma, dotada de originalidade e diferente da brasileira. Contudo, esta “exceção paulista” era usada pelo autores para explicar a supremacia dos paulistas frente aos demais brasileiros, pois somente por ser diferente é que o paulista podia ser o líder e o construtor da liberdade da nação brasileira. Outra relação entre o regional e o nacional se apresentou com o aparecimento do movimento separatista em São Paulo, em 1887. Fruto da radicalização da bandeira federalista, o separatismo foi advogado por alguns indivíduos combativos e considerado pelo PRP como eventual alternativa política, caso seus planos de proclamar a República não vingassem409. Dentre estes indivíduos, não por acaso, encontravam-se algumas que haviam se destacado no esforço de construção de uma identidade regional paulista autônoma: Martim Francisco III e Júlio Ribeiro. Também eram separatistas Alberto Salles,

409

Segundo Aduci, o separatismo seria fruto de um momento no qual o único motivo que ligava muitos produtores paulistas ao poder central – a escravidão – havia desaparecido, pois a sua iminente abolição havia sido acordada em 1887, possibilitando, assim, a adesão a uma ruptura com a monarquia. ver ADUCI, Cassia

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Francisco Eugênio Pacheco e Silva (assinava seus artigos como Feps) e J. F. de Barros, todos republicanos em 1887. A natureza da reivindicação que defendiam levava-os a redefinir a relação entre o regional e o nacional. A identidade regional paulista passou a ser vista, não como a exceção que construía a nação, mas como uma realidade contraposta à nação, algo à parte. E para justificar a proposta independentista de São Paulo, os autores implicados, com destaque para Martim Francisco e Alberto Salles, mais do que lançar mão do discurso histórico, apelaram para argumentos “científicos”. Procuraram explicar a exceção paulista, agora entendida não somente como diferente, mas como irreconciliável com a nação brasileira, pelo recurso aos argumentos do determinismo geográfico e do determinismo racial então em voga, criando uma interpretação de caráter cientificista da identidade regional que marcaria as visões posteriores410, merecendo também por isso a atenção aqui dispensada. O determinismo geográfico foi utilizado pelo ideólogo republicano Alberto Salles para explicar a exceção paulista, antes mesmo do aparecimento do movimento separatista. Nas páginas do ALP de 1880, Alberto Salles publicava seu estudo Como o clima da Província de São Paulo influi sobre o caráter de seus habitantes. O autor partia dos trabalhos historiográficos que seus colegas republicanos haviam realizado no início dos anos 1870. Citando a descrição da “proverbial energia dos paulistas, revelada desde os tempos coloniais” presente no compêndio de Américo Brasiliense, o autor se questionava: “Donde vem essa energia? Qual a razão de não se encontrarem exemplos semelhantes nas outras províncias?”411. Nestas frases, era a própria exceção paulista que Alberto Salles buscava compreender. O seu intento era apresentado como “uma tentativa que fazemos no sentido de dar ao fato, tão estranho e por todos notado da índole empreendedora dos paulistas, uma explicação mais positiva e mais científica do que tem-se dado até aqui”412(grifos meus).

C. A “Pátria Paulista”; o separatismo como resposta à crise final do Império Brasileiro. SP: Arquivo do Estado/ Imprensa Oficial; 2000. P. 180 e 181. 410 A explicação da exceção paulista pelo viés geográfico seria retomada no interior do IHGSP por Teodoro Sampaio e Orville Derby, porém, sem o sentido separatista conferido por Sales; e a tentativa de definição de um tipo racial paulista seria continuado, em novos termos, pelos autores dos anos 20, Oliveira Vianna e Alfredo Ellis Jr., conforme veremos. 411 SALLES, Alberto. “Como o clima da Província de São Paulo influi sobre o caráter de seus habitantes” In ALP de 1880, p.185. 412 Idem, Ibidem, p. 177.

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Para o positivista heterodoxo Alberto Salles, a história por si só não explicava a exceção paulista. Para o autor, havia uma lógica subjacente aos acontecimentos, e esta não seria revelada pela simples narração dos eventos, mas sim pelo recurso à ciência, principalmente aquela lastreada no determinismo geográfico e antropológico. Esta postura de desconfiança em relação ao discurso historiográfico caracterizou a produção deste autor, que somente se remetia aos eventos passados como forma de comprovação das leis gerais “cientificamente” deduzidas. Sales foi buscar na tese do determinismo físico elaborada pelo historiador inglês Henry Buckle a explicação para a grandeza do povo paulista e o ínfimo progresso dos demais brasileiros. A explicação da grandeza paulista estaria na ação do clima sobre o caráter dos seus habitantes. O autor baseava-se no mesmo critério que marcou a produção historiográfica de Capistrano de Abreu: a “lei histórica” de Buckle que considerava a “Civilização” de um povo como resultado do grau de domínio do homem sobre a natureza413. Aplicando-a ao caso brasileiro, Sales concluía que “no Brasil, a exuberância de vegetação que ostentam nossas florestas e o vastíssimo sistema hidrográfico que como uma imensa rede corta a superfície de nosso território, indicam que a superioridade está na natureza e a inferioridade na energia humana”414. Invertendo o otimismo acalentado pelo romantismo em relação à nossa exuberante natureza tropical, Sales a considerava antes um fator de atraso, um entrave à civilização do país, do que propriamente um trunfo. Mas se o homem brasileiro era amesquinhado diante da natureza tropical, portentosa e dominante, o mesmo não ocorreria na Província de São Paulo, uma vez que as condições geográficas eram diversas. Aí a natureza era menos pujante, com pequenas bacias fluviais como a do Tietê, cobertas por florestas “sem o caráter imponente que as distinguem naquelas outras províncias”, e dotada de um clima que estaria em “um justo meio termo, não sendo nem rigoroso no inverno nem no verão” 415. Junte-se a isso a ação determinante da Serra do Mar que, na visão do autor, bloqueava os ventos sudoeste provocando um equilíbrio entre as correntes e propiciava a amenidade do clima regional. Sem a “boa serra do Cubatão”, “certamente que, em lugar

413

“a marcha da civilização mostra-nos bem claramente que o progresso não aparece senão lá onde a atividade e energia do espírito humano consegue dominar os agentes físicos e empregá-los em seu proveito” Idem, Ibidem, p. 180. 414 Idem, Ibidem, p. 181.

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deste equilíbrio admirável (...) teríamos o excesso em tudo e, portanto, o mesmo que acontece em outras províncias do norte”416, ou seja, sem a Serra do Mar, São Paulo seria igualada a qualquer província do Norte, o que significava, para nossos preconceituosos republicanos, atraso e pouco progresso. O autor introduzia assim a temática da ação determinante da Serra do Mar na formação paulista, que se transformaria em um tema recorrente da historiografia paulista ao longo de toda a Primeira República, analisando-a sob um enfoque determinista417. Se a natureza em São Paulo era mais amena, consequentemente, pela lei determinista de Buckle, o homem paulista seria mais forte, e a “civilização”, nesta parte do país, mais vigorosa. Para Sales, “em São Paulo não há como no Amazonas e no Pará, superioridade das forças físicas sobre a energia humana; aqui o clima é regulado de modo a incutir vigor no ânimo do homem e não desalento: os agentes físicos são inferiores aos estímulos da inteligência”. Em São Paulo a inteligência humana sobrepunha-se à natureza. Desta forma, o autor isentava São Paulo do diagnóstico pessimista lançado pelo pensamento determinista europeu do séc. XIX sobre o Brasil. O clima ameno da província livrava o paulista dos efeitos perniciosos dos trópicos e explicava a exceção de progresso e energia por ele representada. Neste texto, escrito em 1880, Salles dava forma ao argumento que iria utilizar sete anos depois para legitimar a sua luta separatista. O tema da originalidade da formação física paulista seria retomado no seu livro de propaganda separatista A Pátria Paulista, agora voltado diretamente para o ataque à unidade da nação brasileira. Em seu livro o autor desenvolvia uma teoria sobre as nacionalidades, baseada no evolucionismo organicista spenceriano. Por este enfoque, a evolução das nações era entendida como marcada pela progressiva diferenciação interna, tendendo à desagregação das partes, semelhante ao processo de diferenciação interna dos órgãos de qualquer ser vivo, apontado pela biologia. Salles ainda apontava três elementos de desagregação que caracterizavam as nações: os condicionalismos étnico, geográfico e psicológico. 415

Idem, Ibidem, p. 182, 183. Idem, Ibidem, p. 184. 417 Alfredo Ellis Jr. e Afonso de Taunay abordaram o tema dos efeitos da Serra do Mar, mas sem dúvida foi Paulo Prado o que maior destaque a ele concedeu, nele baseando a sua interpretação da exceção paulista. Ver adiante capítulo 7. 416

200

Ancorado numa fusão de determinismo físico e racial e evolucionismo organicista spenceriano, arcabouço conceitual também de Capistrano de Abreu, Alberto Salles apresentava, da mesma forma que o historiador cearense, uma visão fragmentada e cindida da unidade brasileira. Mas, ao contrário de Capistrano, para quem a consciência da cisão tinha o sentido de reforço da necessidade de unidade, para Alberto Salles, a cisão era apresentada tendo em vista incentivar a separação da parte paulista, a ruptura da unidade. Assim, o mesmo arcabouço teórico era apropriado por atores em lugares sociais distintos, visando finalidades políticas diferentes. Assim, para Salles existiam três “Brasis” diferentes: o Norte (do Amazonas a Pernambuco), o Centro ( Bahia, Minas e Rio) e o Sul (de São Paulo ao Rio Grande do Sul), definidos por uma peculiar conformação geográfica e uma composição étnica própria. O Norte, geograficamente, seria definido pela bacia do Amazonas e, etnologicamente, seria marcado pela predominância de população com sangue índio. O Centro seria formado geograficamente pela bacia do Rio São Francisco e teria predominante presença negra na composição de sua população. Por fim o Sul teria como centro mais representativo São Paulo, seria definido geograficamente pela bacia do Paraná e teria uma população predominantemente branca418. Dentro do próprio Sul, o autor destacava a especificidade de São Paulo, citando a passagem de Oliveira Martins que atestava a originalidade da formação paulista. Mas esta formação era entendida como resultado da especial localização geográfica e, principalmente a especial conformação racial do paulista. Ao contrário do habitante do Brasil central, marcado pela presença negra, o paulista de Alberto Salles seria eminentemente branco, formando um povo dotado de “homogeneidade, originalidade e autonomia”. Na definição do tipo racial paulista, o autor separtista se esmerou em provar a inexistência de qualquer traço negro ou índio na composição do habitante da província. Apropriando-se de Américo Brasiliense, ressaltava que os paulistas seriam formados por colonos de “origem limpa, pertencentes muitos à melhor nobreza de Portugal e Espanha. Estes colonos formavam por assim dizer, uma sociedade a parte, não se confundindo com

418

SALES, Alberto. Op. Cit, 1981. P. 104, 105.

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os naturais da terra e nem com os mamelucos”419. Profundamente marcado pelo ideal de braqueamento da sociedade brasileira, grande defensor da imigração, Alberto Salles condenava qualquer forma de mestiçagem com populações não brancas, identificando na presença de negros e índios os maiores embaraços ao progresso do Brasil. No livro A Pátria Paulista, a única menção elogiosa à mestiçagem se referia ao caso da mistura entre povos brancos nos Estados Unidos que, a despeito de toda a sua notória política segregacionista, eram apontados pelo autor como modelo de prática racial!420 Escrevendo no auge da vigência do paradigma do racismo científico, quando setores da sociedade brasileira se questionavam sobre o espaço do negro após o iminente fim da escravidão, Alberto Salles assumia uma postura fortemente excludente. Pensava criar uma Patria Paulista exclusivamente branca e, para reforçar a aura de progresso e superioridade do povo paulista, negava veementemente a presença não somente africana mas também indígena na sua composição, sendo esta apresentada como exclusivamente européia e nobre, desde a sua origem. Apontava, assim, para uma tendência que se não era de todo estranha ao Império, somente se reforçaria no decorrer da Primeira República, com as afirmações baseadas no racismo eugenista de Alfredo Ellis Jr: a exclusão simbólica e concreta do negro da “Pátria paulista”421. Afirmando a originalidade da raça “branca” paulista em relação aos demais brasileiros “mestiços” do Centro e do Norte, Sales adicionava, ao lado da originalidade do clima ameno paulista e de um passado diferente devido à sua maior autonomia, mais um elemento que justificava a impossibilidade de unidade política entre as partes do Brasil. “É em virtude unicamente deste condicionalismo étnico, ajudado sem dúvida pela benignidade de nosso clima, que se encontra em São Paulo, em fins do regime colonial, ‘a vida de uma

419

Idem, Ibidem. P. 102. “É admirável o cruzamento que, nos Estados Unidos da América do Norte, se opera entre ingleses, irlandeses, alemães, franceses, etc., etc. Descendentes todos do mesmo tronco e possuindo, por assim dizer, com pequenas diferenças, o mesmo grau de cultura.(...). Daí o maravilhosos progresso daquele povo; daí ainda a espantosa consistência daquela nacionalidade. / Há , contudo, casos em que o cruzamento se faz fora destas condições de aproximação e de analogia e em que a mistura se opera entre tipos inteiramente diferentes quer sob o ponto de vista antropológico, quer sob o ponto de vista psicológico. Tais são, por exemplo os cruzamentos entre brancos, negros e indígenas, como se deram em larga escala, tanto na América Espanhola quanto na América Portuguesa. Então a mistura é mais prejudicial do que útil. ” Idem, Ibidem p. 37,38. 421 Sobre o arraigado racismo da elite cafeicultora paulista, assim como da política imigrantista que empreenderam, ver o trabalho de AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra medo branco. O negro no 420

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nação nova, existindo independente e autônoma(...)’ Eis aí o fundamento científico da aspiração separatista”. Assim, para o autor, a formação paulista aparecia como isenta dos efeitos negativos do meio tropical, da formação racial miscigenada e da presença de um passado absolutista, três dos maiores entraves ao progresso brasileiro elencados pela intelectualidade crítica de finais do oitocentos. São Paulo seria diferente, a ponto de dever se separar, porque não tinha nenhum destes entraves, pois seus clima era ameno, seu povo era predominantemente branco e sua formação fora autônoma e independente, como a norte-americana e a suíça. Postura semelhante foi apresentada pelo outro expoente do separatismo, Martim Francisco III. Este autor parece compartilhar com Alberto Salles a mesma concepção de nacionalidade, somente apresentando diferenças de ênfase quanto a aspectos específicos 422

. Como Salles, o Andrada também analisava a formação das nacionalidades sob um viés

evolucionista e organicista, sem contudo citar Spencer, que era a referência teórica de Sales423. Também como Salles, Martim Francisco procurava justificar a separação de São Paulo mediante critérios científicos lastreados no determinismo físico e racial, dando contudo maior ênfase a critérios pouco frisados por Salles, como interesses econômicos e mesmo a rápida citação da “vontade de ser paulista”. Para o jovem Andrada, as inflexíveis leis científicas do determinismo climático explicavam a formação e divisão das nacionalidades: “Com o clima não mudam apenas a compleição, o desenvolvimento do crânio e portanto a faculdade intelectual; mas também os hábitos, os costumes e as formas de civilização. Estes fatos, estreitamente ligados aos sucessos políticos, merecem nossa atenção. imaginário das elites, séc. XIX. RJ: Paz e terra; 1987. Principalmente cap. II, tópico 3 “O sentido racista do imigrantismo” pp 139-153. 422 Visão diferente é apresentada por Aduci, que tende a ressaltar as diferenças de concepção de nacionalidade em Alberto Salles e Martim Francisco. ADUCI, Op. Cit,2000. 423 A visão ao mesmo tempo evolucionista (que considera a sociedades como em constante transformação e aperfeiçoamento) e organicista (que considera que as sociedades e nações se regem pelo mesmo princípio dinâmico da organização dos organismos biológicos, inclusive o humano) é evidenciada nas seguintes passagens de Martim Francisco: “O quadro que nos mostra a história das nações muda incessantemente. (...) As nações morrem como os indivíduos. Assim como o Homem, elas procuram afastar o seu último dia. (...) Esquecendo que a mudança é a condição da existência, elas criam leis e instituições com a ilusão de que serão eternas.” (grifos meus) In ANDRADA, Martim Francisco R. Propaganda Separatista. São Paulo independente. p. III, IV.

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Um império, por exemplo, que estender-se para este e para oeste será muito mais homogêneo e muito mais poderoso do que um outro que se dividir entre norte e sul. Roma estava no primeiro caso, e eu não hesito em descortinar aí uma das causas da sua grandeza e da duração do seu domínio. Há pois, nas direções de este e oeste tendência para a homogeneidade, nas de norte e sul tendência para a diversidade e para o antagonismo.”424 No trecho acima, o autor resumia o centro do argumento que mobilizou para defender a separação. Como o Império Brasileiro se estendia na direção Norte-sul, cortando diferentes faixas climáticas, a unidade política seria impossível. Martim Francisco sugeria que os homens não lutassem contra a natureza na formação das nações, mas que procurassem segui-la. Assim, ressaltando que São Paulo vivia sob um clima diferente do Norte brasileiro, que levava à diferenciação tanto da composição craniana e psicológica de sua população quanto de seus interesses econômicos, o autor defendia a separação da província do “moribundo” Império brasileiro425. Apesar de todo o empenho destas figuras esparsas, o separatismo nunca foi majoritário nos meios republicanos paulistas, tendo o PRP mantido um certo distanciamento destas propostas, mantendo-as como última alternativa caso um terceiro reinado se mostrasse viável426. Mas a separação de São Paulo não vingou. Foi um projeto político derrotado, em função do esvaziamento de suas reivindicações diante da proclamação da República, ocorrida dois anos depois, e a conseqüente implantação de um regime de autonomia regional. Ele ressurgiria novamente em 1932, e mais uma vez como resposta extremada e minoritária a um contexto de inviabilização da forma federativa, neste momento, porém, proporcionado pelo unitarismo do governo Vargas. Mas o discurso separatista de 1887 teve sua importância, uma vez que correspondeu a um momento específico do processo de construção da identidade regional. Ele pode ser considerado 424

Idem, Ibidem. p.25. Ou ainda: “Quem estuda a história da província de São Paulo fica sabendo que as levas colonizadoras comandadas por Martim Afonso de Sousa eram compostas do que Portugal tinha de melhor, de mais puro e de mais nobre na população existente no reino em 1534. Deu-se o mesmo em relação ao norte do Brasil? Até a legislação da época responde negativamente. Tire o leitor as conseqüências. País que se estende de norte a sul, onde a diversidade de zonas modifica os caracteres étnicos; país que revela diferença de interesses, de produção e de necessidades, exige governo apropriado a cada uma de suas partes. A identidade de origem é anulada pela influência do meio. As leis naturais não admitem exceções.” Idem, Ibidem, p. 45. 426 ADUCCI, Cassia Op. Cit. 2000. 425

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como o ápice do discurso da originalidade paulista, quando este assumiu sua forma mais clara e foi levada às últimas conseqüências: a afirmação de uma identidade paulista entendida como exceção no conjunto da nação. Ele significou a exacerbação de um processo de construção de uma nova visão da identidade paulista por parte dos grupos federalistas, iniciada nos anos 1870, no contexto da crise do Império analisada ao longo dos dois últimos capítulos. Esta construção identitária procurou, conforme foi visto, instituir um discurso que “fazia ver” a província de São Paulo e seu habitante como uma exceção de progresso diante do restante da nação. Para tanto, os intelectuais federalistas se apropriaram do determinismo físico e racial das teorias cientificistas em voga, afirmando a ausência na província daqueles que eram considerados, pela intelectualidade crítica, dois dos maiores entraves ao progresso brasileiro: a raça mestiça e o meio tropical. Marcada hipoteticamente por um “clima ameno” e uma raça predominantemente “branca”, a província de São Paulo e seus habitantes encontravam nas inquestionáveis leis científicas a explicação de seu progresso. Estes mesmos intelectuais ligados à luta federalista esboçaram uma nova representação do passado regional, uma verdadeira contra-história federalista e republicana, que rompia com os pontos principais das visões monárquicas do passado paulista. Se esta última foi essencialmente indianista, favorável ao jesuíta, à lealdade de Amador Bueno e fortemente antibandeirista, a nova visão republicana que se esboçava foi marcada pela desqualificação das figuras do jesuíta e de Amador Bueno, frutos da luta simbólica momentânea pela deslegitimação, tanto da causa ultramontana quanto da monarquia bragantina. Ao mesmo tempo, a contra-história republicana também livrava o povo paulista do terceiro dentre os principais fatores de atraso nacional, detectados pelos grupos de intelectuais liberais, Tavares Bastos à frente: a presença de um passado colonial absolutista. Ao contrário do restante do Brasil, o passado paulista, de forma semelhante ao dos Estados Unidos descrito por Tocqueville, era representado pelos republicanos como essencialmente livre, marcado por uma forte autonomia frente ao despotismo da Coroa portuguesa e dotado de uma versão própria de self government representado pelas Câmaras Municipais. Baseado nelas, os autores idenficados com o republicanismo paulista inventaram o mito de origem, ao mesmo tempo de seu partido e de toda a coletividade regional. Identificaram o

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passado paulista como “democrático”, criando assim uma tradição paulista diferente da tradição brasileira, vista como essencialmente despótica. Num contexto de intenso entusiasmo modernizador, esta tradição paulista inventada não era entendida como conflitante com os valores modernos preconizados pelo republicanismo e também identificados com o modelo norte-americano: a liberdade de pensamento, o espírito enérgico e empreendedor, a liberdade frente ao poder estatal. Ao contrário, a tradição paulista que começavam a criar vinha exatamente reforçar estes valores modernos. Mais do que uma tradição conciliada com a modernidade, a intelectualidade republicana criava uma tradição de modernidade para o povo paulista. Os valores modernos do movimento, da energia e da liberdade eram apresentados como constitutivos da própria identidade paulista, sendo incorporado à tradição regional. Ao contrário do caso da identidade nordestina criada a partir da década de 1920, estudada por Durval Muniz Albuquerque, que se ancora em um discurso da tradição para negar o novo, sendo essencialmente um discurso identitário antimoderno, a identidade paulista que os republicanos começavam a criar procurava transpor para a ordem da tradição os valores da modernidade, servindo, assim, para impulsionar simbolicamente o processo de modernização por que passava a província427. Pela absolvição do antigo colono paulista das acusações lançadas pela etnohistoriografia indianista, a nova visão republicana ainda possibilitava a incondicional louvação da figura do bandeirante, que sintetizaria, como nenhuma outra, esta dialética positiva entre tradição e modernidade. O bandeirante passava, já nestas duas últimas décadas imperiais, a ser louvado pela elite regional como símbolo maior dos valores identitários regionais. Os antigos paulistas adversários de jesuítas e emboabas, presentes nas obras de Júlio Ribeiro, Martim Francisco, Américo Brasiliense, já eram descritos, em diversas passagens, como bandeirantes. Estes já eram entendidos como os antepassados heróicos desta elite cafeicultora regional, destes modernos paulistas que se auto apresentavam como dotados de uma ética empreendedora e de um espírito independente e democrático que os transformava nos “ianques brasileiros”. Contudo, esta tentativa de recriação do passado regional era realizada de forma relativamente precária e limitada. Ela não passava de um esboço de interpretação. Como já 427

ALBUQUERQUE, Durval Muniz.Op. Cit., 1999.

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ressaltei, as representações do passado colonial paulista apareciam em compêndios escolares, ensaios historiográficos, romances históricos ou mesmo em textos de caráter político onde desempenhavam papel secundário, servindo de suporte à argumentação. Não existia propriamente obra historiográfica baseada na pesquisa de fontes na província de São Paulo nos anos 1870 e 1880, com a honrosa exceção de Manuel Eufrásio Azevedo Marques. No geral, apesar do significativo crescimento do interesse pelos estudos históricos no período, eles ainda eram insuficientes frente aos textos de natureza política que correspondiam ao desejo de uma elite regional em busca de auto-afirmação política e econômica no cenário nacional. Neste sentido, o republicano Ubaldino do Amaral escreveu um artigo que bem demonstrava os anseios da elite regional pelo aumento dos estudos de sua história. Num comentário sobre o Lições de História Pátria, de Américo Brasiliense, publicado no ALP de 1880, Amaral afirmava: “o que não admite disputa é que não temos historiador”428. O autor não somente evidenciava o desejo da elite regional de possuir uma historiografia própria, mas ainda chamava a atenção para a necessidade de que essa historiografia a ser criada não fosse mera crônica de monarcas e jesuítas – chamados pelo autor de “heróis do direito divino” – mas que se voltasse ao povo e se amparasse nos modernos métodos científicos que na Europa começavam a aplicar o novo espírito positivo ao estudo da história. Esta tarefa de elaborar uma historiografia dotada de cientificidade, que correspondeu à institucionalização da visão do passado paulista esboçada no calor da propaganda republicana, seria realizada pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP), criado em 1894, já no contexto de afirmação da nova ordem republicana.

428

ALP de 1880. P. 79.

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Capítulo 6 – Institucionalização da visão republicana do passado paulista: o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP) (1894-1916).

6.1. Consolidação da República: os paulistas no poder.

A luta dos republicanos resultou na proclamação da República em 1889, num movimento organizado por grupos militares, sem participação popular e desprovido de oposição significativa por parte do regime monárquico derrubado. Instalou-se o novo regime, cujo arcabouço jurídico foi definido na Constituição de 1891. Desde o seu aparecimento, pelo seu forte cunho liberal, evidenciado na consagração dos princípios federalista e presidencialista, muitos ressaltaram a semelhança com a Carta Magna norteamericana, explícita na fala do Presidente do então Congresso Constituinte, o futuro Presidente da República Prudente de Morais. Ao declarar em vigor a nova constituição brasileira ele afirmou: “(...) O Brasil, a Nossa Pátria, de hoje em diante tem uma Constituição livre e democrática com o regime de mais larga federação, única capaz de mantê-la unida, fazer com que possa desenvolver-se, prosperar e corresponder, na América do Sul, ao seu modelo da América do Norte.”429 Vindo deste antigo republicano paulista, a afirmação da instalação de uma República formalmente democrática e federalista soava como uma declaração de vitória. A antiga reivindicação federalista dos americanistas de São Paulo tornava-se realidade. O Brasil dava o primeiro passo na implantação do modelo norte-americano. Contudo, os primeiros anos deste novo regime que prometia levar o combalido Império Brasileiro a um mundo de “ordem e progresso”, foram marcados por muita pouca ordem, gerando um estado de instabilidade política e social que chegou a comprometer o progresso econômico que tanto almejavam. A consolidação do novo regime foi um processo turbulento, marcado por redefinições no campo político, opondo diferentes grupos republicanos e antigos monarquistas. Estes últimos se constituíram em dois grupos: os adesistas e os

429

FERRAZ, Tércio Sampaio. “A Constituição republicana de 1891”. Revista USP (dossiê 100 anos de República), n º 3, set., out., nov., 1989.

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restauracionistas. O majoritário grupo dos adesistas, era formado por ex-liberais e exconservadores, entre estes principalmente os antigos saquaremas modernizadores que, como vimos, desde o período da propaganda estabeleciam alianças eleitorais estratégicas com republicanos430. Nos dias seguintes à proclamação da República, quase toda a antiga União Conservadora aderiu ao novo regime, seguindo o exemplo de seu líder, o conselheiro Antônio Prado. Este contudo, ao contrário de outros ex-conservadores como Rodrigues Alves, não foi incorporado à máquina partidária perrepista, tendo mantido distância da política partidária até meados dos anos 1920. Na realidade, nem todo o grupo bandeou tão rapidamente para o lado oposto, haja vista o caso de Eduardo Prado, irmão do conselheiro, e desde então expoente do grupo de oposição ao novo regime representado pelos monarquistas restauracionistas. Estes congregavam tanto ex-liberais quanto ex-conservadores, com destaque para a “ala mendista”, o setor formado predominantemente pelos conservadores ultramontanos fiéis a João Mendes de Almeida, no dizer de Maria de Lourdes Janotti, os mais combativos dos restauracionistas431. Rio de Janeiro e São Paulo formaram o eixo no qual se concentrou a atividade de restauracionistas como Carlos de Laet, Joaquim Nabuco, Visconde de Ouro Preto, Visconde Taunay, Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira, além de vários outros militantes. Alguns destes “sebastianistas”, como eram pejorativamente alcunhados pelos republicanos, se concentraram no interior dos Institutos Históricos e Geográficos, fossem os regionais, fosse o Brasileiro. Também entre os próprios republicanos a situação não foi de consenso. As antigas clivagens internas ao movimento, que como vimos no cap. 4 remontavam aos anos 1870, desandaram em conflito aberto pela hegemonia política, uma vez proclamado o novo regime. Na primeira década republicana, diversos grupos republicanos se degladiaram. Eram deodoristas, jacobinos militares florianistas432, gliceristas do PRF, e perrepistas que lutavam entre si visando definir um novo padrão de funcionamento da vida política que substituísse o padrão monárquico e promovesse a estabilidade do regime. Mesmo com a 430

Sobre o adesismo monárquico ver CASALECCHI, J. E. Op. Cit. JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. Os subversivos da república. São Paulo: Brasiliense; 1986. P. 18, 19. 431 “É inconteste a liderança dos monarquistas paulistas e, dentre eles, a do grupo mendista, formado pelo núcleo católico-conservador do antigo centro monarquista”. JANOTTI, M. Op. Cit. p. 239. 432 QUEIROZ, Sueli Robles Reis de. Os radicais da república. Jacobinismo: ideologia e ação (1893-1897). São Paulo: Brasiliense; 1986

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ascensão à presidência do paulista Prudente de Morais em 1894, o predomínio do perrepismo não estava garantido e nem mesmo os tumultos de rua deixaram de se fazer sentir, principalmente no Rio de Janeiro, agora transformado de Corte em Capital Federal. Apesar do novo contorno do Estado brasileiro estar definido na Carta de 1891, não se havia definido uma rotina para o jogo político republicano, como afirma Lessa

433

. Esta

foi alcançada mediante o pacto político informal, conhecido como “Política dos Governadores”, empreendido em 1898 pelo então Presidente, o republicano histórico paulista Campos Salles. Por meio deste pacto, solidificou-se um regime em que os atores políticos principais eram as oligarquias regionais, cujos grupos situacionistas estabeleciam um pacto de apoio mútuo com o presidente da república escolhido. Segundo Lessa, regionalizava-se o embate político ao mesmo tempo em que frustravam-se os anseios por maior inclusão política e social. Criava-se uma República lastreada em um liberalismo autoritário que reiterava o caráter antidemocrático do regime anterior. Neste rearranjo do poder, em que as oligarquias regionais, congregadas nos partidos republicanos estaduais, eram os principais agentes da ação política, o Estado de São Paulo assumia, junto com Minas Gerais, o papel de grupo hegemônico no conjunto da nação. Os paulistas estavam no poder, garantindo, de Prudente de Morais (1894-1898) a Rodrigues Alves (1901-1905), mais de uma década de ocupação do cargo de presidente. Mesmo quando não detinham o controle do executivo federal, o que ocorreu de 1905 a 1926, seus interesses principais estavam assegurados na medida em que controlaram a política econômica do governo, garantindo assim o seu objetivo maior: a expansão e fortalecimento da economia cafeeira434. Em uma economia essencialmente agroexportadora e dependente do mercado externo, como era a brasileira, o café, que após a crise da borracha amazônica em finais dos anos 1910 manteve-se como o único produto com posição privilegiada no mercado internacional435, tornava-se a base incontestável da economia brasileira, consolidando o papel de liderança política e econômica da elite paulista. Com o novo regime, os republicanos paulistas avançavam na implantação de seu programa modernizador americanista. Haviam garantido a contento a “liberalização da vida

433

LESSA, Renato. “A invenção da República no Brasil: da aventura à rotina.” In CARVALHO, Maria Alice Rezende de. (org.) República no Catete. RJ: Museu da República; 2001. P. 44 a 55. 434 LOVE, Joseph. A Locomotiva. Principalmente “Cap. 6. O Estado e a Nação: dimensões políticas.” 435 Sobre a exclusividade agroexportadora da cultura cafeeira paulista, ver PERISSINOTO, Renato. Op. Cit.

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política” e, com os recursos resultantes da descentralização fiscal, podiam incentivar, por todos os modos, a implantação do seu “moderno capitalismo agrário”, latifundiário e agroexportador, mediante uma política territorialista de colonização do sertão oeste do estado. Segundo Lígia Osório Silva, o período de 1888 a 1898 correspondeu à primeira das duas grandes ondas de disseminação do café, quando ocorreu rápida expansão da fronteira agrícola e intenso crescimento populacional, com a criação de 41 novos municípios no estado436. Nos primeiros anos do séc. XX a crise de superprodução freou o avanço da fronteira agrícola no estado, mas a subsequente implantação da política de valorização do café possibilitou a manutenção e fortalecimento da agroexportação cafeeira. Neste contexto, em novembro de 1894, quando a República ainda vivia sua turbulenta luta por consolidação e no ano em que o primeiro Presidente paulista adentrava o Catete, foi fundado na capital paulista, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (IHGSP).

6.2. Reforma cultural republicana e criação do IHGSP.

Segundo a memória institucional, corroborada por Lilia Schwarcz, a iniciativa de criação do IHGSP teria partido da iniciativa de três indivíduos: Antônio de Toledo Piza, Domingos Nogueira Jaguaribe e Estevão Leão Bourroul, espécie de trindade fundadora437. Mas a ênfase nos indivíduos, que de fato têm que ser levados em conta, esconde a determinante atuação do governo republicano paulista para a criação do Instituto. Deste mesmo governo, aliás, em 1894 faziam parte os fundadores Jaguaribe e Toledo Piza, ambos subordinados à Secretaria de Estado do Interior, então sob o comando deste “mecenas oficial” dos primeiros anos republicanos que foi Cesário Mota Jr.438. 436

A outra onda cafeeira ocorreria de 1910 a 1919, após um arrefecimento da produção na primeira década do séc. XX, provocado pela crise de superprodução que levou às políticas de valorização do café. SILVA, Lígia Osório. Terras devolutas e latifúndio. Os efeitos da lei de 1850. Campinas: ed. Unicamp; 1996. Principalmente cap. XV “A apropriação territorial no estado de São Paulo”. P. 279-291. 437 SCHWARCZ, Lilia M.. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. São Paulo: Cia. das Letras; 1993. p. 125. Representativo da memória institucional: FARINA, Duílio Crispim. “Os Fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.” In RIHGSP, Vol. 142 a 1994. 438 Jaguaribe era Diretor em exercício do Liceu de Arte e Ofício e Antônio Piza, Diretor da recém criada Repartição de Estatística e Arquivo do Estado, cargos que atestavam a proximidade destes agentes com o governo vigente. Ver MOTA JÚNIOR, Cesário. Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios do Interior, apresentado pelo secretário Dr. Cesário Mota Júnior ao Sr. Dr, Presidente do Estado de São Paulo. São Paulo: typ. Vanorden & Cia.; 1895.

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Médico natural de Porto Feliz, Cesário Mota Jr. foi um republicano paulista histórico dos mais combativos, tendo participado da fundação do PRP em 1873 na famosa convenção de Itu. Dedicou-se, desde a época da propaganda, à defesa do incremento do ensino básico e superior na província. Juntamente com Prudente de Morais e Martinho Prado Jr. formou o primeiro grupo de republicanos eleitos em 1878 para a Assembléia Provincial. Em discurso deste ano, pensando na utilização da técnica para a produção agrária, defendia a necessidade de “estudar a física, a química, a geologia, mineralogia e a botânica”. Propunha ainda que “ao lado da Faculdade de Direito, que possuímos, pudéssemos ter uma de Medicina, de Farmácia, se formasse mesmo uma Universidade completa”439. Cesário Mota levantara, ainda durante a Monarquia, a proposta de criação de uma “Universidade paulista”, programa compartilhado com outros republicanos.440 Neste mesmo movimento, revelando ascendente rivalidade com a Corte, em 1887 o republicano Alberto Salles reclamava que “o paulista que quiser que seu filho seja engenheiro ou farmacêutico, há de forçosamente mandá-lo à capital do império!”. Para consolidar a autonomia da São Paulo, os republicanos propunham a criação de instituições de ensino e saber próprias, visando transformar São Paulo, também no terreno da cultura e formação superior, em um centro independente da Corte. O federalismo dos republicanos paulistas implicava, assim, o ataque à centralidade cultural da cidade do Rio de Janeiro que, vimos no capítulo 1, se consolidara desde a transferência da Monarquia joanina. Neste ponto, o desejo de transformar São Paulo em um pólo de saber não mais simplesmente paralelo, mas francamente concorrente com o Rio de Janeiro, conferia originalidade à elite republicana paulista, diferenciando-a das elites mineira e pernambucana, segundo Love, mais inclinadas a se concentrarem na Capital Federal441.

439

MOTA Jr., Cesário. Apud MOTA, Cassio. Cesário Mota e seu tempo. SP: s/ed., 1947. P. 62 O republicano Alberto Salles, em 1887, reclamava que a centralização monárquica impedia a criação do ensino superior de São Paulo, lembrado que “a agronomia, a farmácia e a engenharia, que aqui poderiam ser vantajosamente ensinadas e que constituem hoje as carreiras mais procuradas pela nossa mocidade estudiosa, não encontram na província uma única instituição que as ensine. (...) E tudo por que? Unicamente por que o ensino superior não entra na competência das assembléias legislativas provinciais.” SALES, Alberto. A pátria Paulista, p. 53 441 LOVE, Joseph. Op. Cit. 1982. pp 126. segundo Maria Arminda Arruda, a experiência do exílio carioca dos intelectuais mineiros marcou de um forte tom memorialista e melancólico a mitologia da mineiridade que criaram. ARRUDA, Maria Arminda do Nascimento. Mitologia da Mineiridade. O imaginário mineiro na vida política e cultural do Brasil. São Paulo: Brasiliense; 1990. p.206. 440

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Com o aumento significativo de recursos proporcionados pela descentralização fiscal decorrente da implantação do novo regime, os republicanos puderam pôr em prática seu programa de criação, não ainda de uma universidade, mas de várias instituições de ensino e saber no Estado. Para tanto, em 1892 o Presidente paulista Bernardino de Campos colocou Cesário Mota Jr. à testa da Secretaria do Interior, dando todo o respaldo político e financeiro para a concretização dos planos acalentados desde a época da propaganda. O resultado foi a implantação de uma ampla “reforma cultural republicana”442 marcada pelo objetivo de dotar o estado de São Paulo de uma série de instituições de saber voltadas ao ensino – profissionalizante, básico e superior – e à pesquisa nas mais diversas áreas científicas. Durante a sua gestão, nos anos de 1893 e 1894 concentraram-se as maiores iniciativas. Neste período foram realizadas: uma ampla reforma do ensino primário estadual que levou à abertura de vários grupos escolares pelo interior; a criação do Ginásio do Estado; a reformulação da Escola Normal, transferida para um imponente edifício na Praça da República; a criação do Museu Paulista, instalado em outro palácio, o do Ipiranga e , por fim, a inauguração da Escola Politécnica, instalada em um prédio comprado pelo governo do estado443. Somente o seu sonho de criar uma Faculdade de Medicina não pôde ser concretizado; por falta de verbas, teve que esperar até 1912, quando foi criada pelo presidente do estado Rodrigues Alves. Assim, o governo republicano visava dotar o estado de São Paulo, respectivamente, de ampla instrução primária e secundária; um corpo de professores; um centro de pesquisas nas áreas de zoologia, botânica e etnologia; um corpo de engenheiros e técnicos em ciências físicas, que possibilitasse a modernização do estado. As ciência naturais, bem ao gosto da época, recebiam papel de destaque. Mas, conforme veremos, a história não seria deixada de lado.

442

O termo foi retirado do trabalho de Ana Maria de Alencar Alves, onde a autora também desenvolve uma aguda análise do processo, mas centrando-se no caso do Museu Paulista. ALVES, Ana M. de A.. O Ipiranga Reapropriado: Ciência, política e poder: o Museu paulista, 1893-1932. São Paulo: Humanitas/ FFLCH, USP; 2001. P. 75. 443 Ver ALVES, Ana Maria A. Op. Cit. p. 69 a 79. CARVALHO, Roberto Machado. “A fundação do IHGSP – os idealizadores e a sessão inaugural. Cesário Motta Jr., o primeiro presidente. As antigas e a atual sede.” In RIHGSP, n º 142. , 1994..

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Várias destas iniciativas seguiam um padrão de formação que conjugava os interesses de indivíduos particulares e a atuação do governo444. Estes foram os casos da Politécnica e do Museu Paulista; a primeira, fruto do empenho conjunto do engenheiro Paula Sousa e do governo estadual, e o segundo, unindo a demanda anterior do cientista alemão Herman von Ihering e a disposição política do secretário Cesário Motta Jr.. O mesmo caso parece ter ocorrido com a criação do IHGSP, instituição que deve ser compreendida como parte da reforma cultural republicana, contexto até aqui pouco considerado pelas análises. Seguindo o mesmo padrão de formação das duas instituições acima citadas, ele foi resultado da conjugação da iniciativa da “trindade fundadora” e do secretário Cesário Mota Jr.. Este representava o governo republicano, interessado em criar uma instituição que desse suporte e contornos mais precisos à identidade regional paulista que começou a se produzir no período da propaganda. Mas a atuação de Cesário Mota no IHGSP não ficou restrita ao apoio político e financeiro445, tendo sido nomeado presidente do Instituto e participado ativamente das discussões sobre o programa de pesquisas e estudos a ser adotado. O secretário do interior revelava um pendor para as letras históricas, principalmente aquelas referentes a São Paulo colonial, anteriormente demonstrado nas páginas do ALP de 1883, quando publicou o estudo sobre “Porto Feliz e as monções para o Cuiabá”446. Cesário Mota também estendeu seu interesse pelo passado regional para o universo das artes. Neste sentido, contatou e financiou o pintor Almeida Júnior, seu conterrâneo porto felicense, para transpor para a tela o motivo central de seu ensaio histórico. O resultado foi a confecção do quadro “A partida das Monções”, terminado em 1897 e posteriormente incorporado ao acervo do Museu Paulista. Ele pode ser considerado um marco na elaboração do imaginário da paulistanidade, pois pela primeira vez os feitos do passado paulista recebiam a consagração nobilitadora da pintura histórica.

444

Este padrão foi apontado na análise de ALVES, Ana Maria de Alencar. Op. Cit. 2001.pp 69. O IHGSP era uma entidade de direito privado, mas vivia em dependência do dinheiro público que, segundo Antônio Celso Ferreira, representava 44% de seu orçamento até 1913. Ele somente deixou de ser financiado pelo governo de 1913 a 1927 e de 1931 a 1936. ver FERREIRA, Antônio Celso. Op. Cit. p. 73. 446 Cesário Mota, também escreveu um drama de costumes rurais paulista intitulado “A Caipirinha”, encenado no Teatro Municipal em 1916. por intermédio do governador Altino Arantes (então presidente tanto do estado de SP, quanto do IHGSP) e do secretário de agricultura Cândido Mota, revelando o interesse crescente no primeiro pós guerra por temáticas rurais e tradicionalistas. Ver MOTTA, Cássio. Op. Cit. p. 44-45. 445

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Desta maneira, da conjunção entre a iniciativa de três indivíduos - articulados, conforme veremos adiante, a três importantes setores da sociedade paulista – e o nascente governo republicano representado por Cesário Mota Jr., nascia o IHGSP. Ele seguia o modelo de academia ilustrada anteriormente adotado no IHGB, sendo marcado pela produção de um discurso histórico ainda não de todo independente de outros campos de saber, com destaque para o campo político e etnográfico. Os critérios de admissão de sócios levavam mais em consideração as relações sociais e políticas do que propriamente o mérito intelectual do postulante447. Da mesma forma que o instituto carioca, o paulista também seria marcado pela proximidade com o poder instituído, dado ressaltado por todos os analistas448. Mas, diferentemente do IHGB, o Instituto paulista não seria marcado pelo sentido político centralizador e monárquico449. Muito pelo contrário, os objetivos do IHGSP eram exatamente opostos: além de procurar legitimar o novo governo republicano, ele seria uma instituição voltada a consolidar um discurso identitário regional, que já vinha sendo realizado informalmente há pelo menos duas décadas, assumindo assim um sentido de legitimação da ordem descentralizada e federalista. Quanto ao aspecto federalista, o Instituto paulista era mais um entre vários institutos históricos regionais surgidos no período republicano. As três décadas posteriores à proclamação do novo regime, como bem salientou Antônio Celso Ferreira, foram marcadas pela criação da maioria desses institutos regionais, revelando um processo de intensa federalização da produção do discurso histórico, paralela à federalização da vida política450. Eles seriam lugares privilegiados de sociabilidade das elites regionais, agora alçadas pela política dos governadores a principais agentes da política nacional. Esta federalização da produção do discurso histórico, é necessário frisar, não significava a negação do discurso de cunho nacional elaborado pela monarquia centralizada, mas sim a redefinição da relação entre o regional e o nacional, visando ressaltar a parte dos respectivos estados na construção do todo nacional. No caso de São 447

Para uma análise pormenorizada da composição social e das temáticas bordadas no IHGSP, ver FERREIRA, Antônio Celso, Op. Cit.1998. Cap. II “O altar do passado”. 448 Uma pormenorizada análise dos componentes e do conteúdo da revista do IHGSP está em FERREIRA, Antônio Celso, Op. Cit. 1998. SCHWARCZ, Lilia, Op. Cit. 1993. 449 SCHWARCZ. Op. cit.1993. p. 128. 450 FERREIRA, Antônio Celso, Op. Cit.1998.

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Paulo, não se negava a “exceção paulista”, mas procurava-se mostrar como esta originalidade da formação histórica regional fora fundamental para construir a nação brasileira. Procurou-se mostrar que por ter tido um passado diferente, São Paulo se destacara na vanguarda da formação do Brasil. Procurava-se, assim, lançar para o passado colonial a recente hegemonia conquistada pelo estado na república federativa, tendo em vista legitimá-la pelo recurso à força estabilizadora da tradição. Desta forma, a intenção inicial do instituto paulista, mais do que simplesmente afirmar um discurso identitário regional de cunho federalista, parece ter sido marcada pelo desejo de legitimar um intento de hegemonia paulista frente às demais partes estaduais451. Isto ficava explícito na escolha, como lema do instituto, da frase, proferida pelo visconde de São Leopoldo: “a história de São Paulo será a própria história do Brasil”. Com isso, os fundadores do IHGSP procuravam reforçar, no campo simbólico, a hegemonia que afirmavam no político e econômico. Definia-se, assim, uma nova relação identitária em que a identidade regional passava a se sobrepor à identidade nacional, de forma que São Paulo arrogava para si o papel de cerne da nacionalidade e o paulista se transformava no verdadeiro construtor da nação brasileira. Este viés federalista e hegemônico da produção do IHGSP marcou a escolha dos principais eventos e personagens tratados, apontando para a definição de um panteão de heróis paulistas, configurando uma verdadeira versão paulista da história brasileira. Como bem ressaltou Antônio Celso Ferreira, os autores do IHGSP investiram na louvação de figuras históricas paulistas, identificadas como pioneiras na construção do conjunto da nacionalidade brasileira452. Assim, o período colonial teria o bandeirante como figura de destaque na criação da base territorial nacional; a independência teria sido obra dos irmãos Andrada e de Câmaras Municipais como a de Itu, estudadas por Antônio de Toledo Piza; a unidade nacional consagrada pelo Segundo Império, teria sido fruto não de D. Pedro II, figura cultuada no IHGB, mas do regente paulista Diogo Feijó e, por fim, os republicanos

451

Joseph Love definiu o sentido hegemônico do regionalismo paulista da primeira república, ao afirmar: “Para a maioria dos líderes paulistas na indústria, na agricultura e na política, não havia dúvida de que a relação entre a parte e o todo era implicitamente hegemônica. Quando falharam as tentativas de tornar explícita essa predominância, o rogulho paulista podia ainda ser estimulado pelo apelo à tradição bandeirante, conjunto de símbolos que acomodava tanto a lealdade a São Paulo quanto à nação.” In LOVE, Op. Cit.p. 297, 298. 452 FERREIRA, Op. Cit.1998. pp 83,84.

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paulistas Campos Sales e Prudente de Morais seriam apresentados como os verdadeiros artífices do regime republicano. Na sua aparente diversidade, a historiografia produzida no IHGSP acabou assumindo uma certa coerência, configurando aquilo que Maria Helena Capelato sugeriu ser um “destino manifesto paulista”453. Segundo esta visão, dos primórdios da colônia até a era republicana, São Paulo e seus habitantes teriam como missão histórica a construção da nação brasileira, mediante a difusão da liberdade e a definição e povoamento do vasto território nacional, fonte das riquezas do país. Estas duas dimensões do destino histórico dos paulistas seriam desenvolvidas, conforme veremos, respectivamente pelas correntes liberal-republicana e territorialista. O discurso do “destino manifesto paulista”, elaborado pela historiografia do IHGSP ao longo das duas primeiras épocas republicanas, estaria devidamente configurado já em 1913, sendo exposto na obra do historiador Basílio de Magalhães454, servindo como fonte de legitimação da posição hegemônica desempenhada pelo estado no conjunto da federação. Além deste caráter federalista hegemônico, o IHGSP foi marcado pelo esforço de consolidação do regime republicano no estado de São Paulo. Sob a ótica dos setores republicanos no poder, a estratégia utilizada para sua consolidação parece não ter sido a de 453

Maria Helena Capelato utilizou o termo ao tratar da ideologia do jornal O Estado de São Paulo (OESP) nos anos 1920. Segundo ela, “a doutrina dos norte-americanos sobre o “destino manifesto” foi adaptada à sociedade paulista, permitindo aos representantes da imprensa exaltar a superioridade deste povo”. Procuro mostrar como esta visão dos liberais oposicionistas do OESP (e no caso específico Júlio de Mesquita Filho), assim como de vários outros setores da elite paulistas, constituiu uma apropriação do discurso historiográfico republicano, elaborado no interior do IHGSP. É no interior desta instituição que se forjou a crença no destino manifesto paulista. CAPELATO, Maria Helena. Os Arautos do Liberalismo. Imprensa paulista (19201945). São Paulo: Brasiliense; 1985. P. 30. 454 No livro citado, aparece, talvez pela primeira vez, o destaque dos paulistas na construção da liberdade nacional, entendidos como marcos da história brasileira: colônia, Independência, Regência, Abolição e República: “Têm os paulistas razões sobejas para se desvanecerem do seu progresso excepcional e das suas nobilíssimas tradições. Foram eles que durante a longa noite colonial, traçaram com o seu sangue intemerato, com a sua incomparável heroicidade, a homérica epopéia da conquista do sertão(...). Foram eles que mais controbuíram, principalmente pelo órgão do Patriarca imortal, para o corte do cordão placentário que, por mais de três dilatados século, nos trouxera jungidos ao reino além mar, numa odiosa e inaturável servidão. Foram eles que deram ao país durante a fase admirável de verdadeira experimentação republicana, qual foi o ‘período regencial’, o maior estadista daquela época memorável, Diogo Antônio Feijó, o enérgico padre de ‘antes quebrar que torcer’. (...) Foram eles que, dirigidos pela trindade gloriosa, constituída por José Boinifácio, Luis Gama e Antônio Bento, mais eficazmente cooperaram para que se lavasse do nosso auriverde pendão a negra nódoa que maculou até 13 de maio de 1888. Foram ele, finalmente, eu, chefiados por Francisco Rangel Pestana, Prudente de Morais, Francisco Glicério, Bernardino de Campos e Manuel de Campos Salles, deram o apoio decisivo, sem o qual não teria sido tão cedo vitorioso, como foi, o movimento Republicano (...)” (grifos meus) In MAGALHÃES, Basílio. O estado de São Paulo e seu progresso na atualidade. Pp 21, 22, 23.

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excluir os adversários políticos (no caso, os católico-monarquistas) do convívio institucional, mas sim de incorporação controlada dos setores dissidentes, visando a formação de um consenso mínimo no seio da elite estadual, sob a égide republicana. Assim, o IHGSP transformou-se em importante lugar de sociabilidade de setores diversos da elite paulista, cada qual com seus objetivos próprios, com destaque para aqueles que nas duas décadas anteriores mais haviam investido no estudo do passado: os republicanos e os católicos ultramontanos militantes. Esta composição variada, assim como o maior peso conferido ao republicanismo, ficavam claros na própria “trindade fundadora”: Estevão Leão Bourroul, Antônio de Toledo Piza e Domingos Jaguaribe. Sua articulação parece ter sido cuidadosamente pensada para não excluir os principais setores da elite paulista, politicamente divergentes, mas igualmente empenhados no estudo do passado regional. Vale a pena estudar rapidamente a trajetória dos três fundadores, uma vez que, além de serem significativas dos setores sociais e políticos congregados no IHGSP, também nos apontam para as correntes de interpretação do passado paulista lá desenvolvidas. Estevão Leão Bourroul era francês de nascimento, mas desde a infância radicado em São Paulo, onde terminou o curso de direito, dedicando-se à advocacia. Destacou-se na sociedade paulista do final do séc. XIX por ser um dos expoentes do grupo de militantes laicos ultramontanos, estudado no capítulo anterior. Nos anos 1870 e 1880, foi um ardente adepto da “ala mendista” do Partido Conservadorem São Paulo, tendo se destacado no jornalismo (foi diretor do Monitor Católico, jornal em circulação de 1879 a 1882) onde atacou com igual verve os setores republicanos e os membros da União Conservadora. Após a proclamação da República, Estevão Bourroul estava articulado ao restauracionismo monárquico, dedicando todos os seus esforços à fundação, em 1890, de um Partido Católico, que não chegou a se formar, como já foi dito antes. Na sua opinião, esta agremiação deveria ser considerada como a refundação do antigo Partido Conservador monárquico, devendo representar “o verdadeiro partido de reação e resistência à política ditatorial do governo provisório” conforme explicitava em uma de suas obras455. Ajuda a

455

Segundo o autor, também participaram da articulação de um novo Partido ConservadorDelfino Ulhoa Cintra, Barão de Jaguara, Rodrigo Silva, Rodrigues Alves, Duarte de Azevedo (primeiro vice presidente do IHGSP), Visconde de Parnaíba, Dutra Rodrigues, dentre outros. BOURROUL, Estevão Leão. Hercules Florence. Ensaio Histórico –literário. São Paulo; Andrade de Melo; 1900. P. 557.

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compreender sua inclusão na trindade fundadora o fato de ter sido escolhido, ainda no fim do Império (1888), para ser o “concessionário dos Anais Paulistas”, espécie de cronista oficial do estado, cargo este ratificado na República, em 1891, provavelmente durante o interregno conciliador representado pela Presidência estadual de Américo Brasiliense, quando foram chamados para o governo republicano diversos ex-monarquistas456. Se Estevão Bourroul, representava a forte ala católico-monárquica, à qual foi confiada a vice-presidência do Instituto na figura de Duarte Azevedo, por outro lado, Antônio de Toledo Piza e Domingos Jaguaribe representavam os setores republicanos então dominantes no interior do IHGSP, aos quais coube a Presidência da instituição, confiada a Cesário Mota Jr.. Antônio de Toledo Piza era um típico representante da elite republicana paulista, sendo um dos principais difusores do imaginário americanista. Nascido em 1848, de uma das mais tradicionais famílias do estado, nos anos 1870, inclinou-se a seguir a carreira de engenheiro, tendo sido um dos inúmeros paulistas que partiram para estudar nos Estados Unidos (no seu caso foi para a Universidade de Cincinnati, em Ohio) onde, a par de primorosa formação técnica, reforçou sua admiração política pelo modelo norteamericano. Exemplo desta admiração americanista foi a série de artigos enviados dos EUA por Toledo Piza para o jornal republicano A Província de São Paulo, em 1886 e 1887. Neles, o futuro fundador do instituto paulista apresentava, embevecido, os mais diversos aspectos do modelo americano, desde a ética empreendedora da plutocracia ianque (“milionários americanos” de 17/12/1886 a 24/12/86) até as técnicas de exploração de recursos naturais (“Petróleo nos Estados Unidos” de 3/abr./1887 a 14/abr/1887), passando pelos valores políticos - liberais e moderados - da República do norte (“Eleições presidenciais nos EUA”, 5 e 6 / fev./ 1886.). Como não poderia deixar de ser, Toledo Piza foi republicano histórico, tendo sido agraciado, após o advento do novo regime, com o cargo de diretor da Repartição de Estatística e Arquivo do estado, cargo que ocupava no instante em que foi fundado o IHGSP. Por outro lado, o médico Domingos Nogueira Jaguaribe, há tempos enraizara seus interesses na Província de São Paulo, sendo cearense de nascimento, origem esta 456

“lei provincial n º 15, de 18 de fevereiro de 1888. Lei estadual n º 15 de novembro de 1891; cap. 3, disposições geriais, art. 46 e respectivos, contratos firmados com os Exmos. Srs. Conselheiro Rodrigues Alves e Dr. Cerqueira César.” Idem, Ibidem, p. XI.

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compartilhada por Capistrano de Abreu, o expoente da historiografia territorialista renovada, autor com quem Jaguaribe mantinha estreito contato desde a infância e a quem hospedava nas vindas a São Paulo. Mais do que republicano e abolicionista457, Jaguaribe se destacava como representante dos setores territorialistas da elite paulista, empenhados diretamente na ocupação, colonização e povoamento do sertão oeste do estado. Seu ideal territorialista havia sido sistematizado na obra Reflexões sobre a colonização no Brasil de 1878, sendo materializado no auxílio prestado à criação da maior iniciativa oficial de política territorialista ocorrida durante a Monarquia, que foi a Comissão Geográfico e Geológica de São Paulo (CGGSP), auxilio este revelado por informação dos membros originais da Comissão458. No momento de criação do IHGSP, Domingos Jaguaribe exercia o cargo de diretor em exercício do Liceu de Artes e Ofícios, submetido à Secretaria de estado do Interior, sob comando de Cesário Mota Jr. Monarquistas católicos restauracionistas, republicanos americanistas, republicanos envolvidos em projetos territorialistas, o IHGSP congregava diferentes setores sociais e políticos, cada qual trazendo interpretações do passado regional e brasileiro específicas, consolidadas no passado recente da luta em torno da deslegitimação do regime monárquico. Consequentemente, o discurso historiográfico que produziu não poderia ser marcado pela homogeneidade, principalmente nos 10 primeiros anos de atividade, que serão aqui privilegiados. Assim, destaco a formação de pelo menos três correntes de interpretação do passado paulista internas ao Instituto, cada qual correspondendo a um dos setores representados pela “trindade fundadora”. Havia a corrente monárquico católica, fruto da fusão da matriz indianista com a ultramontana, materializada nos escritos, de autores como João Mendes Jr., Eduardo Prado,

457

O abolicionismo de Jaguaribe foi explicitado no seu romance Herdeiros de Caramurú, de 1880, obra elogiada pelo abolicionista Joaquim Nabuco no seu livro O Abolicionismo. 458 Orville Derby e Teodoro Sampaio, diretor e primeiro engenheiro da Comissão, tenderam a frisar o papel de Jaguaribe como um dos idealizadores da instituição. Em carta não datada (mas presumivelmente dos anos 1880) a Domingos Jaguaribe, escrevia Capistrano de Abreu: “Disse-me depois o Dr. Derby (que está muito teu amigo e que a ti quase exclusivamente atribui a grandiosa idéias da Comissão GeológicoGeográfica),....” (grifos meus), In RODRIGUES, José Honório. (org.) Correspondência de Capistrano de Abreu. Vol. 1. RJ: Min. da Cultura: 1954, p. 30. Da mesma forma, Teodoro Sampaio, que participara da CGGSP, em texto que historiava a criação da comissão, ressaltava o papel decisivo desempenhado pelo “Dr. Domingos Nogueira Jaguaribe, homem de iniciativas” que informara, nos anos 1880, ao presidente da província de São Paulo, o Conselheiro João Alfredo, a existência de vias terrestre para Mato Grosso, o que teria precipitado a criação da comissão, há tempos aventada. SAMPAIO, Teodoro. “Um inédito de Teodoro Sampaio” In. Revista do Arquivo Municipal, São Paulo, Vol LVIII, jul., 1939. P. 66.

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Leôncio do Amaral Gurgel e, em determinados momentos, do monarquista adesista Teodoro Sampaio. A corrente liberal republicana, lastreada na matriz historiográfica liberal, representada pelos trabalhos do próprio Antônio de Toledo Piza e Washington Luís Pereira de Sousa. E, por fim, a corrente territorialista, filiada à matriz historiográfica territorialista renovada, representada principalmente por Teodoro Sampaios e Orville Derby. Como se pode perceber, o IHGSP não era uma instituição de saber alheia ao universo da política e, muito menos, marcada pela homogeneidade de posicionamentos. Esta intensa politização, contudo, não deve ser entendida como contraditória em relação ao papel desempenhado pelo IHGSP de institucionalização do conhecimento histórico na província. Sobre este ponto, sigo a reflexão de Michel de Certeau, para quem a produção do discurso historiográfico a partir de uma instituição de saber não significa a anulação de seu caráter político ideológico. Para este autor, a instituição de saber não representa um lugar alheio à sociedade e à luta dos grupos políticos aos quais os historiadores estão ligados, mas antes um lugar particular, em que a disciplina histórica passa a ser marcada pela “ambivalência de ser a lei de um grupo e a lei de uma pesquisa científica”459. A instituição de saber ( e o conseqüente processo de institucionalização) é, portanto, marcada por uma tensão entre a submissão às leis da “disciplina”, caracterizada pelo reconhecimento dos pares da autenticidade científica do conhecimento produzido, e as demandas do lugar social (e, por meio dele, da vinculação política) ao qual está ligado o historiador460. Seguindo a pista de Certeau, o que procuro mostrar é como o IHGSP acabou assumindo o papel de institucionalizar as antigas representações do passado paulista, que vinham sendo produzidas desde o período anterior à crise do Segundo Império. Na prática, as visões do passado de republicanos e ultramontanos deveriam se adequar às regras de verificação científica, o que significava, no período, se submeter à crítica documental histórica, desenvolvida pela escola metódica, então dominante461.

459

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. RJ: Forense; 2000. P. 70. Esta tensão entre “disciplina” e “lugar social” que está na base da concepção de de Certeau foi frisada em SILVA, Rogério Forastieri. História da Historiografia. Bauru: EDUSC: 2001. 461 O único texto de caráter metodológico publicado na revista do IHGSP, no período aqui estudado (18941916), seguia as regras do método crítico documental da escola metódica, sendo presente as citações de 460

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Esta institucionalização também seria marcada pela adição da base documental que faltava às interpretações dos anos 1870 e 80. Neste sentido, foi de grande importância o papel desempenhado pelos documentos publicados na revista do IHGSP e, principalmente, a iniciativa de Antônio de Toledo Piza, diretor do Arquivo estadual. À testa do principal depositário de documentos estaduais, Toledo Piza incentivou a publicação de importantes conjuntos de fontes documentais sobre o período colonial estadual, principalmente aquelas referentes ao séc. XVIII. Elas foram reunidas na série dos Documentos Interessantes para a História de São Paulo, colocadas à disposição do grande público a partir de 1894, constituindo a principal iniciativa republicana de publicação de documentos, anterior a que seria desenvolvida por Washington Luis a partir de 1917. Com este novo aporte documental, o antigo discurso historiográfico produzido no período da propaganda republicana pôde assumir contornos mais precisos, mantendo porém muitas das interpretações gerais, anteriormente definidas. Assim, o discurso sobre a liberdade primitiva do paulista seria retomado e reelaborado no interior do IHGSP pela corrente aqui chamada de liberal-republicana, e a relação entre o meio físico paulista e o fenômeno do bandeirismo, esboçada por Alberto Salles, receberia novo tratamento teórico e documental pela corrente aqui chamada de territorialista. Ambas as iniciativas – de liberais-republicanos e territorialistas - apontavam para o processo mais amplo de definição de uma imagem positiva e laudatória do bandeirante, que se transformou no ponto de confluência dos trabalhos do instituto paulista. Dedicarei atenção especial a estas duas correntes (republicana e territorialista), não abordando aqui a principal iniciativa da corrente monárquico-católica, representada na polêmica desenvolvida de 1900 a 1902 em torno da figura de João Ramalho, tratada em artigo especial462. Esta polêmica, que procurava negar ao “cobiçoso” e “caçador de índios” João Ramalho o papel de patriarca dos paulistas no panteão regional, poder ser considerada uma das últimas manifestações da historiografia indianista, em sua forma renovada por Teodoro Sampaio e João Mendes Jr. A polêmica também foi o eco, no interior do IHGSP, de um movimento néo-indigenista, organizado pelos monarquistas católicos no início da

Langlois e Seignobos. Ver TAUNAY, Afonso. “Os Princípios gerais da moderna crítica histórica.” In RIHGSP, vol. XVI. 1914

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República, e que se manifestaria principalmente em iniciativas paralelas, realizadas fora do instituto, por isso não recebendo maior atenção neste estudo. A principal destas iniciativas paralelas, foi a série das Conferências Anchietanas463, organizadas por Eduardo Prado, entre 1896 e1897, para comemorar o centenário do jesuíta canarino e que acabou mobilizando a oposição católico-monarquista. Com o grupo já articulado, organizou-se a criação, em 1901, da Sociedade de Etnologia e Civilização dos Índios464, diretamente relacionada ao aparecimento da polêmica sobre João Ramalho nas páginas da revista do IHGSP. Na melhor tradição tanto indianista quanto ultramontana, estas iniciativas monárquico-católicas procuraram conferir ao jesuíta o papel de herói civilizador do Brasil, o que os levava a atacar João Ramalho, apresentado como “judeu” e homem de maus costumes, sendo apresentado como o maior empecilho ao projeto de criação de uma civilização cristão nos primórdios de São Paulo. Mas se católicos e monarquistas militantes se uniam para louvar, mais uma vez, jesuítas e tupis, a intelectualidade republicana, agora no poder, se dedicava a louvar o bandeirante, agora definitivamente eleito como herói regional maior e símbolo das virtudes paulistas.

6.3. Antônio Piza e Washington Luís: A liberdade do colono paulista como mito de origem perrepista.

A presença de diversos sócios monarquistas restauracionistas, em conflito direto com o regime ainda em vias de consolidação, talvez tenha reforçado a necessidade de afirmação explícita do caráter republicano do IHGSP. Este não se manifestava somente na composição dos sócios e nas homenagens às principais figuras política da República, como

462

FERRETTI, Danilo. J. Zioni. & CAPELATO, Maria Helena R. “João Ramalho e as origens da nação: os paulistas comemoram o IV centenário do descobrimento”. In Tempo, n º 8, dez. 1999. 463 As conferências, iniciadas em 1896, não puderam ser concluídas pois seu organizador, o monarquista restauracionista Eduardo Prado, teve que deixar São Paulo às pressas para fugir às agressões de republicanos exaltados com os acontecimentos de Canudos. A íntegra das conferências apresentadas está em III Centenário do Venerável Joseph de Anchieta. Paris: Aillaud & Cia.; 1900. 464 Ver Revista da Sociedade de Etnologia e Civilização dos Índios. São Paulo: Tip. a vapor de Spindola, Siqueira & Cia., 1901. Ver também a série de 4 conferências pronunciadas por João Mendes Jr. nesta sociedade, In MENDES Jr. João. Os Indígenas do Brasil, seus direitos individuais e políticos. São Paulo: Typ. Hennies Irmãos; 1912.

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também na indicação do secretário do interior Cesário Mota Jr. como Presidente do Instituto ou do Presidente da República Prudente de Morais como seu presidente honorário. Ele também se fez presente no discurso historiográfico produzido no interior da instituição, que acabou se voltando à legitimação dos valores e das instituições do novo regime. Neste sentido, logo no primeiro ano de funcionamento, o traço americanista do republicanismo paulista veio à tona no discurso do inflamado orador João Monteiro, lente da faculdade de direito. A 4 de julho de 1895 ele proferia o discurso em “homenagem à Independência dos Estados Unidos”. Pura oratória, o texto pouco desenvolvia aspectos históricos, mas cumpria o seu papel político de legitimação da nova ordem: “República e Direito – eis, pois, as duas estrelas, que na noite de hoje estão a cintilar no nosso céu”. Os Estados Unidos eram apresentados elogiosamente como “o nosso irmão do norte” que tinha a nobre missão de “nos servir de guia na nossa vida republicana”465. Mas como se tratava de uma instituição voltada à História, o empenho dos letrados foi de enraizar as novas instituições republicanas no terreno estável das tradições. Houve, assim, um esforço de criar uma genealogia para a jovem República. Procurou-se inventar uma tradição republicana, lançando para o passado as reivindicações de liberdade e soberania popular nas quais se acreditava localizar as bases de legitimação do novo regime. Neste sentido, contribuição exemplar veio do sócio fundador e republicano abolicionista Domingos Nogueira Jaguaribe Jr. que, se em termos de localização social mais se aproximava dos projetos territorialistas, em termos de contribuição intelectual destacou-se no reforço do discurso de caráter liberal e republicano. Ele escreveu um longo artigo intitulado “Origens republicanas do Brasil antes do século XIX”. Nele, recuperava a matriz historiográfica liberal, que, como vimos anteriormente, serviu de lastro para a contra-história republicana do período da propaganda. Evidenciava, assim, uma importante mudança. De contra-história, voltada a atacar o poder monárquico centralizado, a matriz liberal transformava-se no suporte da história oficial republicana, devidamente institucionalizada e desempenhando o papel de principal meio simbólico de legitimação do poder vigente. 465

MONTEIRO, João. Discurso lido na sessão de 4 de julho de 1895, do IHGSP, em homenagem à Independência dos Estados Unidos” In RIHGSP, vol 1, 1895.

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Neste trabalho, Jaguaribe explicitava a notória oposição entre liberdade individual e autoridade estatal, característica da matriz liberal, na própria dedicatória que homenageava “as vitimas da prepotência dos governos”. Por sua vez, o “povo” era descrito como “eterna vítima do despotismo dos poderosos”466. Neste artigo, o autor tinha como objetivo central enraizar a reivindicação republicana na história nacional brasileira, fundindo com um indelével vínculo simbólico os termos Nação e República. Pela escolha de diversos personagens e episódios do passado colonial brasileiro, Jaguaribe procurava mostrar como a verdadeira tradição nacional era a tradição republicana, uma vez que “desde que se formou a sociedade brasileira ela não se submeteu ao regime da monarquia senão pela força”467. Assim, a legitimação do novo regime passava pela desqualificação do antigo. Se a República era a manifestação verdadeira e natural do povo brasileiro, a Monarquia seria um desvio, uma violência imposta à vontade nacional. Para atestar o caráter republicano e insubmisso ao poder estatal do brasileiro, Domingos Jaguaribe listava todo um panteão nativista republicano: os fluminenses e paulistas seiscentistas opositores do governador Salvador Correa de Sà e Benevides, o pernambucano Bernardo Vieira de Melo, o mineiro Felipe dos Santos, os revoltosos pernambucanos de 1817 e a figura principal dentre todas: o Tiradentes, a quem reservou quase um terço do trabalho. Mas se o texto de Jaguaribe reforçava o entusiasmo republicano da elite paulista, ele ainda não atendia a todos os seus anseios, uma vez que não conferiu o necessário caráter regionalista à sua genealogia do “ideal democrático”. Os paulistas pouco destaque tinham no panteão republicano do cearense Domingos Jaguaribe. Esta lacuna seria sanada pela atuação de Antônio de Toledo Piza e, principalmente, de Washington Luís Pereira de Sousa, a figura de maior destaque e importância nos primeiros anos do IHGSP, juntamente com Teodoro Sampaio. O republicano americanista Antônio de Toledo Piza, lastreado na farta documentação encontrada no Arquivo do Estado, então sob sua responsabilidade, se dedicou principalmente a tratar dos episódios da Independência em São Paulo, momento entendido como de ressurgimento de uma veia autonomista e liberal do povo paulista 466

JAGUARIBE, Domingos Nogueira. “Origens Republicanas do Brasil antes do séc. XIX”. In RIHGSP, vol. 1, 1895. Respectivamente, p.28; p. 23. 467 Idem, Ibidem, p.26.

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existente desde a colônia. A este último período, aquele que mais nos interessa, também dedicou uma série de artigos intitulados “crônicas dos tempos coloniais”. Ao contrário do texto de Domingos Jaguaribe, todo o seu trabalho é pautado por um recorte essencialmente regional, dando assim continuidade à obra da contra-história republicana paulista, de Américo Brasiliense, Martim Francisco e Júlio Ribeiro. Deles também retomava a idéia da existência de uma liberdade original do paulista, que seria identificada como manifestação de um espírito republicano. Vale a pena citar a reprodução da íntegra do trecho em que apresenta a sua representação dos primórdios de São Paulo: “De 1532 até 1720, durante perto de dois séculos, a liberdade individual dos cidadãos republicanos paulistas, o seu espírito de iniciativa e de empreendimento e o seu gosto pelas aventuras dos sertões desconhecidos tinham-se firmado e desenvolvido em ausência das medidas restritivas de um governo local, acanhado, mesquinho e suspeitoso, que ainda não existia; e a ação governamental emanada de Lisboa e do Rio de Janeiro (...) quase não se fazia sentir na periferia. Foi esta época especialmente caracterizada pela extensão da liberdade individual e pela realidade da autonomia municipal e forma por estes motivos o período áureo da história colonial de São Paulo. Fora da influência imediata da ação deletéria do governo colonial, aquelas famosas gerações de audazes bandeirantes, de impertérritos sertanejos, não tinham para os seus atos outras restrições e outros incentivos mais do que os estímulos de um brio levado ao extremo e (...) a nobre ambição da independência pessoal pela riqueza bem adquirida.”468 ( grifos meus) Neste trecho, Antônio Piza apresentava os principais elementos da visão republicana do passado colonial paulista. Com todas as letras aparecia a idéia do período colonial como uma Idade de Ouro, um “bom tempo” original de São Paulo marcado pela ausência do poder despótico do governo colonial. Neste sentido, Toledo Piza identifica “republicanos paulistas” já no séc. XVII. Desta forma, o autor unia simbolicamente

468

PIZA, Antônio de Toledo. “Crônica dos tempos coloniais. O militarismo em São Paulo.” In RIHGSP, vol.7, 1899. p. 303, 304.

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paulistanismo e republicanismo e ia além ao relacionar ambos os termos à figura do bandeirante. O bandeirante de Antônio Piza era interpretado nos quadros da matriz historiográfica liberal, o que lhe conferia um caráter singular de exceção de independência e liberdade num período colonial apresentado como essencialmente despótico e tirânico. Ao frisar o seu caráter livre e independente, Toledo Piza incorporava o bandeirante ao panteão republicano esboçado pela produção do Instituto. Mas se da contra-história republicana Antônio Piza recuperou o tema da liberdade do colono paulista, transformando-a simplesmente na liberdade bandeirante, o autor não compartilhou com o antijesuitismo daquele grupo. Revelando a estratégia institucional de afirmação da ordem republicana pela incorporação da dissidência monárquico-católica, Toledo Piza baixou o tom da discussão sobre a expulsão dos inacianos, procurando moderar, ao máximo, a representação do confronto entre bandeirantes e jesuítas469. Não seria mais na expulsão de jesuítas que o republicanismo paulista, agora detentor do poder, afirmaria o seu caráter liberal e “democrático”, como fizera Martim Francisco. Principalmente neste momento, em que o objetivo maior do IHGSP parecia ser a busca de unidade da elite pela conciliação e coptação dos grupos católicos. Para Antônio Piza, as origens da democracia republicana paulista estariam exatamente neste original período colonial – de 1535 a 1720 – quando São Paulo vivia seu “período áureo” de autonomia frente ao governo despótico da Monarquia portuguesa. Isso transformava a proclamação do regime republicano em um reencontro de São Paulo com sua mais legítima vocação. Mas se Piza, seguindo os passos da contra história republicana, consolidou no Instituto a imagem da origem da liberdade republicana paulista, foi Washington Luís Pereira de Sousa o responsável por explicar a supressão, nos anos 1720, desta mesma liberdade, reintroduzindo o tema da decadência de São Paulo, já anteriormente tratado por

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Além de rasgar elogios ao sistema da missões, Toledo Piza representava a expulsão dos inacianos da capitania como uma intimação moderada e sem prejuízos para os jesuítas, por parte dos piratininganos. Ao contrario das violências ocorridas em Santos, “em São Paulo se procedeu de modo mais correto: o povo e autoridades intimaram os jesuítas a se retirarem da capitania em prazo fixo, e como não fossem logo obedecidos, renovaram a intimação por duas vezes com prorrogações dos prazos concedidos para eles deixarem a capitania, o que os padres fizeram depois de terem tomado todas as providências garantidoras das suas já valiosas propriedades e de seus direitos futuros.” (grifos meus). In PIZA, Antônio de Toledo. “A Expulsão dos jesuítas em 1640” In RIHGSP, vol.3, 1898. P. 34.

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Ricardo Gumbleton Daunt e Machado de Oliveira, o primeiro em chave ultramontana e o segundo em chave monárquico indianista. Washington Luís Pereira de Sousa, não era originário da tradicional elite paulista. Fluminense de Macaé, recém formado em direito,iniciou sua aproximação com o ambiente paulista ao se mudar, em 1893, para o município de Batatais na Alta Mogiana, região de maior produção cafeeira do oeste paulista470. Envolveu-se (junto ao também principiante Altino Arantes) na política municipal, assumindo uma postura inicialmente oposicionista, abandonada a partir de 1901, quando, em um único movimento, mudou-se para a cidade de São Paulo e casou-se com Sofia Paes de Barros, filha do segundo Barão de Piracicaba. A partir de então, ligado por laços de matrimônio a uma das mais importantes famílias da oligarquia paulista, Washington Luís consolidou a sua inserção no seio da elite regional, tendo sido eleito deputado estadual pela situação perrepista em 1903. No mesmo ano de 1901 em que se estabeleceu na capital, e como parte deste movimento de inserção na elite, foi admitido como sócio no IHGSP, dedicando-se com afinco à pesquisa documental471. Se a entrada de Washington Luís na elite se iniciara pouco antes, a sua atuação como historiador do passado colonial paulista parece ter-lhe ajudado muito a consolidar o apoio quase irrestrito que teria nos anos 10 no seio da elite política regional. Sobre os primeiros tempos na capital, o próprio Washington Luís relembrava, em 1956: “pelos anos de 1902 e 1903 freqüentei o Arquivo Público de São Paulo e o da Câmara da Capital. Graças à solícita cortesia de seus diretores, pude examinar e ler alguns dos referidos documentos [Atas da Câmara e Inventários e testamentos], convencendo-me de que poderia por eles fazer uma relação cronológica das entradas ao sertão, incompleta e imperfeita, é verdade, mas útil e indispensável”472. O diretor do arquivo citado era o próprio Antônio de Toledo Piza, que muitas esperanças depositava no jovem estudioso, e o resultado destas primeiras pesquisas apareceram na forma de artigos publicados em 1903 no jornal Correio Paulistano, então já na posição de “órgão oficial da Comissão Diretora do Partido Republicano Paulista”473. O 470

Os dados biográficos de Washington Luís foram retirados do minucioso, porém laudatório, trabalho de DEBES, Célio. Washington Luís (1869 -1924). São Paulo: Imprensa Oficial; 1994. 471 Além de Idem, Ibidem; ver também Idem, “O historiador Washington Luís” In RIHGSP, 1990. 472 SOUSA, Washington Luís Pereira de. Na Capitania de São Vicente. São Paulo: ed. Itatiaia; 1980. Pp 16. 473 Os Artigos do Correio Paulistano são: “Tibiriçà era Guaianá?”; “Uma eleição em 1599”, ambos de 1903, em dias que não identificados e a série “A Vila de São Paulo”, publicada nos dias 4, 12 e 19/set./ 1904.

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artigo “Uma eleição em 1599”, com sua referência ao processo democrático nos primórdios de Piratininga, já indicava o enfoque liberal republicano com que Washington Luis representaria o passado regional. Neste período, como afirmava no seu relato, dedicou-se ao estudo das Bandeiras, tendo publicado na revista do IHGSP artigo sobre Antônio Raposo474. Mas o seu verdadeiro golpe de mestre foi conseguir aquilo que, desde meados do sec. XIX, era considerado impossível por todos os historiadores: achar o testamento de João Ramalho. Washington Luís o fez, pondo fim à polêmica historiográfica que, desde pelo menos 1855, agitava os meios historiográficos da corte e de São Paulo e colocava em dúvida a autoridade do cronista maior dos feitos paulistas; Frei Gaspar da Madre de Deus475. Ao publicar a cópia do testamento original em 1902, Washington Luís auxiliava a reabilitação da autoridade deste autor setecentista, o que valeu por uma reabilitação da própria tradição historiográfica regional de forte cunho laudatório, que então procurava afirmar-se por meio do IHGSP. A reabilitação de Frei Gaspar seria definitivamente consagrada por Afonso de Taunay que, em 1913, também no interior do Instituto paulista, organizou efemérides comemorativas das obras deste beneditino santista e de Pedro Taques476. Mas o principal trabalho de Washington Luís seria o artigo, de 1903, “Na Capitania de São Paulo: o governo de Dom Rodrigo César de Meneses”, transformado em livro em 1918, quando era prefeito da capital e iniciava a política pública de investimento no culto 474

SOUSA, Washington L. P. “Antônio Raposo”. In RIHGSP, vol.9, 1909. A questão do testamento girava em torno da averiguação da data de chegada de João Ramalho às terras brasileiras. No séc. XVIII, Frei Gaspar afirmara que no testamento de Ramalho, ao qual tivera acesso, se dizia em 1580 que era chegado ao Brasil há mais de 90 anos, o que significava que Ramalho teria chegado por volta de 1490, antes não somente da chegada de Cabral mas também da própria descoberta da América por Cristóvão Colombo. A historiografia do IHGB, no momento em que se empenhou em construir a história nacional brasileira, se lançou desesperadamente à procura do original do testamento, uma vez que aquilo que estava em jogo era a própria definição sobre a qual nação e personagem histórico caberia o mérito não somente da descoberta do Brasil mas, possivelmente, da própria América. Em 1855, pela segunda vez (a primeira fora em 1844), o IHGB incumbiu Machado de Oliveira de realizar nos arquivos de São Paulo uma das clássicas missões de levantamento documental nas províncias, conferindo especial atenção à busca do testamento de Ramalho. Diante da negativa do historiador paulista, em 1877, no interior do IHGB, o historiador Cândido Mendes - maranhense, saquarema e ultramontano - acusou Frei Gaspar de ter falsificado o testamento, atacando frontalmente a autoridade do principal cronista paulista, o que significava a desqualificação da própria visão laudatória do passado regional que a elite republicana procurava retomar, pela via do antijesuitismo, neste momento. Na realidade, Washington Luís achou uma cópia do testamento autêntico, realizada por José Bonifácio no início do sec. XIX, o que não invalidou o sentido simbólico da descoberta. Ver FERRETTI, Danilo & CAPELATO, Maria Helena. Op. Cit. 476 Sobre o empenho e as dificuldades de Taunay em recuperar e publicar os cronistas setencentistas de São Paulo, ver ARAÚJO, Karina Anhesini de. “Intercâmbios intelectuais e a construção de uma história: Afonso d’Escragnole Taunay. 1911-1929”. Franca (SP); Mestrado UNESP; 2003. P.73. 475

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ao passado paulista. O que mais nos interessa è o fato da obra estruturar-se em torno da temática liberal republicana da liberdade do colono paulista, abordando o governo do capitão-geral da capitania de São Paulo, D. Rodrigo César de Meneses, empossado em 1721. Neste trabalho, o enfoque liberal republicano mantinha-se predominante. Era ele que estruturava a obra em torno do embate entre dois polos: a autoridade absolutista e fiscalista da Coroa portuguesa, representada na figura do capitão-geral D. Rodrigo César de Meneses e a liberdade e independência dos colonos paulistas, representada pelos irmãos bandeirantes João e Lourenço Leme. Mais uma vez, era ressaltada, pela produção interna do IHGSP, a liberdade primitiva dos colonos e bandeirantes paulistas. Washington Luís, um dos expoentes do perrepismo, louvava as origens livres e independentes do povo paulista, apresentando, como anteriormente haviam realizado Martim Francisco e Américo Brasiliense (três vezes citado), uma imagem de uma democracia original identificada na atividade das Câmaras Municipais: “Os sertanistas, transformados em mineiros, ignorantes da autoridade portuguesa, continuavam, por iniciativa própria, a fazer a guerra ao gentio, a criar cargos e provê-los, a impor tributos (...). Jamais a vida municipal fora tão forte e vigorosa, como no séc. XVII; gozavam os paulistas de uma autonomia municipal ampla, temperada por uma espécie de plebiscito. Isso não estava nas leis; mas fizera-se aos poucos, incorporando-se nos usos e costumes, e transmitindo-se como um patrimônio de que ninguém duvidava. Era um regime em que, quando se tratava do interesse comum, o povo se reunia, não para impor, por que em geral agiam todos de acordo, mas para dar a resolução coletiva, que, no seu entender, se legalizava, adquiria força obrigatória, pela adoção por parte do senado da câmara.”477 Era a própria imagem do self government vigente na São Paulo seiscentista, um governo autônomo, em que, “longe da metrópole, com comunicações difíceis e raras, os paulistas viviam meio esquecidos e abandonados, de modo que a ação governamental, 477

Idem, Ibidem, p. 60.

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quando lhes chegava, passava desapercebida”. Livre do poder opressor da Coroa absolutista lusitana, a Piratininga seiscentista era uma espécie de ilha de liberdade no alto da Serra do Mar, cercada por um conjunto de capitanias submetidas à autoridade despótica do rei. Contudo, o interesse maior da obra de Washington Luís estaria no tratamento da questão da supressão desta liberdade primitiva do paulista, o que introduzia com força o tema da decadência de São Paulo e do paulista. Como vimos, o tema não era de todo novo. Pelo menos Ricardo Gumbleton Daunt e Machado de Oliveira haviam dele tratado em meados do séc. XIX. Enquanto para o ultramontano Daunt a decadência da sociedade feudal e jesuítica, que identificava na Piratininga colonial, teria ocorrido com a expulsão dos jesuítas por Pombal, o indianista Machado de Oliveira acreditava que o fim do bandeirismo, ao invés de decadência havia representado a “regeneração dos costumes paulistas”. Por sua vez, Washington Luís abordou o tema sob o enfoque da matriz historiográfica liberal, de forma que a decadência de São Paulo iniciou-se em 1721 - como aliás indicara Antônio Toledo Piza478- e foi motivada pela intervenção direta do “pólo da autoridade”, ou seja, da Coroa portuguesa, representada na figura do capitão-geral D. Rodrigo, que viera para “poder ferrar no dorso paulista a ventosa que havia de sugar os quintos reais”479. A imposição da autoridade absolutista e fiscalista da Coroa em São Paulo, foi representada pela perseguição imposta por D. Rodrigo aos irmãos Leme, símbolos da liberdade dos bandeirantes paulistas, a quem Washington Luís não negava uma certa dose de crueldades e desmandos, logo justificados, porém, como maus menores em uma época em que os reis e a nobreza eram os grandes criminosos480. Como representante desta nobreza a serviço do rei, D. Rodrigo foi transformado na personalização negativa do poder despótico e tirânico do Estado: “agachado ante o rei, cujas verduras esteve até pronto a velar, arremessava-se para cima diante dos inferiores (...) violento quando não sentiu

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Em seu estudo “O militarismo em São Paulo”, Toledo Piza já afirmava que “Com a chegada do governador Rodrigo César de Menezes a São Paulo, em 1721, começaram as medidas restritivas da liberdade individual e do direito de locomoção e a exação vigorosa e vexatória de pesados impostos”, ou seja, “foi então que começou a decadência intelectual e moral da capitania”. In PIZA, Op. Cit. p. 306,307. 479 Idem, Ibidem, p. 65. 480 “Que há que maravilhe ver colonos da inculta América raptarem, estruparem [sic] e assassinarem, quando em Lisboa, o rei despojava-se no leito das freiras, entre pias de água benta; os príncipes de sangue

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perigo, cometeu e autorizou crueldades (...) jamais teve um clarão que o iluminasse, mostrando que um capitão-geral podia ser alguma coisa mais do que um arrecadador de quintos.”481. O drama da narrativa historiográfica de Washington Luís estava em que esta figura violenta e autoritária - encarnação do Estado absolutista lusitano - após intensa perseguição nos sertões paulistas e goianos, havia vencido os destemidos e independentes Irmãos Leme, tidos como os últimos bandeirantes. Com eles era a própria liberdade paulista que desaparecia: “Rodrigo César de Meneses tinha vencido; tinha destruído a liberdade; tinha mostrado o que era seu poder; nas salas de palácio em São Paulo, tinha visto os representantes das principais famílias paulistas, trêmulos e acobardados, a desfazerem-se em desculpas”482 (grifos meus). As conseqüências da ação de D. Rodrigo foram as mais funestas possíveis; mergulhando São Paulo nas trevas do regime colonial, que até então desconhecia, e consolidando a decadência do espírito de indômita liberdade do paulista: “(...) deu o golpe final nos paulistas, reduzindo-os a habitantes da capitania de São Paulo, prolongando assim, por mais de um século, o regime colonial, com a integridade da América portuguesa. Após seu governo não há mais paulistas, há apenas capitania de São Paulo, e essa mesma tão decadente que, desmembrada, ia acabar anos depois como uma dependência, um anexo da capitania do Rio de Janeiro. Ia acabar, mas como acaba a fênix que se recolhe às próprias cinzas para renascer, mais tarde, forte e vigorosa.”483 O tom melancólico que perpassava a última parte da obra era substituído por um final otimista e esperançoso. Se a liberdade de fato havia sido suprimida com a submissão de São Paulo ao Rio de Janeiro, se os paulistas haviam decaído, esta não era uma situação definitiva, uma vez que esta mesma liberdade primitiva do paulista renasceria das cinzas como a fênix. Este renascimento, ficava sugerido, ocorreria quando São Paulo novamente recuperasse a sua antiga autonomia e independência, o que somente ocorreu com o governo

experimentavam suas armas na marujada alegre; os principais fidalgos matavam em bando pelas ruas da capital (...)”Idem, Ibidem, p. 69. 481 Idem, Ibidem, p. 164. 482 Idem, Ibidem, p. 105.

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republicano. Ao apontar para o renascimento da liberdade paulista, Washington Luís possibilitava a identificação da luta federalista de finais do séc. XIX como uma herança do antigo espírito de independência paulista, visão esta que apontava o republicanismo paulista como o principal herdeiro da antiga liberdade do bandeirante seiscentista. Com este final esperançoso, Washington Luís reforçava a identificação que autores republicanos como Américo Brasiliense e Antônio de Toledo Piza vinham fazendo da sua luta por República e Federação como sendo uma retomada da antiga tradição de independência paulista, como a restauração de uma época de ouro, identificada no passado colonial seiscentista, livre e independente do poder despótico da Coroa portuguesa. Neste sentido, Washington Luís cristalizava o tema da liberdade do colono paulista seiscentista como um mito de origem do republicanismo paulista, conferindo ao bandeirante um sentido não somente político mas fortemente partidário, transformando-o em um símbolo essencial para os perrepistas. Desconsiderar este sentido político é perder de vista o ponto central de sua representação do passado. O tema da decadência da liberdade paulista seria ressignificado por Paulo Prado nos anos 20, exatamente no momento em que o PRP teve seu poder questionado no interior da própria elite paulista, conforme veremos. Mas nestes primeiríssimos anos do séc. XX, quando o republicanismo paulista conseguira, com Campos Salles, consolidar um novo status quo que lhe garantia a hegemonia no cenário político nacional, Washington Luís despontava como um dos intelectuais que mais se empenhou, no cenário cultural, em consolidar simbolicamente este poder recém adquirido. Para tanto, fizera uso da história, elaborando uma representação do passado paulista que, pelo elogio à liberdade do bandeirante e do povo paulista, consolidou a sua inserção no seio da elite política regional, despertando o entusiasmo dos demais autores do IHGSP. Assim, era o próprio fundador da Instituição e expoente de sua corrente liberal federalista, Antônio de Toledo Piza que, em 1905, apontava em Washington Luís a maior promessa da historiografia regional. Referindo-se aos poucos estudos sobre a história paulista e principalmente das bandeiras, afirmava: “(...) a esta gente [bandeirantes], a mais audaciosa e destemida que o Brasil já produziu, ainda não encontrou um cronista que, narrando os seus grandes feitos, lhe fizesse justiça. (...) 483

Idem, Ibidem, p. 165.

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Alimentamos a esperança de que o dr. Washington Luís Pereira de Sousa, moço de brilhantes talentos, de gosto para os estudos históricos de amor ao trabalho, de sisudo critério e já vantajosamente conhecido no nosso meio histórico, se queira incumbir de suprir tamanha lacuna, dando-nos oportunamente senão uma história completa de São Paulo, desde os primeiros descobrimentos da costa brasileira até hoje, ao menos um trabalho que faça justiça aos bandeirantes e nolos apresente tais quais eles foram – de uma intrepidez à toda prova, de uma lealdade nunca desmentida e de uma liberdade proverbial.”484 Toledo Piza não somente apresentava o investimento no período das Bandeiras como um dos objetivos centrais do IHGSP como ainda indicava Washington Luís como o escolhido para levá-lo a efeito. Contudo, o empenho nas lides da política partidária afastou momentaneamente Washington Luis dos arquivos (a eles voltaria a partir de 1948, quando retornou do exílio a que foi relegado pelo governo varguista485). Mas, se não foi o primeiro autor moderno a narrar pormenorizadamente o fenômeno das bandeiras, como Prefeito da Capital (1914-1919) e Presidente do estado (1920-1924), ele deu o respaldo político e material para tanto, liderando uma verdadeira política pública de culto ao passado paulista, nos anos 20, que será melhor estudada mais adiante. Antes disso, no interior do IHGSP, já se ensaiavam os primeiros passos para o estudo mais aprofundado do fenômeno das Bandeiras. Se a corrente liberal republicana abordou o tema, coube à corrente territorialista nele se empenhar com mais afinco.

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PIZA, Antônio de T. “A História e seus bastidores”. In RIHGSP, v. 10, 1905. P. 251. O resultado de suas buscas materializou-se no livro Na Capitania de São Vicente, de 1956, verdadeira concretização da parte colonial daquela história geral do estado de São Paulo, vaticinada em 1905 por Antônio de Toledo Piza. Mais do que isso, este livro representa uma súmula da visão da história paulista e brasileira elaborada pelo republicanismo liberal paulista. Nela, o autor procura “mostrar a contribuição de São Paulo na história brasileira”, o que significa ressaltar que os paulistas foram os principais (senão os únicos) responsáveis pela construção da nação brasileira. Ao mesmo tempo, o livro é um elogio da “iniciativa individual” do colono e uma peça de acusação do Estado português. O primeiro é apresentado como o único e verdadeiro agente da história paulista e brasileira, a despeito do empecilho representado pelo segundo. Baseado em Alexandre Erculano, a mesma referência de Tavares Bastos, são desqualificados todos os representantes do Estado, desde D. João III até Martim Afonso, ao passo que à “iniciativa privada” é reputada a construção da nação. Ver SOUSA, Washington Luís Pereira de. Na Capitania de São Vicente. Belo Horizonte, São Paulo: Itatiaia, Edusp; 1980. 485

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6.4. Teodoro Sampaio e Orville Derby: territorialismo paulista e o bandeirante como conquistador do sertão.

A elite republicana paulista era essencialmente uma elite territorialista. Pela sua ligação intrínseca com a agroexportação cafeeira, era um grupo que tinha na ocupação territorial, mediante a colonização e povoamento do interior do estado, a mais importante base de sustentação de seu poder econômico e também político. Sem agricultura cafeeira forte não haveria poder político paulista. Segundo Casalecchi, para os perrepistas “a conquista do sertão era uma meta”486, e, poderíamos complementar, não somente a conquista do sertão do estado de São Paulo como também de suas áreas adjacentes (norte do Paraná, Goiás, sul de Mato Grosso, Sul de Minas e Triângulo Mineiro). O territorialismo era mesmo, ao lado das instituições política liberais federalistas, uma das duas componentes básicas do projeto nacional de cunho americanista dos republicanos paulistas. O investimento tanto em agressiva política ferroviária quanto no povoamento por mão-de-obra imigrante, era uma das principais medidas para criar a utopia de modernização liberal preconizada e que tinha no sistema norte-americano de conquista do Oeste o seu exemplo maior de eficácia. Também nos Estados Unidos, foi buscada a idéia para a criação da primeira instituição científica voltada exclusivamente a auxiliar e coordenar a ocupação territorial do estado: a Comissão Geográfico Geológica de São Paulo (CGGSP), inspirada diretamente no modelo dos geological surveys norte-americanos487. Silvia Figueroa explica a criação da comissão em 1886 pela afinação entre o Presidente da Província, João Alfredo, e os interesses de cunho econômico da elite produtora paulista, interessada em um serviço científico voltado ao reconhecimento das potencialidades naturais de sua província. Além do interesse da elite produtora paulista, ressaltado por Figueroa, CGGSP também pode ser considerada como fruto da política levada a efeito pelo grupo de saquaremas modernizadores, dos quais fazia parte João Alfredo Correia de Oliveira, ex

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CASALECCHI, J. E. Op. Cit. p. 21. Sobre a criação da CGGSP ver FIGUEROA, S. “Modernos bandeirantes: a CGGSP e a exploração científica do território paulista (1886-1931)” São Paulo; 1987. Mestrado, Dep. História FFLCH/ USP. Ou ainda Idem, “Ciência na busca do “Eldorado”: a institucionalização das ciências geológicas no Brasil (1808-1907)”. São Paulo, 1992. Doutorado, Dep. História FFLCH/USP. 487

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ministro do gabinete do visconde do Rio Branco488. Da mesma forma que a elite produtora paulista, aquele grupo procurava implantar uma política modernizadora que tinha no programa territorialista um de seus pontos principais, daí a aproximação entre ambos os setores, cujo ponto de convergência foi exatamente a criação da CGGSP. Contudo esta Comissão nos interessa, não somente por ser a principal iniciativa territorialista da elite paulista junto à Monarquia, mas porque foi do seu interior que saíram os principais historiadores dos dez primeiros anos de atividade do IHGSP: Orville Derby e Teodoro Sampaio. Além de terem sido, respectivamente, o diretor e o primeiro ajudante da CGGSP, ambos também se destacaram como os expoentes da historiografia sobre as Bandeiras produzida no IHGSP, revelando a relação direta entre a prática concreta de cunho territorialista dos autores e as representações simbólicas que elaboraram - sob um viés também territorialista - do passado regional. A eles, a Teodoro Sampaio principalmente, dedicarei maior atenção, pois foram os que maiores contribuições deram à corrente historiográfica territorialista introduzida no Instituto paulista e posteriormente continuada por Afonso de Taunay. Assim, originariamente nem Orville Derby nem Teodoro Sampaio eram oriundos do grupo republicano paulista mas sim de seus rivais (e ocasionalmente aliados) os saquaremas modernizadores, com os quais se relacionavam não somente em termos profissionais mas também mediante alinhamento político. Orville Derby era um cientista norte-americano, especializado em geologia pela Universidade de Cornell, que se estabeleceu no Brasil em 1875, a chamado de seu professor Charles Hartt, então encarregado pelo Imperador e pelos saquaremas modernizadores no poder – era a época do gabinete do Visconde do Rio Branco – de implantar a Comissão Geológica do Império, modelo da futura CGGSP489. Derby acabou ficando no Brasil definitivamente, mesmo depois da morte de Hartt e da dissolução, em 1878 da Comissão imperial, motivada pela subida do novo gabinete liberal de Sinimbu. Transformou-se, então, em uma espécie de herdeiro de Hartt e assumiu o cargo de diretor da seção de Geologia do Museu Nacional, instituição que juntamente à

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Para um perfil político da João Alfredo, inclusive com as principais iniciativas modernizadoras da política saquarema, ver CAMPOS, Cândido Malta. Os Rumos da Cidade. Urbanismo e Modernização em São Paulo. São Paulo: Ed. SENAC; 2002. P. 54 a56.

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Biblioteca Nacional (onde, neste mesmo ano, era admitido Capistrano de Abreu) passava por reformas dinamizadoras que a transformaram em um centro de estudos científicos diversificado, voltado inclusive para a etnografia, a ponto de ser o foco de desenvolvimento de um discurso neo indianista, conforme apontam as pesquisas de Marcus Vinícius de Freitas490. Tratava-se da tentativa de adequar as instituições de saber monárquicas aos novos tempos de crescente prestígio das ciências naturais e físicas. No Museu Nacional, Derby estreitaria relações com duas figuras importantes para este estudo: Teodoro Sampaio, desenhista oficial do Museu e Capistrano de Abreu, a quem conheceu em 1881 e que freqüentava a Instituição491. Teodoro Sampaio, com quem manteria profunda amizade pelo resto de sua vida, era baiano de Santo Amaro da Purificação, negro, filho de escrava, e formado em 1877 engenheiro civil na primeira turma egressa da reforma (implantada pelo visconde do Rio Branco) que separou a Engenharia Militar da Civil492. O engenheiro Teodoro era um fruto da nova política de formação de quadros técnicos civis, voltados à implantação da modernização preconizada pelos saquaremas, o que veio a marcar todo o seu percurso posterior com uma admiração inconteste pela Monarquia e um empenho em políticas territorialistas de cunho modernizador, as quais denominava de “geografia militante”. Em 1917, com quase meio século de distância, Teodoro Sampaio ainda afirmava emocionado sua admiração incondicional pelo maior expoente dos saquaremas modernizadores: o Visconde do Rio Branco, pai do famoso barão493. A admiração pelo 489

Sobre Hartt e a Comissão Geológica do Império, ver FREITAS, Marcus Vinícius. Charles Frederick Hartt, um naturalista no império de Pedro II. Belo Horizonte: ed. UFMG; 2002. Pp220 a226. 490 Idem, Ibidem, cap. VI. 491 É o próprio Capistrano quem informa, em carta a Guilherme Studart de 1906, que “conheço-o [a Derby] desde 1881”. RODRIGUES, José Honório. Correspondência de Capistrano de Abreu. vol I, p. 117. 492 Sobre a bibliografia de Teodoro Sampaio ver a introdução do prof. José Carlos Barreto de Santana a SAMPAIO, Teodoro. O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina. São Paulo: Cia. das Letras; 2002. Ver também COSTA, Luís Augusto Maia. O Ideário Urbano paulista na virada do século. O engenheiro Teodoro Sampaio e as questões territoriais e urbanas modernas (1886-1903). São Carlos (SP) : RiMa, Fapesp; 2003. Agradeço especialmente as indicações de fontes e bibliografia sobre Sampaio, feitas por José Carlos Barreto de Santana. 493 “Quando, ainda nos meus dezessete anos, encetava eu o meu curso de engenharia no Rio de Janeiro, e conheci o nobre Visconde do Rio Branco, meus senhores, S. Exa. estava então no fastígio do seu poder político, vitorioso, aclamado das multidões, após as grandes campanhas parlamentares que nos deram a Lei Áurea de 28 de setembro de 1871[lei do ventre livre], ponto capital do programa de seu governo. (....) Vendo-o passar nas rua, aureolada pela universal estima, a impressão, que nos dava, a nós moços, a pessoa excelsa do Visconde, era a de uma força magnética a alentar-nos a alma (...).Recordo-me ainda que (...) corríamos da Politécnica para uma sessão do Legislativo, trocando uma lição de Física por outra de oratória parlamentar.” SAMPAIO, Teodoro. “Discurso pronunciado na sessão de 13 de maio de 1917, no

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amplo programa de reformas realizado no seu gabinete, apresentadas como “um sopro de renovação progressista por todo o país”, se devia a dois pontos centrais: a promulgação da lei do ventre livre, que a seu ver levaria à extinção da escravidão e os melhoramentos materiais que realizou, principalmente em relação à política ferroviária e de conhecimento do território. Quanto ao entusiasmo com a questão servil, ela revela como Derby e Sampaio extrapolaram suas atuações de meros técnicos e se empenharam na resolução, de natureza política, da questão da mão-de-obra. Primeiramente, Orville Derby participou da criação da Sociedade Brasileira de Imigração, juntamente com Antônio Rebouças e o saquarema modernizador Visconde de Taunay, em uma das principais iniciativas do reformismo monárquico dos anos 1870 e 80. E, uma vez já instalados em São Paulo, Derby e Sampaio, juntos, assessoraram o conselheiro Antônio Prado a elaborar, em 1887, um plano de emergência que resolvesse a questão da abolição da escravidão, sem provocar prejuízos à produção da província. E foi exatamente por intermédio do também saquarema modernizador Antônio Prado, o líder da União Conservadora, e então ministro da agricultura, que Derby foi chamado, em 1886, para organizar e dirigir a recém criada CGGSP, à qual trouxe Teodoro Sampaio para assumir o cargo de primeiro ajudante. Ambos passam então a se inserir na sociedade paulista, sob a sombra do poderoso clã dos Prado a quem estavam ligados, visando implantar um vasto programa de reconhecimento científico para exploração do território oeste da província. Com a proclamação da República, a situação de ambos não foi afetada, uma vez que a CGGSP foi mantida e continuou a atuar, além disso, seus propósitos territorialistas estavam no centro do interesse dos grupos republicanos. Apesar de não ter conseguido levantar informações sobre a posição de Derby, posso assegurar que Teodoro Sampaio acompanhou a postura de Antônio Prado e, mesmo mantendo privadamente as convicções monárquicas, aderiu ao novo regime. Quanto a este respeito, a conclusão de um trabalho seu publicado nas revistas do IHGSP pode ser lido como uma verdadeira convocação,

IGHB, quando se inaugurou solenemente o retrato do Visconde do Rio Branco.” In Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 1917. P. 166,167.

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voltada aos vários colegas monarquistas recalcitrantes, à adesão à nova situação. Em 1897, escrevia: “O eco das discórdias e das lutas fratricidas já vai longe, rolando para um passado que não volta. O arrebol do novo século, rompendo por entre as nuvens que se não desfizeram totalmente, nos anuncia já o dia da paz e da prosperidade no trabalho. Aquietem-se as paixões, acalmem-se os ânimos, e os homens bons, afastados uma vez do seu posto de trabalho, voltem a ocupá-lo confiantes no porvir desta terra que eles tanto amam.”494 Nesta verdadeira profissão de fé adesista, o autor fazia um apelo a seus colegas monarquistas que recusavam-se a aceitar cargos públicos no novo regime. Teodoro Sampaio aparecia, assim, como uma ponte entre os dois principais setores oponentes da sociedade paulista da época. Ele conseguia manter trânsito livre, tanto entre os grupos republicanos no poder, quanto entre os “subversivos” católico-monarquistas, como seu amigo Eduardo Prado, João Mendes Jr., Brazílio Machado. Assim, vemos que mesmo oriundos de um grupo alinhado a setores do Partido Conservador na Corte, tanto Derby quanto Teodoro Sampaio conseguiram se inserir, com destaque, nas principais instituições de saber criadas nos primórdios da República, e isso principalmente pelo papel que desenvolviam como agentes de práticas de reconhecimento e ocupação do território paulista. Como bem salientou Silvia Figueroa, estes geólogos e engenheiros da CGGSP eram verdadeiros “bandeirante modernos”, comprometidos como estavam com a conquista do sertão paulista e, não por acaso, também se destacariam como os principais historiadores dedicados à construção simbólica da figura histórica do bandeirante, mediante a convivência no IHGSP. Na realidade, parece ter havido uma informal divisão de tarefas entre os dois companheiros transformados repentinamente em historiadores. Orville Derby se empenhou principalmente em um trabalho de caráter mais empírico, voltado ao levantamento e utilização da documentação visando definir pormenorizadamente nomes, datas e roteiros de bandeiras. Derby também se destacou na resolução do problema prático da definição dos

494

SAMPAIO, Teodoro. “São Paulo no séc. XIX.” In RIHGSP, vol, 1897. Este texto, verdadeiro elogio à elite paulista (inclusive a republicana), como relata o próprio Sampaio, parece ter causado certo mal estar entre as fileiras monarquistas, sendo necessária a intervenção atenuante do também restauracionista Eduardo Prado em sua defesa. :

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limites entre São Paulo e demais estados vizinhos, realizando um trabalho que era uma reprodução, no âmbito regional, do trabalho de dimensões nacionais feito pela historiografia territorialista em sua versão diplomática, durante todo o séc. XIX, no interior do IHGB, e tão bem analisado por Demétrio Magnoli e, para o período republicano, por Teresa Malatian495. Já Teodoro Sampaio, sem abrir mão do uso de documentação original, estava mais preocupado em compreender os traços gerais do bandeirismo, em construir uma espécie de modelo explicativo da história nacional a partir do movimento bandeirista. Para construir este modelo, Teodoro Sampaio partiu de uma visão da história nacional característica da matriz territorialista, que junto a Capistrano de Abreu, ajudava então a construir e solidificar. Na realidade, a historiografia produzida por Teodoro Sampaio é muito semelhante à de Capistrano, apresentando os três elementos, apresentados no capítulo 4, como característicos do autor cearense: neoindianismo, territorialismo renovado e visão fragmentada do Brasil. Primeiramente, a historiografia de Teodoro Sampaio é fortemente marcada por um viés neo-indianista, ou seja, possuía elementos caudatários da antiga matriz historiográfica monárquico-indianista, temperada por elementos do cientificismo de finais do séc. XIX. O monarquismo católico, nunca abandonado por Sampaio, parece ter contribuído para a adoção e manutenção deste traço, ainda reforçado por sua convivência no Museu Nacional, então transformado, sob a direção de Ladislau Neto, no novo foco de produção de saber etnográfico do Império. Seu neo-indianismo foi ainda mais forte que o de Capistrano, e transpareceu, em sua estadia paulista, tanto na forma de uma etnohistoriografia indianista quanto em um envolvimento com uma proposta de política indigenista. A manifestação da sua posição historiográfica indianista transparece de forma tênue nos escritos sobre história paulista, que Teodoro insere na revista do IHGSP (com a exceção da polêmica sobre João Ramalho, em que ele é explícito) e de forma incisiva nos textos proferidos e publicados fora do IHGSP, nas iniciativas do grupo de católicos e monarquistas que não deixou de freqüentar496. Esta diferença entre o tom de seu discurso 495

Sobre historiografia diplomática, ver MAGNOLI, D. Op. Cit.; MALATIAN, T. Op. Cit. O principal destes textos proferidos em atividades promovidas pelos católicos monarquistas foi o “São Paulo no tempo de Anchieta”, sua contribuição na série de “Conferências Anchietanas” promovidas por 496

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indianista em espaços sociais diferentes, evidencia os limites impostos à visão monárquica no interior do IHGSP. Já o empenho indigenista, nunca desenvolvido por seu colega Capistrano, ficaria por conta de sua participação ativa na Sociedade de Etnografia e Civilização dos Índios, então uma proposta dos grupos católicos de incorporação do indígena 497. Além deste neo-indianismo, a historiografia de Teodoro Sampaio se assemelhava à de Capistrano, de quem era amigo e interlocutor, pelos elementos de um territorialismo renovado - cientificista e mais preocupado com a ocupação do interior do país do que com a definição de suas fronteiras – e na visão da nação cindida, ou seja, do Brasil como um país dotado de grande diversidade geográfica interna (norte x sul e sertão X litoral). Estas duas características, principalmente o territorialismo renovado, foram as que mais espaço tiveram em seus discursos no interior do IHGSP. A sua preocupação com a formação e, principalmente, com a ocupação e povoamento do território brasileiro, serviu de moldura para o seu estudo da história paulista. Quanto a esta, os diversos artigos de sua autoria publicados na Revista do IHGSP, apresentam uma unidade de fundo, conformando uma verdadeira história de São Paulo nos séc. XVI e XVII498, desde a expedição fundadora de Martim Afonso até o aparecimento do fenômeno das Bandeiras. Teodoro Sampaio aborda esta história regional num quadro mais

Eduardo Prado em 1896/97, como reforço simbólico do imaginário monarquista. No texto aparecem de forma clara alguns topoi do discurso historiográfico indianista, como a oposição entre Jesuítas abnegados e colonos ambiciosos, e o elogio do jesuíta como detentor da fórmula ideal de civilização dos indígenas. A novidade na sua visão indianista reside no fato de Sampaio elogiar o jesuíta como principal herói da ocupação do sertão brasileiro, transformando-o também em herói territorialista. Fundia assim elementos das duas matrizes historiográficas que desenvolvia: a indianista, voltada a louvar o jesuíta e a territorialista, preocupada com a ocupação do interior do território. Ver SAMPAIO. “São Paulo no tempo de Anchieta”. In Idem, São Paulo no seç XIX e outros estudos. Petrópolis, São Paulo: Vozes, Sec de Cultura do Estado; 1978. 497 Sobre esta sociedade, alternativa católica à política de incorporação de populações indígenas afetadas pelo avanço da frente cafeeira, ver GAGLIARDI. Mauro. Op.Cit., 1989.p. 97 a 103. Teodoro participou intensamente da iniciativa, tendo sido o redator do texto introdutório, espécie de programa da sociedade, publicado no único número da revista da instituição. Ver SAMPAIO, T. “A Revista” In Revista da Sociedade de Etnografia e Civilização dos índios. São Paulo, Tip. Espínola, Siqueira & Comp. ; 1901. 498 Em 1895 publica “A posse do Brasil Meridional” ( RIHGSP, Vol. 1, 1895), em que contesta Varnhagen procurando provar que a expedição “fundadora” de Martim Afonso tinha como objetivo a busca do ouro e não a ocupação do Rio da Prata. Em “A fundação da cidade de São Paulo” (RIHGSP, Vol.III,1897) trata do primeiro núcleo de colonos no planalto, onde reforça a visão do jesuíta como “herói territorialista”, povoador dos sertões. Em “São Paulo de Piratininga no fim do séc. XVI” (RIHGSP, Vol.V, 1899-1900), em que traça um quadro da história de todo o primeiro século em São Paulo. Em “O Sertão antes da Conquista” (IHGSP, vol IV, 1898/1899), em que estuda o séc. XVII e dá sua explicação da gênese do bandeirismo.

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amplo, como aparece definido no texto “IV Centenário do Descobrimento do Brasil”, proferido pelo autor na entrada do séc. XX, onde explicita sua visão da história nacional. Neste texto, Sampaio, que nunca citava os autores estrangeiros que lhe serviam de referência teórica, apresentou sua filiação às teorias do determinismo geográfico ao afirmar que “as nações tem alguma coisa de real e positivo que o meio terreno indica ou impõe de modo inelutável” 499. Aparecia aqui a crença de que o meio físico, os fatores geográficos definiam a formação da nação. Neste sentido, a chave para a compreensão do progresso ou atraso brasileiro estaria menos nas suas instituições políticas - como preconizava a visão liberal republicana de Antonio de Toledo Piza e Washington Luís – e mais em sua geografia, na forma como se dava a relação do homem com o meio. Assim, uma vez que “para a expansão da espécie, o clima é o fator preponderante” a compreensão do “nosso destino histórico”, da “nossa ação entre os povos do Novo Mundo, tem de pautar-se pelo meio climatológico”500. A geografia indicava a Teodoro Sampaio que, apesar de algumas vantagens em relação aos vizinhos hispânicos501, a posição do Brasil apresentava uma grande e quase insuperável desvantagem: a sua tropicalidade. O estar quase todo na “Zona Tórrida” era apresentado pelo pessimista Teodoro Sampaio como o maior óbice ao progresso brasileiro, revelando sua dívida com as teorias que, desde Montesquieu até Buckle, apontavam a impossibilidade da civilização nos trópicos, que encontravam amplo respaldo nos ambientes cientificistas brasileiros da passagem do séc. XIX para o XX. O entusiasmo dos românticos com a portentosa natureza brasileira era substituído, em Teodoro Sampaio, por um pessimismo cientificista: “aos sonhos dos poetas, anteponhamos as verdades que a ciência geográfica nos está patenteando”502. Para Sampaio, o clima aparecia como o grande obstáculo à constituição da nação. Ele havia criado um meio adverso à ação do europeu, sendo tomado então como o elemento principal para a compreensão da formação do todo nacional. A história do Brasil era apresentada por Sampaio como uma larga e penosa luta do homem contra o meio, visando à conquista do território. Apesar de raramente citar outros autores, tratava-se da

499

SAMPAIO, T. “IV Centenário do Descobrimento do Brasil” In. RIHGSP, vol.V, 1900. p.99. Idem, Ibidem, p. 99. 501 As vantagens seriam: a projeção atlântica, que facilitava os intercâmbios com a “civilizada” Europa, e o controle de ampla rede fluvial, que possibilitava alta capacidade de “comunicações interiores”. 500

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própria idéia da “luta territorial” de que falava Capistrano, caudatária do determinismo físico de Buckle. Mas se Capistrano de Abreu procurava analisar este processo na sua dimensão nacional, estudando os núcleos de ocupação de norte a sul, Teodoro se concentrou no caso de São Paulo, como se houvesse entre eles uma tácita divisão do trabalho historiográfico. Se o drama da história brasileira estava na oposição entre o colono europeu e o meio natural inóspito, para o autor, a história de São Paulo aparecia como a chave do problema. O dado original da história paulista, pelo qual ela se destacava das demais partes do Brasil, era identificado no exitoso processo de ocupação do interior do território. O passado colonial paulista assumia um papel exemplar, pois representava o caso mais bem sucedido de conquista do sertão brasileiro, devido a presença de dois elementos específicos ao caso paulista: a formação de um tipo racial adaptado e a existência de um meio físico propício. Para Teodoro Sampaio, o processo de ocupação do sertão havia sido realizado por dois agentes que encontraram em São Paulo o seu principal lugar de atuação: o jesuíta e o bandeirante. “Dois agentes igualmente poderosos, antagônicos muitas vezes, mas eficazes ambos, tomam a si a expansão povoadora: o missionário e o bandeirante”503. Estes dois agentes que, tanto para a matriz indianista quanto para a contra história republicana, apareciam sempre em lados opostos, como irreconciliáveis inimigos, eram apresentados, sob o viés da visão territorialista de Teodoro Sampaio, como unidos em torno do propósito de ocupação do sertão. “Um desbravava e descortinava, o outro semeava e cultivava. O bandeirante ou conquistador alargava as fronteiras, dilatava os domínios. O missionário, porém, consolidava a conquista, legitimava-a.”504. Ao conciliar jesuíta e bandeirante em torno de uma mesmo projeto territorialista, Teodoro auxiliava a consolidar, no nível das representações, a intenção original do IHGSP de aproximar setores antagônicos (republicanos e monarquistas restauracionistas) da elite política paulista, visando a unidade desta elite com preponderância dos republicanos. A despeito da polêmica sobre João Ramalho - que mostrava os impasses desta conciliação e que, pela última vez, levou ao confronto entre defensores de jesuítas e colonos predominou no IHGSP o empenho na construção de um panteão paulista que satisfizesse 502

Idem, Ibidem, p. 100. Idem, Ibidem, p. 103. 504 SAMPAIO, Teodoro. “A Revista” p. VII. 503

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gregos e troianos, ou melhor, “jesuítas” e “ramalhos”, conforme deixava claro o sócio Francisco Campos de Andrade, em 1902: “É já tempo de jesuítas e ramalhos se darem as mãos. Ambos, obedecendo a seu destino, embora em campos opostos, muito contribuíram para a expansão da civilização e a conquista do território: para a formação da nacionalidade brasileira”505. A historiografia institucionalizada do IHGSP, acabou desta forma, atenuando os contrastes dos discursos indianistas e da contra história republicana, procurando conciliar jesuítas e bandeirantes, apresentando a ambos como agentes de civilização, irmanados na missão histórica paulista de ocupar o sertão brasileiro. Mas se o jesuíta foi importante na ocupação do território interior brasileiro, este processo teria no bandeirante o seu principal e incontestável agente. Ao tratar do bandeirante, Teodoro Sampaio remetia-se às teorias raciais, apresentando-o como fruto da mestiçagem racial desenvolvida no interior dos aldeamentos jesuíticos. Apresentando o bandeirante como mestiço, o autor unia os termos “mameluco” e “colono paulista” que Pedro Taques, Machado de Oliveira e a contra-história republicana (Américo Brasiliense e Alberto Salles) teimavam em separar. Bandeirante, mameluco e colono paulista passavam a ser sinônimos, e a mestiçagem passava a ser característica identitária do paulista. Sampaio rompia, assim, com a tendência esboçada por Alberto Salles de apresentar o paulista como essencialmente branco, consolidando no interior do IHGSP a representação mestiça do tipo regional, que passaria a predominar nos autores posteriores (Afonso de Taunay, Alfredo Ellis Jr., Alcântara Machado e Paulo Prado). Mais do que mostrar que o paulista era mestiço, fruto da união do índio com o branco, Teodoro Sampaio apresentou esta mestiçagem como positiva, na medida em que além de possibilitar a aclimatação do colono ao “tórrido” ambiente americano, condição à ocupação do território interior, a raça dela oriunda fora marcada por espírito de ação, independência e coragem incomparáveis: “O português, talvez melhor do que nenhum outro europeu, já então conseguira firmar pé nessa Zona Tórrida que aos antigos sempre pareceu esbraseada e inabitável. A colônia tinha já a sua população adaptada.

505

RIHGSP, vol. VII, 1903. p. 270-279.

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Formara-se nela uma sub-raça pela ação do cruzamento. Os mestiços, os mamelucos como se os tratavam ao modo dos índios, avultavam já; e esses mestiços eram o que se podia chamar os homens de ação, os nervos dessa população nova que vinha despontando com os caracteres da independência, da audácia e do amor às aventuras em terras distantes.”506 Ao mesmo em tempo que elogiava a adaptabilidade do colono português ao novo ambiente, aspecto posteriormente desenvolvido por Sérgio Buarque de Holanda, Teodoro Sampaio consolidava a idéia de que a originalidade da trajetória paulista estaria na conformação do tipo mameluco, entendido como a síntese racial responsável pela resolução satisfatória do problema da adequação do colono europeu à zona tórrida. No momento em que a conquista do território aparecia como maior desafio às elites modernizadoras, Teodoro Sampaio resgatava positivamente a figura do bandeirante, apresentando-a como solução étnica do problema da colonização dos trópicos. Contudo, para Sampaio, não somente o tipo étnico mas também o meio natural de São Paulo favoreceu a vitória do paulista sobre os sertões. Neste ponto, o autor partia de uma visão cindida da nação entre norte e sul, entendendo esta cisão sob o prisma geográfico, da mesma maneira como o faziam seus contemporâneos Capistrano e Euclides da Cunha. A diferença entre o meio físico do norte e do sul do Brasil explicavam, para Teodoro, a diferença entre as respectivas trajetórias históricas, uma vez que “perante a função histórica dos conquistadores do Novo Mundo, a região Norte do Brasil é um teatro dos mais ingratos (...) A região Sul, ao contrário, reunia as condições geográficas capazes de um dia assegurar na partilha da América para o domínio lusitano quase metade do continente austral”507. Os “sertões do norte” se bem que dotados de relevo mais plano, apresentavam clima excessivamente árido, vegetação de caatinga que desorientava o colono, além de não serem cortados por rios (estes ficavam restritos à costa, não entrando além de 50 léguas pelo interior). Todos estes fatores geográficos dificultavam a interiorização do colono ao norte. Em compensação, os “sertões do Sul” apresentavam aspectos naturais que facilitavam a penetração humana; era aí que estavam “de fato, as portas dos sertões ocidentais”508. 506

SAMPAIO, Teodoro. “O sertão antes da conquista ( séc. XVII)” In Idem, Op. Cit., 1978, p.310. SAMPAIO, Teodoro. “O sertão antes da conquista ( séc. XVII)” In Idem, Op. Cit., 1978, p. 316 508 SAMPAIO, Op. Cit. p. 317. 507

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Apesar do terreno mais acidentado, havia a vegetação baixa dos “campos nus” e dos “bosques de araucárias”, além da presença de extensos rios que, partindo da costa, atingiam o centro do Continente. Tratavam-se de verdadeiras “estradas naturais” - das quais o Tietê era a principal – que, utilizada pelo bandeirante, possibilitava atingir o rio Guaporé em Mato Grosso e daí a bacia do Amazonas, “ligando pelos sertões os extremos da conquista que se fizera pelo litoral”509. Reaparecia em Teodoro Sampaio a idéia, cara a Capistrano, dos caminhos bandeirantes como vias de integração nacional. O que Sampaio procurava frisar era que a especificidade do meio natural dos sertões do sul possibilitou a emergência do fenômeno das Bandeiras e a conseqüente proeminência de São Paulo na história brasileira. De forma semelhante à de Alberto Salles e Martim Francisco, Teodoro Sampaio explicava a originalidade da trajetória paulista pelos peculiares aspectos naturais de sua formação: “o paulista, pelo seu habitat, tinha de ser o bandeirante por excelência. A conquista dos sertões estava no seu destino histórico”510(grifos meus). Mas, diferentemente destes autores, Teodoro estava longe de querer com isso legitimar a separação do estado ou provar o caráter ariano da população paulista; o uso que fazia do passado paulista e da figura do bandeirante era bem outro. Teodoro Sampaio conferia um sentido pragmático para o estudo da história, uma vez que afirmava ser “preciso ver no passado para se preparar o futuro. A História é antes de tudo uma lição de moral”511. E a lição que pretendia tirar do passado paulista era a necessidade de continuar, no presente, o trabalho de ocupação do sertão visando, no futuro, o total povoamento e aproveitamento econômico do território brasileiro. Neste sentido, Teodoro Sampaio foi intenso apologista das políticas territoriais da elite cafeicultora de São Paulo. Em diversos discursos, despontam frases de arrebatamento diante do avanço das ferrovias e da frente agrícola sobre a selva: “Aos caminhos de ferro que se estendem para o sertão, à colonização que se avoluma, á população que já se conta por mais de dois milhões de indivíduos, às indústrias, ao comércio, à instrução apliquemos as másculas energias que vêm distinguindo este povo paulista através da história; levemos a civilização aos

509 510

Idem, Ibidem, p. 317. Idem, Ibidem p. 316, 317.

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desertos ocidentais e, repetindo, em lutas mais nobres e em mais elevados empreendimentos, os feitos audaciosos de outrora, enveredaremos para as regiões distantes, cujos vales imensos parecem destinados aos cometimentos do novo século”512(grifos meus). Para Sampaio, o passado ensinava que o caminho do futuro estava na marcha para o oeste. Apropriando-se da figura do bandeirante (os “feitos audaciosos de outrora”), Teodoro Sampaio configurava como “destino histórico” do paulista a implantação da civilização no sertão oeste. Assim, o discurso historiográfico de elogio do bandeirante, que se consolidava nestes primeiros anos do séc. XX no interior do IHGSP, assumia o sentido de legitimação das práticas territorialistas da elite paulista; era um verdadeiro elogio da expansão da economia cafeeira, apresentada como reatualização da tradição bandeirante. Mais do que isso, este enfoque territorialista do bandeirante acabava identificando no paulista o agente povoador por excelência do sertão brasileiro, parte integrante de seu “destino manifesto”, ajudando a consolidar no interior do IHGSP a visão progressista e modernizante da identidade regional, como marcada pelos atributos da energia, iniciativa e espírito empreendedor, conforme vinha sendo construída desde os anos 1870. Era desta maneira que o também sócio Artur Orlando, em 1909, nas páginas da revista do Instituto, fazia o elogio dos “bandeirantes”, considerados “espíritos infatigáveis”, que “não cessaram um só instante de investir contra os sertões impérvios, e não pararam em sua marcha através do ignoto senão depois de haverem penetrado no âmago do Oeste”. O mesmo autor concluía seu trabalho unindo o passado colonial com o seu presente, ressaltando a permanência do “caráter aventuroso” e do “espírito empreendedor” nos “filhos de São Paulo” que “Hoje (...) agem não somente por ocupação, por fazerem parte de uma sociedade em movimento, mas por impulsão própria, instintiva, levando o hábito da atividade e o amor da iniciativa até a temeridade”513. Segundo esta visão, o bandeirante que abria caminhos e ocupava o sertão, no período colonial, seria o antepassado mítico do cafeicultor que, nos séculos XIX e XX derrubava a mata, plantava cidades, construía estradas de ferro, em suma, que realizava

511

Trata-se de agradecimento ao recebimento do livro Quadros de História Pátria, de Basílio de Magalhães. Carta de Teodoro Sampaio a Max Fleiuss, 25/mar./1918. (acervo do IHGB. “Cartas de Teodoro Sampaio a Max Fleiuss” L. 474 P. 29) 512 SAMPAIO, T. “São Paulo no séc. XIX” In Idem, op. cit, 1978, p. 105.

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aquilo que, em 1913, Basílio de Magalhães qualificava de “novo bandeirismo”, fruto da “pertinaz iniciativa dos ianques sul americanos” que desvendaram “o eldorado do seu far west”514. Mesmo estando mais diluído, o imaginário americanista fazia-se novamente presente na Primeira República. Dentro deste espírito legitimador das políticas territorialista da elite local, Teodoro Sampaio evidenciava o sentido oficialista da corrente historiográfica a que pertencia no IHGSP, além de desempenhar pessoalmente o papel de ideólogo da elite paulista, o que, porém, não parece ter sido suficiente para consolidar a sua definitiva inserção na sociedade regional. Ao contrário de Washington Luís, que conseguiu transformar a sua prática historiográfica de elogio da tradição bandeirante em um eficaz meio de consolidar a sua inserção na elite paulista, que lhe possibilitou ascender, Teodoro Sampaio acabou entrando em confronto direto com setores do poder republicano, o que acabou levando, em 1903, à sua exoneração do cargo de Chefe do Serviço de Água e Esgoto do Estado de São Paulo e o retorno à Bahia, onde não mais escreveu sobre o passado colonial paulista. As informações que dispomos são originárias do próprio diário de Sampaio e apontam como causa da sua destituição o fato de ter emitido pareceres técnicos contrários aos interesses especulatórios de Carlos de Campos, filho do então presidente do estado Bernardino de Campos515. De qualquer forma, a saída de Teodoro Sampaio do convívio diário do IHGSP, em 1903, representou o início de uma série de desfalques que marcaram o fim da efêmera primeira década de intensa produção sobre o passado colonial paulista no IHGSP. Desta forma, em 1904, Washington Luís trocava os arquivos pela tribuna da Assembléia Legislativa estadual; em 1905, Orville Derby, era destituído da direção da CGGSP, deixando de frequentar o Instituto; e por fim, neste mesmo ano, falecia Antônio de Toledo Piza. Fechava-se a primeira fase do IHGSP, que deixou consolidados os alicerces da historiografia regional paulista, desenvolvida nos anos 20. O bandeirante, outrora desprezado pela historiografia monárquico-indianista, acabou se tornando a figura histórica central da produção do Instituto paulista e símbolo maior dos atributos da identidade modernizante e progressista que a elite regional se auto atribuía. No interior do IHGSP ele 513

ORLANDO, Artur. “Bandeirantes” In RIHGSP, vol,. XIV, 1909. P. 438. MAGALHÃES, Basílio. Op. Cit,1913. p. 30, 31. 515 Ver COSTA, Luís Augusto Maia. Op. Cit.2003. 514

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tinha consolidado o seu processo de reabilitação, iniciado pela dupla fonte da historiografia territorialista renovada de Capistrano de Abreu e da contra história republicana, passando de anti-herói nacional, ao posto de herói civilizador dos bárbaros sertões brasileiros e construtor do corpo da pátria. Ao atrelarem à sua figura os atributos, considerados modernos, da liberdade e insubmissão frente ao poder estatal (corrente liberal republicana) e iniciativa e espírito empreendedor que, devido às originais condições raciais e mesológicas, possibilitaram a conquista do sertão (corrente territorialista), os historiadores do IHGSP buscavam inserir no âmago da essência paulista os valores da modernidade americanista – liberal e territorialista - que procuravam construir. A produção interna do IHGSP também representava um discurso marcado pela consolidação republicana, mediante conciliação entre os contrários – republicanos e católicos monarquistas militantes - no ritmo da acomodação vantajosa da Igreja ao novo regime e da desmobilização progressiva dos monarquistas restauracionistas. Como mostra Maria de Lourdes M. Janotti, a partir de 1904, ocorre a desagregação deste grupo, motivada entre outros motivos, pelas dissensões internas, repressão republicana, descaso da família imperial e, juntamente a todos estes motivos, pelo fato de a República, estabilizada a partir de 1898, ter conseguido resolver seus impasses sem resultar na dissolução da unidade nacional e da ordem social, tão temida pelos apocalípticos sebastianistas516. O novo grupo de autores surgidos no interior do IHGSP, a partir dos anos 1910, bem representava este novo status quo, onde não havia mais traço de qualquer eventual contradição entre ser católico militante e republicano convicto. Seguindo os passos do precursor Teodoro Sampaio, homens como Antônio Augusto Pinto, Afonso de Freitas e Afonso de Taunay, que passaram a se destacar como principais figuras da Instituição, podiam conciliar, sem maiores problemas de consciência, a fidelidade ao catolicismo militante e a adesão às instituições republicanas. Dentre estes, o então professor da Politécnica, originário do ambiente monarquista do Rio de Janeiro, Afonso de Taunay, admitido como sócio em 1912 (no ano anterior entrara também no IHGB), era o que mais se empenhava em levar adiante o investimento no passado colonial paulista. Nos anos de 1914 e 1915, deu prosseguimento ao esforço, 516

JANOTTI, Maria de Lourdes., Op. Cit, 1986, Conclusão.

249

iniciado por Washington Luís em 1903, de reabilitação e publicação da obra de Pedro Taques e Frei Gaspar da Madre de Deus, condição para a consolidação da tradição laudatória paulista, questionada pelo ultramontano Cândido Mendes. A partir do empenho em comemorar os pais fundadores da historiografia paulista, Taunay, que havia anteriormente se dedicado a temáticas variadas517, decide-se pelo investimento prioritário à história paulista e especialmente à expansão bandeirante, como ressalta Karina Anhesini Araújo518. Taunay inseria-se, assim, na tradição direta da matriz historiográfica territorialista, pela identificação com a obra de seu próprio pai, o Visconde de Taunay, e de seu ex-preceptor Capistrano de Abreu. Pelo empenho revelado no estudo dos dois cronistas coloniais, e, seguramente, pela importante rede de relações que lhe possibilitava livre trânsito no ambiente cultural e historiográfico do Rio de Janeiro, em 1916 Taunay foi escolhido para substituir o naturalista Herman Von Ihering na direção do Museu Paulista, cargo que passou a ocupar no início de 1917. A indicação contara com o apoio decisivo de seu colega de pesquisas, o então Prefeito da capital Washington Luís, mas estes acontecimentos dizem respeito a uma nova fase e serão tratados no capítulo 8.

517

Taunay escreveu, em 1910, o romance histórico Crônica do tempo dos Felipes, ambientado na Bahia colonial e, em 1912, dedicara-se à elaboração de A Missão artística de 1816, publicado em 1914. 518 ARAÚJO, Karina Anhesini. Intercâmbios Intelectuais e a construção de uma história: Afonso d´Escragnole Taunay. (1911-1929) Franca. Dissertação (mestrado) UNESP. 2003 , p. 80.

250

PARTE III CRISE E AFIRMAÇÃO DA VISÃO REPUBLICANA DO PASSADO PAULISTA ( 1916-1930).

No ano de 1916 Afonso de Taunay, um dos mais atuantes membros do IHGSP, foi escolhido para assumir o cargo de diretor do Museu Paulista. Seu papel seria de transformar o museu científico em um museu voltado prioritariamente à história, dando início às comemorações do centenário da independência. Aproveitando o ensejo dos festejos, tinha início uma nova fase no processo de construção de uma visão republicana da historia colonial paulista, em que o eixo das principais iniciativas simbólicas não mais se localizariam no interior do IHGSP. A partir de então, formou-se um grupo de intelectuais diretamente ligados ao PRP e congregados em torno da redação do jornal O Correio Paulistano, órgão oficial daquele partido. Tendo Washington Luís como guia e Taunay como um de seus principais auxiliares, realizaram uma verdadeira política pública de investimento no culto ao passado paulista. Mas o período do primeiro pós guerra também seria caracterizado pelo acirramento das tensões sociais e políticas, marcando o início da crise da Primeiro República. A hegemonia política do PRP passava a ser contestada pelos mais diversos setores sociais: do operariado em franca revolta às elites anti liberais, levando inclusive à cisão interna da elite paulista. Nesta nova conjuntura, a história e a figura do bandeirante em especial, mais do que nunca, seriam mobilizadas pelos lados opostos como arma simbólica para a luta política. Formaram-se então três vertentes interpretativas do fenômeno da bandeira, definidas pelo lugar social dos autores. Em Oliveira Vianna a história seria instrumento de crítica à ordem liberal e federativa republicana, em Paulo Prado à predominância do PRP, e em Afonso de Taunay e Alfredo Ellis Jr, ela serviria para defender o status quo republicano.

251

Capítulo 7 – Crise da República Federativa e a crítica historiográfica de Oliveira Vianna e Paulo Prado.

7.1. Os anos 20: A República em crise e a vaga nacionalista.

Não foi somente na Europa que a Primeira Guerra Mundial marcou o fim do período de otimismo e crença nos valores de uma modernidade cosmopolita e liberal, conhecido como Belle Époque. Também no Brasil, o primeiro pós guerra trouxe mudanças nos mais variados níveis, ocasionando o advento de uma nova conjuntura caracterizada pela crise do poder Republicano, organizado de forma oligárquica e liberal-federativa. No terreno da economia, até a débacle de 29, a situação foi relativamente segura para a elite produtora paulista, apesar da crise crônica de superprodução. Durante toda a década de 20 a agroexportação cafeeira conseguiu superar as crises e manteve-se em geral estável. A política territorialista decorrente da agroexportação cafeeira, um dos pontos do projeto americanista do republicanismo paulista, continuava em plena vigência. Os problemas para a hegemonia perrepista surgiriam na outra face do projeto americanista do republicanismo paulista: o das instituições políticas liberais-federalistas. Eles seriam resultado, dentre outros fatores, da eclosão da questão social e das dissensões intraoligárquicas, o primeiro relacionado à mudança produtiva decorrente da própria modernização implantada pela elite paulista. O predomínio inconteste da agroexportação cafeeira não impediu a consolidação de um nascente setor industrial nos primeiros anos do século, que se apresentava como o dado novo da modernidade republicana. A capital paulista, no início dos anos 20, já podia ser considerada o maior centro industrial do Brasil519. Ao mesmo tempo em que se transformava em importante centro manufatureiro, São Paulo também passava a concentrar uma grande população operária. Esta, mobilizada em grupos anarquistas, anarcosindicalistas e socialistas os mais diversos, a partir de 1917, iniciou uma onda de greves por melhores condições de trabalho que colocaram no centro do debate político de elite a questão social, até então menosprezada.

519

PERISSINOTO. Op. Cit., p. 132. Segundo este autor: “É nesse período, de 1906 a 1914/20, que São Paulo arremata a primeira posição manufatureira, ultrapassando o Distrito Federal.”

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Mas não somente das classes populares vinha a contestação ao status quo republicano. No universo político, diversas foram as críticas feitas por setores de elite que acentuaram ainda mais a crise de hegemonia do perrepismo, aqui considerada o traço mais característico da conjuntura do primeiro pós guerra520. O ponto central das críticas de elite dizia respeito às instituições liberais-federalistas que serviam de sustentação ao governo republicano. Para este trabalho, vale salientar a formação de dois grupos; o dos antiliberais e o dos liberais-oposicionistas que, no entanto, divergiam quanto ao teor de suas críticas ao status quo: de forma simplificada, podemos considerar que para os primeiros o republicanismo vigente pecava por excesso de liberalismo, enquanto que para os segundos, o problema era exatamente o inverso, pois acusavam a inexistência concreta do liberalismo que o republicanismo oficial afirmava sustentar as instituições vigentes, diferenças que serão melhor definidas ao longo do texto. Outros grupos e setores manifestaram seu desacordo com a hegemonia perrepista, mas o destaque aqui dado a anti-liberais e liberais-oposicionistas “democráticos” se deve à sua intervenção direta no terreno historiográfico. Ambos não somente se apropriaram da história para tecer suas críticas às instituições políticas da Primeira República, como o fizeram mediante o uso político da fugira histórica do bandeirante. O antiliberal Oliveira Vianna e o liberal-oposicionista Paulo Prado, sobre quem será concentrada a atenção nesta capítulo, fizeram uso político da figura do bandeirante, procurando inverter o sentido que havia sido dado a esta figura anteriormente pela intelectualidade republicana. Conforme vimos, desde a propaganda republicana e no IHGSP, os republicanos procuraram construir a legitimidade simbólica de seu poder fazendo uso da representação do passado colonial paulista. No momento em que este mesmo poder passava a ser contestado, o período colonial paulista seria palco de novos embates que tinham como alvo questões do presente dos autores envolvidos. Em comum, anti-liberais e liberais-oposicionistas tinham o envolvimento com o novo movimento cultural de caráter nacionalista que se afirmou no contexto da primeira guerra mundial.

520

Em seu clássico estudo sobre o PRP, Enio Casalecchi, considera os anos 20 período de contestação do poder perrepista, afirmando que “desde 1906 o PRP navegou em mar calmo. As borrascas oferecidas por oposições não tiraram o leme de suas mãos firmes. (...) No período que abre com a década [de20], nosso

253

Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, nota-se o início da formação de uma nova intelectualidade, caracterizada pela centralidade conferida à temática nacionalista. A partir da pregação nacionalista do poeta Olavo Bilac aos estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo, em 1915, toma força por todo o país um movimento de defesa dos valores nacionais que acabou aglutinando primeiramente os setores mais descontentes com o status quo republicano. A vaga nacionalista aparecia, primeiramente, como um grande balanço de diversos setores da intelectualidade sobre as três décadas de República, visando indicar as medidas a serem tomadas para o fortalecimento da nação. Principalmente o grupo de liberais paulistas dissidentes, congregado em torno do jornal O Estado de São Paulo (OESP)521, aproveitou o entusiasmo patriótico crescente para lançar, neste mesmo ano de 1915, a Revista do Brasil, que então se tornaria um dos principais difusores do novo ideário nacionalista. Como mostra Tânia de Luca, a revista congregaria autores das mais diversas procedências e perfis, com destaque para Monteiro Lobato e Paulo Prado, que, respectivamente de 1918 a 1923 e de 1923 a 1925, se tornariam os proprietários do periódico522. Ao mesmo tempo, setores da intelectualidade ligados às elites paulista e carioca, com intensa participação da juventude acadêmica, lançaram-se à criação de uma série de ligas voltadas para a difusão do novo credo, sem vínculos partidários diretos. Assim, no Rio de Janeiro, em 1916 foi criada a “Liga de Defesa Nacional”; em 1917, era a vez dos nacionalistas de São Paulo criarem a “Liga Nacionalista de São Paulo” em prol do voto secreto e pela moralização do sistema eleitoral, bandeiras claramente alinhadas com as críticas então sustentadas pelos grupos liberais dissidentes. Destas ligas surgiram boa parte dos quadros que ajudariam a criar o Partido Democrático em 1926. Mas também os setores anti-liberais se manifestaram nesse momento a obra de Alberto Torres, A Organização Nacional, publicada em 1914, tornou-se referência importante para os nacionalistas523. Posteriormente, até mesmo intelectuais ligados ao último percurso, as avarias desconsideradas se avolumam e o Partido corria riscos. Nessa década, já notamos, as vagas da contestação ocupam espaço ímpar.” CASALECCHI, José Ênio. Op. Cit p. 153. 521 Sobre o grupo do OESP ver CAPELATO, Maria Helena Rolim. Os Arautos do liberalismo. Imprensa paulista (1920-1945). São Paulo: Brasiliense;1985. 522 LUCA, Tânia Regina de. “A Revista do Brasil: um diagnóstico para a ( N)ação.” São Paulo: tese de doutorado , dept. História/USP; 1996. 523 Para a distinção interna ao nacionalismo entre anti-liberais e liberais-oposicionistas Ver CAPELATO, M. H. Op. Cit. p.159.

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perrepismo, como os membros do grupo verde-amarelo, conforme veremos no cap. 8, manifestaram-se a favor das teses nacionalistas. Os princípios que as orientavam se pautavam por uma crítica à prática das elites brasileiras de tomar incondicionalmente os países europeus e os Estados Unidos como modelos de conduta nacional. No período posterior à Primeira Guerra Mundial, começou a despontar nos meios nacionalistas uma nova visão a respeito do nacional, marcada pela vontade de construir um Brasil forte e soberano, estruturado sobre suas próprias forças internas. A Europa, destruída pela guerra e portadora de uma cultura que, no rastro da recepção da obra de Spengler, começava a ser vista como “decadente”, passou a ter questionado o seu papel de exclusivo modelo de civilização. Neste contexto, destacavam-se também vozes contrárias à progressiva “americanização” pela qual passava a sociedade brasileira, como aquelas do jovem Sérgio Buarque de Holanda, publicadas em 1920 nas páginas da Revista do Brasil524. Mas foram os nacionalistas os principais defensores da integridade nacional. O conflito mundial evidenciara que a luta imperialista entre as nações atingira um estado de paroxismo, transpondo para o plano internacional o princípio social darwinista da seleção dos mais fortes, do struggle for life. Fazia-se necessário o fortalecimento da nação em todos os seus aspectos, para evitar a absorção pelo estrangeiro. Neste sentido, o nacionalista Alceu Amoroso Lima afirmou: “dois acertos, parecem-me, não podem sofrer contestação: a precariedade da existência das nações fracas, e a necessidade de viver cada nação sobre sí. Donde é forçoso concluir, que o primordial problema brasileiro deve ser a investigação das causas de nossas fraquezas assim como dos meios de as remediar; (...) o que tudo se resume em – viver fortemente pela máxima independência”525. Tomava forma um esforço em questionar a visão cosmopolita, acalentada pela intelectualidade crítica da “geração de 1870” e amplamente difundido pelas primeiras elites republicanas, como foi visto no capítulo 4. Com a nova vaga nacionalista, cada vez mais prevalecia o desejo de construir um Brasil voltado sobre si, baseado em suas próprias forças e que se colocasse de forma crítica e seletiva diante dos modelos estrangeiros.

524

ver. HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Ariel” In Idem, O espírito e a letra. São Paulo: Cia. das Letras; 1996. Originalmente o texto, fortemente crítico à influência norte americana na vida brasileira, foi publicado no Vol XIV de maio de 1920 da Revista do Brasil. 525 LIMA, Alceu A. , “O Êxodo” In Revista do Brasil.

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Defendia-se o resgate do “autêntico nacional”, do “genuíno”, do Brasil mais profundo. Ao mesmo tempo, rechaçava-se a “cópia”, a “macaqueação”, e o “postiço”, invariavelmente identificados com hábitos importados do estrangeiro. Em outros termos, a vaga nacionalista trazia a primeiro plano a questão da definição e valorização da singularidade nacional, que a visão cosmopolita da passagem do séc. XIX para o XX havia relegado a uma posição subalterna diante de seu empenho modernizador. Em busca da defesa da nacionalidade brasileira, os grupos nacionalistas consideravam aquilo que vinha de fora, fossem trabalhadores ou idéias, uma ameaça. A referência a modelos políticos e culturais estrangeiros, se ainda estava longe de ser de todo descartada, passou a ser criticada, quando realizada de forma desprovida de critério. Para o novo nacionalismo, tornava-se necessário adotar hábitos e instituições adequadas ao nosso meio e à nossa índole particular. A questão da adequação de tudo o que era estrangeiro à realidade específica nacional passava a constituir um dos pontos centrais do debate cultural. Subjacente à questão da adequação à realidade nacional colocava-se o tema da modernidade em outras bases. Isto fica evidente em um trecho paradigmático do texto “Tradição e Progresso” de Luis Araújo de Brito, publicado na Revista do Brasil: “O progresso só é inimigo da tradição quando implica o esquecimento criminoso do que é nacional para se reduzir, como tem sucedido entre nós, a uma imitação caricata das instituições, leis, hábitos e costumes dos povos mais adiantados. Para termos progresso, pensam muitos que nos basta possuir avenidas que compitam com as principais artérias européias, uma lei básica tão macaqueada quanto inadaptável, maleável e desrespeitada e o nome pomposo – o nome sobretudo – de democracia. Esta faina de tudo imitar das nações mais adiantadas, com prejuízo do que é genuinamente nacional, longe de nos dar o proclamado progresso, é, bem ao contrário, um elemento dissolvente da nacionalidade”526. Com o novo nacionalismo, não se tratava de abrir mão da construção do “Brasil moderno”, como evidenciam constantes referências do texto ao “progresso”. A modernização estava contemplada no horizonte dos intelectuais nacionalistas, mas ela não teria como condição a ruptura radical com as tradições e a realidade nacional. Para o novo 526

BRITO, Luis Araújo C. “Tradição e Progresso”, In Revista do Brasil. Vol XIV, jun. 1920.

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nacionalismo, o respeito à tradição era apresentado como condição para a realização do progresso e para se alcançar uma modernidade genuinamente nacional. Nesta conjuntura marcada pela redefinição da relação entre tradição nacional e modernidade estrangeira, a desqualificação do período colonial levada a efeito pela intelectualidade crítica da geração de 70 passou a ser revista. Esse passado, antes visto como um óbice ao progresso, paulatinamente cedia lugar a uma verdadeira febre de interesse. Passou-se a revisitar aspectos daquele passado, a partir de lentes mais otimistas. Analisando o ambiente cultural da São Paulo dos anos 20, Nicolau Sevcenko afirmou que, neste momento, “a história entra para a ordem do dia”527. Como salientou Paulo Prado em 1925528, o discurso sobre o passado deixava o restrito grupo dos Institutos Históricos, passando a despertar o interesse do grande público letrado, reforçando o já clássico papel de veículo privilegiado de discussão das questões nacionais. A história assumia um lugar central no debate nacional, o que explica o significativo aumento de obras sobre o passado paulista e brasileiro ocorrido nos anos 20, condição para o surgimento da geração do ensaismo de interpretação do Brasil dos anos 30 (Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr.). Precursor e interlocutor privilegiado de todos estes autores, Oliveira Vianna foi considerado o principal intelectual dos anos 20. Mais do que nenhum outro, ele representou as mudanças que ocorriam no terreno cultural e político com o aparecimento da vaga nacionalista, da qual foi expressão na vertente antiliberal e centralizadora. Na mesma época, representando a face liberal-oposicionista da Primeira República, Paulo Prado deixou de lado seus negócios cafeeiros e, aos 52 anos, lançou-se repentinamente ao estudo do passado. Ambos colocaram no centro de suas preocupações intelectuais o passado colonial paulista e a figura do bandeirante, realizando verdadeiras críticas historiográficas ao status quo republicano. 527

SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. Sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia. das Letras, 1992 528 No prefácio à 1 ª edição de Paulísitica, datado de 1925, Paulo Prado descrevia a relação que a geração dos últimos anos do séc. XIX estabelecia com a tradição e os assuntos nacionais: “A Europa... Nos tempos acadêmicos só tínhamos olhos e admiração para coisas que de lá vinham. (...) O amor às coisas pátrias, ao seu passado, ao mistério dos primitivos habitantes, à sedução do Brasil brasileiro dos sertões do Nordeste – terra da coragem e da poesia -, o amor a toda a vida estuante e fresca do país adolescente, ao que constitui o orgulho e patrimônio de uma nacionalidade- tudo entregávamos ao grupo, quase ridículo, dos sábios dos nossos institutos.” In PRADO, Paulo. Paulística, etc. São Paulo: Cia. das Letras; 2004. P. 56. :“

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Primeiramente estudarei a obra de Oliveira Vianna e sua relação com a identidade paulista e, posteriormente, passarei à de Paulo Prado.

7.2 Oliveira Vianna e a crítica antiliberal à Republica.

Apesar de conferir destaque à temática bandeirante e paulista no conjunto de sua obra, Francisco José de Oliveira Vianna não pertencia ao meio social e político de São Paulo. Muito pelo contrário, ironicamente ele havia nascido no ano de 1883 em Saquarema, município fluminense cujo nome havia sido indelevelmente identificado com o setor mais centralista e escravocrata da elite oitocentista brasileira, concentrada no Partido Conservador imperial. Grupo, aliás, com o qual Oliveira Vianna muito se identificaria, considerando-os como os verdadeiros “pais fundadores” do Estado nacional brasileiro e cujo expoente – Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai – serviria como uma de suas principais referências intelectuais, conforme atestam estudos recentes529. Mas, ao contrário dos velhos saquaremas, Oliveira Vianna não era grande produtor, sendo oriundo de uma família de proprietários não muito abastados do interior fluminense530. Fez seus estudos no Rio de Janeiro, no colégio Pedro II e na Faculdade Livre de Direito, por onde se formou advogado. Foi aluno de Silvio Romero, que o introduziu nas teorias do determinismo físico e racial. Desde o momento em que se formou bacharel em ciências jurídicas e sociais, em 1905, até sua consagração nacional, em 1920, quando publicou o seu clássico Populações Meridionais do Brasil, Oliveira Vianna ganhou a vida como jornalista e professor, circulando predominantemente no ambiente intelectual fluminense. Primeiramente lecionou no colégio Abílio, onde assumiu a cadeira de história, tornando-se depois lente na faculdade Teixeira de Freitas em Niterói. Alguns anos após se formar, começou a escrever para A imprensa de Alcindo Guanabara e O país de Abner Mourão, onde passou a publicar artigos sobre assuntos jurídicos e políticos. O tom crítico dos seus escritos e a 529

A presença do pensamento de Uruguai em Oliveira Vianna foi apontada por CARVALHO, José Murilo. “A utopia de Oliveira Vianna” In BASTOS, Élide Rugai. & MORAIS, João Quartim de. O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Ed. Unicamp; 1993. E também por FERREIRA, Gabriela Nunes. Op. Cit. P. 79. 530 Os dados biográficos de Oliveira Vianna foram retirados do estudo de seu biógrafo oficial TORRES, Vasconcelos. Oliveira Vianna. Sua vida e sua posição nos Estudos Brasileiros de Sociologia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos; 1956.

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defesa da reforma constitucional logo chamaram a atenção do pensador Alberto Torres que iniciava sua atividade como publicista, o que o levaria a capitanear intelectualmente a vaga nacionalista. Oliveira Vianna, então um desconhecido jornalista, foi convidado a fazer parte do restrito grupo de intelectuais agregados em torno de Alberto Torres e assim entrou no círculo que procurava elaborar a crítica ao arcabouço jurídico institucional republicano. Oliveira Vianna participou de diversas iniciativas culturais promovidas pelos nacionalistas militantes, o que o levou a expandir sua teia de relações para além do ambiente fluminense. Aproximou-se de intelectuais paulistas como Monteiro Lobato, proprietário, a partir de 1918, da Revista do Brasil. Nela passaram a ser publicados excertos de capítulos de Populações Meridionais, livro que foi lançado, em 1920, também pela editora de Lobato, garantindo o seu reconhecimento nacional. Apesar da incompatibilidade política de fundo entre o liberal-oposicionista Lobato e o antiliberal Oliveira Vianna, o editor fez todos os esforços para difundir a obra. Oliveira Vianna também integrou o grupo de autores que se reuniu em torno de Vicente Licínio Cardoso para a publicação, em 1924, da coletânea À Margem da História da República, considerada um dos mais importantes esforços de crítica coletiva da intelectualidade nacionalista ao status quo republicano. De forma que podemos considerar o lugar social a partir do qual Oliveira Vianna pensa o passado nacional como sendo o dos grupos nacionalistas, na sua vertente anti-liberal, que se formou no primeiro pós-guerra. Nos termos do pensamento de Oliveira Vianna, aquilo que constituía a sua verdadeira cruzada era a luta contra o “Idealismo Utópico” de nossas elites dirigentes, entendido como o “sistema doutrinário” ou o “conjunto de aspirações políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende reger e dirigir”. Considerava o maior entrave para a modernização do Brasil 531 a tendência das elites dirigentes de elaborar seus planos de governo a partir de “fórmulas escritas” em detrimento do conhecimento concreto da realidade nacional, o que viria ocasionar um desacordo entre

531

Vários autores consideraram Oliveira Vianna, principalmente durante os anos 20, como avesso à modernização do país e essencialmente regressista. Em seu estudo Luiz Guilherme Piva contesta estas visões procurando mostrar como o problema de fundo da reflexão de Oliveira Vianna era encontrar as vias para a modernização do país, o que foi procurar não no terreno econômico mas no campo das instituições políticas. ver PIVA, Luiz Guilherme. Ladrilhadores e Semeadores. A modernização brasileira no pensamento político de Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Azevedo Amaral e Nestor Duarte (19201940). São Paulo: Dept. Ciência Políticas USP, Ed. 34; 2000.

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o “sistema doutrinário” e as condições “reais” e “orgânicas” da sociedade que se pretende reger. No centro da crítica de Oliveira Vianna encontra-se, portanto, a contraposição entre um “Brasil real” e um “Brasil legal”, cuja separação era entendida como causa de nossas desventuras. Para o autor, essas “quimeras” ideológicas da elite eram identificadas com os princípios políticos do liberalismo, introduzidos no país nos primeiros anos da nossa constituição como nação livre. Mais do que criticar abertamente os princípios e valores liberais em sí, Oliveira Vianna preferia a alternativa mais segura de basear sua desqualificação no argumento da inadequação do liberalismo à realidade específica brasileira, o que deu margem a que analistas modernos defendessem o caráter meramente instrumental de seu autoritarismo532. Para Oliveira Vianna “o que devemos querer não são regimes belos ou harmônicos, mas sim regimes convenientes e adaptados ao nosso povo”533. Para o autor de Populações Meridionais o liberalismo e a democracia não eram valores absolutos e universais. Eram formas de governo que exigiam dos seus agentes uma “psicologia política” específica, não encontrada em todos os povos. “Muito pelo contrário, são dons parcimoniosamente distribuídos entre os grupos humanos; na verdade só o encontramos, (...) em certos grupos privilegiados: no saxão insular; no seu ramo americano; nos povos germânicos em geral; entre os antigos romanos; no grupo nipônico.”534 Com esta acusação de inadequação das “exóticas” instituições liberais à realidade brasileira, Oliveira Vianna tecia a mais acerba crítica ao americanismo republicano, pejorativamente qualificado como “coqueluche anglo-saxônica”: “Todas estas contradições e deficiências de nossa organização política e constitucional tem sua origem no fato de estarmos, (...) a reincidir (...) na

532

A tese de que o antiliberalismo de Oliveira Vianna seria um “autoritarismo instrumental” foi inicialmente desenvolvida por SANTOS, Wanderley Guilherme dos. “A Práxis Liberal no Brasil” In IDEM, Décadas de espanto e uma apologia democrática.Rio de Janeiro: Rocco; 1998. Para este autor, Vianna defenderia um estado autoritário e centralizado não como finalidade em si, mas como meio político necessário à construção no Brasil de uma sociedade liberal e democrática. Também CARVALHO, José Murilo. “A utopia de Oliveira Vianna” In BASTOS & MORAES, Op. Cit. E VIANA, Luís Werneck. Op. Cit. consideram a tese do autoritarismo instrumental nesses termos. Neste trabalho sigo a posição de autores que contestam esta visão e afirmam o autoritarismo de meios e fins em Oliveira Vianna, como FERREIRA, Gabriela Nunes. Op. Cit. e PIVA, Luís Guilherme. Op. Cit. 533 OLIVEIRA VIANNA, F. J. Estudos de Política Objetiva. 1981; pp118. 534 Idem, Op. Cit. 1930, p.49.

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leviandade de querer imitar(...) o mais inimitável cidadão do globo: o anglo saxão – particularíssimo, originalíssimo, sempre absolutamente ele mesmo. Durante mais de meio século, no Império, levamos a procurar “fazer como os ingleses”. Há cerca de 40 anos, na república, estamos a procurar “fazer como os americanos”535 Os termos com os quais estabelece sua crítica ao liberalismo federalista da Constituição de 1891 correspondem à aplicação, no terreno político, da crítica à importação de modelos estrangeiros realizada, como vimos, pela vaga nacionalista a todos os níveis da vida nacional. O problema da Carta Magna republicana estaria em ser uma importação inadequada àquilo que considerava a realidade brasileira. Ela seria fruto de uma elite eivada de “idealismo utópico” que não fora capaz de reconhecer a real situação brasileira e procurou implantar um aparato institucional de caráter liberal e descentralizado num ambiente, aos olhos do autor, absolutamente adverso a este tipo de instituição. Oliveira Vianna acusava as elites republicanas de terem desprezado o Brasil real. A traços largos, a tendência histórica que define a “realidade brasileira”, para Oliveira Vianna, é marcada pela ausência de integração social e política, pelo princípio da “insolidariedade”, pela “desorganização”, decorrentes de uma peculiar formação histórica que, conforme veremos, não possibilitou a formação de instâncias gerais de coesão nacional. O problema do idealismo das elites e da Constituição republicana de 1891, estaria exatamente em reforçar esta funesta tendência secular à dissolução pela aplicação do ideal da descentralização política característica do federalismo norte-americano. É a partir desta crítica ao liberalismo federalista da Primeira República que podemos compreender o papel fundamental conferido pelo pensador fluminense a um Estado forte e centralizado. Diante de uma sociedade republicana liberal, vista como “desorganizada”, insolidária e caótica, o Estado forte e centralizado - semelhante àquele imperial, conduzido pelos seus tão admirados saquaremas - teria o papel de impor a “organização nacional” e criar os alicerces da nação solidária. Etapa importante para a “organização nacional’, seria a da reeducação da elites nacionais, a seu ver dotadas do papel fundamental de condutoras do Estado, mas comprometidas negativamente pelo fato de estarem permeadas de Idealismo utópico liberal.

535

Idem, ibidem, 1930, p. 38.

261

Para reverter esta tendência, Oliveira Vianna clamava pela criação e difusão de um “Idealismo Orgânico”, entendido como um conjunto de valores e princípios políticos fundados na experiência e no profundo conhecimento da realidade brasileira. E o único modo de atingir esse conhecimento da realidade era através da história. Esta assumia um papel central e imprescindível em seu pensamento, que nunca é demais ressaltar. Seu anti liberalismo se manifestou por meio da historiografia, sendo necessário estudar a nova representação que estabelecia do passado colonial brasileiro, pois através dela Oliveira Vianna simplesmente punha abaixo todo o edifício da legitimidade simbólica do regime republicano.

7.2.a História e Política: a representação do período colonial em Oliveira Vianna.

No seu discurso de ingresso no IHGB, em 1924, Oliveira Vianna explicitava a sua visão da história, em cujo centro estava a idéia de que o estudo do passado era dotado de um “sentido pragmático”. Ou seja, conforme sintetizou em outro estudo, “Somente [os estudos sobre o passado brasileiro] nos poderão fornecer os dados concretos de um programa nacional de reformas políticas e sociais, sobre cujo êxito nos seja possível contar com segurança”536 Neste sentido, Oliveira Vianna atualizava a máxima ciceroniana e afirmava a história como sendo, menos a mestra da vida e mais “a mãe e mestra da política”537. Tal historiografia voltada para a indicação das leis da evolução nacional, deveria se basear em pressupostos metodológicos diferentes da simples exegese documental, característica do método crítico da escola metódica que então tinha plena vigência nos Institutos Históricos. Oliveira Vianna rejeitou essa postura marcada pelo que chamava de “fetiche do documento”. No seu discurso de ingresso no IHGB, ele apontava para a insuficiência dos documentos no trabalho de “reencarnar” o passado: “Os documentos não dizem tudo, não fixam tudo, não apanham todos os aspectos dos acontecimentos; dizem apenas alguma coisa, fixam apenas alguns detalhes (...) esses detalhes que fixam, nem

536 537

Idem, Evolução do Povo Brasileiro, p. 39. Idem, Ibidem, p. 38.

262

sempre são necessários, essa alguma coisa, que eles dizem, nem sempre contém o sentido íntimo e substancial da realidade”538. Os limites da simples exegese documental, segundo Oliveira Vianna, deixava um espaço vazio no trabalho de representação de uma época, que deveria ser preenchido mediante o auxílio das diversas ciências sociais, servindo estas de complemento a um trabalho essencialmente historiográfico. O autor transformou o terreno da história em um campo em que convergiam diversas disciplinas, fundindo de forma orgânica as matrizes historiográficas predominantes na historiografia brasileira de finais do séc. XIX. Da matriz territorialista além das temáticas da expansão territorial, o autor ainda recuperava os pressupostos do determinismo físico, utilizando-os, porém, para estabelecer uma discussão de fundo político que remetia à matriz liberal, sem deixar de desenvolver os aspectos raciais menosprezados em ambas. A busca do estudo da totalidade dos aspectos de nossa formação o levou a fundir as diferentes matrizes interpretativas, apresentando uma forma nova, que predominaria a partir de então: a síntese histórica. Oliveira Vianna remetia-se explicitamente a Henri Beer e sua Revue de Syntese Historique, o mesmo autor que, nestes anos 20, servia de referência aos propósitos de federalismo disciplinar da historiografia renovadora do grupo francês dos Annales. De forma original no ambiente brasileiro, Oliveira Vianna propunha um trabalho historiográfico baseado em atividade multidisciplinar, que recriasse um panorama a largos traços da constituição histórica da nacionalidade, procurando romper com a minúcia factual da historiografia do período. Mas, para realizar esta “síntese histórica”, Oliveira Vianna não se valeu da moderna ciência social durkheimiana, como fizeram os contemporâneos fundadores dos Annales. Ao contrário, apelou para sociólogos, etnólogos, antropólogos, historiadores e geógrafos, na sua grande maioria ligados às correntes racistas e deterministas da ciência social européia da passagem dos sécs. XIX para o XX. Assim, estavam presentes em suas páginas elementos do arianismo de Gobineau e Lapouge, da antropogeografia de Le Play e do determinismo de Taine, dentre vários outros. Numa conjuntura em que as teorias raciais começaram a ser contestadas, Oliveira Vianna (da mesma forma que Alfredo Ellis Jr, outro autor do período) não deixou de conferir um papel central ao fator “raça”.

538

Idem, “O sentido pragmático do passado” In Revista do Brasil, 1924, p. 28/29.

263

Sobre esta base teórica, Oliveira Vianna elaborou a sua principal obra, Populações Meridionais do Brasil, publicada em 1920, num contexto de efervescente nacionalismo incentivado pela comemoração do Centenário da Independência. Neste livro, o autor procurava definir o que considerava ser a “realidade” do Brasil, de forma que a obra pode ser considerada a verdadeira chave de seu pensamento e base de toda sua crítica ao liberalismo da Primeira República. Por conta deste caráter explicitamente político de suaobra, procurei entender primeiramente a forma como Oliveira Vianna representava o período colonial brasileiro, para, a seguir, apresentar a sua visão específica do bandeirante e do papel do paulista na formação nacional. A atenção aqui dedicada à sua representação elaborada sobre o período colonial é importante pois ela causou um forte impacto nos historiadores paulistas do bandeirismo, levando à sua mobilização para responder em termos historiográficos ao autor fluminense e, assim, procurar anular os efeitos políticos de seus ataques às instituições da Primeira República. Sem a sua apresentação não se poderá compreender a obra de um autor como Alfredo Ellis Jr., o expoente da visão republicana do passado paulista, uma vez que este elabora sua obra historiográfica a partir do diálogo com Oliveira Vianna. Em Populações Meridionais, apesar de Oliveira Vianna estar preocupado com a compreensão da totalidade do fenômeno brasileiro, ele estabeleceu um recorte original, baseado na visão cindida da nacionalidade. Na senda do determinismo geográfico comum a Capistrano de Abreu, Alberto Salles e Teodoro Sampaio, Oliveira Vianna acabava reconhecendo a existência de três “meios cósmicos”, que correspondiam, por sua vez, a três tipos populacionais diferentes: o tipo nordestino, filho do meio cósmico da caatinga; o tipo gaúcho, originário do meio cósmico do pampa rio grandense; e, por fim, o tipo matuto, filho das matas de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. A cada um destes três tipos pretendia dedicar uma obra de análise específica, constituindo ao todo três volumes. Populações Meridionais do Brasil, se refere exclusivamente ao centro sul539, escolhido pelo autor como o mais significativo e passível de representar a mentalidade política dominante no conjunto da nacionalidade, pois, a seu ver, constituiu-se no grupo mais influente do período independente. 539

Durante os anos 20, publica somente o primeiro volume do Populações Meridionais, chegando a completar o segundo somente no final de sua vida, nos anos 50, e o terceiro, sobre o sertanejo do norte, nunca chegou a aparecer.

264

O livro começa com a descrição dos luxos e pompas existentes nos solares urbanos pertencentes às famílias aristocráticas de Pernambuco e São Paulo dos primeiros séculos coloniais, passagem que foi o motivo das principais críticas que os autores paulistas levantaram contra sua obra.

540

. Esta sociedade refinada, de alto valor moral e intelectual,

se concentrava nos solares urbanos, sendo composto por membros das melhores casas nobres da Europa. Porém, esta radiante aristocracia inicial, para o autor, se apresentava em profundo contraste com o meio físico em que se radicara.541 Formaram-se duas tendência conflitantes nos primórdios da história nacional: uma européia, de caráter centrípeto, ou seja, voltada para a concentração da vida colonial em centros urbanos; e outra originada do meio americano, de caráter centrífugo e voltada pela dispersão de ocupação de zona rural Este conflito primordial entre as diferentes tendências que, na visão do autor, se prolongou por todo o período colonial, aos poucos se resolveu pela vitória da tendência americana que prevaleceu sobre a européia, já em meados do III século (séc.XVIII) 542. De forma que, na visão de Oliveira Vianna, com o passar do tempo a aristocracia colonial luxuosa e com hábitos de corte européia foi substituída por outra ruralizada. Mediante a ação determinante do meio americano, a aristocracia optou pelo meio rural, revelando um longo e intenso movimento de interiorização das elites coloniais. As famílias rumaram em direção às vastidões intermináveis do sertão americano. Como conseqüência, as cidades se despovoaram. Este movimento de interiorização assumiu um sentido fundamental na obra de Oliveira Vianna uma vez que ele conferia originalidade á formação brasileira. Na sua visão ruralista, foi exatamente essa espécie de peregrinação mítica dos centros urbanos europeizados para o interior, para o sertão americano caracterizado pela rusticidade, que acabou conferindo especificidade à elite rural brasileira.

540

“Nada mais surpreendente do que o estudo da vida e dos costumes da aristocracia rural do sul e do norte, durante os primeiros séculos coloniais, principalmente nos seus dois centros mais vivazes: Pernambuco e São Paulo. Dir-se-ia um recanto de corte européia transplantada para o meio da selvageria americana. Tamanhas as galas e as louçanias da sociedade, o seu maravilhoso luxo, o seu fausto espantoso, as graças e os requintes do bom tom e da elegância.” Im Idem. Populações Meridionais. P. 07. 541 Idem, Ibidem, p.13. 542 O empenho em estudar a originalidade da formação brasileira levou Oliveira Vianna a adotar uma peculiar numeração dos séculos. A referência não é o nascimento de Cristo, mas a chegada de Cabral. Assim, ao invés de séc. XVI, XVII, XVIII e XIX, ele se refere a séc. I, II, III, IV, periodização que procurei manter conforme o original do autor.

265

O processo de ruralização, portanto, aparece para Oliveira Vianna, como a situação histórica que marca o aparecimento de uma forma social nova e original. Neste movimento de interiorização ruralizadora, o autor também definia os característicos desta mesma realidade nacional, identificados na extensão do território, na predominância de uma aristocracia rural, entendida como o principal agente de nossa história e na predominância do caráter rural e anti-urbano da formação nacional. Todos estes elementos distintivos do processo histórico nacional, acabavam convergindo em torno de um determinado espaço social que se constituiu, para o historiador fluminense, na unidade básica e esteio de toda a nossa sociedade colonial: o latifúndio. Ao seu redor se organizou todo o universo do Brasil colonial e independente, pelo menos até o advento da abolição da escravidão e da República, quando se inicia a fase que a seu ver corresponde à “desorganização nacional”. Para Oliveira Vianna o modelo de grande propriedade rural, que constituía o centro da sociedade colonial, era representado pelo latifúndio de cana de açúcar originário da região vicentista durante o primeiro século. No segundo e terceiro séculos, os proprietários paulistas foram responsáveis pela difusão deste tipo de propriedade por toda a região do Brasil centro meridional. O movimento das bandeiras, conforme veremos melhor no próximo tópico, assumia um lugar central na representação do passado de Oliveira Vianna, sendo considerado o veículo maior de expansão do latifúndio. A forma de ocupação territorial resultante da expansão bandeirante, em decorrência da amplidão do meio americano, produziu uma rede absolutamente fluida, pouco consistente e “insolidária” de núcleos populacionais. Por sua vez, a teia de ocupação territorial do latifúndio, aos olhos do autor, tinha como explicação para sua flacidez e falta de organicidade o caráter auto suficiente do latifúndio. Para Oliveira Vianna, o princípio preponderante do latifúndio estava no seu caráter autárquico, decorrente do isolamento imposto pela extensão da base física. Tanto na sua forma original da região vicentista até aquela que adquire no séc. IV, com o café, o latifúndio era capaz de produzir quase tudo o que precisava para se manter em seu necessário isolamento. Desde velas até tecidos, todo tipo de trabalho artesanal era produzido nas nossas velhas fazendas, de forma que, segundo o autor, elas assumiam o aspecto de “aldeias em ponto pequeno”.

266

Mas se Oliveira Vianna fazia o elogio do tipo de vida gregária e ordeira existente no interior destes latifúndios, não deixou de apontar os efeitos negativos de sua atuação na formação da sociedade colonial brasileira como um todo. Para o autor, a predominância do grande domínio rural implicou na “simplificação” da estrutura social nacional, impedindo que ocorresse na colônia o aparecimento de classes sociais organicamente solidárias, capazes de defender seus interesses. Assim, sem comércio, impedido pela auto suficiência do latifúndio, não se formaram nem uma burguesia mercantil significativa nem uma classe industrial, nem mesmo uma classe agrária solidária, pois pequenos proprietários e sitiantes não tinham nenhum interesse comum com o grande proprietário. Da mesma forma, não se constituiu uma “classe média”, semelhante à européia, uma vez que o latifúndio impediu a formação da pequena propriedade rural. Neste ponto, Vianna ressaltava a diferença entre o caso brasileiro e o norte-americano. No primeiro, por conta da presença do latifúndio canavieiro, não houve o menor espaço para a pequena propriedade baseada nas culturas do trigo e da vinha, então consideradas como “culturas democráticas”. Com essa representação do passado, Oliveira Vianna procurava mostrar que tudo no ambiente colonial conspirava contra a pequena propriedade, impedindo a formação de uma classe média nacional capaz de dar sustentação a um regime democrático baseado na opinião popular. Neste ponto, a predominância da grande propriedade deixava então de ter o sentido épico e triunfal apresentado nos primeiros capítulos do Populações Meridionais por Oliveira Vianna: “Sem quadros sociais complexos; sem classes sociais definidas; sem hierarquia social organizada; sem classe média; sem classe industrial; sem classe comercial; sem classes urbanas em geral; - a nossa sociedade rural lembra um vasto edifício, em arcabouço, incompleto, insólido, com os travejamentos mal ajustados, e ainda sem pontos firmes de apoio.”543 A predominância do latifúndio, além de impedir a formação de uma tradição nacional conciliada com os valores democrático-liberais, colocava em xeque a própria constituição de uma sociedade orgânica, definida e hierarquizada. Mas não somente no terreno social o latifúndio imprimia sua marca, também no político ele foi determinante. A 543

Idem, Populações Meridionais , p. 143.

267

formação do grande domínio rural, por sua dispersão e atomização, impediu a formação, na psicologia política das populações estudadas, de uma “solidariedade social”, entendida como aquela voltada à satisfação do bem público em detrimento do interesse privado. Com a predominância do latifúndio, o que ocorreu, no campo da “psicologia política” foi a predominância do “espírito de clã”, do interesse privado da aristocracia rural em detrimento de um interesse coletivo identificado com a esfera pública. Oliveira Vianna, nos anos 20, apontava como um dos maiores óbices à formação nacional a predominância do interesse privado sobre o público, tema que não mais deixaria as nossas ciências sociais544. Os caudilhos (grandes chefes rurais) eram detentores de um poder quase ilimitado no período colonial, não havendo instância política capaz de render oposição à sua autoridade. Para Oliveira Vianna, nem mesmo os órgãos administrativos e as instâncias jurídicas, representantes do poder da Coroa, eram capazes de criar um espaço isento do controle determinante do poder dos caudilhos, aparecendo como dominada pela “parcialidade e o facciosismo”545. O mesmo espírito de “facciosismo” marcava instituições públicas como o juiz ordinário e as Câmaras Municipais. Estas últimas, que conforme vimos anteriormente, representavam para os republicanos paulistas, como Américo Brasiliense, Antônio Piza e Washington Luís o esteio de um primitivo espírito de self government na Piratininga seiscentista, para Oliveira Vianna eram um exemplo flagrante de inadaptabilidade de uma instituição alienígena ao solo americano, implicando, mais uma vez, o controle do espaço público pelo poder privado. Assim, ao invés de servirem como instância de autonomia e representação do governo local, como célula do self government, como queriam os republicanos paulistas, transformaram-se, no Brasil, em “centro de caudilhismo eleitoral”. Esta representação que frisava o desvirtuamento do sentido original das câmaras, tinha um sentido político fundamental, na medida em que procurava legitimar, pelo recurso ao passado, a sua crítica às instituições liberais de representação, explicitada na afirmativa de

544

O tema da relação entre publico e privado seria desenvolvido, em outras bases, nos anos 30 por Sérgio Buarque de Holanda, mediante a temática da cordialidade. A respeito ver PIVA, Luís Guilherme. Op. Cit, 2000. 545 Idem, Ibidem, p. 150-151.

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que “entre nós, liberalismo significa praticamente, e de fato, nada mais do que caudilhismo local”546. Concentrado nesta breve frase estava todo o processo de inversão do pensamento liberal brasileiro provocado pela representação do passado de Oliveira Vianna. Conforme a análise de José Murilo de Carvalho, o diagnóstico da nação apresentado pela historiografia de Oliveira Vianna invertia o sentido consagrado pela matriz liberal, conforme analisada em Tavares Bastos547. Enquanto esta afirmava que o entrave ao progresso da nação estava na onipotência do poder estatal, entendido nos termos do “absolutismo colonial” de Tavares Bastos e Alberto Salles, para Oliveira Vianna, o despotismo não viria “de cima”, do Estado colonial absolutista, mas sim “de baixo”, da preponderância do poder privado dos próprios colonos. Para o pensador fluminense, se havia algum despotismo colonial este tinha como agente não o Estado metropolitano, mas sim os turbulentos caudilhos rurais, que, veremos, se confundiam com os bandeirantes, entendido como antepassado político do mandão rural de sua época. Quando trata do Estado colonial, Oliveira Vianna é categórico em refutar a tese liberal do absolutismo do poder da Coroa e de seus representantes: “Muito ao contrário do que diz Oliveira Martins, eles [estadistas coloniais] não

estabeleceram

na

grande

colônia

americana,

aquela

‘organização

centralizada, monopolizadora, protetora, absolutista’, conforme as idéias do tempo vigentes na Europa. Cedo compreenderam a inadaptabilidade desse sistema político à nova sociedade americana, incoerente, instável, heterogênea: embora recalcitrantes, vão cedendo aos poucos, com inegável habilidade, às forças da

546

Idem, Ibidem, p. 257. Ver CARVALHO, José Murilo. “A Utopia de Oliveira Vianna” In BASTOS, Élide Rugai & MORAES, João Quartim. Op. Cit. , 1993. À página 20, ressaltando as semelhanças entre as visões do visconde de Uruguai e as de Oliveira Vianna, José Murilo de Carvalho escreve: “Outro ponto de contato entre os dois autores está na concepção da relação entre os pólos centralização e descentralização e os pólos liberdade e opressão. Aqui havia uma clara oposição entre a visão conservadora expressa por Uruguai e a visão liberal melhor elaborada por Tavares Bastos. Segundo Uruguai, os liberais julgavam que a opressão vinha sempre de cima, do governo. Para os conservadores, ela podia vir também de baixo, das parcialidades, das facções. No caso Brasileiro, achava Uruguai, ela vinha principalmente de baixo. (...) Mais centralização significava, para este ponto de vista, mais controle sobre a violência e o arbítrio dos mandões locais. E vice-versa. Isto é, menos centralização menos liberdade. Oliveira Vianna não só concordava com a tese, como adotava a interpretação de Uruguai (...).” 547

269

terra e do povo, às forças indomáveis do localismo, triunfantes no seu trabalho de americanização de suas velhas instituições européias.”548 Interessante neste trecho é a refutação direta da obra do historiador português Oliviera Martins que, conforme apresentado no capítulo 5, havia servido à intelectualidade crítica da “geração de 70” brasileira, republicanos paulistas inclusive, como fonte legitimadora da crítica que estabeleceram à Monarquia centralizada. Procurando, por sua vez, combater o aspecto liberal federalista desta geração 70, Oliveira Vianna apresentava uma visão diferente do Estado colonial. Ao mesmo tempo em que refutava a tese do “absolutismo colonial”, apresentava este Estado positivamente, como adequado às tendências do meio social americano no qual foi implantado. Os “estadistas coloniais” procuravam, dentro de seus interesses exclusivamente fiscalistas (arrecadação de impostos), direcionar a obra de colonização, sem romper com as tendências dissolventes do meio colonial549. Assim, ao contrário da visão consagrada pela matriz liberal, em que o período colonial aparecia sob o signo da imobilidade, da ausência de liberdade, do controle de todas as esferas pela onipotência “despótica” do Estado metropolitano, Oliveira Vianna apresentava outra representação. Nela, o período colonial vinha marcado pela dispersão da ocupação, pela instabilidade, precariedade e indefinição das classes sociais. No terreno da “psicologia política”, o período colonial seria caracterizado por uma ausência quase total de uma “solidariedade social” que representasse unidade, coesão e autoridade. Ele seria marcado essencialmente pela “insolidariedade”, em que a instância preponderante era a dos interesses privados dos caudilhos rurais que provocavam a ausência da autoridade política, fazendo prevalecer a “anarquia colonial”. No diagnóstico da nação que estabelecia em sua historiografia, Oliveira Vianna procurava legitimar sua defesa da instituição de um Estado forte e centralizado, aos moldes daquele implantado pela elite saquarema imperial, e que deveria substituir as instituições liberais federativas da Primeira República, que tinham nos republicanos paulistas um de seus principais defensores. Mas se, com sua peculiar representação do passado colonial, Oliveira Vianna se distanciava da elite paulista, por outro lado não deixou de compartilhar 548 549

Idem, Evolução do Povo Brasileiro. P. 241. Idem, Ibidem, p. 241

270

com ela seu entusiasmo frente à figura do bandeirante e mesmo de realizar o elogio da formação racial do paulista, conforme será estudado a seguir.

7.2.b Oliveira Vianna e a paulistanidade: a representação do bandeirante e o elogio do “eugenismo paulista”.

Como vem sendo ressaltado, a representação do passado colonial elaborada por Oliveira Vianna procurou solapar os alicerces simbólicos que conferiam legitimidade às instituições liberais e federalistas da Primeira República, o que levou à mobilização de parte da intelectualidade alinhada ao PRP visando a refutação de sua visão do passado. Desde já pode-se adiantar que a relação entre o pensador fluminense e a intelectualidade paulista não foi marcada, porém, somente pela animosidade. Ao contrário, houve intercâmbio constante entre as duas partes, inclusive com a apropriação de seu pensamento pela vertente perrepista do modernismo representada pelo grupo verde-amarelo, que analisaremos melhor no próximo capítulo. A explicação deste intercâmbio positivo entre o pensador fluminense e intelectualidade perrepista não estava somente na centralidade que Oliveira Vianna conferia ao tema das Bandeiras, mas também na série de entusiásticos elogios que traçou aos aspectos raciais da elite paulista. Publicados nos anos de 1926 e 1927 no órgão perrepista O Correio Paulistano, seus artigos sobre “O eugenismo paulista”, acabaram contribuindo para o esforço dos intelectuais perrepistas em difundir um discurso da paulistanidade voltado a legitimar o poder da elite regional. Fosse nos livros Populações Meridionais, Evolução do Povo brasileiro, ou na série de artigos sobre “O eugenismo paulista”, a figura do paulista e principalmente do bandeirante assumia sempre um lugar de destaque em sua produção. Em Populações Meridionais encontra-se a principal caracterização do bandeirante de Oliveira Vianna, sendo este personagem confundido com o colono do centro-sul que constitui, na visão do autor, o agente por excelência da nossa história colonial. Analisando a representação que Oliveira Vianna realiza do bandeirante, destacam-se três características principais, sobre as quais pretendo me concentrar. Em termos sociais, o bandeirante era visto como um aristocrata, cujo poder se fundava no latifúndio; em termos políticos, ele era um caudilho

271

turbulento e anarquizante; e em termos raciais, um ariano, desprezando qualquer forma de miscigenação. Aristocrata, caudilho e ariano: eis a tríade que caracterizava a representação do bandeirante elaborada por Oliveira Vianna, e que acabaria por suscitar ardorosos protestos da parte dos historiadores paulistas do período. Primeiramente darei atenção ao estudo destes três aspectos para, posteriormente, analisar a sua discussão sobre o eugenismo paulista.

O bandeirante como aristocrata latifundiário.

Já foi visto como Populações Meridionais se inicia com a polêmica descrição do ambiente luxuoso, requintado e aristocrático dos primeiros solares paulistas. As “galas” e “louçanias” desta sociedade de forte caráter urbano e ainda muito ligada ao universo das cortes européias, representam a imagem mais significativa do caráter aristocrático que Oliveira Vianna procurou imprimir ao primitivo habitante de São Paulo. Esses aristocratas paulistas que, segundo Vianna, se mostraram “muito superiores à nobreza da própria metrópole”550, ao longo de todo o período colonial deixaram os centros urbanos pelo sertão, no movimento identificado como “ruralização”. O resultado final, portanto, foi o do abandono destes hábitos de luxo pela nova elite rural paulista, o que aparentemente poderia significar a perda do caráter aristocrático do bandeirante daí oriundo. Essa aparente degeneração, contudo, não significa para Oliveira Vianna que a elite paulista ruralizada tenha perdido seu poder de natureza aristocrática. Esta elite continuava sendo uma aristocracia, a única diferença, a seu ver, estaria no fato de passar a ser uma aristocracia “rural”, sem os antigos hábitos elegantes e maneiras fidalgas. “Essa ascendência, esse poder, esse prestígio político da nobreza local de onde lhe vem?” questionava-se o autor. Esse prestígio não lhe vinha do trono, nem da religião e nem mesmo do orgulho de sangue fidalgo: “o prestígio, a ascendência, o poder da nobreza paulista é de formação puramente nacional e tem uma base inteiramente local. É sobre a sesmaria, sobre o domínio rural, sobre o latifúndio agrícola e pastoral que se lhe

550

Idem, Populações Meridionais, p. 11.

272

assenta.”551 Aquilo que confere caráter aristocrático ao colono paulista é antes de tudo a posse do latifúndio. Como já foi visto, para o autor, o latifúndio era a base de toda a sociedade brasileira até a abolição da escravidão, sendo caracterizado como um microcosmo que concentrava internamente todas as divisões sociais que constituíam a sociedade colonial. Marcado por uma radical auto-suficiência, estando voltado sobre si mesmo, o latifúndio somente rompia com este estado de reclusão e imobilidade quando se organizavam as grande expedições bandeirantes. Estas, na visão de Vianna, tinham um papel fundamental na medida em que representavam o latifúndio em marcha: “(...) a bandeira é um fragmento do latifúndio. Destaca-se dele por uma sorte de cissiparidade. Leva consigo os elementos sociais do domínio: o senhor, os agregados, os escravos, a tropa aguerrida dos mamelucos e, quase sempre, o capelão, que oficia na igreja do senhor. (...) O domínio rural se translada, destarte, sob a forma da bandeira, integralmente, para as novas terras descobertas.”552 Mais do que a conquista do território, tão ressaltada pela historiografia territorialista, ou a escravização do indígena, condenada pela historiografia indianista, o papel central da bandeira, para o pensador fluminense, estaria na expansão do latifúndio por amplas superfícies até então despovoadas. Expandindo o latifúndio, o paulista expandia todos os valores característicos da sociedade colonial brasileira, já devidamente constituída. A bandeira, portanto, para Oliveira Vianna, tinha a missão incomparável de semear o latifúndio, entendido como uma célula da sociedade colonial, por todo o Brasil centro meridional. Com a expansão do latifúndio propiciada pelas bandeiras, era a própria nação que emigrava para o sertão, com a reprodução de toda a relação hierarquizada entre os grupos sociais que, para o autor, era o lado benéfico da bandeira. “É a bandeira uma pequena nação de nômadas(....). Todas as classes. Todas as raças. Todas as armas. Tudo prussianamente enquadrado pelo pulso de ferro do cabo da tropa, um Afonso Sardinha, um Pasqual de Araújo, um Bartolomeu Bueno (...)”553. Ao descrevê-la, Oliveira Vianna elogiava o caráter “prussiano” de sua organização, em que o aristocrata bandeirante 551

Idem, Ibidem, p. 56. Idem, Ibidem, p. 78, 79. 553 Idem, Ibidem, p.85. 552

273

mantinha uma rígida ordem interna, submetendo os grupos turbulentos, normalmente identificados com os mestiços mamelucos, aproveitando-os positivamente como “carapaça defensiva”. O caráter aristocrático do bandeirante, além de impor o controle social interno, “prussiano”, também afastava os grupos subalternos de comerciantes, mestiços e negros do mundo da política, concentrando nas mãos do grupo latifundiário o direito de participação nas câmaras554. O autor negava, desta forma, a miragem da existência de uma protodemocracia na São Paulo seiscentista, defendida pelos republicanos paulistas. O aristocratismo do bandeirante de Oliveira Vianna era o contrário do liberalismo e do caráter “democrático” a ele atribuído por intelectuais republicanos como Antônio de Toledo Piza e Washington Luís. O interessante é que, para Vianna, esta exclusão da plebe era positivamente qualificada como fruto da “ação seletiva de (...) salutares preconceitos”555, retomando, nos anos 20, a desqualificação simbólica da participação popular que havia marcado a leitura saquarema do episódio de Amador Bueno, conforme visto no capítulo 3. Mas nem tudo era positivo no movimento da bandeira, como deixava ver o tratamento da “psicologia política” do bandeirante.

O bandeirante como caudilho turbulento.

Aos olhos de Oliveira Vianna, socialmente o bandeirante servia para uma função essencialmente benéfica, uma vez que mantinha a ordem hierarquizada necessária ao movimento das Bandeiras e à conseqüente expansão do latifúndio. Contudo, em termos políticos, a atuação do bandeirante não foi das mais positivas. Se no ambiente interno ao latifúndio o bandeirante era fator de ordem, no ambiente geral da sociedade colonial ele, juntamente com índios e quilombolas, formava um dos três grandes agentes de turbulência e insolidariedade. Sendo considerado um “caudilho rural”, ainda segundo a visão do autor, 554

Referindo-se ao cronista colonial paulista Pedro Taques, Oliveira Vianna afirmou: “Os nobres de Santos, segundo Taques, tomados do mesmo espírito de casta, protestam contra o costume, que ali se ia introduzindo, de figurar no Senado da câmara negociantes de vara e côvado. Em tudo isso o que se sente é um vigoroso trabalho de depuração e filtragem, tendente a eliminar do corpo político os que não são proprietários da terra. Esses mesmos escrúpulos preponderam naturalmente nos outros centros de colonização vicentista. Os elementos populares são excluídos do governo: a capacidade política vai prender-se diretamente ao domínio rural.” (grifos meus) Idem, Ibidem, p. 100. 555 Idem, Ibidem, p. 100.

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o bandeirante paulista fora responsável pelo estado de profunda instabilidade e anarquia política que marcou o período colonial. Para Vianna, portanto, o bandeirante também aparecia como fator de anarquia política. As cores com as quais Oliveira Vianna representou esta anarquia eram as mais carregadas possíveis. Ele chegou a ocupar quase cinco páginas com a descrição pormenorizada do embate entre dois bandos de caudilhos paulistas que, no “segundo século” (séc. XVII), transformaram Santos em um verdadeiro campo de batalhas, com direito a cerco, embates, tiros de canhão e muita violência. Analisando o fato, Oliveira Vianna destacava a “atitude das autoridades públicas”, que “não aparecem senão como simples espectadoras do tumulto. Em regra, recuam, cautelosas e tímidas, diante desse poder formidável, que os latifúndios elaboram.”556. Afirmava, assim, a submissão do poder público da Coroa diante do poder privado dos “caudilhos bandeirantes”. Por trás desta representação estava o posicionamento de Oliveira Vianna diante da antiga questão da liberdade e autonomia do colono paulista, que, de Saint Hilaire a Washington Luís, despertava intenso debate entre os historiadores, conforme vimos nos capítulos anteriores. Ao contrário da historiografia monárquica, que ressaltava a “lealdade paulistana” e da republicana, que identificava na “insubmissão” dos antigos paulistas as origens de um “espírito de liberdade”, Oliveira Vianna compreendia o fenômeno do enfrentamento do poder régio pelo bandeirante como uma ação turbulenta, uma manifestação de “anarquia”, considerando-a, portanto, como a mais pesada e indesejável herança legada pelo passado à nação. O que para os republicanos era “liberdade e independência”, para Oliveira Vianna não passava da mais prejudicial “anarquia”. Como podemos ver, a visão do bandeirante em Oliveira Vianna vinha marcada pela alteração constante de elementos positivos e negativos, não havendo nem uma postura predominantemente laudatória, nem completamente depreciativa. O que implicava em um diálogo igualmente dúbio entre Oliveira Vianna e a elite republicana paulista, conforme será melhor estudado no próximo capítulo. Para Oliveira Vianna, o elemento negativo do movimento das Bandeiras ficava por conta da psicologia política anarquizante e turbulenta do bandeirante paulista. Mas, por outro lado, havia outro ponto positivo além do caráter

556

Idem, Ibidem, p.202.

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aristocrático já ressaltado, e a ele intrinsecamente relacionado: o aspecto racial do bandeirante.

O bandeirante como o ariano no Brasil.

Apesar de se dedicar prioritariamente a questões políticas, terreno em que mais contribuiu, Oliveira Vianna não desprezou o tratamento da questão racial. Se no político reforçou a tendência antiliberal que tomava força no âmbito nacional e internacional ao longo dos anos 20 e 30, no terreno racial foi adepto da teoria ariana, que defendia a superioridade do tipo racial germânico (ariano), propagada desde o séc. XIX pelas obras do Conde de Gobineau e de seu seguidor Lapouge557. Ao invés de oposição, havia complementaridade entre suas posturas políticas de cunho antiliberal e as raciais de cunho arianista. Da mesma forma como o Conde de Gobineau havia rechaçado o princípio revolucionário da igualdade entre os homens na França dos anos 1850; Oliveira Vianna no Brasil dos anos 20 e 30, também afirmaria a pertinência do paradigma racista, visando naturalizar as diferenças sociais e, assim, combater as pressões socialmente equalizadoras que então se avolumavam. Vianna procurava mostrar que a posição social do indivíduo era determinada pela sua formação racial, o que reservava pouco espaço para qualquer tipo de igualitarismo social. Seu apego ao arianismo era uma forma de reforçar, conforme veremos, sua defesa da necessidade de elites dirigentes numa época em que cresciam os clamores contra o poder das oligarquias.

557

Como mostra Léon Poliakov, o mito ariano nasceu no séc. XVIII, da intelectualidade iluminista européia que procurava elaborar uma origem para sua cultura que não fosse aquela do relato judaico-cristão. Identificaram, assim, na Índia antiga e nas montanhas do Himalaia o berço da humanidade e da civilização, posteriormente transmigrada para a Europa pela expansão dos povos arianos (termo que originariamente designava os persas e medas e que passou a ser identificado com a “raça branca” e “indo-germânica” pela antropologia européia do séc. XIX). Em meados do séc. XIX, na França pós-revolucionária, a teoria ariana foi apropriada pelo nascente determinismo racial e, na obra do Conde de Gobineau, transformou-se em arma crítica contra a Revolução Francesa e seus desdobramentos, com destaque para as idéias políticas e sociais de cunho igualitário ou mesmo liberal. O arianismo racista de Gobineau rejeitava a igualdade entre os homens e apontava a miscigenação de raças (conceito, na sua visão, indistinto do de classe social) como a força negativa que levaria a humanidade à decadência. A partir do início do séc. XX, a teoria ariana cada vez menos interessava aos cientistas e passava a ser usada por políticos, servindo, principalmente na Alemanha, dentre outras coisas, para embasar tendências anti-semitas. Para um acurado estudo sobre as transformações do mito ariano ao longo dos séc. XVIII e XX, ver POLIAKOV, Léon. O mito ariano: ensaio sobre as fontes do racismo e do nacionalismo. São Paulo: Perspectiva, Edusp; 1974.

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Em Populações Meridionais, a temática racial aparecia de forma marginal, sendo o tema complementado no Evolução do Povo Brasileiro, ambos aqui estudados. Na primeira obra, seguindo a tendência dos autores franceses ligados à tradição ariana, Vianna apresentava o posicionamento social dos indivíduos como decorrência de sua formação racial, correlacionando intimamente raça e estrutura social558. Desta forma, a cada um dos três grupos sociais existentes no período colonial correspondia um grupo racial específico. A “aristocracia” latifundiária seria formada por indivíduos de composição racial branca ariana, já o grupo intermediário dos “agregados” seria composto pelos mais variados mestiços, enquanto a escravaria seria composta de índios e negros puros. O que conciliava formação racial com posição social era o princípio darwinista social da “seleção”, uma vez que, para Oliveira Vianna, “certos fatores (...) atuam num sentido francamente seletivo, de modo tal que a propriedade da terra vai caber, quase que exclusivamente, ao elemento etnicamente superior da massa imigrante”559. Este elemento “etnicamente superior” era exatamente o colono português de origem nobre, a quem Oliveira Vianna identifica como sendo não somente o formador do bandeirante, como sendo racialmente de tipo ariano. Para explicar o arianismo do colono português, origem do bandeirante, o autor se empenhou em esquadrinhar a diversidade da formação racial dos povos peninsulares. Apontava, assim, a existência no Portugal quinhentista de uma nobreza racialmente ariana e germânica, em oposição a “classes médias e populares” racialmente formadas por brancos braquicéfalos morenos560. O arianismo germânico da nobreza portuguesa, por sua vez, era explicado como decorrente da própria introdução de elementos godos, flamengos, borguinhões e normandos durante as guerra de reconquista que na Idade Média deram origem ao reino português. Devido ao seu inato espírito nômade e conquistador, foram os elementos desta nobreza portuguesa, racialmente “germânica”, que compuseram a grande massa de 558

Poliakov demonstra como os antropólogos franceses dos anos 1840 e 50, ligados à elaboração do mito ariano, aproximavam até a fusão os conceitos de raça e classe, considerando a primeira como o principal motor da história. Ver Idem, Op. Cit, 1974, p. 207 a 221. 559 VIANNA, F. J. Oliveira. Populações Meridionais. p.97. 560 Para o autor, era “possível (...) distinguir na massa da população peninsular, ao abrir-se o ciclo dos descobrimentos, dois grupos perfeitamente caracterizados e distintos: um louro, alto, dolicóide, de hábitos nômades e conquistadores; outro bruno, de pequena estatura, dolicóide ou braquióide, de hábitos sedentários e pacíficos.” Mais adiante acrescentava: “os elementos dolicóides e louros devem preponderar na classe aristocrática: na nobreza militar e feudal da península. Os elementos brunos, braquióides, formavam a base das classes médias e populares” In Idem, Formação do povo brasileiro. P. 125, 126.

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colonizadores que formavam a expedição de Martim Afonso de Sousa, aportada em São Paulo no início do séc. XVI. O grupo dos proprietários de terra daí originado não poderia ter outra formação racial além da germânica. Desta forma, para Oliveira Vianna, o bandeirante, herdeiro desta aristocracia portuguesa, era formado por aquilo que havia de melhor em termos raciais em toda a humanidade. O bandeirante, para Oliveira Vianna, era um germânico, “dolicóide louro” dotado de elevada estatura, com todos os atributos físicos e psicológicos positivos que isso implicava. O bandeirante, e por conseguinte a elite paulista, era o mais fiel representante do tipo ariano germânico no Brasil. Conforme observava o autor: “Os nossos sertanistas e bandeirantes antigos, para quem os estuda em seu viver fagueiro e nas suas proezas assombrosas, oferecem numerosos pontos de contato e analogia com os homens de raça germânica, não só os que formavam a feudalidade militar européia, como os seus mais puros representantes, que são os anglo-saxões (...). Ora, como brancos puros, o temperamento aventureiro e nômade, que os impele para os sertões à caça de ouro ou de índios, tudo parece indicar que lhes provém de uma ancestralidade germânica; a presença nas suas veias de glóbulos de sangue germânico bem lhes poderia explicar a sua combatividade, o seu nomadismo, essa mobilidade incoercível, que os faz irradiarem-se por todo o Brasil.”561 Na opinião do autor, a formação racial explicava, em última análise, a “inigualável” energia presente no bandeirante que o impeliu à ocupação do território nacional, aproximando-o ainda do norte-americano (“anglo saxão”), não tanto pelo viés da “psicologia política” de natureza “democrática”, como frizavam os republicanos paulistas, mas pelo viés da composição racial comum. Ao contrário do que afirmavam os autores paulistas da época, como Alfredo Ellis Jr. e Afonso de Taunay, o bandeirante de Oliveira Vianna não era racialmente um mameluco. Ao invés de se caldear, na visão do autor, o bandeirante procurou, ao máximo, manter a pureza de seu tipo racial, evitando contatos com gente de sangue “infecto”. O “aristocratismo” tão louvado por Oliveira Vianna no paulista antigo, correspondia também a esta profunda aversão ao sangue negro ou indígena. 561

Idem, Ibidem, pp131.

278

Esta insistência de Oliveira Vianna em louvar a pureza ariana do bandeirante revelava a forma negativa com que este autor considerava a mestiçagem. Fiel, neste quesito, à ortodoxia arianista, Vianna deplorava a mistura de sangues, apesar de reconhecer a sua vigência nos latifúndios desde o período colonial. O resultado destes contatos, na visão do pensador fluminense, era o aparecimento de dois tipos de mulatos: os superiores e os inferiores. Os “inferiores” formariam a massa dos mestiços, em que a predominância dos caracteres somáticos negros ou índios lhes imprimiria um caráter de instabilidade psicológica crônica, tornando-os avessos à civilização. Em contraste, os “mestiços superiores” seriam aqueles poucos nos quais prevaleciam os caracteres somáticos do tipo ariano, o que lhes possibilitava desenvolver um comportamento civilizado semelhante àquele da aristocracia, daí advindo, inclusive, uma certa possibilidade de ascensão social. Ao apontar a possibilidade de criação de um tipo mestiço tendencialmente civilizável (o mestiço “superior”), Oliveira Vianna se distanciava do pessimismo inerente à ortodoxia ariana de um Conde de Gobineau, que previa a inexorável extinção das raças humanas por conta da miscigenação. O arianismo heterodoxo de Oliveira Vianna tingia-se assim de tons mais brandos e otimistas do que aquele europeu, abrindo uma pequena possibilidade de aperfeiçoamento de alguns tipos mestiços, ainda que remota. Ao contrário do senso comum da intelectualidade do período, que afirmava a inexistência de preconceito racial no Brasil562, Oliveira Vianna não somente demonstrava que desde o período colonial a aristocracia rural se empenhara em preservar sua pureza racial, como afirmava abertamente o caráter positivo e “saudável” destas medidas de exclusão racial manifestadas no preconceito de raça.

No seu entender, elas seriam

“admiráveis aparelhos seletivos, que impedem a ascensão até as classes dirigentes desses mestiços inferiores”563. Ao preservar a elite do “contágio” do barbarismo das classes inferiores mestiças, o preconceito de cor garantia a arianização da elite, identificada como fator fundamental para a construção de uma nação civilizada nos sertões americanos. Sem elite ariana, para Oliveira Vianna, estaria comprometida a obra de construção de uma nação solidária e civilizada:

562

A respeito da crença na inexistência de preconceito racial no Brasil, ver SKIDMORE, T. Preto no Branco. São Paulo: Ed. Brasiliense; 1987. 563 VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais, p. 108.

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“Esse caráter ariano da classe superior, tão valentemente preservado na sua pureza pelos nossos antepassados dos três primeiros séculos, salva-nos de uma regressão lamentável. Fazendo-se o centro de convergência dos elementos brancos, esta classe representada principalmente pela nobreza territorial, se constitui entre nós no que podemos chamar o “sensorium” do espírito ariano, isto é, um órgão com a capacidade de refletir e assimilar, em nossa nacionalidade, a civilização ocidental em seus altos ideais. O negro, o índio, os seus mestiços, esses não nos podiam dar uma capacidade de exercer essa função superior.”564 A manutenção da pureza sangüínea da aristocracia ariana paulista, durante o período colonial, representou a possibilidade de a nação enveredar na senda da civilização. De forma que, se do ponto de vista político a caudilhagem bandeirante representou, para Vianna, um sério perigo à consolidação da nacionalidade, ameaçada de naufragar na “anarquia”, do ponto de vista racial, ela representou aquilo que havia de melhor na colônia, possibilitando a propagação dos valores da civilização ocidental. O bandeirante, pela sua formação racial ariana, mais do que pela sua psicologia política, era apresentado por Vianna, como um agente civilizador. Se nesta representação do bandeirante, do paulista antigo, Oliveira Vianna ressaltou a sua positividade aristocrática e ariana, o autor empregaria o mesmo tom otimista ao tratar do “paulista moderno”, da elite paulista do início do séc. XX, sua contemporânea. 7. 2. c. Oliveira Vianna e o “eugenismo paulista”.

A questão racial assumia grande importância no conjunto da produção intelectual de Oliveira Vianna durante os anos 20. Conforme procurarei mostrar, o seu racismo vinha sustentar o seu aristocratismo, ou seja, a certeza da incapacidade da massa popular de participar da vida política representativa aos moldes liberais, o que levava à defesa da necessidade de elites esclarecidas que controlassem o Estado forte e centralizado preconizado pelo autor. A seu ver, estas elites teriam na formação racial ariana e na adesão psicológica ao “idealismo orgânico” (ou seja, antiliberalismo) a maior garantia da condução a um futuro civilizado para o país. 564

Idem, Ibidem, pp 104.

280

Se em Populações Meridionais, de fato, o espaço consagrado às questões raciais era relativamente restrito, em outras obras o autor se dedicou mais ao tema, mantendo-se, em geral, próximo dos pressupostos da corrente arianista. Vianna pretendia mesmo escrever uma obra intitulada “O ariano no Brasil”, em que aprofundaria a abordagem da questão. Contudo, ao longo dos anos 30 e 40, com o descrédito, no âmbito internacional, das teorias do determinismo racial, acabou abandonando o projeto. Mas alguns esboços do que constituiria o corpo do livro foram levados a público ainda nos anos 20. A série de artigos sobre a “Seleção imigrantista” e “Eugenismo paulista” publicados, durante os anos de 1926 e 27, pelo autor no Correio Paulistano, órgão oficial do perrepismo, constituíram exatamente esta primeira tentativa de organização do livro sobre o ariano que, nos anos 30, seria continuado pela obra Raça e Assimilação. Desde 1922, ano em que publicou Evolução do Povo Brasileiro, Oliveira Vianna constatava uma tendência à progressiva arianização da população brasileira. Uma vez definida a tendência, nos artigos daquele jornal, o autor buscava definir a melhor forma de intervir no sentido de reforçar a tendência arianizadora da população do país. Visando a criação de um tipo brasileiro futuro, discutia nos artigos a questão da eugenia, da intervenção médica no sentido do aperfeiçoamento dos tipos raciais humanos, que então entrava na ordem do dia565. O que implicava discutir a forma de garantir um bom nível eugênico tanto para as camadas subalternas566, quanto para as elites. Mesmo quando discutia a seleção imigrantista e a formação das massas futuras, tinha em vista a formação das elites, pois acreditava que dos elementos mais eugênicos do povo seriam selecionados os tipos formadores das futuras elites nacionais. Acreditava também que “a superioridade de uma elite é antes de tudo uma pura questão de biologia étnica. Daí o problema da seleção das raças que hão de compor a massa futura do nosso povo constituir para nós o mais grave dos problemas.”567 Como se pode notar, Vianna estabelecia uma relação direta entre seleção de imigrantes, excelência da elite e progresso futuro do país, considerando cada um dos 565

Sobre a eugenia nos anos 20 ver LUCA, Tânia, op. Cit. Ver o conjunto dos artigos de Oliveira Vianna sobre a questão racial publicados no Correio Paulistano: “Iberos e eslavos”, 15/8/26; “Seleção das matrizes étnicas”, 25/8/26; “Seleção Imigrantista”, 15/9/26; “Raça e pesquisas estatísticas”, 25/9/26; “Key e a hereditariedade mental”, 5/11/26; “A imortalidade das raças”, 25/11/26; “Etnologia das raças bárbaras”, 25/12/26; “O eugenismo das raças bárbaras”, 6/1/27; “Raças nacionais e raças históricas”, 14/1/27. 566

281

elementos como condição imprescindível para a realização dos demais. Mais uma vez, o autor trazia à tona seu profundo elitismo, o que o impulsionou a escrever quatro artigos em que tratava do caráter altamente eugênico da “elite paulista – porque, como sempre, aqui, como em toda parte, só as elites contam”568. No primeiro artigo, Oliveira Vianna, seguindo o que já apontara em Populações Meridionais, ressaltava a predestinação do primitivo núcleo colonial de São Paulo em se tornar “o habitat de uma humanidade privilegiadamente dotada para as glórias da ação”. A cidade de São Paulo era apresentada como um verdadeiro centro magnético de eugenismo, atraindo os tipos superiores de todos os cantos da terra. A explicação para esta predisposição eugênica, Oliveira Vianna encontrava na forma como se deu o início da colonização em São Paulo: “Para mim, todo este prodigioso destino histórico dependeu do acidente inicial. Porque bem podemos dizer, como no Gênesis, que, no princípio era a elite paulista. Ou melhor, no princípio eram os companheiros de Martim Afonso. Criados por eles, neste recanto bárbaro e áspero de Piratininga, o primeiro centro de eugenismo colonial”569. Na visão de Oliveira Vianna, São Paulo aparecia fadado à superioridade. O autor fluminense, apesar de crítico do liberalismo das elites paulistas, se mostrava aqui um ativo colaborador no esforço destas mesmas elites em construir um “destino manifesto” de superioridade e liderança para São Paulo. Se em Populações Meridionais, Oliveira Vianna já defendera a tese da superioridade racial do bandeirante e do paulista primitivo, agora ele apresentava o valor da própria elite paulista, sua contemporânea. O ponto central de todos os quatro artigos girava em torno da idéia de permanência dos caracteres eugênicos da elite paulista. Aos olhos do autor, em nenhum outro lugar do Brasil (exceto talvez em Pernambuco) havia uma elite que, além de liderar todo o processo de ocupação do território durante o período colonial, fora capaz de se manter sempre à frente dos principais acontecimentos históricos da nação. A aristocracia paulista fora a única capaz de manter por tanto tempo “a continuidade de sua força criadora, a inesgotabilidade de seu

567

“Seleção das Matrizes Étnicas”, Correio Paulistano, 25/8/26. “ Eugenismo Paulista”, Correio Paulistano, 5/3/27, publicado em VIANNA, Oliveira. Ensaios Inéditos. Campinas; ed. Unicamp; 1991. 569 “Eugenismo Paulista” Correio Paulistano, 15/2/27. 568

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eugenismo inicial”570. Assim, a verdadeira exceção paulista, para Oliveira Vianna, não estaria em um período colonial livre e independente, como queriam os republicanos Washington Luís e Américo Brasiliense, mas nas qualidades racialmente eugênicas de sua elite. No momento em que a questão da eugenia e do aperfeiçoamento do nosso povo tomava o centro do debate racial brasileiro, Oliveira Vianna apontava, para toda a nação, o exemplo radiante da elite paulista. O que mais atraía o pensador fluminense era sua “prodigiosa capacidade de sobrevivência revelada pelas grandes famílias do ciclo do povoamento e do ouro”. A positividade do exemplo paulista conferia originalidade para o arianismo de Oliveira Vianna, afastando-o do profundo pessimismo de Gobineau. Ao contrário da progressiva “desarianização” da população mundial anunciada pelo aristocrata francês, Oliveira Vianna buscava comprovar, pela análise da elite paulista, há três séculos eugênica, a permanência dos caracteres superiores do tipo ariano. Assim, a admiração que o autor devotava à elite paulista se concentrava neste profundo sentido ao mesmo tempo aristocrático e ariano que lhe conferia, nada tendo a ver com o republicanismo liberal por ela defendido. Num contexto em que o poder dessa elite paulista vinha sendo profundamente contestado, Oliveira Vianna reafirmou a sua vocação quatro vezes secular na condução dos destinos nacionais. Neste ponto, ele muito se aproximou do discurso proferido por representantes delas nas páginas do órgão oficial do perrepismo, onde o autor publicou seus artigos. Oliveira Vianna contribuía, assim, para o programa perrepista de culto ao passado paulista, que estudaremos melhor adiante, restringindo-se ao aspecto específico do elogio das características raciais e aristocráticas do paulista. Mas, como já foi dito, nem tudo era elogio no que diz respeito ao paulista. O pensador antiliberal fluminense não se identificava com o posicionamento político marcadamente liberal e federalista da elite republicana paulista. Da mesma forma como na representação do paulista antigo – bandeirante - deplorava seu papel político de “caudilho turbulento”. A este respeito, o autor é explícito na edição de 1927 do livro O idealismo da Constituição. Publicado um ano após a criação do Partido Democrático, que buscava restaurar a “pureza democrática” do regime republicano, nele Oliveira Vianna ironizava 570

Idem, Ibidem.

283

este “movimento de interesse em torno da velha tese da democracia”, considerando-o uma “agitação” “de que o núcleo paulista, sempre vivaz, parece ser o centro de irradiação”571. O paulista moderno, principalmente os liberais oposicionistas do PD, aferrados aos valores liberais, ainda teria na adesão ao “idealismo utópico” um de seus maiores inconvenientes. Neste sentido, a identidade paulista, para Oliveira Vianna, não poderia ser uma identidade completamente ianque, aos moldes daquela definida pela elite republicana ragional. Pois o paulista, a seu ver, não era dotado de um espírito “livre” e “democrático”, semelhante ao do americano do norte, conforme afirmavam os republicanos paulistas. Referindo-se à sua “psicologia política”, o paulista moderno, com seu liberalismo americanista, era entendido por Vianna como herdeiro do “caudilhismo anárquico” do séc. XVII e não da antiga “democracia” piratiningana. A identidade do paulista, para Oliveira Vianna, somente se comparava à do ianque no fato de ambos possuírem o que chamava de “idealismo pragmático”, um terceiro “idealismo” que não era precisamente definido pelo autor, mas que se aproximava dos valores da eficiência e praticidade, que implicava na “intuição econômica” e na “ambição de vôo largo”572. Mas este “idealismo pragmático” do paulista moderno, ainda não era o “idealismo orgânico” antiliberal, estatista e centralizador, que considerava imprescindível à formação da futura elite dirigente. Desta maneira, podemos concluir que Oliveira Vianna mantinha uma relação ao mesmo tempo de aproximação e distanciamento tanto da identidade paulista elaborada pela elite regional, quanto do próprio papel político desempenhado por esta mesma elite na Primeira República. Simultaneamente, rompia com ela em alguns aspectos, em outros dela se aproximava. Através desta representação específica da identidade paulista, que ressaltava os traços socialmente aristocráticos, racialmente arianos e politicamente anárquico-caudilhescos tanto do paulista antigo (bandeirante) quanto do moderno, Oliveira Vianna rompia com o sentido liberal contido na idéia do paulista como “ianque brasileiro”, ao mesmo tempo em que parecia manter a crença num poder de liderança no âmbito nacional da elite paulista.

571

VIANNA, Oliveira. O idealismo da Constituição. Rio de Janeiro: Terra de Sol; 1927. P. 9. As referências a este terceiro idealismo de Oliveira Vianna – o idealismo pragmático – aparecem em dois textos: No capítulo V de Problemas de Política Objetiva e nos textos publicados no Correio Paulistano sobre o “Eugenismo Paulista”. 572

284

Apresentava-se, ao mesmo tempo, como crítico e entusiasta da elite política paulista. A posição de Oliveira Vianna frente ao grupo liberal paulista da Primeira República foi marcada por essas aparentes contradições que, no entanto, escondiam uma lógica própria. Estas contradições se resolviam quando se considerava separadamente os aspectos da psicologia política do paulista – que condenava como liberal, e portanto, anarquizante – e os aspectos sociais e raciais – que louvava como exemplares pelo seu aristocratismo e arianismo. Sua admiração pela “eugenia ariana” e o caráter “aristocrático” do paulista, tanto o antigo quanto o moderno, era diretamente proporcional à condenação que fazia do papel liberal “anárquico” que desempenhava em termos políticos. Neste sentido, talvez Oliveira Vianna esperasse uma conversão da elite paulista ao “idealismo orgânico” o que, aliado à base sócio-racial e ao “idealismo pragmático” de que já dispunham, os habilitaria a serem os principais condutores do novo Estado centralizado e antiliberal que preconizava. Mas a este respeito nada podemos avançar, por falta de documentação comprobatória. Suas idéias, conforme veremos, foram recebidas de formas diversas no seio da intelectualidade perrepista, em si internamente diferenciada, principalmente neste contexto de intenso embate ideológico dos anos 20. Antes, portanto, de analisar a resposta intelectual e historiográfica à crítica à hegemonia perrepista realizada por Oliveira Vianna, o que farei no próximo capítulo, cabe estudar a crítica que partia da obra historiográfica de Paulo Prado, um representante significativo dos liberais dissidentes.

7. 3. Paulo Prado e o liberalismo oposicionista paulista.

Como vimos, Oliveira Vianna realizou a crítica antiliberal das instituições republicanas defendidas pelo PRP. Mas outra crítica também seria realizada, na mesma época, por Paulo Prado. Como Vianna, ele se utilizou da história para lastrear simbolicamente sua crítica ao universo político da primeira república e também ele transformou o passado colonial paulista em um campo de batalha onde se buscava colher ensinamentos políticos voltados ao seu presente. Contudo, Paulo Prado invertia o sentido do diagnóstico de Oliveira Vianna, reclamando, não do excesso de liberalismo político, mas de sua falta.

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Para compreender a crítica de caráter historiográfico de Paulo Prado, procurarei seguir um caminho até hoje pouco enfatizado pelas análises de sua obra, que normalmente colocam em primeiro plano sua atuação como mecenas modernista, deixando em posição secundária a natureza de seu posicionamento diante do embate político de seu tempo573. Esta despreocupação em relação aos aspectos políticos da obra de Paulo Prado é tanto mais incompreensível na medida em que o próprio autor, em diversas passagens, ressaltava a centralidade da questão política no conjunto de suas preocupações intelectuais. Em 1923, pelas páginas da Revista do Brasil, antes de publicar sua primeira obra (Paulística), reclamava: “Todos esquecem que nesta terra só existe realmente, empolgante e irredutível, uma única questão – a questão política. Dela decorrem todas as outras, como as criaram o romantismo da monarquia e o arrivismo da república.”574 Mais adiante, em 1928, nas páginas do “Post- Scriptum” de seu principal livro, Retrato do Brasil, retornaria ao tema, afirmando: “Sobre este corpo anêmico [o Brasil] (...) tripudiam os políticos. É a única questão vital para o país – a questão política. Feliz ou infelizmente, não há outro problema premente a resolver: nem social, nem religioso, nem internacional, nem de raças, nem graves casos econômicos e financeiros. Somente a questão política, que é a questão dos homens públicos.”575 A insistência na centralidade da questão política seria ainda reiterada no prefácio da segunda edição de Retrato do Brasil, datada de 1934. Assim, visando compreender o lugar social a partir do qual Paulo Prado realizou sua representação historiográfica do passado colonial paulista, procura-se retraçar a sua trajetória, atentando para a sua atuação nos universos cultural e político. 573

Em LEVI, Darrel. Op. Cit, o autor estuda Paulo Prado e sua obra no quadro da dinâmica familiar, privilegiando a definição de paralelos entre sua obra e a de outros membros da família Prado, estudados ao longo do livro. O principal estudo acadêmico específico sobre Paulo Prado é o de BERRIEL, Carlos Eduardo. “Tietê, Tejo, Sena: A obra de Paulo Prado”. Campinas: tese de doutorado, dep. Teoria Literária, IEL, Unicamp; 1994. A obra se destaca pela definição das relações entre a produção da geração portuguesa de 1870 e a obra de Paulo Prado. Da mesma maneira que as eruditas notas e estudos introdutórios de Carlos Augusto Calil, o trabalho de Berriel procura analisar a obra historiográfica de Paulo Prado sob o prisma do movimento modernista, sem preocupações maiores com sua inserção no debate historiográfico de seu tempo. Apesar de Calil e Berriel não descartarem a discussões de aspectos políticos de sua obra, este aparece em segundo plano em relação ao espaço dedicado ao debate modernista. 574 “O Momento”, Revista do Brasil, n º 99, março 1924. 575 PRADO, Paulo. Retrato do Brasil. São Paulo: Cia. das letras; 1997; p. 205.

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Ao contrário de vários historiadores das Bandeiras, nascidos em outros estados e inseridos na elite regional já adultos (Teodoro Sampaio, Afonso de Taunay, Washington Luís), Paulo da Silva Prado não somente era paulistano de nascimento (1869) como pertencia à mais importante família da elite paulista: o arqui-poderoso clã dos Prado576. Detentores de um império econômico que incluía, desde latifúndios produtores de café até uma das maiores casas exportadoras deste produto (a casa Prado, Chaves & Cia.) passando por estradas de ferro e bancos, os Silva Prado eram os maiores representantes daquilo que Renato Perissinoto chama de grande capital cafeeiro paulista. Apesar do inegável poder econômico de sua família, durante a maior parte de sua vida, até os anos 1920, Paulo Prado não parece ter se envolvido em questões de política, tendo mantido um comportamento de adesão ao regime republicano, sem atuação partidária no grupo perrepista. Tendo se formado em direito (1889) na última turma do período monárquico, não parece ter participado da agitação pró ou anti republicana. Seu posicionamento político frente ao regime republicano parecia estar mais próximo ao de seu pai, o conselheiro Antônio Prado577, do que de seus tios Martinho Prado e Eduardo Prado, ambos envolvidos com a política partidária: o primeiro fervoroso republicano e o segundo o maior líder dos monarquistas restauracionistas. Em termos culturais, porém, no gosto pelo cultivo do espírito e da atividade intelectual, Paulo Prado muito se aproximava de seu tio Eduardo. Com ele, Paulo Prado manteve estreito contato durante os anos de 1890 e 1897, em que viajou pela Europa e se fixou no famoso apartamento parisiense da rue de Rivoli578. Carlos Eduardo Berriel estudou atentamente o “cenáculo parisiense” de Eduardo Prado, que congregava figuras de

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Para um estudo da família Prado ver LEVI, Darrell. Op. Cit. Para a bibliografia de Paulo Prado, baseio-me na “Introdução” e “cronologia” elaboradas por Carlos Augusto Calil In PRADO, Paulo. Retratos do Brasil. Ed. 1997. 577 Durante a Monarquia Antônio Prado desempenhou, como foi visto, papel central na vida política regional e nacional, sendo o líder da ala modernizadora do Partido Conservador na Província de São Paulo (a União Conservadora). Com a República, aderiu ao novo regime, mas retirou-se da vida política partidária recusandose a integrar o PRP. “Após declinar do convite para fazer parte do Governo Provisório em São Paulo, ele fez uma promessa de cooperação não oficial com o regime.”( grifos meus) PERISSINOTO, R. Op. Cit. p. 98. Segundo Cândido Malta Campos, mesmo o cargo de prefeito da capital paulista, o qual exerceu de 1899 a 1910, não significou adesão ao PRP, sendo, por isso, considerado pelos contemporâneos como acima das divisões partidárias, o que reforçava ao mesmo tempo sua imagem de bom administrador e a quase unanimidade de apoio da elite paulista à sua administração. CAMPOS, Cândido Malta. Op. Cit. 2002. pp7880. O conselheiro Antônio Prado retomaria a vida política partidária em 1926, encabeçando a dissidência antiperrepista da elite liberal paulista, organizada no Partido Democrático.

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excelência da intelectualidade luso-brasileira de finais do séc. XIX, de grande influência na posterior elaboração da obra historiográfica de Paulo Prado579. Além de expoentes da intelectualidade do Brasil monárquico como o barão do Rio Branco, Afonso Arinos e Domício da Gama (eventualmente também Joaquim Nabuco), o apartamento parisiense de onde Eduardo Prado escrevia seus virulentos artigos anti-republicanos ainda abrigava a nata da geração de 1870 portuguesa: Eça de Queiroz, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão. O jovem Paulo Prado foi acolhido pelo tio, passando a participar como espectador do ambiente crítico à nascente República e dos encontros culturais onde, nas palavras de Eça de Queiroz, “passeava seu diletantismo”. Em 1897, Paulo Prado foi chamado de volta ao Brasil por seu pai, o conselheiro Antônio Prado, que lhe entregou a gerência da casa Prado, Chaves & Cia. Tinha fim sua juventude mundana na Europa da Belle Époque e iniciava sua carreira à frente do maior conglomerado agroexportador do Brasil. Paulo Prado afirmou-se como importante homem de negócios e grande produtor cafeeiro, não se envolvendo em qualquer iniciativa cultural ou política de vulto. Entre 1913 e 1916 foi ainda um dos articuladores da segunda política de valorização do café. Até os últimos anos da década de 1910, ele poderia ser considerado o mais característico representante daquilo que nos anos 20 ele mesmo consideraria o típico paulista moderno: um indivíduo ativo, empreendedor, que somente se preocupava em ganhar dinheiro e pouco se interessava por questões políticas ou qualquer outra relativa ao universo coletivo. A Primeira Guerra Mundial e o fortalecimento da vaga nacionalista coincidiram com uma mudança de atitude em sua vida: ao mesmo tempo em que se voltou para o incentivo da cultura, passou a se manifestar politicamente. Momento importante de sua inserção no terreno da cultura foi marcado pelo contato com Capistrano de Abreu, a partir de 1918. Na conjuntura de renovado interesse pelo Brasil e seu passado, fruto da vaga nacionalista, Paulo Prado encontrava na obra de Capistrano o seu “caminho de Damasco”. Até então, confessaria no prefácio de Paulística, “só a Europa nos interessava: era a terra prometida dos nossos sonhos”580, postura consolidada em sua mocidade vivida no final do

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Segundo Berriel, tanto o apartamento quanto a figura de seu proprietário (Eduardo Prado) serviram de modelo para Eça de Queiros criar o personagem Jacinto de seu romance A Cidade e as Serras. 579 BERRIEL, Carlos Eduardo Ornelas. Op. Cit. 580 PRADO, Paulo, Paulística. História de São Paulo. São Paulo; ed. Monteiro Lobato; 1925. P. VI.

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séc. XIX, período de afirmação da visão cosmopolita do nacional. A historiografia de Capistrano impeliu Paulo Prado a participar da vaga nacionalista do primeiro pós-guerra, incentivando seu investimento na valorização da cultura e da história nacionais. No terreno das artes, em 1919, Paulo Prado organizou a “Exposição de pintura e escultura francesas”, no hall do Teatro Municipal. Segundo Berriel, ela já vinha marcada pelo interesse de atualização cultural que o levaria a ser um dos principais financiadores da semana de arte moderna de 22581. No terreno historiográfico, que aqui mais nos interessa, estreitou laços com Capistrano de Abreu e, juntos, organizaram a publicação de documentos sobre a Inquisição e o período colonial, através da “Série Eduardo Prado: Para melhor conhecer o Brasil”582. O título da coleção foi escolhido por Capistrano em homenagem ao tio de Paulo Prado, de quem Capistrano fora um dos principais amigos e interlocutores entre os anos 1880 e 1901, ano da morte de Eduardo583. Assim, Paulo Prado iniciava sua atividade no terreno historiográfico tendo como referência dois historiadores (Capistrano de Abreu e Eduardo Prado) que ao mesmo tempo em que colaboravam para o estudo da história paulista, assumiram posturas críticas quanto à visão ultralaudatória do passado regional e do bandeirante, veiculada pelo grupo 581

BERRIEL, C. E.O. Op. Cit. p. 70. Capistrano encarregou-se de selecionar e organizar a edição dos documentos, que foram publicados mediante financiamento de Paulo Prado. A coleção completa foi composta pelas seguintes obras: 1-) a reprodução fac-similiar da obra D’ABBEVILLE, Claude. Histoire de la Mission des Péres Capucins en l’Isle de Maragnan et terres circonvoisines. Prefácio de Capistrano de Abreu. Paris: Librarie Ancienne Edouard Champin; 1922. 2-) Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Confissões da Bahia-1591-1592. São Paulo: 1922. 3-) Primeira Visitação, etc. Denunciações da Bahia – 1591-1593. São Paulo: 1925. 4-) Diário de Navegação de Pero Lopes de Sousa (1530-1532). Rio: Tip. Leuzinger; 1927. 5-) Primeira Visitação do Santo Ofício, etc. Denunciações de Pernambuco –1593-1595. São Paulo: 1929. Ver BERRIEL, Op. Cit. p. 127,128. 583 Eduardo Prado, de 1889 a 1901, foi ativo organizador de iniciativas políticas e culturais de caráter abertamente monarquista e anti republicano. Além dos inúmeros artigos publicados em seu jornal restauracionista O Comércio de São Paulo, realizou o mais forte ataque ao americanismo dos republicanos paulistas no seu livro A Ilusão Americana, de 1891. Também seu programam historiográfico era marcado pelo sentido político anti republicano. Para tanto, reforçou os traços católicos da matriz monárquicoindianista, evidenciados seja na reedição pelas páginas do Comércio de SP, em 1902, do romance indianista Os Guaianás de Couto de Magalhães, seja na organização, em 1897, por sua iniciativa, da série de “Conferências Anchietanas”, que comemorava o tricentenário do jesuíta fundador de São Paulo. O culto ao passado paulista tinha lugar de destaque em sua obra, mas não se dava da maneira como o faziam os republicanos. Eduardo Prado pouco investiu na figura do bandeirante, politicamente comprometedora, preferindo seguir a senda do paulistanismo monárquico e destacar a atuação civilizadora dos jesuítas. A um deles - o padre Manoel de Morais, nascido em São Paulo no séc. XVII - dedicou os seus esforços historiográficos, realizando profunda pesquisa em arquivos brasileiros, portugueses e italianos. Infelizmente, o livro escrito acabou se perdendo em sua quase totalidade, tendo sido encontrados apenas dois curtos capítulos (publicados por Paulo Prado na Revista do Arquivo Municipal, nº 5, fev. 1932) que somente deixam entrever o sentido da discussão de fundo de sua historiografia. 582

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republicano. Conforme veremos, Paulo Prado seria menos crítico em relação ao bandeirante do que seu tio Eduardo e seu mestre Capistrano, mas também menos otimista do que os historiadores ligados ao republicanismo. Mas, pela leitura de sua correspondência com Capistrano, até 1920 seu interesse se restringia ao levantamento, organização e publicação de fontes documentais, sem qualquer manifestação de intenção em se dedicar à elaboração de estudos históricos. A situação parece ter mudado a partir de 1920, quando sua correspondência indica o empenho em estudar a história do “Caminho do Mar”. A este respeito, o principal incentivador de Paulo Prado parece ter sido ninguém menos que Washington Luís. No arquivo do ex-presidente paulista estão depositadas algumas cartas que comprovam o seu intercâmbio com Paulo Prado. No início do diálogo entre Washington Luís e Paulo Prado estava a nova face do projeto territorialista do grupo perrepista. Recém eleito presidente do estado, em 1920, Washington Luís conferia um lugar de destaque em seu plano de governo a um ambicioso projeto rodoviário, que deveria integrar todo o território estadual584. Um dos pontos centrais deste programa, seria a abertura de um novo Caminho do Mar: uma moderna estrada de rodagem que ligasse São Paulo a Santos. A rodovia, proposta pelos membros do Automóvel Clube desde 1911, já estava em construção desde 1917, devendo ser inaugurada solenemente no dia 7 de setembro de 1922, como ponto alto das comemorações do Centenário da Independência585. Conforme veremos detalhadamente no próximo capítulo, mais do que uma arrojada obra de engenharia, a nova estrada foi também pensada como parte da política cultural perrepista de culto ao passado paulista. Para isso, ela recebeu ao longo de seu trajeto uma série de monumentos arquitetônicos, projetados no estilo neocolonial pelo arquiteto Victor Dubugras, que representavam fases importantes da história paulista. O investimento simbólico na valorização da política estradeira perrepista não pararia nos já imponentes monumentos projetados; ele envolveria também a historiografia. Procurando legitimar a necessidade de seu plano rodoviário, Washington Luís passou a se 584

Sobre o projeto rodoviário de Washington Luís ver REIS FILHO, Nestor Goulart. “Cultura e estratégias de desenvolvimento” In DE LORENZO, Helena C. & COSTA, Wilma P. A década de 20 e as origens do Brasil Moderno. São Paulo: Ed. Unesp; 1997. 585 Sobre a construção da Estrada da Serra do Mar ver DEBES, Célio. Op. Cit. p. 317 a 325. Ou ainda FERREIRA, Antônio Celso. Op. Cit. O tema da febre rodoviária do governo Washington Luís e de suas correlatas iniciativas culturais, serão melhor estudados no próximo capítulo.

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dedicar, não somente à busca dos remanescentes dos antigos caminhos da Serra do Mar, mas também ao estudo pormenorizado de sua história, valendo-se da veia historiográfica que sempre o caracterizou. Segundo informação contida em carta de Afonso de Taunay, datada de março de 1921586, o “presidente historiador” desejava elaborar uma obra historiográfica sobre o Caminho do Mar. Para tanto, desde finais de 1919 procurou contatar o maior conhecedor da história dos caminhos coloniais: Capistrano de Abreu. Como intermediário, Washington Luís apelou para Paulo Prado, que acabou, a partir de então, se envolvendo com o tema do “caminho do mar”, núcleo de seu primeiro ensaio historiográfico publicado pelas páginas do OESP em 1922. Em carta inédita, datada de “São Silvestre” do ano de “2 19” [ou seja, dia 31 de dezembro de 1919] destinada a Washington Luís, Capistrano escrevia: “Soube pelo Paulo Prado os planos que [sic] V. Exa. de adiantar o conhecimento da história de São Paulo. Peço licença para lembrar que existe [sic] muitos documentos a esta relativos na Biblioteca Nacional”587, e seguia lista de documentos e autores a consultar. Mas estas indicações não parecem ter sido suficientes e Washington Luís insistiu com Paulo Prado por novas informações. Este respondia em carta de 1920 ao futuro presidente: “Dr. Washington. Ontem mesmo mandei a sua carta ao mestre Capistrano, e pedi-lhe que pusesse com urgência mais à alma [sic]. É possível que ele esteja com o espírito voltado para outros assuntos, mas devemos insistir para arrancar daquele penhasco de erudição alguma coisa para o Caminho do Mar. A idéia é excelente: a história do caminho do Mar é a própria história de São Paulo. Ao menos os automobilistas lerão e aprenderão alguma coisa do nosso glorioso passado.”588

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A carta é de autoria de Afonso de Taunay e destinada a Washington Luís, datada de 23/3/1921. Apud DEBES, Célio. “Washington Luís Historiador”, In RIHGSP, vol. LXXXV, 1990. P. 25. 587 Carta de Capistrano de Abreu a Washington Luís s/d; Acervo do Arquivo do Estado de SP (Localização: 198.02.75 ). 588 Carta de Paulo Prado a Washington Luís, 13/ fev/ s.a. ; Arquivo do Estado/ SP (198.02. 62). Apesar de não trazer o ano, seguramente ele pode ser identificado como sendo 1920, pois o conteúdo desta se encaixa com o de uma outra carta, datada de 13 de fevereiro de 1920, em que Capistrano de Abreu respondia a Paulo Prado: “Paulo amigo. Incluo a carta de Washington, que li com a maior simpatia. O que sei a respeito do caminho do mar? (...)” e seguia-se uma série de informações. Ver RODRIGUES, José Honório (org.) Correspondência de Capistrano de Abreu. vol. II, p. 393.

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O trecho é valioso por vários motivos. Além de evidenciar que o incentivo imediato para que Paulo Prado se empenhasse no estudo do Caminho do Mar partiu de Washington Luís, ainda aponta para o sentido de legitimação da política rodoviária oficial do perrepismo que este estudo historiográfico teria. Ele deveria ser originalmente uma síntese da história paulista, voltada a legitimar simbolicamente a introdução, em larga escala, do automóvel na sociedade paulista: uma historiografia para automobilistas! Baseado no princípio de que a história de São Paulo é a história da sua viação, a obra seria a justificação historiográfica do mote rodoviarista de Washington Luís que afirmava: “governar é povoar, é construir estradas”. A história de São Paulo se confundiria com a história dos seus antigos caminhos, da mesma forma que a boa política se confundia com a construção de estradas: mais uma vez, como anteriormente fizeram Teodoro Sampaio e Afonso de Taunay, a historiografia sobre São Paulo colonial serviria para legitimar os projetos de ocupação territorial e política viária da elite paulista. Paulo Prado traçava seu primeiro esboço de estudo do passado regional (“a história do Caminho do Mar é a própria história de São Paulo”) em perfeita comunhão com a visão do chefe do governo e maior representante da historiografia republicana paulista. O que vale ressaltar é a proximidade e a importância do diálogo entre Paulo Prado e o Presidente Washington Luís no início dos anos 20. Esta proximidade com o expoente do governo perrepista não ficava restrita ao terreno historiográfico. Também no universo dos negócios Paulo Prado nutria bom relacionamento com o governo paulista e Washington Luis em especial, pelo que se pode depreender de uma série de cartas trocadas entre ambos nos primeiros dois meses do ano de 1921. Em tom de sigilo, Paulo Prado intermediava, em Londres, um acordo entre banqueiros holandeses e ingleses e o governo de São Paulo, evitando, ao máximo, revelar esta sua atuação conjunta com o poder público estadual589. Paulo Prado e o governo perrepista mantinham-se próximos na defesa de interesses econômicos comuns, o que não constituía novidade. Desde os primeiros anos do séc. XX Paulo Prado parece ter mobilizado os contatos comerciais externos que possuía como 589

Trata-se de 6 cartas e dois telegramas, cujas datas limites vão de 11/2/21 a 18/6/21, encontrados na “Coleção Washington Luís” depositada no Arquivo do Estado de São Paulo. As cartas são: Carta de Paulo Prado destinada a Washington Luís, data: 21/2/1921- loc.: 202.02.171; Idem, s/d – loc. 202.02.172; Idem, 12/2/21 – loc. 2020.02.173; Idem, 15/2/21 –loc.: 202.02.174; Idem, 11/2/21 –loc. 202.02.175; s/d – loc. 202.02.176; Telegrama de Paulo Prado a Washington Luís, 18/6/21 – loc. 202. 02. 190; Idem, 22/1/21 – loc. 202. 02. 192.

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importante negociador de café, para servir de intermediário entre os governos paulistas e os mercados internacionais. Cabe lembrar ainda que, além de ter sido um dos principais parceiros privados do governo republicano na implantação da política de valorização do café, Paulo Prado também havia atuado como representante oficial do governo paulista, e não como mero particular, no episódio da venda de café para a França em 1917, possibilitando escoar a produção paulista para os mercados europeus, até então fechados por conta da guerra590. Portanto, Paulo Prado e o governo paulista, até pelo menos 1921, mantinham estreita proximidade, embalada não somente pela pré disposição da elite perrepista em atender aos interesses do grande capital cafeeiro (que mais do que ninguém Paulo Prado representava), mas também pela unanimidade de apoio da elite política paulista, dissidentes inclusive, à candidatura de Washington Luís à Presidência de São Paulo591. Contudo, a partir de 1921 parece ter ocorrido uma mudança na posição de Paulo Prado frente ao governo estadual perrepista, marcada por uma crescente indisposição que o fez intervir no universo da política, aproximando-se da dissidência liberal paulista então em processo de reconstituição. Como apontou Carlos Augusto Calil, o motivo mais plausível para o descontentamento inicial de Paulo Prado parece ter sido o conflito entre o Presidente paulista Washington Luis e seu pai, o conselheiro Antônio Prado, por este ter assinado, em finais de 1921, a Convenção de Ouchy com o governo italiano592. Esta estabelecia a retomada da imigração italiana para o Brasil (interrompida desde a guerra) em troca da 590

Sobre o episódio ver texto de Paulo Prado “o convênio franco brasileiro”, originalmente publicado no OESP em 22/5/20. Ver PRADO, Paulo. Op. Cit, 2004. p. 327 a 333. Para os negócios de Paulo Prado ver também CALIL, Carlos Augusto. “Um brasileiro de São Paulo” In Idem, Ibidem, p. 9 a 44. 591 Para a relação entre PRP e o grande capital cafeeiro, sigo aqui a posição de Renato Perissinoto, para quem “a todo-poderosa Comissão Executiva do PRP era dominada por indivíduos ligados ao grande capital cafeeiro”. Ver PERISSINOTO, Op. Cit. pp113. Sobre a unanimidade de apoio da elite paulista a Washington Luís, com destaque especial à posição do “dissidente” Júlio Mesquita, ver DEBES, Célio. Washington Luís. p. 188,189. 592 A sugestão foi dada por Calil em uma de suas eruditas notas ( nota 10, pg. 307) à edição de PRADO, P. Retrato do Brasil, São Paulo; Cia. das letras; 1997. Em obra recente, curiosamente o autor parece ter desprezado o caminho anteriormente apontado, negando qualquer envolvimento de Paulo Prado com o universo da política e principalmente qualquer oposição ao governo de Washington Luís: “surpreendentemente PP jamais se aproximou de qualquer agremiação política – em especial do Partido Democrático, fundado por seu pai, o conselheiro Antônio Prado – para fazer oposição a Washington Luís e ao PRP” in PRADO, p. Op. Cit. 2004, p. 21. De fato, não existem indícios de que Paulo Prado tenha sido membro do PD, o que não significa que não tenha se esforçado por difundir um discurso em todos os pontos alinhado ao da oposição liberal à elite paulista, conforme procuro mostrar neste tópico. Ou seja, talvez Paulo Prado não tenha sido membro oficial do PD, mas certamente, pelo teor de suas críticas, ele foi um intelectual alinhado à dissidência liberal paulista.

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permissão de representantes do governo italiano inspecionarem o cumprimento dos contratos de trabalho nas fazendas. Washington Luís considerou a medida um atentado à soberania nacional e suspendeu o financiamento público do transporte dos imigrantes, o que inviabilizou a execução do acordo e provocou violenta resposta do Conselheiro pelas páginas de OESP em março de 1922. Antônio Prado acusava o Presidente paulista de “autocrático” e o responsabilizava por impedir a boa resolução do cruciante problema da mão-de-obra593. Por comentários publicados após o evento594, percebe-se que Paulo Prado compartilhou com seu pai das críticas ao governo perrepista de Washington Luís, servindo o episódio para iniciar um processo de descensão política frente ao status quo republicano que somente se agravou ao longo dos anos 20, à medida que divergiam os respectivos interesses econômicos e se agravava a tendência de endurecimento dos governos republicanos, que estudaremos melhor no próximo capítulo. A indisposição de Paulo Prado com a situação seria externada a partir de 1923, quando se tornou coproprietário, juntamente com Monteiro Lobato, da prestigiosa Revista do Brasil. Este periódico surgira em 1915 por iniciativa do dissidente grupo do OESP595, e partir de 1918 passaria à direção de Monteiro Lobato, também ele oriundo do grupo do OESP. A Revista do Brasil, ao mesmo tempo em que era uma privilegiada arena de debates culturais de notória tendência nacionalista, como analisou Tânia de Luca, também se tornaria, ao longo dos anos 20, foco de difusão do discurso político da dissidência liberal paulista, conforme ressalta estudo de Cássia Aduci596. E a sua compra por Paulo Prado em 1923 aprofundou esta dupla tendência nacionalista e liberal-oposicionista. 593

Para Casalecchi o conflito em torno da Convenção de Ouchy é o evento que marca o início da indisposição do conselheiro Antônio Prado com o PRP, e que levariam à sua participação na criação do PD. CASALECCHI, J. E. Op. Cit., p. 158. Ainda sobre a Convenção de Ouchy, a que pese a indisfarçável simpatia do autor por Washington Luís, ver a pormenorizada descrição feita do embate em DEBES, C.Op. Cit., 1994. p. 235,236. 594 Ver o texto “Martírio do Café” publicado em PRADO, Op. Cit. 2004. Evidência importante de que Paulo Prado compartilhava das críticas do pai ao governo perrepista está na publicação de texto do conselheiro sobre o tema na Revista do Brasil, após Paulo Prado assumir a sua direção. 595 O OESP fora o foco da primeira dissidência interna à elite política paulista, surgida em 1901 e conciliada ao perrepismo em 1906, conforme CASALECCHI, J. E. Op. Cit, pp 100 a 116. A partir dos anos 20 voltaria a concentrar a crescente oposição liberal à Comissão Executiva do PRP, conforme estudo de Maria Helena Capelato, mantendo, porém, sua autonomia, e recusando servir como órgão oficial do PD, ao qual havia ajudado a criar e se mantinha alinhado politicamente. CAPELATO. M. H. Op. Cit. 596 LUCA, Tânia. Op. Cit. 1996. ADUCCI, Cássia Chrispiniano. “Uma nação à paulista. Nacionalismo e regionalismo em São Paulo (1916-1929).” São Paulo: tese doutorado, Dept. Ciências Sociais, PUC-SP; 2002.

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Do ponto de vista político, além de conceder um espaço privilegiado à publicação de textos de crítica à política oficial, como um de autoria do conselheiro Antônio Prado, destacaram-se os próprios editoriais escritos por Paulo Prado. Sob o título de “O Momento”, e publicados de fevereiro de 1923 a maio de 24, eles constituem os melhores documentos para se compreender o posicionamento do autor no debate político de sua época e, assim, definir o lugar social e político a partir de onde Paulo Prado elaborou sua representação do passado paulista. Eles são a chave para a compreensão da historiografia de Paulo Prado. Desta forma, é importante ressaltar que seu diagnóstico político vinha indissociado de uma discussão sobre o caráter paulista. Pela (auto)crítica do paulista moderno, Paulo Prado veiculava seu descontentamento com a situação política de sua época. Para efeito de análise, procuro aqui abordar, num primeiro momento, seu diagnóstico crítico do presente para, no próximo tópico, estudar sua caracterização da identidade paulista, tanto a do paulista do presente quanto a do passado. Em oito breves artigos escritos como editoriais para a revista, Paulo Prado concentrava suas críticas ao status quo republicano. Ponto importante, conforme já apontado, era a afirmação da centralidade do problema político: “(...) nesta terra só existe realmente, empolgante e irreduzível, uma única questão – a questão política”. Neste momento, Paulo Prado ainda podia indicar a questão econômica como secundária e até negar, ao modo perrepista, a existência de uma questão social no Brasil597. De caráter político, as críticas iam tanto contra o crescente autoritarismo do governo republicano, preocupado em conter as oposições que se afirmavam nos anos 20, quanto contra a adesão ao governo e apatia política dos cidadãos diante do cerceamento das liberdades públicas. Quanto ao primeiro elemento, seu ataque se concentrou na longa vigência, na capital federal, do estado de sítio, proclamado pelo presidente Artur Bernardes – sustentado pelo PRP- para reprimir as oposições após o levante “tenentista” de 22. “Há oito meses que está proclamada na Capital do país e no Estado do Rio o estado de sítio e decretada com desusado rigor a censura da imprensa – medidas extremas e gravíssimas a que ainda não 597

“O céu e o solo benignos livraram-nos da grande questão por que hoje se bate o mundo – a questão social. Desconhecemos, por completo, as descensões de raça e religião que tanto perturbam os outros países, e os problemas econômicos e financeiros surgem somente em acessos intermitentes, ao acaso das crises, e deles poucos cuidam, a não ser nas aperturas do momento.” “O Momento”, RB, n º 99,mar. 24. Veremos que três anos depois, ao publicar no OESP “o Martírio do café”, as suas críticas já incluem aspectos econômicos, representando o descontentamento com a política permanente de defesa do café.

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recorreram os países mais perturbados da Europa atrasada.”598 Em maio de 23 reclamava da prorrogação, até o final do ano, do estado de sítio. E em fevereiro de 24 apresentava um quadro sinistro da situação política que, estando “(...)habituada ao masoquismo que lhe incutira o chicote histérico do tiranete [Epitácio Pessoa], obedece com volúpia ao punho de ferro, paciente e teimoso, do novo chefe [Artur Bernardes], e rumina quietamente, com os seus partidos sem programas, ou com os seus programas sem partidos...”599. Da crítica à conjuntura de cerceamento das liberdades publicas, Paulo Prado passava à crítica geral do sistema republicano vigente. Considerava-o como uma “república da Camaradagem” onde prevalecia a “férrea organização das oligarquias” em que “Pedro indica João, e João indica mais tarde José, para este por seu turno voltar a indicar o Pedro primitivo, que será o fecho de abóbada da igrejinha partidária”600. Em outras palavras, Paulo Prado criticava o falseamento do sistema representativo republicano pela vigência da “política dos governadores”. Na sua crítica ao autoritarismo efetivo da República, podemos vislumbrar ecos do anti-republicanismo de seu tio Eduardo Prado. Mas ao contrário desse, a solução que Paulo Prado propunha para a questão não era a volta ao parlamentarismo monárquico, nem mesmo a força das armas601, mas sim o aperfeiçoamento do sistema representativo vigente pela “verdade do voto”: “Só a restauração estrepitosa da verdade do voto poderá restituir à imensa maioria dos que pagam e sofrem os direitos perdidos pela indiferença e pelo absenteísmo.” A solução apontada aproximava Paulo Prado dos grupos liberais dissidentes que em 1926 formariam o PD, agremiação fundada pelo conselheiro Antônio Prado e à qual não se tem notícia de que o autor fosse oficialmente filiado, o que não invalida seu alinhamento ao grupo. Considerando como mal maior da república vigente o seu caráter restrito e autoritário, Paulo Prado não lutava pela sua supressão, mas pela aplicação efetiva dos princípios de livre representação em nome dos quais fora proclamada. Ao contrário de Oliveira Vianna, que propunha a redefinição do perfil do Estado brasileiro no sentido antiliberal e anti-federalista, Paulo Prado lutava pelo aprofundamento do sistema representativo liberal vigente. A questão não era de reinventar a República, mas de voltar

598

“O Momento”, RB, n º 86, fev. 23. “O Momento” RB, n º 98, fev. 1924. 600 “O Momento”, RB, N º 99, março 24. 599

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às bases legítimas do regime. Desta forma, pelas posturas apresentadas, Paulo Prado se alinhava ao setor dissidente do liberalismo paulista que, conforme o estudo de Maria Lígia Prado tinham como mote político “Republicanizar a República” e como bandeiras principais exatamente o voto secreto e a alfabetização em massa602. A insatisfação de Paulo Prado com o status quo republicano agravou-se ainda mais a partir de 1924, juntando ao problema político assinalado um outro de natureza econômica. A partir de textos publicados em 1925 no OESP, então um dos focos principais do discurso dissidente, Paulo Prado consolidava sua postura oposicionista ao lançar sérias críticas ao caráter permanente da nova política de valorização do café, implantada pelo governo paulista em 1924, com a criação do Instituto do Café. De forma geral, acusava o governo de taxar excessivamente o produtor, desvalorizar internacionalmente o preço do café, ser negligente na criação de uma política de crédito e provocar a perda de espaço no mercado internacional para a Colômbia. Ao mesmo tempo em que, com estas colocações, criticava a excessiva e indevida “intervenção oficial” no “movimento regular da oferta e da procura”, reclamava que o governo não intervinha onde e quando devia, não resolvendo o problema da mão-de-obra, não barateando o frete, não desenvolvendo o crédito, e sabotando a criação de associações agrícolas. E finalmente, a política de valorização permanente ainda acabava “passando por cima do nosso comércio exportador”, ferindo diretamente os interesses particulares do autor, diretor da casa exportadora Prado, Chaves & Cia603. Em suma, também no universo da política econômica, o Estado republicano não cumpria o pacto liberal que vigorava desde os primeiros anos do século XX, passando a intervir excessivamente no funcionamento do mercado e se ausentando em pontos de imprescindível atuação para defesa do interesse dos proprietários. Paulo Prado realizava um diagnóstico do seu presente que indicava a progressiva intervenção arbitrária do Estado republicano, seja no universo político, com o cerceamento das liberdades públicas e o falseamento do sistema representativo, seja no universo

601

Segundo Paulo Prado: “É pela política – desde que afastemos outras soluções violentas – que conseguiremos abolir a república da Camaradagem”. In Idem, Ibidem. 602 PRADO, Maria Lígia Coelho. Op. Cit., 1986 e CAPELATO, M. H. R. Op. cit., 1989. 603 A síntese das críticas de Paulo Prado à política econômica governamental estão em “O Martírio do Café”, texto publicado originalmente em 1927 no OESP e adicionado à segunda edição (1934) de Paulística. Ver

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econômico, com a intervenção permanente do governo no funcionamento do mercado de café. Ao contrário de Oliveira Vianna que considerava insuficientes estas medidas de intervenção do Estado, Paulo Prado traçava um quadro de sua época que apontava para o progressivo cerceamento da liberdade política e econômica do indivíduo proprietário que tão bem representava. Estudando o universo intelectual paulista dos anos 20, Sérgio Micelli apontou como característica marcante o aparecimento de um setor da intelectualidade não mais alinhado diretamente ao perrepismo. Para o autor, formava-se uma nova facção da intelectualidade paulista atrelada ao nascente grupo dissidente que integraria, a partir de 1926 o PD. Cássia Aducci procurou precisar o grupo e os focos de difusão de seu discurso. Entre instituições como a Liga Nacionalista de São Paulo, a Revista do Brasil e os jornais OESP e Diário Nacional, destacavam-se intelectuais como Júlio de Mesquita filho, Mário Pinto Serva, Amadeu Amaral e como um dos expoentes do grupo, Paulo Prado. Se todos se aproximavam na oposição à situação perrepista, em defesa da “pureza democrática” do regime republicano, Paulo Prado entre todos se destacou pela atenção prestada ao tratamento da questão da paulistanidade, que passo a abordar.

7.3.a Paulo Prado e a paulistanidade dissidente: O adesismo político do paulista moderno. Quando escreveu a série de artigos intitulados “O Momento”, Paulo Prado inseriu como parte do diagnóstico crítico da situação política de seu presente um retrato igualmente crítico do paulista moderno. Como já apontado anteriormente, a reflexão de Paulo Prado sobre a paulistanidade nascia indissociada de sua crítica ao crescente endurecimento dos governos republicanos. Mas a visão do paulista moderno de Paulo Prado era, na realidade, um posicionamento do autor diante de um debate interno ao grupo liberal-oposicionista sobre o caráter paulista, discussão que envolveu intelectuais como Júlio de Mesquita Filho e Breno Ferraz. Procuro brevemente retomar esta discussão sobre o caráter do paulista moderno, pois foi a partir dela que Paulo Prado definiu as questões lançadas ao passado. Assim, para se compreender a representação do passado paulista

PRADO, P. Op. Cit., 2004. P. 206. Ver também, nesta mesma edição, os textos “O Café na Colômbia”, “O Café e a valorização” e “O drama da Borracha”, todos publicados originalmente no OESP.

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elaborada por Paulo Prado no livro Paulística, é necessário definir o debate interno ao grupo dissidente sobre o paulista moderno e a posição específica do autor. No final de 1922, Júlio de Mesquita Filho publicou uma série de artigos no OESP, jornal do qual era proprietário, sobre o papel de São Paulo na nacionalidade, intitulados “A comunhão paulista”. Segundo Maria Helena Capelato, com esses artigos Mesquita procurava “contestar os que profetizavam a decadência de São Paulo sob os males da política oficial. Admitia as dificuldades nesse campo, mas recusava a idéia de que representassem um sintoma de retrocesso do estado.”604. Ou seja, o liberal dissidente Mesquita colocava no centro do debate a questão da decadência do paulista moderno em função dos crescentes desmandos da política oficial, confirmados pela derrota, neste mesmo ano, de Amadeu Amaral e Moacir Piza, os primeiros candidatos ligados à dissidência que paulatinamente procurava se afirmar. Júlio Mesquita Filho se apropriava do elogio da energia eugênica do bandeirante ariano, traçado por Oliveira Vianna, para contestar a tese da decadência e defender a permanência dos caracteres positivos do paulista no presente. Mais do que isso, identificava o paulista com os norte-americanos, visando definir a “verdadeira política de São Paulo”: “(...) da mesma maneira que os anglo-saxões, arrastados por seguro e singular instinto, chegaram a se apossar de tudo quanto da superfície da terra há de melhor e mais aproveitável (...) o paulista assinalou, com a marca indelével de sua passagem, os contornos também definitivos, dentro dos quais a nacionalidade completaria a sua evolução. Esse instinto inteligente permanece ainda hoje sob a forma de uma força propulsora que se vai tornando, agora que vamos atingindo a maturidade, em diretiva disciplinada e consciente.”605 Mesquita retomava a imagem do “ianque brasileiro” e ainda afirmava ser o paulista moderno digno herdeiro das qualidades bandeirantes, não havendo decadência de seus traços ancestrais. O que Mesquita propunha era identificar na prática territorialista, de avanço da frente agrícola cafeeira e das linhas ferroviárias paulistas em direção ao interior do continente, a verdadeira política de São Paulo. “Diante dela e de seus altos desígnios,

604 605

CAPELATO, M.H.R. Op. Cit. p. 31. MESQUITA Filho, Júlio. “A Comunhão Paulista” RB, n º . 84, dez.22.

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como querer que o paulista se interesse por política militante em São Paulo?”, questionava-se. Desta forma, o autor resgatava somente o aspecto econômico e territorialista do programa americanista, relegando o aspecto político e liberal para segundo plano. Talvez influenciado pela leitura antiliberal de Oliveira Vianna o liberal Mesquita considerava que o caráter americano e o valor do paulista estavam, a seu ver, exatamente no desprezo da atividade política formal, afinal, “os povos, quanto mais afastados da política militante, mais próximos estão das grandes realizações. Esse axioma, ainda da Ciência Social, parece encontrar em São Paulo um poderoso argumento em seu favor. Somos fortes, somos ainda dignos do passado das bandeiras, justamente por que às enganosas vitórias da política militante, sabemos ainda preferir as rudes vitórias que pontilham a história da nossa evolução”606. Priorizando a atividade econômica de ocupação do território em detrimento da política militante, na visão de Mesquita, o paulista realizaria o seu “imperialismo benéfico”, termo com que o autor reveste a sua versão nacional do “destino manifesto” norte-americano, como bem ressaltou Capelato. Assim, Mesquita negava a decadência do paulista moderno e ainda transformava seu pouco empenho político em virtude, o que não deixou de provocar a reação de outros membros da dissidência liberal, que viam neste “apoliticismo” dos paulistas um dos maiores entraves à afirmação de uma via política independente ao situacionismo perrepista. A primeira contestação veio pelas páginas da Revista do Brasil, através de artigo “Paulistas e Saxônios”, de autoria de Breno Ferraz do Amaral, ativo colaborador deste periódico. O autor iniciava concordando com Júlio Mesquita que o paulista era, de fato, o “ianque brasileiro: “A paridade entre os dois tipos sociais, o anglo-saxão e o paulista, é deveras impressionante. A conquista da terra e da produção, da liberdade e da independência; a conquista da raça e da sociedade; o irrequieto do viver e a expansão posterior, são de um claro paralelismo. Mesmo na abstenção política a similitude prossegue... Absorvem-se os saxões na luta pela vida e na mesma luta, os paulistas.

606

Idem, Ibidem.

300

Começa aqui a dúvida. (...)”607 Após concordar com a similitude entre paulistas e saxões, Breno Ferraz passava a discordar em considerá-los essencialmente avessos à atividade política. Todo o artigo era estruturado visando comprovar que a defesa da liberdade de participação política dos cidadãos proprietários, que caracteriza o liberalismo político, era uma virtude intrínseca a ambos os povos. Breno Ferraz procurava contestar a Júlio Mesquita retomando o passado de paulistas e saxões para comprovar as respectivas tradições de liberdade e ação política. Dos saxões, relembrava “os reformados, os protestantes, cujo caráter liberal e independente se exprime na exegese bíblica”, ou ainda, no séc. XVII, a pressão do povo organizado em comunas para contestar o poder absoluto do rei. “Ora, tudo isso não se chama abstenção política, porém, exacerbada, perseverante, enérgica atividade cívica”. Da mesma forma, no passado paulista existiam provas irrefutáveis de energia cívica liberal. Neste ponto, Breno Ferraz retomava o discurso da liberdade primitiva do paulista, elaborado, conforme vimos, pela geração da propaganda republicana. Citava a expulsão dos jesuítas, a aclamação de Amador Bueno, além da formação de uma “República” em pleno período colonial, clara referência ao mito de origem republicano da primitiva democracia piratiningana, definido por Américo Brasiliense, Antônio Piza e Washington Luís. Para o autor, o espírito liberal e participativo do paulista ainda se manifestou nas figuras de Alexandre de Gusmão, José Bonifácio, do regente Feijó e dos republicanos históricos, somente tendo desaparecido no presente: “só agora a fenomenal teratológica abstenção. Chama-se isso, antes, estrangulamento e asfixia; não morte natural; sim morte violenta, por agente exterior – a pata do cavalo e o ‘não poupe bala’ das eleições”. Portanto, para Brenno Ferraz a essência do paulista era, como a do saxão, liberal e, por isso, voltada à defesa de sua independência mediante a participação política. Mas reconhecia que este traço de seu caráter havia desaparecido no seu presente recente, apontando como causa a repressão governamental que desvirtuava os princípios liberais republicanos que defendia. O paulista moderno, para Ferraz, havia sido privado de sua independência liberal pela truculência governista. O paulista moderno não mais era herdeiro da liberdade do bandeirante, do paulista antigo. No terreno da psicologia política

607

FERRAZ, Breno. “Paulistas e Saxônios” In RB, Nº 84, dez. 1922.

301

do paulista havia um corte profundo entre o presente e o passado que se fazia necessário explicar. O debate foi publicado nas páginas da Revista do Brasil em dezembro de 22, somente dois meses antes da aquisição do periódico por Paulo Prado, que seguramente teve acesso aos artigos, como nos informa a correspondência trocada com Capistrano 608. Os editoriais de Paulo Prado também podem ser vistos como tomadas de posição neste debate em que a definição do paulista moderno se combinava à crítica ao crescente autoritarismo dos governos republicanos. Paulo Prado tendeu a se aproximar da postura de Breno Ferraz, reafirmando a crítica deste ao otimismo de Júlio Mesquita. Diante de uma realidade política entendida como “ditatorial”, Paulo Prado colocava no centro de suas críticas aquilo que chamava de “bovarismo paulista”. Considerando o bovarismo como “o dom que possui o homem de se imaginar diferente do que realmente é”, ironizava o discurso laudatório e otimista que prevalecia no seio da elite regional e que assumia, nesta época, status de fala oficial: “Em São Paulo, nesta sociedade em formação, o bovarismo é um dos sentimentos preponderante de nosso caráter. Dele nos vêm os excessos de orgulho e de vaidade, tão sensíveis e desagradáveis para os nossos patrícios de outras terras brasileiras. Dessa enganosa ilusão originou-se a veleidade de São Paulo-nação, desde os rigores do protocolo oficial até o pequeno exército em miniatura de que tanto nos orgulhamos.”609 A crítica ao bovarismo visava atingir diretamente o otimismo oficial e as desmesuradas pretensões de grandeza da elite paulista, das quais, aliás, conforme veremos, o próprio autor não estava isento, revelando um aspecto ambíguo de seu discurso. Mas Paulo Prado apresentava um dado novo, representado pela busca de distanciamento de um ufanismo regional de caráter oficial do qual, contudo, nunca se desvencilharia de todo. O

608

Capistrano deve ter recebido os artigos de Julio Mesquita Filho originalmente publicados no jornal O Estado de São Paulo de novembro de 22. Em carta datada de 25 de novembro de 22 endereçada a Paulo Prado, Capistrano aproveita para ironizar a proximidade entre as análises de Júlio Mesquita Filho e Oliveira Vianna: “Li com simpatia o artigo de Julinho Mesquita, a quem fui ligeiramente apresentado na passagem para o Rio Grande do Sul. Ele tem carradas de razão: para que ler testamentos, inventários, atas da câmara? Está tudo no Le Play, está tudo na Science Sociale (revue), está tudo no Oliveira Vianna.” In. RODRIGUES, José Honório ( Org. ) Op. Cit. vol II, 1954; p. 428. 609 “O Momento” RB, n º 88, Abr. 1923.

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seu intuito era fazer a crítica do “descuidoso otimismo”

610

que, a seu ver, dificultava a

apreensão da verdadeira situação em que o estado se encontrava. A imagem de São Paulo é, assim, a da “terra do otimismo”, que se no terreno cultural implicava não perceber o atraso cultural em que vivia, no terreno político se confundia com profundo adesismo ao situacionismo governamental. Paulo Prado procurou desenvolver o diagnóstico de Breno Ferraz sobre a ausência de atuação política do paulista moderno. Neste sentido, a seu ver, a população de São Paulo. “em questões públicas, divide-se em três grandes grupos: os políticos, os fazendeiros, os indiferentes”611. Definindo os políticos, Paulo Prado usava toda sua ironia para desferir um ataque direto à unidade férrea imposta pela Comissão Executiva do PRP ao universo partidário estadual: “A família política em São Paulo é sem dúvida a mais tocante união e harmonia, de todas que povoam e felicitam o vastíssimo território brasileiro. As vagas oposições que se formam, atrevidas e incontinentes, vem morrer submissas diante da escadaria do palácio do governo.” Se entre os políticos o governismo preponderava e não havia espaço para oposições, entre fazendeiros era o sucesso da política de valorização do café que impedia qualquer indisposição com o governo: “Câmbio a cinco, café a trinta mil réis a arroba. A esse preço, a vida é um encanto.(...) Que importa? O café está caro, e quem o sustenta é o governo paternal e onipotente. Votemos no governo.” Por fim, havia a massa dos indiferentes: “os recém chegados, os cosmopolitas, os enriquecidos depressa”, “a gente rica brasileira e estrangeira”, “também os epígonos da grandeza passada passada”, que “tudo aceitam, tudo toleram, tudo aplaudem e só se agitam para correr atrás dos poderosos do dia”. Paulo Prado acabava traçando uma imagem do paulista moderno como um indivíduo “protegido pelo mais feroz individualismo”, exclusivamente preocupado em enriquecer, e completamente desprovido de qualquer espírito público, de qualquer preocupação com o universo da política. Retomava o diagnóstico do adesismo e da supressão da antiga liberdade paulista apontado por Breno Ferraz, a quem, contudo, não citava. Do debate interno ao grupo liberal oposicionista Paulo Prado retira o problema maior de sua reflexão historiográfica: explicar o adesismo do paulista do presente, o que

610 611

“O Momento” RB, N º 86, fev. 1923. “O momento” RB, N º 89, mai. 1923. Todas as citações do parágrafo seguinte se remetem a este texto.

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implicava explicar a supressão da liberdade primitiva do paulista. Ele o fará através da elaboração de uma nova interpretação do tema da decadência de São Paulo no início do séc. XVIII. Tratava-se de um tema já clássico na historiografia paulista, tendo sido abordado, conforme visto, por Ricardo Gumbleton Daunt (1857), Machado de Oliveira (1864) e Washington Luís (1903). O desenvolvimento desta questão será o objetivo central do livro Paulística, obra formada por sete artigos de fundo histórico612, publicados originalmente por Paulo Prado nas paginas do periódico dissidente OESP e enfeixados em livro em 1925, na qual concentrarei a análise por se tratar do estudo onde apresenta sua representação do passado paulista.

7.3.b Paulo Prado e o passado regional: a decadência da liberdade primitiva do paulista. Paulo Prado estruturou sua obra Paulística seguindo um esquema apresentado em carta por seu mestre Capistrano de Abreu. Para ele, a história de São Paulo havia passado por quatro fases claramente discerníveis: a ascensão (séc.XVI), o clímax (séc. XVII), o declínio (séc.XVIII) e a regeneração (fins do Séc.XIX). Fases representadas, a grosso modo, pelos quatro primeiros artigos do livro613. O livro pretendia ser um lançar de olhos pela história de São Paulo, tratando-se não de um trabalho de síntese histórica estreitamente calcado na sociologia determinista (apesar de não a desprezar), como realizavam Oliveira Vianna e Ellis Jr., nem mesmo de uma pormenorizada narração factual das bandeiras, como elaborava Taunay e Basílio de Magalhães, mas sim de simples “ensaios”. No que se refere à sua escrita da história, Paulo Prado evidenciava sua proximidade com o universo das artes e definia seu método como “impressionista”: pinceladas fortes retratando as principais características do período representado, sem a pretensão a minúcias fatuais decorrentes do apego documental típico

612

Concentrarei minha análise na 1 ª Edição de 1925, principalmente nos 4 primeiros artigos e na introdução onde o autor apresenta o essencial de sua representação do passado colonial paulista. Eventualmente farei uso, como complemento, dos demais artigos históricos adicionados à 2 ª edição (1934) e de trechos de Retratos do Brasil, a outra obra de caráter historiográfico de Paulo Prado. 613 A ascensão foi tratada em “O Caminho do Mar”; o clímax, além deste citado, nos dois artigos sobre “As bandeiras”; o declínio no “A Decadência” e a regeneração na Introdução da obra . A carta em que Capistrano apresenta o esquema é de 23 de dezembro de 1922.

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da historiografia metódica614. Bastante original também era o declarado apelo à imaginação e à poetização como recursos legítimos do historiador615. Paulo Prado ousava metodologicamente em uma época em que predominava o mais ortodoxo objetivismo cientificista (pelo menos nas intenções), fosse originário da escola metódica, fosse dos diversos determinismos sociológicos. Na segunda edição de Paulística (1934), Paulo Prado ainda explicitava um aspecto de seu fazer historiográfico que procuramos privilegiar neste estudo: o de guia da ação política, inescapável no contexto de radicalização política dos anos 20 e 30. Da mesma forma que Oliveira Vianna, para Paulo Prado a história era mestra da política: “Cada povo (...) deve possuir o seu patrimônio histórico. Nele se vão inspirar as forças vivas e palpitantes da sua atividade atual, e nele se estabelece o critério da utilidade, que transforma em Política – na acepção aristotélica da palavra – os ensinamentos da filosofia da História. É a explicação e desculpa das preocupações do passado, que a muitos parecerá puro luxo intelectual, ou mero narcisismo patrioteiro.”616 Longe de ser luxo intelectual e patriotada, a historiografia era dotada de “critério de utilidade”, sendo importante fonte de ensinamentos à atuação política. A partir destas posturas, Paulo Prado abordava o passado colonial paulista. O primeiro capítulo “O Caminho do Mar”, publicado originalmente no OESP em 1922, era o resultado final do empenho iniciado pelo diálogo com Washington Luís e constituía o núcleo de todo o livro. Nele Paulo Prado definia sua interpretação da exceção paulista, pois o autor continuava tributário da visão republicana que atribuía a São Paulo um passado original e uma formação diferente da dos demais brasileiros, advindo daí o seu progresso e o destaque no conjunto da federação. E o modo como procura afirmar esta originalidade da formação paulista levava à combinação de elementos da matriz historiográfica 614

A referência a um método “impressionista” está na introdução a Retrato do Brasil (1928), mas é também esclarecedor do método empregado no Paulística. 615 “Os documentos – já o disse Ferrero – nada elucidam se o espírito humano não os liga, não os encadeia e os faz falar, e essa dificuldade muitas vezes aumenta com a abundância documentária. Os fatos, por seu turno, são apenas dados, indícios(...). A poetização desses fatos, na ingenuidade dos cronistas e das lendas, é que dá à aridez dos arquivos o sangue e a vida necessários à compreensão da psicologia do passado, que não é somente a narração do que fizeram os homens de uma época, mas também do que pensavam no momento em que agiam.” PRADO, Paulo, Op. Cit. 1925, p. IX, X. 616 PRADO, P. Op. Cit., 2004; p. 46.

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territorialista renovada por Capistrano, e de elementos da matriz liberal. Da primeira matriz retira a idéia basilar de que a história do país se faz pela história dos caminhos; mas ela serviria ao propósito maior de confirmar uma tese de natureza eminentemente política, característica da matriz liberal, que apontava para uma maior liberdade do paulista antigo. Em Paulística, pelo estudo dos caminhos, e principalmente no capítulo sobre “O Caminho do Mar”, o autor procurava definir a origem da liberdade do paulista. Ao modo da historiografia de Capistrano, Paulo Prado procurava definir os caminhos que, no séc. XVI, uniam o planalto paulista à costa. Após identificar o roteiro do Caminho do Mar, passava a definir as implicações de sua existência à história paulista. Citando diversos testemunhos, procurava evidenciar a dificuldade de comunicação entre a vila sertaneja de Piratininga e o litoral. Na visão de Paulo Prado estas péssimas condições do Caminho do Mar acabaram por isolar completamente Piratininga da costa e do resto do mundo, criando as condições únicas para a futura grandeza de São Paulo, representadas pela formação de uma raça específica paulista, dotada de um conjunto de hábitos políticos peculiares. Assim, o Caminho do Mar ao invés de ligar, acabou separando, servindo como chave explicativa para a versão de Paulo Prado da exceção paulista. Este autor também retomava a tese, já desenvolvida anteriormente por Capistrano de Abreu e Alberto Salles, do efeito positivo da Serra do Mar. Se para Salles, (como foi visto no tópico 5.4) ela havia impedido os ventos sudoeste e assim livrado São Paulo e a raça paulista dos efeitos degenerativos da tropicalidade, para Paulo Prado ela atuaria como fator de seleção étnica. “Nas predestinações históricas e étnicas do Paulista essa função seletiva do Caminho do Mar é incontestável e providencial para a formação de seu caráter e tipo. A população do planalto conservou-se afastada dos contágios decadentes da raça descobridora.”617(grifos meus). Neste ponto, ao se referir à “decadente raça descobridora”, como bem ressaltou Berriel, Paulo Prado dialogava com Oliveira Martins, expoente da geração portuguesa de 1870, com quem havia entrado em contato direto no ambiente do cenáculo parisiense de seu tio Eduardo. O historiador português consagrara a tese - lançada anteriormente por Alexandre Herculano - da decadência do caráter heróico do povo português, a partir de 617

PRADO, Paulo. Op. Cit., 1925; p. 12.

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meados do séc. XVI, como decorrência do afluxo das riquezas da Índia e da escravidão 618. Mas para Paulo Prado, São Paulo ficara imune aos efeitos da decadência portuguesa. O isolamento provocado pelo “Caminho do Mar” ajudou São Paulo duplamente na medida em que além de isolar um grupo de portugueses quinhentistas, ainda dotados das virtudes da raça que fez os grandes descobrimentos, ele preservou esta população do contato das novas levas decadentes que se fixaram no litoral e principalmente no litoral do norte brasileiro619. Paulo Prado, como discípulo de Capistrano, mantinha a visão da nação cindida, sendo as principais cisões as do litoral X sertão e norte X sul. E como membro da elite republicana paulista, considerava que quanto mais litorânea e nortista a região, mais sujeita aos influxos decadentes do Estado metropolitano estaria. Era o caso das regiões do norte e nordeste brasileiro, que mais diretamente sofreram a influência negativa do Estado colonial português. Paulo Prado ressaltava a superioridade do paulista em relação aos demais brasileiros, o que implicava em defender um papel politicamente hegemônico do estado no conjunto da federação. Assim, no seu discurso historiográfico, em posição diametralmente oposta à do norte, livre do absolutismo colonial de Portugal, o planalto paulista transformou-se no lugar de elaboração de uma raça nova e superior: a raça paulista. Para Paulo Prado, os elementos que a compunham eram os melhores. Primeiramente, havia o elemento português anterior à decadência; formado de um contingente social diverso que juntava nobres (27 titulados entre 52 famílias originais) e alguns degredados, todos fisicamente “duros” e “agrestes”, mas de caráter independente e rude, “não constrangido pela disciplina ou contrafeito pela convenção”. Neste grupo,

618

Sobre a idéia da decadência portuguesa ver PIRES, Antônio Machado. A idéia de decadência na Geração de 70. Lisboa: Veja; 1992. Sobre a relação de Paulo Prado e a obra da geração de 70 portuguesa, ver BERRIEL, Op. Cit. 619 Anteriormente Euclides da Cunha - sócio do IHGSP mediante apresentação de seu amigo e interlocutor intelectual Teodoro Sampaio, além de leitor de Oliveira Martins – em Os Sertões, já havia levantado a tese, aqui defendida por Paulo Prado, de que o bandeirante era um português anterior à decadência, isolado no planalto paulista e caldeado com o índio. Mas esse bandeirante, herdeiro do português original e forte, havia se espalhado por todo o território nacional, sofrendo, por sua vez, a decadência paulista do séc. XVIII, perdendo todos os seus traços de força e valor. Mas nem todos haviam decaído; um grupo de bandeirantes havia se isolado por uma segunda vez nos sertões baianos, dando origem ao jagunço, “rocha viva da nacionalidade”. Este seria “um retrógrado”, ou seja, um resquício dos bandeirantes que, por sua vez, eram um resquício dos portugueses anteriores à decadência miscigenados com indígenas. Assim, os jagunços de Canudos eram identificados por Euclides como tendo escapado de duas grandes ondas de decadência: a portuguesa do séc. XVI e a paulista do Séc. XVIII, sendo o verdadeiro herdeiro das qualidades de força e

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Prado ainda incluiu a presença de um contingente de judeus, cuja contribuição à formação do caráter paulista é positivamente analisada pelo autor. Eles teriam marcado o paulista com as “virtudes fundamentais de tenacidade e maleabilidade”, “aliadas à preocupação constante do enriquecimento e do arrivismo” além de “uma extraordinária vitalidade, notável e fecunda”620. Com o destaque ao elemento judaico na formação paulista, Paulo Prado pretendia conferir ao segundo os valores típicos da modernidade capitalista que então atribuía aos primeiros: não somente o espírito econômico, mas principalmente a idéia de dinamismo e mobilidade621. Como os judeus (e pela presença de seu sangue), os paulistas também teriam uma índole afinada aos valores dinâmicos e utilitários da modernidade. A historiografia de Paulo Prado, servia para apontar a compatibilidade entre o caráter paulista e a modernidade. Esta postura se devia menos ao seu vínculo com o movimento modernista do que à sua proximidade com uma historiografia regional que, desde a propaganda republicana (50 anos antes do modernismo, portanto) procurava identificar o paulista com os valores da modernidade, servindo o modernismo somente de reforço desta tendência anterior. Assim, o elemento branco formador da raça paulista aliava o espírito aventureiro e independente do português anterior à decadência ao dinamismo e espírito econômico do hebreu. Este colonizador iria se caldear com o indígena, dominado por “uma fatalidade nômade e vagabunda”. E assim, “do cruzamento desse índio nômade, habituado ao sertão como um animal à sua mata, e do branco aventureiro, audacioso e forte, surgiu uma raça

valor racial do bandeirismo e, através desse, do que tivemos de melhor na raça do colonizador português. CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Ediouro; 1982. 620 PRADO, P. Op. Cit. 1925, p. 19. Em defesa da presença judaica na formação paulista, Paulo Prado polemizou com Oliveira Vianna, que atribuía as virtudes bandeirantes à presença não de sangue semita mas de sangue ariano, debate que representa um reflexo em terras paulistas do anti-semitismo baseado na teoria ariana, que neste primeiro pós guerra ganhava a Europa centro oriental. Em resposta a Oliveira Vianna, Paulo Prado escreveu o artigo “Cristãos novos em Piratininga” que foi publicado na 2ª edição de Paulística. 621 Quanto à identificação do judeu com o espírito da modernidade capitalista, ela foi apontada por Jeffrey Herf como estando presente na cultura reacionária alemã do primeiro pós guerra, com destaque para Werner Sombart. Paulo Prado parece compartilhar a identificação destes autores entre judaismo e espírito moderno capitalista, mas inverte seu sentido, conferindo-lhe uma valoração positiva, citando em sua defesa inclusive A. Ruppin, autor que, segundo nota de Calil, “é tido como o pai do movimento sionista, assim como da sociologia judaica”.ver. HERF, Jeffrey. O Modernismo Reacionário. Tecnologia, Cultura e Política na República de Weimar e no 3 º Reich. São Paulo, Campinas; Ensaio, ed. Unicamp; 1993, Cap. 6, principalmente p. 156, 157.

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nova”622, a raça mameluca, a raça paulista. Ela estaria definida a partir de finais do séc. XVI, completando o período de “ascensão” da história paulista. Após definir os aspectos raciais, Paulo Prado considerava como traço mais importante do espírito paulista o fato deste ser “independente e insubmisso às leis da metrópole e às ordens dos seus representantes”. Paulo Prado retomava o clássico tema da liberdade primitiva do paulista que havia sido transformado, pelos autores republicanos Washington Luís e Antônio de Toledo Piza, em mito de origem do republicanismo paulista. Na sua opinião, diversas foram as manifestações desta liberdade do paulista antigo, desde João Ramalho até a expulsão dos jesuítas e a revolta contra os representantes do governador Salvador Correia de Sá durante o séc. XVII, passando, é claro, pela epopéia das bandeiras, que devassavam sertões contra as ordens da coroa. Na visão do autor: “Essa independência e isolamento foram os traços característicos do povo de São Paulo durante todo o desenrolar da história do Brasil. Quando o país inteiro era apenas uma colônia vivendo no mesmo ritmo transmitido pela metrópole, os Paulistas viviam a sua própria vida em que a iniciativa particular desprezava as ordens e instrução de além-mar só para atender os seus interesses imediatos e à ânsia de liberdade e ambição de riquezas que os atraíam para os desertos sem leis e sem peias.”623 Transparece a visão anti-estatal do passado paulista, característica do discurso liberal republicano, em que o grande agente da história regional é a “iniciativa privada” (os bandeirante mamelucos) contra o poder asfixiante do Estado ibérico. No cerne da identidade paulista, elaborada por Paulo Prado, estava o espírito de liberdade e a vontade de ganhar riquezas, o que transformava os seus descendentes nos agentes mais adaptados ao mundo moderno, capitalista e liberal. Se a formação da raça livre mameluca no final do séc. XVI consolidava o período de “ascensão” da história de São Paulo, o “clímax” seria representado pelo episódio das bandeiras, tratado nos dois capítulos homônimos. Neles Paulo Prado se distanciava da visão crítica ao extermínio indígena realizado pelas bandeiras, defendida por seu mestre Capistrano de Abreu, ainda ligado à historiografia indianista. O autor se alinhava à

622 623

PRADO, P. Op. Cit. ,1925, p. 21. Idem, Ibidem. p. 34.

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historiografia paulista (Américo Brasiliense, Washington Luís, Taunay e Ellis Jr.) ao procurar justificar a violência do bandeirismo pelo argumento do contraste com a conquista espanhola, pretensamente mais violenta624. Mas, para Paulo Prado, o traço marcante da história paulista foi a sua “decadência”, a partir do início do séc. XVIII. Como explicação para esse fenômeno, o autor apresenta várias causas; desde a perda da parte mais dinâmica da população paulista, que deixava a vila piratiningana e passava a se estabelecer por todo o território brasileiro desbravado, até a abertura do Caminho Novo para Minas em 1698, além da guerra dos emboabas em que São Paulo perdeu Minas para os reinóis. Todos os elementos levaram ao despovoamento da vila de São Paulo e à perda das virtudes originais, perda essa ocasionada pela busca de riquezas. O resultado foi marcado, não somente pelo desmembramento territorial e administrativo da capitania de São Paulo, mas principalmente pela perda da liberdade primitiva do paulista. Se no auge de seu desenvolvimento histórico o paulista se caracterizara como ambicioso, dinâmico, livre e independente, a partir do séc. XVIII ele teria seu caráter modificado pela perda da energia e liberdade primitivas. O paulista degenerado retirou-se para os matos e sedentarizou-se, transformando-se no Jeca Tatu: “o mamaluco incansável, fagueiro, ágil e ardiloso, será o Jeca, do escritor paulista”625. O cabo de tropa bandeirante, de livre e independente, transformou-se em “entusiasta do governo”, antepassado direto daquele que “será hoje o chefe político”626. Ou seja, “toda a história política de São Paulo, a partir desse nefasto século XVIII de capitania independente, é um lamentável quadro do que é a decadência da liberdade nos povos tranqüilos, humildes e respeitosos.”627(grifos meus). Recuperando a tradição historiográfica republicana de Martim Francisco III, Antônio de Toledo Piza (diversas vezes citado), e Washington Luís; Paulo Prado identificava a decadência paulista como resultado também da imposição do despotismo 624

Segundo o autor: “Nunca, porém, essa atividade dominadora e indisciplinada [dos bandeirantes] atingiu os requintes de crueldade e aspereza dos conquistadores espanhóis; (...) O drama de horror e loucura criminosa, em que todas as más paixões dos homens do séc. XVI foram açuladas como matilhas de cães contra as velhas civilizações americanas, torna quase inocente e livre de culpa a ‘fúria paulista’ nos seus mais exaltados desvarios” Idem, Ibidem, p. 71. 625 Idem, Ibidem, p. 39. 626 Idem, Ibidem, p.40. 627 Idem, Ibidem, p. XV.

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colonial português. Assim, “passado os tempos heróicos da nossa formação, em que o isolamento na montanha hostil e o caldeamento das sub-raças constituíram um novo tipo étnico; passado o magnífico drama da expansão bandeirante – o governo dos capitãesgenerais veio em meio século completar o anulamento das virtudes cívicas dos primitivos paulistas.”628 O resultado, para Paulo Prado, foi que após um século de “governo absoluto” São Paulo estava mais decadente do que o Pará, conforme atestava documento oficial do início do séc. XIX. As conclusões eram óbvias: a privação da liberdade primitiva colocara São Paulo em posição subalterna à do próprio Norte, sempre tão pouco valorizado pela elite paulista. Mesmo carregando um pouco mais nas cores, até este ponto a representação do passado paulista de Paulo Prado não apresentava diferenças de monta com a tradição historiográfica republicana regional. Ele apresentava algumas explicações originais para temas clássicos como o da “época de ouro” seiscentista, e o da “decadência” no séc. XVIII, mas a diferença entre a representação de Paulo Prado e a da tradicional versão republicana, estaria no tratamento do período da “regeneração” do paulista. É na abordagem deste tema que podemos, com precisão, definir o sentido político de sua historiografia. Para Paulo Prado, como vimos, durante todo o séc. XVIII e XIX a decadência predominou na história paulista. Nem mesmo a Independência representara a retomada do espírito livre do paulista antigo, uma vez que estes pouco se entusiasmaram com o movimento, com a exceção individual de José Bonifácio. Somente o efêmero levante antisaquarema de 1842 alterou muito brevemente o quadro. Prado sugere que a regeneração iniciou-se com o decreto de 1856 que oficializava a construção da estrada de ferro SantosJundiaí. Assim, se a “ascensão” de São Paulo fora fruto do isolamento provocado pela precariedade do Caminho do Mar e a “decadência” decorrera da abertura do Caminho Novo para Minas, a “regeneração” se iniciaria também com uma obra viária, aqui representada pela modernização ferroviária. Mas para Paulo Prado nem todos os valores tradicionais da raça seriam retomados a partir do séc.XIX. A regeneração não era vista como uma pura e simples “restauração” da época de ouro. Para ele: “No traçado gráfico que imaginamos para indicar a evolução histórica e social de São Paulo, a linha de regeneração, a seguir, se bifurca em direções 628

Idem, Ibidem, p. 98.

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opostas – uma ascende à culminância do progresso material e econômico dos dias presentes, outra conserva-se na horizontalidade em que a abandonou a tirania colonial: é esta a linha dos sentimentos cívicos e políticos do habitante desta província. O passado, dos tempos heróicos do Paulista, ‘amantíssimo de liberdade’, insubmisso diante das ordens de Salvador Correia, impenitente nas lutas seculares contra a Companhia de Jesus, resistindo até a morte no caso trágico dos irmãos Lemes, esse passado desaparecera no período sombrio das administrações fidalgas.”629 (grifos meus). Para Paulo Prado, com a regeneração somente se recuperara o aspecto econômico e material do caráter paulista, não tendo ocorrido a recuperação daquilo que para ele constituía a principal virtude regional: o espírito de liberdade e independência. Apresentando a “bifurcação” da linha de regeneração, Paulo Prado fechava o círculo de sua interpretação historiográfica, retomando e respondendo à questão lançada nos editorias “O Momento” sobre os motivos que levaram ao adesismo e ao alheamento do mundo da política pelo paulista moderno. Paulo Prado procurava, desta maneira, explicar o fosso entre o paulista antigo, livre e independente, e o paulista moderno, adesista e exclusivamente preocupado em ganhar dinheiro, apelando primeiramente para a “decadência” do caráter primordial livre do paulista e complementando sua interpretação com a idéia da não retomada desde mesmo caráter no momento da “regeneração”. O paulista moderno não era o digno herdeiro do bandeirante independente. Ele se mantinha decadente, e essa decadência era identificada com o “adesismo” - tema caro ao grupo liberal oposicionista - com a falta de participação no universo da política, com o predomínio inconteste do governo perrepista. A compreensão do sentido político de sua representação da decadência do caráter paulista fica mais clara se a considerarmos no quadro do debate historiográfico regional. Neste quadro, o seu principal interlocutor implícito foi Washington Luís que, como vimos anteriormente, estabeleceu a versão republicana do tema da decadência paulista. O tratamento da decadência paulista em Paulística pode ser visto como uma contestação àquele definido pelo “Presidente historiador” no texto Na Capitania de São Paulo, o governo de Dom Rodrigo César de Meneses, publicado em livro em 1918. Nele 629

Idem, Ibidem, p. XV.

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Washington Luís acabava consolidando um mito de origem perrepista, através da sugestão do renascimento, (“como a fênix das cinzas”) da primitiva liberdade paulista no presente republicano. A originalidade do livro Paulística estava justamente em negar esta recuperação da primitiva liberdade, contestando a identificação que a elite política regional procurava estabelecer do perrepismo como sendo o herdeiro da independência política bandeirante. O intuito central da historiografia regional de Paulo Prado era exatamente de solapar este mito de origem do republicanismo paulista, mediante a afirmação do divórcio entre o paulista moderno – adesista e dependente do governo – e o paulista antigo – livre e independente frente ao governo. Para Paulo Prado o paulista moderno, fiel ao PRP, antes de ser o herdeiro do bandeirante independente era o representante maior da raça decadente e a própria adesão ao partido dominante PRP era o principal sintoma da perda das virtudes ancestrais de liberdade e independência. Ao mesmo tempo, a historiografia de Paulo Prado servia como uma convocação à restauração destas virtudes ancestrais paulista, o que implicaria na legitimação da postura contestatória e independente adotada pelo autor, seja em termos políticos (oposicionismo), seja em termos artísticos culturais ( modernismo). Esta mesma postura contestatória era compartilhada por Mario Pinto Serva, um dos expoentes da dissidência liberal paulista, evidenciando o sentido político liberal oposicionista da representação do mecenas modernista. Em 1922, um ano antes de Paulo Prado publicar seu estudo sobre a decadência e seus editoriais contra o adesismo político do paulista moderno, Pinto Serva incorporava a interpretação republicana da exceção de liberdade e progresso paulistas frente ao restante do Brasil, visto como submetido ao despotismo ibérico630. Mas, da mesma forma que Paulo Prado, alertava para o “eclipse passageiro” (sua versão da “decadência”) do espírito livre do paulista antigo. O presente político de São Paulo não tinha nada de exemplar: “No momento histórico que atravessamos ora, fatores diversos nos fizeram mergulhar num eclipse passageiro que nos tem apagado na vida pública as virtudes

630

Pinto Serva apresenta uma representação do passado paulista em todos os pontos semelhantes à de Paulo Prado: “O Brasil era colônia ainda e já há muito os paulistas, a cavaleiro da Serra do Mar, que os isolava do litoral e da metrópole, e mergulhando nos sertões adustos, eram independentes, soberanos, dominadores (...). As opressões da metrópole não nos atingiam: desprezávamo-las. (...) O resto da população do Brasil era litorânea e por isso sujeita à influência direta e imediata da prepotência reinícola, cuja tirania a vincava

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congênitas da raça. A política atualmente nos deforma a vida social e nos corrompe o organismo coletivo. A política é o cancro que nos corrói, é a nódoa que os avilta, é a infecção que nos lacera. A nossa energia toda deve concentrar-se na obra de cauterização o cancro político que nos desfigura o caráter. Precisamos na política restaurar a altivez, a energia, a dignidade, o caráter, a honradez, a virilidade e a limpeza que já nos distinguiram e ora nos fazem falta. Mas já se tem no espaço vibrações novas.”631 (grifos meus). Este trecho mostra bem as conseqüências políticas da visão da decadência paulista: fazia-se necessário restaurar a antiga altivez e liberdade paulista, o que em termos efetivos significava colocar-se em oposição ao governo. Pela discurso da “decadência do paulista”, a oposição liberal legitimava sua luta política apelando para a restauração das legítimas tradições

paulistas.

Mas

a

visão

do

paulista

moderno

decadente,

definida

historiograficamente por Paulo Prado e comungada pela dissidência liberal, não ficaria restrita ao universo da política e da historiografia, sendo incorporado, a seu modo, também pelo universo da literatura, que aqui apenas procuro apontar. Como bem ressaltou Antônio Celso Ferreira, a proximidade do autor com o grupo de literatos e artistas modernista, dos quais era, não somente o financiador, mas também uma espécie de ponte com o universo do pensamento social, levou à adoção, por estes, da idéia do tratamento literário da decadência paulista. O tema seria exemplarmente representado, dentre vários outros, no personagem Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade, intelectual a quem a proximidade com o grupo perrepista não implicava em déficit de espírito crítico632. Assim, os ensaios históricos de Paulística tiveram uma trajetória curiosa, que reflete a mudança de posicionamento por que passou o seu autor ao longo dos anos 20. Surgem inicialmente, em 1920, da cooperação de Paulo Prado com Washington Luís visando a legitimação da política rodoviária, para se transformar, a partir de 1922, em uma crítica historiográfica à predominância do grupo político perrepista, representado pelo “Presidente historiador”, mediante a apresentação do paulista moderno, submisso ao governo perrepista, como decadente e indigno do espírito livre dos bandeirantes.

com os seus efeitos deprimentes.” In SERVA, Mario Pinto. Patria Nova. São Paulo; Cia. Melhoramentos; 1922. P. 92. 631 Idem, Ibidem, p. 95.

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Mas se a historiografia regional de Paulo Prado era uma crítica interna, lançada por um liberal oposicionista à situação perrepista, ela tinha o sentido de afirmar a predominância da elite paulista a nível nacional. A postura de Paulo Prado inscrevia-se em linha de continuidade com a defesa do “imperialismo benéfico” de São Paulo frente ao restante da nação, preconizada por liberais oposicionistas como Amadeu Amaral, Júlio de Mesquita Filho e Cincinato Braga633. Neste ponto, da definição do “destino manifesto” de São Paulo frente à nação, em nada Paulo Prado e o grupo liberal oposicionista se diferenciavam do perrepismo. Todos tinham como objetivo justificar a hegemonia política e econômica regional, uma vez que pela historiografia procuravam explicar a “exceção paulista”, ressaltando os traços peculiares e exclusivos que moldaram o caráter do paulista como o agente fadado a levar a modernização liberal capitalista, ainda de cunho agrário, ao restante do Brasil. Em Paulística, Paulo Prado mantinha o cerne do discurso ufanista e auto complacente da elite “bovarista” regional que tanto procurava combater, mas já apresentava uma visão mais crítica do que aquela difundida pela historiografia oficial republicana. Apontava para um pessimismo que seria aprofundado à medida que aumentava seu descontentamento com o quadro conjuntural dos anos 20, atingindo seu ápice na publicação de seu ensaio de interpretação nacional Retrato do Brasil, de 1928. Sua obra historiográfica, assim como a de seu antípoda político Oliveira Vianna, representaram ataques às bases de sustentação simbólicas do status quo da Primeira República. Talvez por ser uma crítica interna ao grupo liberal paulista, a obra de Paulo Prado não despertou esforços de contestação historiográfica direta por parte da intelectualidade ligada ao perrepismo. O contrário se deu com o trabalho de Oliveira Vianna contra o qual principalmente Alfredo Ellis Jr. direcionaria sua historiografia. Mas para compreender as suas críticas, temos que compreender a política pública de culto ao passado paulista, levada a efeito pelo grupo de republicanos no poder.

632

Sobre a centralidade do tema da elite decadente paulista na literatura modernista ver FERREIRA, Antônio Celso. Op. Cit; 1998. O autor também mostra a apropriação por Mário de Andrade do tema da decadência. 633 Sobre o liberalismo oposicionista e o projeto de hegemonia paulista ver CAPELATO, Maria Helena, Op.Cit.; ADUCCI, Cássia, Op. Cit., 2000. Sobre a sistematização econômica do projeto hegemônico por Cincinato Braga, ver SALIBA, Elias Thomé. “Ideologia Liberal e oligarquia paulista. A atuação e as idéias de Cincinato Braga.” São Paulo: Dept. História FFLCH, USP, tese de doutorado; 1981.

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Capítulo 8. O Perrepismo contestado: afirmação da tradição paulista. 8.1 – O PRP nos anos 20: liberalismo, progresso e ordem.

Desde o início do regime republicano, e principalmente após a definição da sua “rotina” com a política dos governadores, o PRP agia na prática como partido único, controlado internamente pela restrita Comissão Central que monopolizava o poder no estado634. Desta maneira, o partido impedia o acesso à vida política não somente da maioria da população, mas mesmo dos grupos de elite não alinhados à posição oficial, revelando o caráter autoritário da ideologia liberal que lhe servia de sustentação. Este sentido autoritário do PRP somente tendeu a crescer ao longo dos anos 20, na medida em que se aprofundava a crise de hegemonia, manifestada pela intensificação da oposição ao seu poder, por parte tanto da classe operária quanto das dissidências de elite que se formaram no período. Assim, ao movimento operário organizado de finais dos anos 10, a resposta perrepista não se fez esperar, vindo na forma da mais cruenta repressão, uma vez que, conforme definira Washington Luís em 1920, “agitação operária é uma questão que interessa mais à ordem pública do que à ordem social”, consagrando a fórmula perrepista da questão operária como questão de polícia. Com as revoltas tenentistas de 1922 e principalmente com a de 1924, a repressão governamental foi intensificada em todo o país, dando origem, segundo Paulo Sérgio Pinheiro, a um “regime de exceção republicano”635. No estado de São Paulo, o governo perrepista de Carlos de Campos não somente procurou debelar os revoltosos pelo bombardeio indiscriminado da capital, como também desencadeou violenta repressão, institucionalizada mediante a criação, em 1925, da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS)636. No âmbito nacional, contando com a complacência perrepista - então o principal sustentáculo político do governo federal - a presidência do mineiro Artur Bernardes (1922-26) destacou-se pelo estado de sítio 634

Sobre a organização interna do PRP e o predomínio da Comissão Central ver CASALECCHI, J.E. Op. Cit. p. 181 a 233. 635 Para um painel da repressão ao movimento operário e a caracterização deste regime de exceção, ver PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da Ilusão. A Revolução Mundial e o Brasil (1922-1935). São Paulo: Cia. Das Letras; 1991.p. 105-117. 636 Idem, Ibidem, p. 111.

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constante, perseguição generalizada e degredo para a colônia penal amazônica de Clevelândia, não somente de revoltosos mas de lideranças operárias e indesejados políticos e sociais de todo o tipo637. Apesar de acenos iniciais de desmonte do aparato repressor, também a presidência de Washington Luís (1926-30) caracterizou-se pela recorrência ao estado de sítio, restrição da imprensa e prisões arbitrárias, colocando-se em franca continuidade com a de seu predecessor638. Mas se o PRP passava cada vez mais a reforçar o seu papel de partido da ordem, não deixava de defender o pacto liberal federalista. O PRP mantinha o seu compromisso com as instituições liberais federalistas que formavam a face política de seu programa americanistas e o seu crescente autoritarismo não dever ser visto como um desvirtuamento de seu programa original, uma vez que, como lembra Maria Helena Capelato, o controle social está no centro da prática liberal. Desta forma, oscilando entre a manutenção de seu compromisso com o pacto liberal federalista e a apresentação como partido da ordem, o PRP acabaria acolhendo tanto intelectuais francamente liberais, como Alfredo Ellis Jr., quanto futuros expoentes do pensamento antiliberal, como Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti Del Picchia, que estudaremos melhor no próximo tópico. Quanto à consolidação do “moderno capitalismo agrário” cafeeiro, que constituía a face econômica do programa americanista do republicanismo paulista, ela parece ter atingido seu auge nos anos 20, para ser imediatamente seguido da crise irreversível de 29. A centralidade das práticas de ocupação agrícola do território interior no programa político perrepista era evidenciada no mote “Governar é povoar, é construir estradas”, cunhado em 1926 por Washington Luís e colocado em plena vigência desde sua administração como presidente de São Paulo (1920-24)639. Apropriado da frase “na América governar é povoar”, proferida pelo liberal argentino Juan Bautista Alberdi, o mote evidenciava o caráter americanista do territorialismo perrepista. Aliás, no primeiro pós-guerra encontramos diversas outras referências e citações de autores americanistas argentinos da 637

Idem, Ibidem. P. 87-105. Sobre a posição de Washington Luís frente às medidas repressoras de Bernardes, ver CARONE, Edgard. A República Velha. II - Evolução Política. São Paulo: Difel; 1983. P. 404 a 408. 639 Na mensagem ao legislativo federal de 1927, Washington Luís afirmava: “Governar é povoar; mas não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies. Governar é, pois, fazer estradas”. In “Mensagem apresentada ao congresso nacional na Primeira sessão da 13ª legislatura pelo presidente Washington Luís Pereira de Sousa. Rio de Janeiro, 1927.” www.brazil.crl.edu/bsd/bsd/u1177/000059.html (consultado em fev.2004). 638

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“geração de 1837”, com destaque para Alberdi, que então foi apropriado por autores como Alfredo Ellis Jr. e Silva Lobo para legitimar a prática territorialista do PRP640. Vale lembrar que ao adicionar o termo “construir estradas” ao dístico de Alberdi, Washington Luís pensava menos em trens e mais em automóveis; as estadas mencionadas eram antes rodovias do que ferrovias. A frase evidenciava seu empenho na concretização de um novo territorialismo motorizado. Assim, o dado novo do territorialismo dos anos 20 foi o seu caráter automobilístico, incentivado pela articulação de interesses de montadoras com o poder público representado na figura de Washington Luís, o principal responsável pela adequação da política viária do tradicional territorialismo paulista às inovações tecnológicas da segunda revolução industrial. A partir de então a conquista do sertão seria realizada com o auxílio da estrada de rodagem641. Mas se o governo acreditava que o progresso passava pelo “construir estradas”, ele não deixava de dedicar-se também ao “povoar”, redefinindo a sua posição frente à imigração. Para o presente estudo, o interesse em tratar das modificações da política imigrantista oficial se deve à participação que nele tomou o historiador e deputado estadual Alfredo Ellis Jr. e a relação desta atuação com sua obra historiográfica. Sendo um dos representantes da nova geração perrepista, Ellis Jr. se dedicou com destaque ao tratamento

640

Ellis Jr., em fala na assembléia estadual em que explicitava o caráter territorialista da política perrepista, se remetia a Alberdi para legitimar um projeto de ligação férrea entre São Paulo e o Paraguai: “O Brasil, com esta zona imensa despovoada, e de fraca densidade de população tem os seus problemas máximos resumidos em povoar e produzir. E então, seguindo essas normas de Alberdi, de que governar é povoar, mergulhado na selva do sertão do Paranapanema, pensei em traduzir em um projeto de lei a iniciativa de São Paulo ligar aquela zona de expansão às suas forças econômicas.” In SÃO PAULO, Atas da Assembléia Legislativa estadual, ano 1926, p. 972. Já Souza Lobo, autor da obra São Paulo na Federação, verdadeiro elogio perrepista da superioridade paulista, também se apropriava de Alberdi para legitimar a prática territorialista de ocupação do sertão mediante introdução de imigrantes. No capítulo significativamente intitulado “Governar é povoar”, afirmava: “Nunca poderemos esquecer de citar Alberdi: ‘aqui, - disse ele comentando a segunda proposição de Malthus – não há conveniência em impedir que o homem nasça pelo temor de que pereça de fome; o alimento sobra e os braços faltam. Logo, aumentar a população é estender o bem estar’ ”. LOBO, Souza. São Paulo na Federação. São Paulo: s/ed.; 1924. P. 126. 641 Conforme aponta Nestor Goulart Reis Filho, desde 1908 um grupo de particulares reunidos no Automóvel Clube de São Paulo, composto pela nata da elite paulista, articulou um programa de iniciativas voltadas a viabilizar a introdução do automóvel no Brasil. O seleto grupo dos sócios do Automóvel Clube contava, desde 1909, com a presença de Washington Luís, que então começava sua ascendente carreira política. Esta seria marcada pelo compromisso com a introdução do veículo automotor no país, transformado o plano rodoviário que ajudou a elaborar no Automóvel Clube em programa de governo já no momento em que assumiu a prefeitura da capital paulista em 1914. Sobre a política rodoviária e o papel central desempenhado por Washington Luís, ver REIS FILHO, Nestor Goulart. Op. Cit. ou ainda, DEBES, Celio. Op. Cit, 1994; p. 317324. Para a introdução do automóvel em São Paulo, ver SÁVIO, Marco Antonio Cornaccioni. A Modernidade sobre Rodas. Tecnologia automotiva, cultura e sociedade. São Paulo:Educ, FAPESP; 2003.

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da questão imigrantista, um dos elementos da política territorialista de povoamento do americanismo paulista. Como já apontamos anteriormente, os anos 20 foram marcados pelas tentativas de retomar a corrente imigratória interrompida pela guerra, visando solucionar o problema da oferta barata de mão-de-obra para a agroexportação cafeeira. Buscando vias alternativas, o governo paulista investiu na vinda de trabalhadores japoneses, que encontram nas décadas de 20 e 30 o período de maior afluxo no estado. A alternativa nipônica foi duramente combatida por diversos setores da elite produtora paulista, uma vez que eram considerados “anti-eugênicos”, formadores de quistos étnicos e inassimiláveis ao todo nacional, sendo temido o seu potencial de desvirtuamento das qualidades nacionais, cada vez mais valorizadas em período de intenso nacionalismo. Foi neste contexto que o jovem Alfredo Ellis Jr. iniciou sua vida pública, integrando-se no debate imigrantista em defesa da entrada do tipo nipônico. Ellis Jr. procurou demonstrar o caráter assimilável do imigrante japonês, através de uma série de estudos publicados em 1928 no volume Pedras Lascadas. No artigo “Imigração, povoamento, assimilação”, chegava à conclusão que “o sírio demonstra o maior grau de impermeabilidade à assimilação por cruzamento; (...) enquanto os japoneses se mostram os mais permeáveis”642. Ellis Jr. provava que os imperativos nacionalistas da assimilação do imigrante eram compatíveis com a entrada de japoneses, justificando, desta forma, a alternativa governamental para a resolução da questão imigratória. A forte oposição à admissão dos japoneses nos apresenta o novo enfoque da questão imigrantista nos anos 20. O imigrante, entendido exclusivamente como mão-de-obra, ainda continuava a ser uma necessidade para o sistema cafeeiro, mas pela primeira vez ele tinha seu papel civilizador questionado e, cada vez mais, passava a ser percebido pelas elites nacionais, (inclusive a paulista) como uma tripla ameaça: à cultura e tradição nacional, à ordem sócio-política, e ao predomínio sócio-econômico da elite regional. Na base desta mudança na visão do imigrante, ocorrida no primeiro pós-guerra, estavam três processos interrelacionados: o surgimento da vaga nacionalista, as lutas operárias e a ascensão social de imigrantes enriquecidos. Muitas vezes estes aspectos não vinham claramente discriminados, apresentando-se de forma indistinta nas falas dos contemporâneos. 642

ELLIS JR. Alfredo. Pedras Lascadas. São Paulo: Ed. Piratininga; 1933.p. 255.

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O próprio Ellis Jr, parece ter sido atraído à questão da imigração pelo receio dos efeitos ameaçadores da presença estrangeira ao predomínio da elite tradicional paulista, tornando-se um dos principais expoentes do perrepismo no tratamento da questão. É de sua lavra uma das mais explícitas formulações da “ameaça imigrante”, transposta na conclusão do seu primeiro texto historiográfico, publicado em 1922: “O desprezo de todos os de hoje pelas homéricas tradições que herdamos dos nosso maiores deixa-nos ao sabor do estrangeiro, que nos invade aos milhões, ameaçando engolir os descendentes dos antigos donos da terra de Piratininga. (...) Os novos ricos alienígenas imperam em São Paulo, na sua babélica algaravia, tendo para adulá-los os filhos da terra, que hoje só cuidam no rasteiro esnobismo de incensar o estrangeiro, desprezando o nacional. (...) Enfim, todas estas dolorosas verdades, que acumulam a ingratidão do presente ao passado, não deixam de formular a pergunta, cuja resposta pela afirmativa se evidencia. Seremos, dentro em pouco absorvidos?”643 O início de sua reflexão sobre o passado paulista vinha marcado pelo medo da absorção estrangeira, postura posteriormente modificada, conforme será visto. As tradições e o predomínio social da elite paulista estavam ameaçados pela leva imigrante, ao mesmo tempo em que aquela dependia da força de trabalho desta. A atuação imigrantista de Ellis Jr. nasceu da tentativa de superar o impasse vivido por uma elite paulista que dependia economicamente do trabalho imigrante mas temia os efeitos sociais, políticos, culturais e até raciais de sua introdução. Para anular estes efeitos vistos como negativos, o pensamento nacionalista do período, ao qual Ellis Jr. se alinhou, redefiniu a postura tradicional das elites modernizadoras frente ao imigrante, colocando como prioritárias as questões da seleção e da assimilação dos estrangeiros. Quanto à seleção, Ellis Jr. procurava intervir concretamente junto às corrente populacionais estrangeiras tendo como objetivo maior a criação de um tipo racial paulista do futuro que mantivesse o mesmo alto índice de eugenia que identificava no tipo tradicional paulista. Para tanto, em 1926, propunha na assembléia estadual a adoção de medidas voltadas à seleção de imigrantes, tomando “como paradigma os Estados Unidos” 643

ELLIS JR. Alfredo. Ascendendo na História de São Paulo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional; 1922.

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que então adotavam rigorosas medidas para impedir a entrada de estrangeiros considerados racialmente prejudiciais. Mas como ainda não haviam informações precisas sobre quais os imigrante racialmente indesejáveis, seu projeto voltava-se à criação prévia de um aparelhamento técnico voltado a estudar cientificamente as diversas correntes populacionais, visando definir quais as mais adequadas e quais as menos desejáveis à formação de um paulista do futuro tão eugênico quanto seu antepassado bandeirante644. Mas para Ellis Jr. não bastava selecionar os imigrantes dotados de melhores características raciais, era necessário que aqueles que aqui se estabelecessem fossem assimilados cultural e socialmente. “Quais os contornos do que se quer chamar assimilação? Quer me parecer que assimilação é o processo pelo qual estrangeiros imigrantes se transformam em nacionais”645. Como condição à política de assimilação havia uma importante mudança no que se entendia como imigrante ideal. Ao invés de se valorizar o estrangeiro pela pretensa superioridade de sua cultura, o imigrante valorizado na ótica do novo nacionalismo seria aquele que se mais facilmente se despisse de todos os hábitos, costumes e tradições de sua terra original para mais facilmente se moldar ao novo meio. Como escrevia o autor: “Assim, para que o imigrante como povoador ou colonizador satisfaça as nossas necessidades não é preciso apenas que ele ou a sua prole percam os característicos da nacionalidade de origem e adquiram ele ou os seus filhos a nacionalidade brasileira; abandonem o seu idioma primitivo de origem, os seus costumes, as suas tradições, etc. [mas que] se deixem assimilar, pelos brasileiros, de modo que dentro de algum tempo, desapareçam os traços de um agente estranho à nossa comunidade nacional, para só se revelar um todo compacto e homogêneo de brasileiros.”646 O imigrante para Alfredo Ellis Jr. e boa parte da elite embebida dos novos valores nacionalistas, não era mais valorizado pela sua diferença e pretensa superioridade cultural 644

“Tempos houve, sr. presidente, na época quinhentista e seiscentista, em que as caravelas trouxeram, através do Atlântico, os primeiros elementos de povoação ibérica da capitania de São Vicente, e já então se fazia seleção destes elementos (...) cujos resultados foram depois apreciados nos fenômenos do bandeirantismo e das lavouras de café. (...) É natural, pois que hoje, com o progresso científico, o paulista queira preservar a sua raça futura pela seleção artificial, trabalhando inteligentemente ao lado das seleções naturais e sociais, e o meio para fazê-lo será a criação de um aparelhamento científico para este fim(...) in Atas da Assembléia Estadual de São Paulo, ano 1926. Pp 206’a 209. 645 ELLIS, JR. Alfredo. Op. Cit. 1933, p. 140.

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frente ao nacional. Seu valor estava exclusivamente na força de trabalho e nos aspectos biológicos. Em qualquer um destes aspectos, porém, ele não mais poderia vir a alterar os hábitos nacionais. Mas se Ellis Jr. evidenciava certo otimismo quanto à tendência à assimilação espontânea do imigrante à comunhão paulista, isto não implicava em descaso quanto a medidas de intervenção efetiva para intensificar este processo. Quanto a práticas concretas, Ellis Jr. considerava que a assimilação “pode ser realizada pelo cruzamento de estrangeiros com nacionais, e pela educação. O cruzamento é na verdade um poderoso agente de assimilação. (...) Parece-me todavia que o agente mais poderoso é a educação”647. Como os cruzamentos vinham se realizando espontaneamente, conforme confirmara com seus estudos imigrantistas, não se fazia necessário intervir diretamente neste terreno, de forma que a ação estatal deveria se fazer no terreno da educação. Esta era não somente a postura de Ellis Jr. mas de todo o grupo perrepista, que deu destaque à questão da assimilação do imigrante na definição da grande reforma do ensino paulista de 1920, o que provocou reação contrária do governo e colônia italiana. Logo no ano que assumiu a presidência de São Paulo (1920) Washington Luís realizou uma ampla reforma educacional que tocava diretamente na questão da nacionalização do imigrante, incorporando ao seu plano de governo os ideais nacionalistas, acalentados originalmente em grupos críticos. A idéia central da reforma era combater as diversas escolas particulares de estrangeiros existentes no estado, que ministravam o ensino na língua de origem dos imigrantes, sendo por isso vistas como forte fator de desnacionalização. Os meios foram dois: aumentar a oferta de ensino público e a mudança nos requisitos curriculares, que incluíam não somente a proibição de ensino de língua estrangeira para menores de 10 anos mas também a efetivação de lei anterior que obrigava o ensino de história e geografia do Brasil em todas as escolas particulares. Pretendia-se utilizar a língua portuguesa e o ensino de história e geografia pátrias como meios de assimilação. As reclamações não se fizeram esperar, principalmente por parte da colônia e do governo italiano que sob forte orientação nacionalista, posteriormente intensificada com a

646 647

Idem, Ibidem; p. 245. Idem, Ibidem, p. 140.

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ascenção do fascismo, visava reforçar no pós-guerra os vínculos dos imigrantes com a Itália. A oposição oficial italiana à reforma educacional nacionalizadora de Washington Luís estava na origem do braço de ferro entre os governos italiano e paulista representado pelo episódio da Convenção de Ouchy que, como vimos no capítulo anterior, foi pivô do rompimento do conselheiro Antônio Prado com o governo perrepista, causando um impasse na retomada da imigração italiana. O embate entre o governo paulista e o governo italiano e setores da colônia, já em processo de franca adesão ao fascismo648, transformava este período em uma conjuntura de verdadeira guerra identitária pela consciência do imigrante e principalmente de seu descendente. Se, de um lado, cada vez mais se investia na difusão do discurso da “italianitá” pela imprensa da colônia e pelas Societá Dante Alighieri, de outro, a intelectualidade perrepista (Menotti Del Picchia, Plínio Salgado e Ellis. Jr) se empenhava na assimilação do imigrante, mobilizando para tanto o discurso da identidade paulista. Neste embate Ellis Jr. conferiu papel central para a história paulista. Em resenha do segundo volume da História Geral das Bandeiras Paulistas, de autoria de Afonso de Taunay, Ellis Jr. explicitava o novo sentido político que se atrelava ao estudo do passado paulista: “Estado invadido pelos elementos mais exóticos que pela corrente imigratória o procuram, muito deveria ter recorrido ao seu passado gloriosíssimo para como barreira apor aos estrangeiros contra uma desnacionalização que desgraçadamente tem progredido a olhos vistos. Na nossa garrida Paulicéia tudo respira a estrangeiro! (...) Nas praças públicas erguem-se estátuas e monumentos a glórias estrangeiras, que a nós nada dizem respeito, etc....(...) O Passado paulista, entretanto, bem conhecido seria a melhor alavanca a se empregar contra a desnacionalização do povo.”649 Ellis Jr. voltava aos seus temores iniciais e retomava o perigo da avalanche estrangeira. São Paulo deixava de ser o centro de “cosmopolitismo absorvente” para se

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Sobre a política externa italiana e a manutenção da “italianitá” dos imigrantes e descendentes, ver BERTONHA, João Fábio. O Fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto alegre: EDIPUCRS; 2001. P. 25-27. Agradeço a João Fábio Bertonha por ter chamado a minha atenção para o acirramento identitário ocorrido no seio da colônia italiana nos anos 20.

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transformar em centro de cosmopolitismo dissolvente. Neste conjuntura, o passado paulista transformava-se em “alavanca” de assimilação imigrante. Se no início da propaganda republicana o passado paulista havia sido usado politicamente para legitimar a autonomia paulista diante da corte centralizadora, agora a “ameaça” se internalizara na figura do imigrante. Para que a eficácia assimiladora do passado paulista fosse completa, fazia-se necessária a sua mais ampla divulgação, visando atingir diretamente o filho do imigrante. Neste sentido, em 1927, mais uma vez Ellis Jr. utiliza-se de seus poderes como deputado estadual perrepista para propor a obrigatoriedade do estudo do passado paulista, mediante a criação de uma “cadeira de história de São Paulo” nas escolas públicas secundárias do estado. No projeto, Ellis Jr. propunha substituir o tempo dedicado à História Universal pelo ensino da História de São Paulo, uma vez que afirmava ser “muito mais útil para São Paulo, dadas as razões que venho de apresentar, algumas das quais de ordem social e mesmo política, o estudo da história do nosso estado do que o da história geral, universal, propriamente dita”650. O ensino da história paulista era justificado explicitamente por motivos políticos e sociais. Estes, segundo o autor, eram identificados com o imperativo de conquistar as mentes e corações dos imigrantes e descendentes, incutindo-lhe os valores da paulistanidade, caros ao grupo social dominante. Na defesa do projeto, Ellis Jr. ainda chamava a atenção para a necessidade de combater as visões, a seu ver errôneas, do passado paulista, citando o caso do compêndio de história do prestigioso colégio Pedro II, de autoria do historiador sergipano Júlio Ribeiro. Ellis Jr. se indignava com o tratamento restrito e negativo conferido ao bandeirismo, ainda caudatário da historiografia indianista, em que Antônio Raposo Tavares era tratado como “assassino” ao mesmo tempo em que “a lavoura de café em São Paulo é coisa ignorada”651. Cito a íntegra das palavras do deputado Ellis Jr. na tribuna da assembléia: “Ora, sr. presidente, nós paulistas, cônscios do que foi a nossa epopéia magna, não podemos ensinar aos filhos de italianos, de japoneses, de húngaros, de

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ELLIS JR. A. Op. Cit., 1933. p. 268,269. SÃO PAULO, Atas da Assembléia Legislativa Estadual. 1927, p. 937. 651 Idem, Ibidem, p. 1172. 650

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sírios, de iugoslavos, de alemães, etc., que o bandeirismo foi uma obra satânica. Seria isso fazer obra de falso patriotismo.... O Sr. Toledo Piza – Muito Bem. O Sr. Alfredo Ellis - (...) embora fosse para agradar os jesuítas. E foi por isso que pensei em fazer incluir no programa do ensino secundário paulista um ensinamento que visasse a criação de professores destinados a mostrar a esses elementos adventícios que aportaram ao país qual foi o nosso passado, pois isso seria uma grande alavanca de nacionalização desses mesmos elementos heterogêneos de nosso território, os quais precisamos assimilar, e pela educação conseguiremos assimilar muito mais do que pelo cruzamento. Além disso, é preciso que também ensinemos a essas crianças o que foi a grande formação da lavoura de café do Estado de São Paulo, o maior fenômeno agrícola do século passado. Esse fator gigantesco da nossa economia, era preciso ser posto em relevo, de maneira que essa gente adventícia não pensasse que a grandeza de São Paulo começou com ela; é preciso que saibam que, antes da imigração, São Paulo já tinha as bases da sua grandeza perfeitamente solidificada (...)”(grifos meus)652 O trecho, apesar de longo, concentra o núcleo do pensamento imigrantista de Alfredo Ellis Jr.. Nele o passado paulista – tanto o símbolo bandeirante quanto o seu desdobramento cafeeiro – é mobilizado visando responder a uma única lógica da assimilação, formada por duas dimensões: de um lado ele servia para integrar o imigrante na comunhão paulista, visando transformá-lo em nacional; ao mesmo tempo em que esta integração do imigrante se dava de forma subalterna, uma vez que se procurava difundir que o principal agente da grandeza paulista era o fazendeiro e não o imigrante. Ellis Jr. procurava transpor para o terreno simbólico e introjetar na mente dos descendentes de imigrantes a sua inserção socialmente subalterna na comunhão paulista. A lógica simbólica que integrava o imigrante era a mesma que o separava do paulista antigo, do fazendeiro, conferindo-lhe o papel secundário de mero auxílio653. Esta lógica dupla se unificava na forma do projeto de assimilação. 652

Idem, Ibidem, p. 1172, 1173. De fato, em seus estudos imigrantistas, Ellis Jr. desenvolve um artigo somente para comprovar que o verdadeiro agente da grandeza paulista era a tradicional elite regional e não o imigrante. Em “Populações de 653

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Assim, pelo estudo do discurso da assimilação do imigrante, procurei dar conta do questionamento levantado por Maria Isaura Pereira de Queiroz sobre o papel desempenhado pelo símbolo bandeirante frente à grande população estrangeira existente no estado654. Ao invés de pensar a relação como sendo ou de integração ou de segregação, acredito que utilizava-se o símbolo para, ao mesmo tempo, integrar e segregar os imigrantes e descendentes no interior da sociedade paulista do início do século. Pela prática da assimilação as duas perspectivas apareciam unidas, o que não significa que em outros autores e situações qualquer um dos pólos opostos (integração ou segregação) pudesse ser enfatizados, necessitando o estudo empírico de cada caso. O que vale ressaltar è a importância da intervenção de Ellis Jr. em seu presente como deputado perrepista no incentivo a práticas de seleção e assimilação de imigrantes como forma de anular o perigo que a elite tradicional paulista passava a identificar na massa de estrangeiros. Procurei ver sua atuação no quadro geral de atualização da política americanista do PRP no contexto do primeiro pós guerra. Nos anos 20, o PRP além de continuar se apresentando como o defensor dos princípios liberais federativos e incentivador do progresso material, agora representado por um novo territorialismo motorizado, passava a se apresentar cada vez mais como defensor da ordem, à medida que se acirravam as contestações ao status quo republicano por ele representado. Neste contexto de crise de hegemonia, juntamente ao acirramento da repressão aos trabalhadores e grupos dissidentes, o grupo no poder lançou mão de expedientes simbólicos para legitimar sua dominação. Mais do que nunca, fazia-se necessário reafirmar o “destino manifesto” paulista, a missão histórica de conduzir ao restante da nação o progresso material e a modernidade liberal. Para tanto, a intelectualidade vinculada ao perrepismo se empenhou na efetivação de uma política de culto ao passado paulista.

8.2. O grupo do Correio Paulistano: Culto ao Passado Paulista como projeto cultural perrepista. São Paulo”, escreve: “Aos maus brasileiros, aos vesgos (...) parece que a prosperidade e a grandeza paulistas se deve a duas causas principais: a) a proteção deferida a SP por parte da União(...) b) a corrente imigratória estrangeira, principalmente a italiana.” Mais adiante concluía: “Quando os imigrantes em massa aqui aportaram, já encontraram um aparelhamento completo, tendo só lhes demandado um auxílio para a impulsionar com o vigor que a libertação do negro, suprimira da nossa lavoura. Mas quem montou a máquina e a fez inicialmente funcionar foi o paulista.”(grifo meu) In ELLIS JR. A. Op. Cit., 1933; p. 177.

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A proposta apresentada em 1927 pelo deputado perrepista Alfredo Ellis Jr. de instituir o estudo da história paulista no ensino secundário estadual, pode ser considerada como um dos últimos elos de uma corrente de iniciativas que compunham o que os próprios contemporâneos chamavam de “culto ao passado”. Configurou-se, de 1915 a 1930, uma política pública de culto ao passado paulista, que procuro compreender como um projeto cultural perrepista, seguindo para tanto o questionamento de Tânia de Luca sobre a existência de projetos culturais na São Paulo dos anos 20655. Esta autora identifica ao lado do projeto modernista, reconhecido e bastante estudado pela literatura especializada, a existência de um segundo projeto articulado em torno de Monteiro Lobato e da Revista do Brasil, baseado na divulgação, para todo o país, de uma literatura de tintura regionalista, calcada no tratamento da temática sertaneja sob um viés romântico e no elogio da figura do caboclo paulista e de seu suposto dialeto original. Por divergir dos cânones estéticos do modernismo, os regionalistas próximos a Lobato foram desqualificados pela crítica literária posterior, sendo relegados ao esquecimento656. O que proponho é que junto a estes dois projetos – o modernista e o dos regionalistas próximos a Lobato – seja considerada a existência de um terceiro projeto, aqui denominado de “culto ao passado paulista” que, se possuía suas especificidades, não deixava de confluir com os outros dois projetos em diversos pontos657. Quanto às especificidades do “culto ao passado”, elas foram dadas por dois elementos principais: pelo seu forte caráter oficial, marcado pela vinculação dos intelectuais participantes ao grupo perrepista no poder; e pela centralidade conferida ao

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Ver QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. “O mito bandeirante. Vicissitudes de um Imaginário.” LUCA, Tânia. Op. Cit., 1996, Cap. V. 656 Para Tânia de Luca, o projeto articulado em torno de Lobato conferia papel central à difusão de uma certa visão do papel de São Paulo no conjunto da nação. Caudatários do intenso nacionalismo do primeiro pósguerra, procuravam contestar a centralidade cultural do Rio de Janeiro e apresentar São Paulo como pólo de produção de uma nova literatura, marcada pelos valores da autenticidade nacional e em franca oposição à uma literatura identificada como cosmopolita, estrangeirada e imitativa, característica da capital federal. Assim, “São Paulo, que já fornecera à Nação o café, as indústrias, um passado glorioso, uma raça de bravos, um território de dimensões continentais, desejava brindá-lo com uma língua e uma arte própria, coroando assim os esforços de enfim dotar o Brasil de sentido e continuidade histórica (...)”. Idem, Ibidem, p. 290. 657 Ao tratar dos projetos dos regionalistas de Lobato e dos modernistas, Tânia de Luca ressalta que entre ambos “observam-se confluências e oposições”, sendo impossível traçar uma nítida linha demarcatória. Considero que o mesmo pode ser considerado quanto à relação entre o projeto oficialista de culto ao passado 655

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passado regional e à história na elaboração e difusão de uma imagem radiante e ufanista da paulistanidade. Mais especificamente, o culto ao passado paulista representou a difusão, para um amplo público e mediante as mais diversas formas e linguagens (não somente historiografia, mas também literatura, pintura, escultura e mesmo arquitetura), da visão republicana do passado de São Paulo, conforme elaborada desde finais do séc. XIX no interior do IHGSP e a ele quase restrito. Diferente tanto dos modernistas quanto dos regionalistas lobatianos, que tinham na literatura o principal veículo de sua atuação, o projeto cultural oficial privilegiou a história e a referência ao passado regional, sem, contudo, deixar de lançar mão da literatura como veículo de difusão daquela visão do passado. Os principais agentes deste culto ao passado foram aqueles intelectuais chamados por Sérgio Miceli de “estado maior do comando perrepista”658: literatos, ensaístas e também historiadores, congregados em torno do jornal O Correio Paulistano e capitaneados por Washington Luís. Revelando a fusão entre os campos político e cultural, presidente paulista assumiu o papel de mecenas oficial do grupo e não deixou de se imiscuir pessoalmente na feitura e composição das diversas iniciativas, como atesta Ana Cláudia Brefe659. O grupo congregava figuras como os literatos Menotti del Picchia, Plínio Salgado, Cassiano Ricardo, eventualmente Guilherme de Almeida. Ensaístas como Cândido Motta Filho, Alarico Silveira e Genolino Amado; e os historiadores Afonso de Taunay e Alfredo Ellis Jr, para somente citar os personagens de maior destaque e que mais nos interessam diretamente660. paulista e os projetos modernista e regionalista, todos dotados de pontos de contatos que, no entanto, não anulam suas especificidades. LUCA, Tânia, Op. Cit; 1996, p. 303. 658 “O envolvimento dos intelectuais com os grupos dirigentes não se manifestava apenas em termos de adesão a alguma facção partidária. Tanto aqueles vinculados ao situacionismo perrepista como os identificados com as causas políticas dissidentes ou com a oposição democrática prestaram sua colaboração na administração pública estadual”. Entre os “intelectuais do PRP”, Miceli cita: Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Cândido Mota Filho, Plínio Salgado, Oswald de Andrade. MICELI, Sérgio. Op. Cit., p. 11 659 Ao estudar a atuação museológica de Afonso de Taunay, esta autora acabou realizando o estudo mais completo sobre a série de iniciativas que aqui chamo de “culto ao passado paulista”, ainda que este projeto vá além da atuação de Taunay, momento privilegiado pela autora. Ela mostra a intervenção direta de Washington Luís na elaboração da decoração do Museu Paulista. Ver BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Um lugar de memória para a Nação. O Museu Paulista reinventado por Afonso d’Escragnolle Taunay (1917-1945). Campinas: tese (doutorado), Dept. História , IFCH- Unicamp; 1999. Quanto à intervenção de Washington Luis, ver principalmente p.107, 110, 118. 660 Segundo citação de Cassiano Ricardo, o grupo do Correio ainda agregaria os seguintes intelectuais, de menor projeção: “Antônio Carlos da Fonseca, e mais Agenor Barbosa, Brasil Gerson, Fausto de Almeida Prado Camargo, Francisco Pati, Genolino Amado, Hélio Silva, Hermes Lima, Alcides Cunha, João Riamundo

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A formação do grupo se deu entre 1917 e 1923. Em 1917, Taunay ao mesmo tempo em que começou a publicar artigos históricos no Correio Paulistano passou a coordenar a reforma do Museu Paulista; em 1919 Cândido Motta Filho começou a colaborar no Correio Paulistano; em 1920, ao passo que Alarico Silveira tornou-se Secretário do Interior do governo de Washington Luís, responsabilizando-se por todas as iniciativas oficias na área de cultura e educação, Menotti del Picchia assumiu o cargo de redator político do órgão perrepista; em 1921 Plínio Salgado também passou a trabalhar no Correio; e, por fim, em 1923, Cassiano Ricardo e Alfredo Ellis Jr. (este por intermédio de Taunay) foram incorporados à equipe do jornal. Além de ser o lugar de sociabilização da intelectualidade perrepista, a redação do Correio Paulistano acabou se tornando o principal foco de produção da historiografia sobre o bandeirante nos anos 20, substituindo o IHGSP em um momento em que esta instituição enfrentava forte crise interna que diminuía seu dinamismo661. A partir de finais dos anos 10, uma conjunção de fatores ajudam a compreender a emergência e o sentido desta política cultural perrepista. Pelo menos quatro deles se destacam: a ascensão política de Washington Luís, que criou um quadro de oportunidades que possibilitou bancar política e economicamente a difusão da visão republicana do passado paulista, a mesma que ajudou a construir no IHGSP; a onda nacionalista coincidente com a comemoração do Centenário da Independência em 1922, que criou uma predisposição coletiva à abordagem de temas ligados ao passado nacional; a necessidade de assimilar uma massa imigrante vista pela elite paulista como triplamente ameaçadora aos valores culturais nacionais, à ordem pública, e ao prestígio social da elite tradicional e, por fim, o acirramento da luta política e conseqüente crise de hegemonia da elite política paulista, que levou ao investimento em expedientes simbólicos que legitimassem o poder contestado desta elite. Como já tratei no tópico anterior a questão do uso do passado regional para a assimilação do imigrante, passo a enfocar os demais aspectos.

Ribeiro, José Lannes, Vitor Azevedo, Nóbrega da Siqueira, Oswaldo Costa” Apud MICELI, Sérgio, Op. Cit., 1979, p. 12, nota 17. 661 Apartir dos anos 10, o IHGSP passaria por um dos vários momentos de dificuldade político-financeira que pontuam sua trajetória. Segundo FERREIRA, Antônio Celso, Op. Cit., 1998, p. 73; de 1913 a 1927 os subsídios públicos ao Instituto paulista foram suspensos, precipitando-o numa crise retratada em carta de Capistrano de Abreu a Afonso de Taunay, datada de 1917: “Disseram-me que o Instituto [Histórico e Geográfico de São Paulo] anda em pasmaceira. A Revista não sai por que não há dinheiro? Mas se o Diário

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Assim, inicialmente, a prática de investimento no culto cívico da história paulista esteve ligada às oportunidades criadas pela ascensão política de Washington Luís, iniciada com sua indicação para a prefeitura da capital paulista. Tratava-se de um momento ainda marcado por relativa tranqüilidade política, resultado da inconteste predominância perrepista. Em 1914, mal assumiu o cargo e se viu dotado de recursos, o novo prefeito deu inicio às iniciativas de culto ao passado paulista, financiando a publicação do maior corpus documental referente à história da cidade. Washington Luis mandou publicar as Atas da câmara da vila de São Paulo, desde os primeiros volumes no séc. XVI, dando início à maior iniciativa de divulgação documental da história republicana paulista662. Ela seria continuada com a publicação, também por incentivo governamental, da série de Inventários e Testamentos seiscentistas, uma documentação que ameaçava se perder pela incúria e dificuldade de leitura dos originais coloniais. Esta série de documentos teve um impacto incalculável na produção historiográfica do início do século, na medida em que possibilitou a renovação dos estudos sobre o bandeirismo, ocorrida nos anos 1920. As obras de Afonso de Taunay, Alfredo Ellis Jr., José de Alcântara Machado e Paulo Prado somente foram escritas por que houve esta aporte documental original e, excetuando-se este último, todos os autores citados (não por acaso vinculados ao perrepismo) foram pródigos em elogios à iniciativa de Washington Luís. Além de uma vigorosa política de publicação documental, Washington Luís também se esmerou na criação da simbologia que faltava ao seu culto cívico da paulistanidade. Como primeiro passo, em 1915, ainda prefeito, instituiu um concurso para a criação do brasão da cidade de São Paulo. Após muitas idas e vindas, dissoluções e recriações de comissões, em 1917 foi escolhido o brasão oficial da cidade, sendo aclamado vencedor o projeto do poeta Guilherme de Almeida e do pintor José Washt Rodrigues 663. O lema que ostentava sintetizava o sentido da visão republicana da história paulista: “Non Ducor, Duco”, em bom português: “Não sou conduzido, conduzo”. Ficava patente, neste mote, a mensagem subjacente às iniciativas da política de culto ao passado paulista, ou seja, a idéia de que São Paulo seria o líder inconteste na construção nacional, fosse no

Oficial a imprime! Ouvi dizer que o principal estorvo provém de brigas da politicagem provinda da disputa do penacho. Dizem-me que fervem.”In RODRIGUES, José Honório. Op. Cit., 1954; p. 280. 662 DEBES, Célio. “Washington Luís historiador” In RIHGSP, 1990, vol. LXXXV. p. 29.

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presente de hegemonia dos cafeicultores perrepistas, fosse no passado bandeirante. O “Non Ducor, Duco” era a transposição para a heráldica da idéia de São Paulo locomotiva da nação. Mas estas iniciativas, até então esporádicas, passariam a se articular num conjunto coerente de medidas a partir de meados de 1916, quando começaram a ser programadas as comemorações do Centenário da Independência, a serem realizadas em 1922. Apesar do centro das comemorações previstas estar no Rio de Janeiro - inclusive com intensa intervenção remodeladora do traçado urbano, com o arrazamento do Morro do Castelo e criação de uma exposição nacional, como bem mostra Marly Silva da Motta664 - a elite perrepista não perdeu a oportunidade de enaltecer seu poder pela difusão, para todo o país, do imaginário da paulistanidade. Para tanto, programaram uma série de eventos espetaculares665, envolvendo intervenções na capital do estado, em Santos e no interior paulista. Visando a sua execução, o prefeito Washington Luís, em acordo com o presidente de São Paulo, Altino Arantes, conseguiu articular a substituição da chefia do Museu Paulista, entregando-a a Afonso de Taunay666. Localizado na histórica colina do Ipiranga, considerado tradicionalmente como lugar onde foi proclamada a independência, este museu foi o espaço escolhido para concentrar as principais iniciativas. Até 1915 sob direção do naturalista alemão Herman Von Ihering, que lhe imprimiu o caráter de museu de ciências naturais, a partir de 1917 o Museu Paulista passaria ao comando do estudioso da história paulista Afonso de Taunay, que o transformaria em um museu histórico667. Como vimos, desde 1913 Taunay vinha se destacando no interior do IHGSP como um dos sócios mais empenhados na reabilitação de Frei Gaspar e Pedro Taques, os “pais fundadores” da historiografia laudatória de São Paulo, em franca continuidade, aliás, com o

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Sobre a conturbada escolha do brasão paulistano, ver DEBES, Célio. “Non Ducor, Duco: História de um brasão de armas”In RIHGSP, 1991; vol. LXXXVI. 664 Sobre as festas de comemoração do centenário da Independência, principalmente no Rio de Janeiro, ver, MOTTA, Marly Silva da. A Nação faz cem anos. A questão nacional no centenário da independência. Rio de Janeiro: Ed. FGV- CPDOC; 1992. 665 O caráter espetacular das comemorações do Centenário, foram ressaltadas por FERREIRA, Antônio Celso, Op. Cot. 1998, p. 215. 666 Sobre o processo de escolha de Taunay para dirigir o Museu Paulista, e a intervenção direta de Washington Luís, ver BREFE, Ana Claudia, Op. Cit., 1999, p. 79 e principalmente ARAÚJO, Karina Anhesini. Op. Cit., 2003; p. 88 a 90. 667 Sobre o Museu Paulista na gestão Von Ihering ver ALVES, Maria Cristina de Alencar. O Ipiranga apropriado. Ciência, Política e Poder. O Museu Paulista 1893-1922. São Paulo: Humanitas/ FFLCHUSP; 2001. Sobre sua classificação como museu enciclopédico, ver BREFE, Ana Claudia, Op. Cit., 1999.

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empenho do então historiador Washington Luís, que em 1903 restabelecera a autoridade de Frei Gaspar pelo achado da cópia do testamento de João Ramalho. Em torno do mútuo interesse pelo passado paulista firmava-se uma aliança entre Washington Luís e Afonso de Taunay que somente tenderia a se solidificar com o passar do tempo. No ano de 1913, em carta de 1º de julho, Taunay confidenciava ao presidente do IHGB, seu amigo Max Fleiuss: “O Washington fez um ótimo discurso sobre Feijó. Carece cultivar sua boa vontade; é um bom e dedicado amigo e está muito indigitado para prefeito de S. Paulo. Com ele é muito possível arranjarmos uns subsídios. Mando-te os exemplares do seu trabalho.”668 Além de externar a sua proximidade com o “amigo” Washington Luís, Taunay previa vantagens futuras decorrentes de sua ascenção política. O que Taunay não poderia prever era a definitiva virada em sua vida que esta proximidade com o líder perrepista proporcionaria, colocando-o na coordenação das principais iniciativas do programa de culto ao passado e, assim, reconciliando-o com uma velha tradição familiar de atuação na legitimação simbólica do poder vigente. Criado no Rio de Janeiro dos últimos anos do Império669, Afonso de Taunay passou a infância e a juventude no convívio da elite conservadora imperial. A marca conservadora estava presente tanto no lado materno – era neto dos barões de Vassouras, com família radicada no vale do Paraíba fluminense, principal base regional da elite imperial saquarema – quanto no lado paterno, representado por seu pai, o Visconde Alfredo d’Escragnole Taunay, expoente da intelectualidade ligada à ala modernizadora do partido conservador e último representante de uma dinastia voltada à legitimação simbólica da monarquia bragantina. De fato, desde a vinda dos primeiros Taunay na missão artística de 1816, a família se destacou em produzir uma cultura a serviço do poder monárquico. Assim, o bisavô de Afonso de Taunay, o escultor Augusto Maria Taunay, veio elaborar o aparato simbólico que fazia falta ao reinado de D. João VI; seu avô, o pintor Felix Emílio Taunay, não

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Arquivo do IHGB, Cartas de Afonso de Taunay ao Dr. Max Fleiuss sobre assuntos familiares. L. 474 P.

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Afonso d’Escragnole Taunay, nasceu em 1876 em Desterro, Santa Catarina, quando seu pai exercia o cargo de presidente de província. Logo cedo mudou-se para o Rio de Janeiro onde passou a infância e a adolescência. Para os traços biográficos de Taunay ver ELLIS, Myriam. & HORSCH, Rosemarie Erika.

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somente foi diretor da prestigiosa Academia Imperial de Belas Arte670, um dos bastiões da cultura monárquica, como foi preceptor do imperador Dom Pedro II, que sempre dele se lembrava com carinho. Por fim, seu pai Alfredo de Taunay, feito visconde por D. Pedro II, além de se destacar no elogio do exército brasileiro na guerra do Paraguai (foi autor do épico A Retirada da Laguna, de 1871), sempre defendeu o sistema monárquico num período de intensa agitação republicana e reformadora, permanecendo muito próximo e fiel à família imperial, mesmo depois da proclamação do regime republicano, ao qual combateu ao lado dos restauracionistas671. O que marcava a tradição familiar dos Taunay não era somente a intensa atividade intelectual mas também a proximidade com o poder monárquico, a quem serviram com fidelidade de áulicos. Evidentemente, o advento do regime republicano veio interromper esta tradição de destaque intelectual e proximidade com o poder, dificultando a colocação social de Afonso de Taunay, então adolescente.672 Mas, paulatinamente, e mantendo um apoliticismo estratégico, que lhe permitia manter relações tanto com os antigos grupos monárquicos e católicos (revelado pela suas relações com os padres de São Bento, onde era professor desde 1903) quanto com a nova elite republicana, Taunay conseguiria se inserir no meio paulista, para onde fora chamado em 1899 por seu tio, lente da Escola Politécnica de São Paulo, onde passou a lecionar química em 1904. Se a admissão aos Institutos Históricos brasileiro e paulista – respectivamente em 1911 e 1912 - foi um passo fundamental no sentido de reatar com a tradição familiar que tanto cultivava, a grande mudança foi possibilitada pelo convite feito por Washington Luís para assumir a reformulação do Afonso d’Escragnole Taunay no centenário do seu nascimento. São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia; 1977. E também ARAÚJO, Karina Anhesini. Op. Cit, 2003. 670 O papel central que os artistas da missão francesa desempenharam na legitimação simbólica do reinado de D. João VI foi discutido em SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador.São Paulo:Cia. das Letras; 1999. 671 O aferrado monarquismo do visconde de Taunay manifestou-se em pelo menos dois episódios ocorridos após a proclamação da República. O primeiro, mais significativo, ocorreu em 1891, quando o Visconde de Taunay se desligou do quadro do IHGB por esta instituição ter eleito para o cargo de presidente honorário o então presidente da república, Marechal Deodoro da Fonseca. Afonso de Taunay tomou o ato como uma verdadeira traição ao secular compromisso do Instituto com a figura de D. Pedro II. O segundo, corresponde à publicação, em 1894, do romance O encilhamento, verdadeiro libelo antirepublicano, que traça críticas ao espírito argentário e à política econômica do novo regime. 672 As dificuldades provocadas pela República foram explicitadas em carta escrita em 1896 pelo visconde de Taunay a seu filho Afonso: “(...) precisas estudar bem e te encarreirares convenientemente, porquanto cada qual hoje sobretudo e no estado atual das coisas, só deve contar consigo só. No tempo do Império, a ma. [sic] posição e importância te facilitariam tudo; agora tudo aquilo se evaporou, foi-se; só resta o que conseguirá o teu esforço próprio.”Apud ELLIS, Myriam & HORCH, Rosemarie E. Op. Cit; 1976, p. 15.

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Museu Paulista, o que conferiu a Afonso de Taunay um lugar estratégico na elaboração do programa voltado à legitimação simbólica do poder republicano paulista. No entanto, é importante considerar que Taunay não era rigorosamente um perrepista, não tendo nunca mantido qualquer forma de vínculo formal com o partido (ao contrário dos outros historiadores Alfredo Ellis Jr. e José de Alcântara Machado, que exerceram mandatos políticos), servindo ao programa cultural deste grupo na medida em que este era compatível com o seu projeto cultural pessoal. Desta forma, a sua indicação como diretor do Museu Paulista tinha um sentido estratégico, na medida em que visava colocar num posto institucional de destaque não somente uma figura de livre trânsito no ambiente historiográfico do Rio de Janeiro mas também o mais promissor membro do então combalido IHGSP. Uma vez que, a partir do início dos anos 1910 e durante toda a década de 1920, o Instituto se apresentava como um campo limitado de ação, o Museu Paulista deveria se transformar em um verdadeiro polo de criação e difusão do imaginário laudatório da paulistanidade, concentrando, juntamente com a redação do Correio Paulistano, as principais iniciativas de comemoração do Centenário da Independência em São Paulo. Um dos principais aspectos da reformulação preconizada pelo novo diretor foi a tentativa de transformar o Museu Paulista em um centro de conservação de documentos e produção historiográfica sobre o passado paulista, substituindo o estagnado IHGSP. Tratava-se, é claro, de um centro de pesquisa peculiar na medida em que restringia-se a um único pesquisador: o próprio diretor Afonso de Taunay. Dotado da boa vontade do governo e de recursos generosos, o diretor se empenhou no aparelhamento da biblioteca e no levantamento e cópia de “diversos documentos referentes às diversas fases da vida paulista, num período que vai de 1550 a 1822”, segundo informava em relatório ao secretário do interior, Alarico Silveira673. Para isso enviou dois pesquisadores que vasculharam arquivos nacionais e estrangeiros, tendo copiado farto material inédito nos arquivos de Simancas e Arquivo das Índias na Espanha, na Biblioteca Nacional de Lisboa, além do Arquivo dos Estado Maior das Forças Armadas e Biblioteca Nacional, ambos no Rio de Janeiro. Complementava, assim, o investimento documental iniciado pelo prefeito Washington Luís. 673

TAUNAY, Afonso. Relatório de Atividades-1917, Apud BREFE, Ana Cláudia. Op. Cit.,1999, p. 80.

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Para divulgar a farta produção historiográfica resultante deste aporte documental inédito, o diretor passou a contar com uma publicação quase que pessoal, os Anais do Museu Paulista, publicados mediante o generoso financiamento do governo perrepista paulista. Vale apontar que a publicação de obras historiográficas sobre São Paulo transformou-se, de forma inédita, em um assunto de Estado nos anos 20. Evidenciando o uso político do passado, vários livros de Taunay foram publicados a expensas do erário público, como atesta eloqüente discurso em defesa do financiamento da impressão da sua História Geral das Bandeiras Paulistas, proferido em 1926 na Assembléia estadual pelo deputado perrepista Alfredo Ellis Jr.674 Mas no trabalho de transformação do Museu Paulista em cenário para as comemorações do Centenário, o destaque ficou para a criação de uma farta iconografia paulista e bandeirante. Talvez mais do que no terreno da produção historiográfica propriamente dita, Taunay se destacou entre seus pares no empenho em transformar em imagens os episódios do passado regional até então quase restrito à representação escrita. Para surtir o efeito pedagógico esperado, o culto ao passado foi pródigo no uso da iconografia, o que levou o diretor do museu a contatar e intervir diretamente no trabalho de um sem número de pintores e escultores como os paulistas Benedito Calixto, José Washt Rodrigues, Oscar Pereira da Silva, Domenico Failutti; os pintores da Escola Nacional de Belas Artes, Rodolfo Amoêdo, Fernandes Machado e os irmãos Bernardelli; ou ainda os escultores italianos Brizzolara, Rollo, Zanni e o sueco Van Emelen675. Todos foram mobilizados para realizar, sob restrita orientação de Taunay (e às vezes do próprio Washington Luís), a decoração interna do renovado Museu Paulista. Em

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Da tribuna, Ellis Jr. propunha: “(...) um auxílio, dado pelo Estado, para a continuação da publicação da grande obra de patriotismo que, já em quadriênio anterior, encetou o dr. Afonso d’Escragnole Taunay, qual seja a ‘História Geral das bandeiras Paulistas’.(...) O esforço que a gente de origem puramente paulista tem de despender para a naturalização dessa massa enorme de imigrantes exóticos, é naturalmente formidável (...) e os elementos que São Paulo dispõe, no momento, para esse fim são a educação largamente difundida e o culto à tradição, ao passado, para a conservação da nossa língua, dos nossos costumes, de tudo, efim (...) No quadriênio passado, o sr. Washington Luís, perseverando na sua obra de benemerência, depois da publicação dos arquivos paulistas e inúmeras obras referentes à nossa história, auxiliou eficazmente a Afonso de Taunay, na publicação dos dois primeiros volumes dessa obra, que estuda os fastos do bandeirismo até o ano de 1640. Depois desse trabalho, faz-se necessário outro pequeno esforço do Estado, para que o ilustre escritor continue a sua obra, que acredito, com o auxílio proposto, possa estudar a grande epopéia até 1700, isto é, até o início da época do ouro” (grifo meu). A proposta imediatamente foi contemplada, sendo concedidos 10 contos de réis a Taunay. SÃO PAULO. Anais da Assembléia Legislativa. Ano 1926, p. 396.

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seu valioso estudo, Ana Claudia Fonseca Brefe analisou a atuação museológica de Taunay, apontando para a variedade de iniciativas artísticas compreendidas no programa maior de transformação da colina do Ipiranga em um lugar de memória da nação676. E a visão de nação que aí exprimiram era exatamente a visão do “destino manifesto paulista”, elaborada no interior do IHGSP, que preconizava o pioneirismo e liderança de São Paulo no processo de construção da nacionalidade brasileira por meio da definição e ocupação do território e da conquista da liberdade. A despeito de se comemorar a independência, ao projetar a decoração interna do museu, Taunay conferiu destaque à figura do Bandeirante, que chegou até mesmo a ocultar vultos importantes da história, tradicionalmente identificados com a emancipação, como era o caso de Tiradentes, relegado a um lugar ainda de destaque mas secundário. Aos bandeirantes foram dedicadas duas estátuas de mármore colocadas no saguão de entrada, cada uma com mais de quatro metros de altura, representando Raposo Tavares e Fernão Dias Paes Leme, além de diversos quadros e oito estátuas menores de bronze, colocadas nos nichos da escadaria central, representando os sertanistas paulistas conquistadores dos estados de Mato Grosso (Pascoal Moreira Cabral), Minas Gerais (Manoel da Borba Gato), Goiás (Anhanguera), Paraná (Manoel Preto) Santa Catarina (Francisco Domingos Velho), e Rio Grande do Sul (Francisco de Brito Peixoto)677. Sob a coordenação de Taunay e a sustentação política e financeira de Washington Luís, o Ipiranga, de cenário da independência foi transformado em verdadeira catedral bandeirante, um templo para o culto cívico da paulistanidade. Sua inauguração no dia 7 de setembro de 1922, em meio a uma aparatosa comemoração (parcialmente frustrada por forte aguaceiro), contou com a anuência, neste único dia, de 20.000 pessoas, sob uma média anual de 70.000678. Diante desta “enchente colossal” de visitantes, o secretário do

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BREFE, Ana Cláudia, Op. Cit.,1999, p. 103. e SECRETARIA DO INTERIOR do Estado de São Paulo, Relatório de 1922. p.41. 676 BREFE, Ana Cláudia Fonseca. Op. Cit., 1999. 677 Idem, Ibidem, p. 120. 678 Apesar de fonte oficial, o relatório de Alarico Silveira, secretário do interior em 1922, assim se exprimia sobre a quantidade de visitantes ao Museu Paulista reestruturado: “Os trabalhos da Avenida Independência e depois os serviços de reparação do edifício, fizeram com que se mantivesse fechado o Museu durante 22 meses, para reabrir-se a 7 de setembro. Neste dia a freqüência de visitantes foi imensa. (...) De tal modo ficaram as salas, galerias e vestíbulos apinhados, que a multidão não sabia mais como avançar ou recuar. (...) Às quatro e meia da tarde retirou-se a custo a enorme multidão. Depois do 7 de setembro houve sucessivas enchentes colossais, como jamais se havia visto no Museu. E com desvanecimento vê o governo

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interior, Alarico Silveira, considerava plenamente justificados os 259 contos de réis até então investidos pelo governo na decoração679. Mas as iniciativas coordenadas por Taunay não ficaram restritas ao já imponente Museu do Ipiranga, uma vez que também se espraiaram para outros pontos do estado, como foi o caso da criação, em 1923, na tradicional cidade interiorana de Itu, do “Museu Convenção de Itu”. Se o Museu do Ipiranga lembrava, em sua decoração, a marcha ascendente da história brasileira pela atuação decisiva dos paulistas no início da colonização (reverenciada nas pinturas do cacique Tibiriçá e de João Ramalho, logo no saguão de entrada), na constituição do Território (representado pelas onipresentes representações pictóricas e estatuárias do bandeirante) e na independência nacional; o Museu Convenção de Itu, complementando a lógica vigente na organização do Museu Paulista, visava celebrar o ápice da história paulista e brasileira representado pela surgimento do movimento republicano em São Paulo. Não por acaso, a política pública de culto ao passado colocava como ápice da história, não somente paulista mas nacional, o evento que marcou a criação do PRP: a “Convenção de Itu”. O sentido político desta prática de memória tornava-se explícito. Era necessário cultuar e relembrar os marcos históricos identificados com a trajetória do grupo perrepista no poder. Ainda no interior paulista, no ano de 1920, junto ao secretário da agricultura Cândido Mota, Taunay participou da construção em Porto Feliz - cidade de onde saíam as monções setecentistas em direção a Cuiabá - do conjunto de monumentos conhecidos como “porto das monções”. Às margens do Tietê, no lugar de onde tradicionalmente zarpavam os canoões, foram construídos uma rampa de acesso ao rio, uma “coluna rostral” comemorativa e um abrigo que guardava um autêntico canoão monçoeiro ainda existente680. Apelando para a importância do “culto da tradição” como “força de coesão social destinada a consolidar a consciência da nacionalidade”, em 1926 o deputado pelo pago dos trabalhos de remodelação do Instituto e organização de novas seções com apreço, este aplauso trazido pelo público.” In SECRETÁRIA DO INTERIOR, Op. Cit. p. 50. 679 Idem, Ibidem, p. 41. 680 O dia de inauguração do conjunto monumental coincidiu com a chegada do ramal portofelicense da estada de ferro, o que deu ensejo a que Taunay pronunciasse o discurso “Glória às monções”, onde estabelecia um nexo de continuidade entre as expedições paulistas de abertura de caminhos nos séc. XVII e XVIII e a política ferroviária dos modernos paulistas. O texto é um verdadeiro panegírico às “administrações paulistas” revelando, mais uma vez, o empenho de Taunay em legitimar simbolicamente as políticas territoriais do grupo perrepista mediante o uso político da figura do bandeirante. Ver TAUNAY, Afonso. À Glória das Monções. São Paulo: Casa Editora O livro; 1920.

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PRP Menotti del Picchia conseguia da assembléia estadual a concessão de dez contos de réis anuais para a manutenção do monumento681. Além de auxiliar na construção do monumento, a intelectualidade perrepista zelava pela sua preservação. Dando prosseguimento às iniciativas para a comemoração do Centenário, na ligação entre o planalto paulista e o litoral, o governo de Washington Luís financiou a edificação da série de cinco construções de forte apelo memorialista: os Monumentos da Serra do Mar. Se no Museu Paulista o culto cívico da paulistanidade tinha sua catedral, na série dos Monumentos da Serra do Mar ele tinha o seu Sacro Monte682. Da mesma forma como os Sacro Montes contavam em cada capela a história da Paixão de Cristo, cada um dos cinco monumentos dispostos ao longo da estrada que transpunha a Serra do Mar narravam os passos da evolução histórica de São Paulo. Desta forma, representado pelo primeiro monumento (o “Cruzeiro quinhentista” plantado na raiz da serra), tínhamos, nas origens, Anchieta e as grandes navegações abrindo o caminho entre o Velho e o Novo Mundo; depois eram comemorados a colônia e o tropeirismo, representados pela primeira pavimentação do Caminho do Mar por ordem do Governador Lorena (representada no segundo monumento: um pontilhão contendo os marcos de pedra fixados em 1790 por aquele governador); no terceiro monumento (o “Rancho da Maioridade”), comemorava-se o Império, com as obras viárias de Almeida Torres; e, por fim, o auge do processo, identificado com a República e a introdução do trem e do automóvel (representados pelo quarto monumento: o “Rancho de Paranapiacaba”).

681

ANAIS da Assembléia Legislativa de São Paulo, 1926, p. 978. Os Sacro Montes foram uma forma de organização do espaço religioso característica do período barroco que se pautava pela construção, no flanco de uma elevação, de uma série de capelas dispostas ao longo de uma via ascendente que culminavam numa grande igreja contruída no ponto mais elevado. Tratava-se da transposição arquitetônica da via crucis; cada capela representando um passo da paixão e todo o conjunto a cidade sagrada de Jerusalém. Os Sacro Montes proliferaram do séc. XVI ao XVIII na Europa católica sob o influxo da contra reforma. Também em Portugal e no Brasil colonial foram construídos Sacro Montes, como atestam os santuários de Bom Jesus do Monte, próximo a Braga e de Bom Jesus do Matosinhos em Congonhas do Campo, Minas Gerais. Ver. SANT´ANNA, Afonso Romano de. Barroco, do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco; 2000. p. 61 a 64. A aplicação desta forma de organizar o espaço em um conjunto do séc. XX se explica pelo revival arquitetônico ocorrido em São Paulo nos anos 20 conhecido como “estilo néo-colonial”. Toda a série de Monumentos da Serra do Mar foi concebida pelo arquiteto Victor Dubugras neste estilo néo-colonial que, de forma um tanto simplificada, pode ser considerado o efeito, no campo da arquitetura, das propostas de criar uma arte nacional brasileira decorrente da vaga nacionalista do primeiro pós-guerra. 682

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Autores como Antônio Celso Ferreira e Ana Cláudia Brefe já analisaram os monumentos da Serra do Mar683, mas não ressaltaram o aspecto de legitimação da política de estradas de rodagem que ele assumia. Na realidade, a própria série de monumentos servia para realçar uma das principais iniciativas desta política: a rodovia São PauloSantos, a primeira totalmente pavimentada do país, às margens da qual foram construídos. Observando a descrição das construções feita pelo político perrepista Júlio Prestes, proferido por ocasião da inauguração dos monumentos684, nota-se que a história cultuada nestas construções era dotada de um caráter peculiar: tratava-se da história da viação de São Paulo. Os monumentos não somente representavam a evolução linear e ascensional do progresso paulista como também evidenciavam a estreita correlação entre este progresso e a implantação de uma vigorosa política de construção de estradas. Não consta que Afonso de Taunay tenha participado diretamente da elaboração dos Monumentos da Serra do Mar, mas seguramente ele auxiliou o processo mais amplo de legitimação simbólica do novo territorialismo motorizado do qual os monumentos faziam parte. Pois os diversos acidentes fatais e os custos financeiros altíssimos exigidos para a implantação da infra-estrutura automobilística, revelados pela pesquisa de Marco Antônio Cornacioni Sávio685, levaram o governo perrepista a articular, desde 1917, uma vigorosa política de propaganda, voltada a conquistar a opinião pública para o rodoviarismo. Com este fim, foi criada a Associação Permanente das Boas Estradas que na década de 20 publicou a revista Boas Estradas686, principal veículo de propaganda semi-coficial do rodoviarismo. Em 1917, já articulado ao grupo no poder, Taunay participou da propaganda do rodoviarismo escrevendo artigos elogiosos sobre o Primeiro Congresso das Estradas de Rodagem, publicados no periódico Revista das Revistas687. Em 1920 participou, juntamente a Washington Luís e outros membros do Automóvel Clube, da comitiva oficial 683

FERREIRA, Antônio Celso, Op. Cit. 1998, p.226 a 229 e BREFE, Ana Cláudia F. Op. Cit. p. 141 a 146. “A passagem do 1O Centenário da Independência do Brasil em São Paulo” In RIHGSP, vol XXII, 1923. 685 SAVIO, Marco Antônio Cornaccioni. A modernidade sobre rodas. Tecnologia automotiva, cultura e sociedade. São Paulo: educ, Fapesp; 2003. Principalmente o capítulo “A luta pelo espaço”. 686 Sobre a propaganda rodoviária e a relação com o culto à figura do bandeirante, me baseei no trabalho pioneiro de REIS FILHO, Nestor Goulart. “Cultura e estratégias de desenvolvimento”in COSTA, Wilma Peres & DE LORENZO, Helena Carvalho (org.). Op. Cit. 1997. 687 Ver TAUNAY, Afonso, “O 1 º congresso paulista de estradas de rodagem”, série de sete artigos de sua autoria, publicados no caderno de recortes de n º VIII, referente ao ano de 1917, presente no acervo do Arquivo do Museu Paulista (AMP). 684

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que percorreu de automóvel a estrada do Perequê, inspecionando a rodovia dos monumentos da Serra do Mar, então em construção. Taunay relataria estes passeios automobilísticos em artigos publicados originalmente no Correio Paulistano e transpostos para a revista Boas Estradas688. Neste último periódico, aliás, o símbolo bandeirante teve lugar de destaque, sendo mobilizado para legitimar o novo territorialismo rodoviário perrepista. O afã de abrir caminhos do paulista antigo era apresentado como sendo o mesmo espírito que impulsionava o moderno automobilista a rasgar estradas de rodagem sertão afora. Assim, nesta revista criou-se um “clube dos bandeirantes”, voltado a congregar adeptos da nova prática, da mesma forma que “bandeirante” foi o nome dado ao carro oficial de provas da revista. Esta associação entre a modernidade do automobilismo e o tradicionalismo do espírito bandeirante foi até mesmo mobilizada para fins políticos, dando origem àquela que pode ter sido a primeira carreata da história: a “Bandeira automobilística Washington Luís”. Tratava-se de uma grande comitiva de automóveis, composta por dezenas de representantes das mais diversas cidades paulistas que, em 1926, deveria acompanhar Washington Luís à sua posse como presidente da república na cidade do Rio de Janeiro. Caso um aguaceiro não tivesse frustrado o evento, o cerimonial de posse de Washington Luís teria sido consagrado por uma caravana de automóveis vindos de São Paulo que teriam “ocupado” a capital federal, inspirados no espírito de conquista bandeirante. A atuação de Taunay junto ao grupo perrepista não terminou em 1922, com a reabertura do Museu Paulista reformulado, mas se estendeu ao longo de toda a décadas de 20. Um dos meios de atuação foi a intensa colaboração com o Correio Paulistano onde, a partir de 1917, começou a publicar artigos voltados à história paulista, durante alguns períodos com freqüência quase semanal. Taunay também participou da série de conferências pronunciadas no Centro Paulista do Rio de Janeiro em 1926. Intituladas “São Paulo e seu progresso na atualidade” elas congregaram intelectuais paulistas de destaque e apresentavam uma valiosa síntese do discurso do discurso laudatório da paulistanidade, sendo amplamente elogiadas nas páginas do Correio Paulistano. Evidenciando a sua influência junto ao grupo deste periódico, Taunay ainda intermediou, em 1920, a publicação do primeiro texto do seu ex-aluno Sérgio Buarque de Holanda e, em 1923, a 688

Ver TAUNAY, Afonso. “Um fartão de paisagens” In Revista Boas Estradas, São Paulo, março de 1923.

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aceitação ao grupo de intelectuais perrepistas de Alfredo Ellis Jr., também ele seu ex-aluno no colégio São Bento689. Com a entrada de Ellis Jr. e Cassiano Ricardo no Correio Paulistano, estava consolidado o núcleo do grupo intelectual perrepista, formando o embrião daquilo que a partir de 1925 seria a ala verde-amarela do modernismo. Esta assumiria a dianteira nas iniciativas da intelectualidade perrepista, aliando embate estético por um modernismo ultranacionalista

à

defesa

do

situacionismo

político.

Normalmente

analisado

exclusivamente sob o ponto de vista literário, o grupo verde-amarelo é descrito como composto pela tríade Menotti, Plínio e Cassiano, além de Cândido Mota e eventualmente Ellis Jr.. Contudo, segundo artigo de Menotti del Picchia, também Afonso de Taunay, Alarico Silveira e Júlio Prestes eram considerados “membros honorários” e “correspondentes espirituais” da academia verde-amarela690. Assim, como atesta esta proximidade entre políticos perrepistas e intelectuais, a atividade literária do grupo verdeamarelo não estava desassociada da atividade política, conforme aponta análise de Mônica Pimenta Velloso691. Segundo esta autora, os verde-amarelos comungavam com a postura, difundida no primeiro pós-guerra, que desqualificava a ação refletida e racional, característica do cientificismo, em proveito de um irracionalismo que teria no mito o veículo privilegiado para se conhecer e prefigurar a realidade nacional. Ainda para estes autores, a literatura assumia o papel de agente de mobilização, uma vez que era entendida como a forma privilegiada de atingir o mito e a subjetividade692. Sem me aprofundar no tratamento da 689

A referência à intermediação de Taunay para a aceitação de Ellis Jr. no grupo do Correio está em ELLIS, Myriam. “Homenagem a Alfredo Ellis Jr. no centenário de seu nascimento.” In Notícia Bibliográfica e Histórica. Campinas, ano 28, n º 163, out./dez. 1996. Sobre a publicação no Correio Paulistano do primeiro texto de Sérgio Buarque de Holanda (intitulado “Literatura Nacional”), ver .HOLANDA, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra. Estudos de Crítica literária. Organização Antônio Arnoni Prado. São Paulo: Cia. das Letras. 1996. 690 Segundo Menotti: “Três membros honorários, por consagração unânime, tornaram-se correspondentes espirituais da Academia [verdeamarela]: Afonso de Taunay, Júlio Prestes e Alarico Silveira (...) Está a Academia com seis membros: Plínio [Salgado], Cassiano[Ricardo], [Cândido] Motta Filho, [Raul] Bopp Genolino [Amado] e eu”. Ver artigo de Menotti del Picchia intitulado “Coisas verdeamarelas”, Caderno de recortes de Taunay n º XXX, referente ao ano de 1926, no acervo do AMP. 691 Na análise do pensamento do grupo verde-amarelo, sigo a interpretação de VELLOSO, Mônica Pimenta. O Mito da originalidade brasileira; a trajetória intelectual de Cassiano Ricardo (dos anos 20 ao Estado Novo). Rio de Janeiro; dissertação (mestrado) departamento de filosofia, PUC-Rio; 1983. E, da mesma autora, “A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista” In Estudos Históricos, vol.6, n º 11, 1993. 692 Ver VELLOSO, Mônica Pimenta. Op. Cit. 1983, p. 28, 29.

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produção literária dos verde-amarelos, vale ressaltar a centralidade que Cassiano Ricardo conferiu à figura do bandeirante na elaboração de sua versão literária da epopéia nacional, presente no poema épico Martim Cererê, de 1928. Como já apontou Mônica Velloso, esta obra apresenta uma interpretação da formação da nacionalidade brasileira como tendo seu cerne em São Paulo693. De fato, a totalidade do livro se passa em São Paulo, entre as origens bandeirantes – os sete “gigantes de botas” – e o seu desdobramento histórico, representado pela moderna metrópole paulistana construída pela riqueza do café. Se a pretensão era interpretar a nacionalidade brasileira, depreende-se que para o autor a nação era São Paulo. Tratava-se, novamente, da transposição, desta vez para o terreno literário, da visão de nacionalidade acalentada originalmente no interior do IHGSP e transformada em discurso oficial nos anos 20. De forma clara também se fazia presente, sob uma forma poética, a centralidade da geografia e do tema da ocupação do sertão, característicos da tradição historiográfica territorialista (Capistrano, Teodoro Sampaio e Afonso de Taunay). O tema da “marcha para oeste”, que em 1940 seria usado por Cassiano Ricardo para legitimar o governo de Getúlio Vargas, já se encontrava prefigurado em forma literária no Martim Cererê, transformando este autor no elo entre os artífices da historiografia territorialista bandeirante, com quem convivera no ambiente do Correio Paulistano, e o pensamento geopolítico que legitimava o Estado Novo, regime do qual se tornou um dos principais ideólogos. Mas Cassiano Ricardo não foi o único dos verde-amarelos que, nos anos 30, se transformaria em um dos expoentes do pensamento antiliberal. Também Menotti del Picchia aderiu ao Estado Novo e Plínio Salgado se tornou o conhecido líder integralista. O antiliberalismo, na realidade, não foi o resultado de uma conversão tardia do grupo verde-amarelo, ele fazia parte do seu programa político-intelectual desde os anos 20, o que em certa medida os distanciava do liberalismo tradicionalmente vigente nas fileiras perrepistas. Curiosamente, o PRP, tradicional bastião do liberalismo paulista, acalentava, nos ano 20, o “ovo da serpente” do pensamento autoritário antiliberal dos anos 30. Ao mesmo tempo em que elaboravam sua obra intelectual e no momento em que a revolta de 24 tornava evidente a ameaçada ao poder perrepista, os verde-amarelos começaram a atuar politicamente. Mediante articulação do presidente do estado Carlos de 693

Idem, Ibidem, p. 107.

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Campos, Menotti del Picchia e Plínio Salgado (Cassiano Ricardo não aceitou o convite) foram eleitos deputados estaduais pelo PRP, assumindo seu mandato em 1925, juntamente a Alfredo Ellis Jr.. Em termos políticos, o grupo verde-amarelo, autodenominado “nova geração republicana” tinha uma postura um tanto original no interior do PRP, na medida em que propunham o abandono da ortodoxia política liberal e a adoção de uma maior intervenção estatal para resolver os conflitos sociais latentes694. A finalidade da atuação parlamentar do grupo era de legitimar o crescente endurecimento do regime e combater a bancada oposicionista do PD, que exigia a liberalização do regime. Ao discurso da oposição em nome da liberdade, do voto secreto e da educação popular (“governar é educar”), os verde-amarelos contrapunham um discurso oficial de ordem, hierarquia e melhoramento materiais para a ocupação do sertão (“governar é construir estradas”)695. Assim, a necessidade de rebater as críticas liberais da oposição “democrática”, mediante veiculação de um discurso da ordem e da autoridade, diretamente relacionado à desqualificação do liberalismo, ajuda a compreender o fato do PRP acalentar no seu seio os intelectuais que, na década de 30, se tornariam expoentes do pensamento antiliberal. 694

Em sua auto biografia, escrita no final dos anos 60, Menotti del Picchia relembrou a atuação do grupo no final dos anos 20. Segundo ele, na bancada perrepista os verde-amarelos formavam uma “vaga dissonância naquela orquestra de unânimes louvores à onipotência do governo[do PRP]. Nós a desejávamos para a continuidade da ‘paz romana’ que dominava o Estado garantindo a tranquilidade do trabalho mas, no fundo, sem nenhuma tendência ou comprometimento ideológico, insinuávamos certas reformas necessárias a atualizar o próprio pensamento político do partido atendendo às modificações que, no mundo, já a ciência e a técnica determinavam a todas as nações envolvidas. Nosso objetivo era preparar, com a tática necessária para não sermos marcados como rebeldes à disciplina partidária, um pensamento orgânico que se corporificasse numa ação política destinada a pleitear reformas na doutrina e na ação partidária. (...) Plínio e eu, éramos descrentes daquele liberalismo utópico.” In DEL PICCHIA, Menotti. A Longa viagem, 2 ª etapa. São Paulo:Martins, Conselho Estadual de Cultura; 1972. P. 222. 695 Em longo discurso na assembléia legislativa de São Paulo, em 1927, Menotti del Picchia apresentava os pontos de seu programa político. Sobre liberdade afirmava: “Ahi está, sr. presidente, a mais perigosa utopia que embriaga esses fáceis doutrinadores. Liberdade, assim, passa a ser aquele vinho de saqueios, que embriaga as turbas após os delírios de um motim. Há muito Rousseau, muita Revolução Francesa, muita metafísica de enxerto nesses pobres cégos das verdades nacionais.”(p. 195) Sobre o voto secreto: “Adotar, pois o voto secreto, é preparar, na plebe revolta, aquela vontade usurpadora e czaresca do que vai ser o necessário tirano da democracia de amanhã. As classes conservadoras de São Paulo, (...) que reflitam sobre estas verdades e mirem o exemplo da Europa de Mussolini, Carmona, Primo de Rivera, KemalPachá.”(p.198). Sobre política educacional x política territorialista: “um dos lemas retóricos do Partido Democrático – o mais verboso e romântico dos partidos – é o que contrapõe à idéia de ‘governar é abrir estradas’ esta fórmula abstrata: - ‘governar é educar’. (...) Que tem feito nosso povo, nossos governos até hoje sinão educar? (...) A obra genial e audaz de penetração [do território] já foi, por si mesma uma formidável obra de educação. E todos os melhoramentos materiais introduzidos no Brasil, das suas escolas, foruns, mercados, teatros, estradas, nada mais são do que elementos educadores”(p. 194) Sobre hierarquia e ordem: “Nós queremos ordem e hierarquia. Queremos a liberdade ao lado do respeito, a expansão de nossa individualidade em função de aperfeiçoamento moral” (p. 197). SÃO PAULO. Anais da Assembléia Legislativa de São Paulo, 1927.

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No seu arrazoado antiliberal os verde-amarelos apresentaram uma peculiar apropriação pela intelectualidade perrepista do pensamento de Alberto Torres e Oliveira Vianna. Deste último autor, os verde-amarelos apropriavam a distinção entre um “idealismo utópico”, causa de todos os males nacionais identificados com o liberalismo da oposição e o “idealismo orgânico”, o pensamento novo que redimiria a nação. A originalidade da apropriação do antiliberalismo de Oliveira Vianna por este grupo de intelectuais perrepistas estava exatamente em identificar o PRP como o lídimo representante do “idealismo orgânico”, preconizado pelo pensador fluminense, conforme a fala de Menotti del Picchia, de 1927: “O estudo da ação e da missão deste grande Partido [PRP], sr. presidente, é que deve merecer especial carinho dos moços da minha geração. Ele é a corporificação política do idealismo orgânico ente nós e o centralizador constante daquele espírito de brasilidade que resistiu a todos os ataques destinados a provocar a dissolução nacional.”696 (grifos meus) Mas nem todos os verde-amarelos tinham a mesma postura diante do liberalismo e da obra de Oliveira Vianna. A nota dissonante no grupo ficou por conta de Alfredo Ellis Jr., que se manteve fiel à tradicional vertente liberal do perrepismo. Como vimos no capítulo 7, a interpretação do passado paulista elaborado por Oliveira Vianna havia contestado o PRP mediante um duplo ataque: às instituições liberaisfederalistas que o partido representava (acusando-as de inadequadas à “insolidária” realidade nacional), e à representação republicana da história paulista e do bandeirante, que conferia sustentação simbólica àquelas mesmas instituições liberais federalistas republicanas. Em resumo, por intermédio de sua historiografia, Oliveira Vianna solapava as bases de legitimação simbólica do sistema liberal federalista da primeira república, o que levou à mobilização da intelectualidade perrepista visando refutar a sua representação do passado. Afonso de Taunay e José de Alcântara Machado, outro membro do PRP que nos anos 20 se dedicou ao estudo do passado bandeirante, levantaram críticas à representação do passado paulista feita por Oliveira Vianna. Mas o que mais se empenhou neste sentido foi Alfredo Ellis Jr., autor cuja obra, por este motivo, concentrará a atenção no próximo 696

Idem, Ibidem, p. 205.

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tópico. A imagem, criada pelo pensador fluminense, de uma São Paulo colonial formada por fidalgos arianos que mediante o controle de seus infindáveis latifúndios impunham a toda a sociedade colonial a tirania de seu turbulento poder privado, não agradou a este descendente dos fundadores do PRP e entusiasta do que considerava ser o caráter livre, democrático e anti-estatal do paulista. Assim, pela retomada da trajetória da intelectualidade perrepista nos anos 20, podemos perceber a centralidade que a figura do bandeirante, e a interpretação do passado nacional e paulista a ele vinculado, assumiram no período. A década que se iniciou com o otimismo das comemorações do Centenário seria marcada pela forte contestação ao status quo republicano, reforçando ainda mais a necessidade de afirmação da tradição bandeirante, esteio simbólico do grupo no poder. Num contexto de intensa crise de hegemonia do grupo republicano paulista, os intelectuais próximos ao regime procuraram difundir por todos os meios e linguagens – arquitetura, pintura, escultura, literatura e historiografia – a idéia de que desde os primórdios, São Paulo, pela originalidade de sua formação, havia se destacado das demais regiões na construção da nação brasileira. A hegemonia política e econômica de São Paulo aparecia como resultado natural e necessário da formação brasileira. Assim, pode-se ver que a obra de Oliveira Vianna teve uma recepção diferenciada por parte da intelectualidade perrepista, aspecto importante de ser considerado para a compreensão do debate historiográfico do período. Uma vez que os ataques ao status quo republicano

vinham

de

pelo

menos

duas

frentes



da

oposição

liberal

(historiografiacamente representadas por Paulo Prado) e dos críticos anti-liberais (historiograficamente representada por Oliveira Vianna) – a intelectualidade partidária também dividiu suas frentes de atuação e, com elas, as formas de apropriação do pensamento de Oliveira Vianna. A tríade de verde-amarelos (Menotti, Plínio e Ricardo) se apropriou do antiliberalismo de Oliveira Vianna para refutar os ataques da oposição liberal (Partido Democrático), enquanto Ellis Jr. refutou a historiografia antiliberal de Oliveira Vianna em defesa das tradições liberais federalistas do republicanismo paulista. Ambas as tendências – antiliberalismo dos verde-amarelos e liberalismo de Ellis Jr - eram compatíveis e necessárias ao grupo no governo, revelando os impasses de um PRP pressionado entre a manutenção dos princípios descentralizadores e liberais que há décadas

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sustentavam o sucesso da agroexportação cafeeira paulista e a necessidade de manter a ordem e autoridade em um momento político e social de intensa contestação, como foi a década de 20. Para compreender melhor o uso político da historiografia nesta conjuntura de crise do perrepismo, passo a analisar a obra de Alfredo Ellis Jr. 8.3- Alfredo Ellis Jr. : A “Raça de Gigantes” e o elogio da democracia paulista.

Alfredo Ellis Jr., ao contrário dos demais colegas da ala verde-amarela (com a exceção de Cândido Motta Filho) pertencia à elite social e política paulista. Nascido em 1896 na fazenda de café Santa Eudoxia, em São Carlos do Pinhal, por parte de mãe pertencia aos Cunha Bueno, uma das famílias mais tradicionias do estado697. Seu pai, o senador Alfredo Ellis, era um típico representante da elite americanista paulista dos últimos anos do império, tendo estudado engenharia nos Estados Unidos na década de 1870, tornando-se importante produtor de café, fundador do PRP, membro da todo poderosa Comissão Executiva do partido (entre 1893-94), senador da república, ativo defensor dos interesses da cafeicultura e um dos idealizadores do Instituto do Café. Sempre mantendo forte apego à figura paterna, desde a adolescência Ellis Jr. vinha sendo preparado pelo pai para sucedê-lo nas fileiras do PRP. De forma que sua admissão no grupo do Correio Paulistano era quase certa, servindo a intermediação de Taunay em 1923, seu ex-professor do ginásio São Bento, como mera formalidade. Antes mesmo de ser admitido no grupo de intelectuais perrepistas, Ellis Jr. já se aventurava pela história paulista. Em 1922 apresentava no Centro Paulista do Rio de Janeiro, a estudo “Ascendendo na História de São Paulo”

698

. Neste que é um de seus

primeiros trabalhos, já ficava explícito o seu comprometimento com a interpretação republicana do passado paulista. Buscando representar os primórdios da história paulista, Ellis Jr. realizava uma verdadeira volta às raízes do republicanismo paulista retomando, 697

Para os traços biográficos de Ellis Jr., sigo o trabalho de ELLIS, Myriam, Op. Cit., 1996. O Centro Paulista do Rio era uma sociedade cultural criada em 1907 por estudantes paulistas para socialização e recreio, tendo servido também como importante canal de divulgação do imaginário da paulistanidade. Nele foi realizada em 1926 a série de conferências “São Paulo e a sua evolução”, que talvez apresente o mais amplo painel do discurso laudatório da paulistanidade. Vale lembrar que o senador Alfredo Ellis, pai de Ellis Jr. foi um dos principais protetores do Centro Paulista nos seus primeiros anos. ELLIS Jr. Alfredo. Ascendendo na História de São Paulo. Rio: Imprensa nacional; 1922. 698

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para tanto, uma interpretação marcada pelo antijesuitismo característico da propaganda republicana, estudada no capítulo 4. Ellis Jr. iniciativa sua incursão no universo da história retomando às fontes originais do pensamento republicano. Uma vez integrado ao grupo do Correio Paulistano, lugar social de produção de sua historiografia, Ellis Jr. se aproximaria do grupo verde-amarelo. Ao mesmo tempo em que dava continuidade ao tratamento da história de São Paulo, inseria-se no debate racial e imigrantista anteriormente estudado, traçando os contornos de uma interpretação racial da formação paulista. Identificado com a tradição liberal do perrepismo, Ellis Jr. tomou como seu principal interlocutor o antiliberal arianista Oliveira Vianna, a quem procurou refutar no seu principal livro Raça de Gigantes, publicado em 1926 pela editora Helios, de propriedade dos verde-amarelos. Neste livro, a referência à obra de Oliveira Vianna faziase tão presente que podemos supor que a obra tenha sido feita intencionalmente para refutar suas colocações. Num certo sentido, a obra de Ellis jr. tratava-se da resposta do pensamento liberal americanista dos republicanos paulistas à contundente crítica levantada pelo pensador fluminense. Se Oliveira Vianna havia representado o bandeirante como sendo racialmente um ariano de formação germânica, socialmente um aristocrata latifundiário e políticamente um turbulento e anárquico caudilho, Ellis Jr. se esforçaria por apresentar o bandeirante como racialmente um mestiço eugênico, socialmente plebeu concentrado em pequenas propriedades e politicamente dotado de um espírito liberal e democrático que o aproximava, em certos aspectos, dos colonos ingleses da Nova Inglaterra. Divido, assim, a abordagem do texto em três aspectos da representação do bandeirante: o racial, o social e o político. Em Raça de Gigantes, Ellis Jr. se esforçou por reafirmar a validade da visão republicana do passado paulista contestada por Oliveira Vianna. Neste livro Ellis Jr. sistematizava a tradição historiográfica republicana, fundindo as contribuições dos autores da propaganda republicana e do IHGSP. De forma que, se existe um livro representativo não somente da visão de história dos republicanos paulistas mas mesmo do conjunto de seu ideário, este livro é Raça de Gigantes ( na sua versão original de 1926). Ellis Jr. aplicou em seu estudo do passado paulista uma abordagem antropossociológica, que partia do princípio da existência de uma interrelação entre

347

fenômenos sociais e raciais. Ellis Jr. pressupunha que a História era determinada pelo embate entre as raças, sendo o conceito de “seleção” a chave de sua interpretação dos fenômenos sociais. Pois como explicou na introdução da obra, as raças se formariam pelo influxo das condições de um determinado meio e posteriormente iriam sendo apuradas por diversos fatores seletivos (físicos e sociais), dentre os quais se destacaria o embate com outros grupos raciais (a “luta de raças”), o que implicaria, ao final, na predominância do grupo mais forte. O pensamento historiográfico de Ellis Jr. era orientado pelo princípio do struggle for life, de reconhecida origem darwinista. Assim, se compartilhava com Oliveira Vianna o mesmo enfoque teórico baseado no determinismo físico e racial, dele se diferenciava substituindo o enfoque arianista (tradicionalmente relacionado com a reação ao liberalismo do séc. XIX, conforme atesta Léon Poliakov699), por uma maior ênfase dada à abordagem darwinista social. Na realidade, o darwinismo social era a forma pela qual Ellis Jr. expressava o seu liberalismo, pois como lembra Roberto Ventura, havia forte identidade entre ambos, podendo o primeiro ser compreendido como uma forma de conferir um caráter natural e científico às leis da competição e da concorrência preconizadas pelo segundo700.

O bandeirante como mestiço eugênico.

Uma vez definido o enfoque antropossociológico adotado, Ellis Jr. concentrou os seus esforços no tratamento do aspecto racial do bandeirante, voltando-se a estudar os tipos formadores: o português e o índio, além de apresentar um capítulo sobre o negro simplesmente para ressaltar a sua ausência na formação do tipo paulista. Pois juntamente com Alberto Salles, Ellis Jr. levou ao limite o tradicional preconceito da elite paulista

699

Como mostra este autor, não por acaso a idéia da desigualdade entre as raças, cerne do pensamento arianista, toma força na França pós revolucionária como forma de combate aos ideais da revolução. POLIAKOV, Léon, Op. Cit. 1974, p.197 a 221. 700 Segundo este autor: “O struggle for life fornece argumentos científicos em defesa da livre concorrência e da evolução social por meio da especialização de órgãos, funções, indivíduos e instituições. O evolucionismo se insere no horizonte liberal, ao fundamentar, em termos filosóficos e científicos, a ordem competitiva, em que a luta contribui para o aperfeiçoamento social.” VENTURA, Roberto. Op. Cit. 1991. p. 156.

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contra o negro, apresentando sua pretensa ausência em São Paulo como um dos principais índices de progresso do estado e superioridade do tipo regional701. Analisando o tipo português, Ellis Jr. desenvolveu um amplo, prolixo e detalhado panorama da história racial da península ibérica, tendo como objetivo contestar a tese, defendida por Oliveira Vianna, da existência de uma aristocracia racialmente germânica no Portugal quinhentista. Ellis jr. se esforçou por mostrar a diluição e quase desaparecimento dos poucos germânicos (dólicos-louros) que se fixaram na península, apontando para uma tendência oposta de afirmação inconteste do dólico-moreno como o tipo predominante na população portuguesa, tanto em seu presente quanto no séc. XVI702. Sem conferir a mesma ênfase e cuidado empregados no estudo do tipo português, o autor também a analisava o indígena, apontando os guaianá como o grupo incorporado na formação do paulista. Dando continuidade à tradição regional de louvação do mestiço como sendo o mameluco, fruto da mestiçagem do dólico-moreno lusitano e dos índios guaianás. Ao apresentar o paulista como essencialmente mestiço, Ellis Jr. explicitava as suas divergências com Oliveira Vianna. O autor paulista recusava a condenação da mestiçagem preconizada pela corrente arianista de Gobineau e Lapouge, à qual se filiava o pensador fluminense, o que não significava, também, que valorizasse a mestiçagem como algo dotado de uma positividade intrínseca, como faria poucos anos depois o culturalista Gilberto Freire. Ellis Jr. se baseava no antropólogo Paul Broca para mostrar que nem toda mistura de raças necessariamente implicava em tipos inferiores e estéreis. Traçava então uma tipologia dos diferentes tipos de mestiçagem existentes no Brasil semelhante à tríplice divisão racial do país apresentada por Alberto Salles na Pátria Paulista (estudadas no capítulo 5), autor e texto que apesar de fazerem sentir seu eco em diversos trechos da obra não foram nunca explicitamente citados por Ellis Jr. Assim, ao Norte (estados nordestinos ao norte da Bahia e Amazônia) ocorrera uma mestiçagem em que os tipos formados pela junção do índio com o branco, por um 701

Ver o capítulo IV, “O negro” In. ELLIS Jr. Raça de Gigantes. Civilização no Planalto Paulista. São Paulo: Editorial Helios. São Paulo: 1926. 702 Assim, segundo Ellis Jr.:“não podendo de modo algum admitir a maior migratibilidade dos dólico-louros, para os quais, os gobinistas Lapouge, Ammon, Woltmann, e entre nós Oliveira Vianna, evidenciam, sempre os mais decididos pendores, pensamos que a maior parte dos povoadores do planalto paulista foi saída da massa de dolico-morenos, mediterrâneos, com um índice cefálico talvez mais baixo do que a média peninsular.” In Idem, Ibidem, p. 57.

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fenômeno de atavismo, haviam retornado ao tipo indígena original. No centro (Bahia, Minas e Rio de Janeiro) a mestiçagem se dera entre os tipos negro e branco, formando o mulato, considerado como um tipo mestiço inferior, não somente pela presença do negro mas também por que o autor acreditava que se mantinha fecundo até somente algumas gerações, decaindo então na infecundidade. Por fim, diante daquilo que considerava ser um fracasso das mestiçagens brasileiras, Ellis Jr. contrapunha o sucesso da mestiçagem paulista, ancorando nesta peculiar formação racial a principal das explicações que levantou para a exceção paulista. Na sua visão, a mestiçagem paulista havia sido a única do Brasil a formar um tipo realmente superior. Nos termos da antropologia da época, o mameluco bandeirante seria fruto de uma “sub raça” nova, por criar um tipo original que não retornou a nenhum dos tipos formadores (índo e português), e eugênica, pois dotada em doses elevadas de fecundidade e longevidade. Sem romper com o paradigma racista, Ellis Jr. realizava um elogio da mestiçagem paulista, identificando nela a principal explicação para o progresso de São Paulo e a superioridade do tipo regional. Dava continuidade à tentativa de Alberto Salles de explicar o progresso paulista pela sua peculiaridade racial, diferenciando-se, porém, do separatista por ancorar a superioridade paulista não na pureza européia, mas no seu caráter mestiço. Após definir o tipo paulista e suas características eugênicas, Ellis Jr. dedicava quatro capítulos ao estudo dos fatores seletivos – tanto sociais quanto mesológicos - que ao longo dos séculos, como filtros, depuraram a raça mameluca, aprimorando ainda mais seu potencial eugênico por uma “eliminação” dos fracos e inadaptados considerada benéfica. Em Raça de Gigantes, Ellis Jr. atestava a capacidade do tipo paulista e sua propensão a vencer todos os obstáculos que lhe foram apresentados, conferindo a mais elaborada argumentação científica à tradicional auto-estima da elite paulista. Ao apresentar os fatores seletivos que, segundo a metáfora do alambique, usada pelo próprio autor, “depuraram” a raça paulista, Ellis Jr. abordava o aspecto social do tipo bandeirante.

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A origem social plebéia e democrática do bandeirante.

Também neste ponto o seu principal objetivo era atingir Oliveira Vianna e a tese da origem e caráter aristocrático do bandeirante que Ellis Jr., como bom liberal, procurava contestar, procurando, ao contrário, ressaltar as origens plebéias e burguesas do colono paulista. Mais uma vez, procurando refutar o autor fluminense, Ellis Jr. dedicou-se a pormenorizado estudo do perfil social do colonizador português do séc. XVI, antepassado direto do paulista. Ellis Jr. estabeleceu uma representação do ambiente quinhentista português que contrapunha uma alta nobreza, moral e racialmente decadente a todo um outro grupo formado pela conjunção da plebe, de uma “burguesia pacífica” e da nobreza mediana empobrecida. A visão que Ellis Jr. apresentava da alta aristocracia reinol era diametralmente oposta àquela elaborada por Oliveira Vianna. Enquanto que para este a aristocracia lusitana, por sua formação racial ariana, era a guardiã dos mais altos valores da “civilização”, para Ellis Jr. ela encontrava-se em “estado de mórbida nevropatia e degenerescência”703, fruto dos intensos cruzamentos consangüíneos. Como, na sua visão, estes fidalgos “conduziam os destinos ibéricos”, a sua degenerescência implicou na degenerescência do reino Português - espécie de versão racial do clássico tema historiográfico da “decadência de Portugal”, defendida por Ellis Jr. - e na não participação da aristocracia na ocupação do planalto, o que invalidava a origem aristocrática do paulista defendida por Oliveira Vianna. Para Ellis Jr. os primeiros povoadores do planalto paulista deveriam ser buscados na plebe, na burguesia portuguesa e na nobreza mediana empobrecida de Portugal, em suma, em um grupo compósito mas que muito se aproximava daquelas “classes moyennes” que Tocqueville considerou a origem social dos colonizadores da Nova Inglaterra704. Para o autor paulista, estes grupos medianos se destacavam pela sua qualidade racial, sendo os depositários da eugenia peninsular. Ao longo do tempo eles haviam se concentrado nas províncias do centro-sul de Portugal (Estremadura, Alentejo e Algarve) visando combater o inimigo muçulmano que acabaram expulsando. Também foi esta plebe eugênica que 703

Idem, Ibidem, p. 98. Ver TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique. Vol. 1. Paris: ed. Flammarion; 1997, p.94. 704

351

formou o conjunto dos conquistadores, sendo daí originado o maior contingente de colonizadores do planalto paulista. Assim, a riqueza e luxo aristocráticos que Oliveira Vianna identificava nas origens de São Paulo eram substituídos, em Raça de Gigantes, por uma pobreza espartana, valorizada positivamente por um enfoque racial que a considerava um importante fator de seleção e “endurecimento” da raça paulista. Vale considerar que não somente Ellis Jr. mas também Alcântara Machado, outro membro do PRP que se lançou ao estudo da história paulista, ressaltou a pobreza dos primeiros anos paulistas, tendo em vista o duplo propósito de contestar Oliveira Vianna e afirmar a originalidade da formação paulista em relação à nordestina, esta sim encarada como opulenta e luxuosa705. Assim, procurando refutar a visão aristocrática do historiador fluminense, os historiadores dos anos 20 ligados ao PRP – Ellis Jr. e principalmente Alcântara Machado - davam início ao tratamento do tema da “pobreza paulista”, que, conforme apontou Ilana Blaj, seria consolidado pela historiografia universitária ao longo do século XX706. Para Ellis Jr. a pobreza não era o único fator seletivo que apuraria ainda mais o tipo paulista. Ao seu lado, também as migrações e o meio sertanejo serviram como outros filtros que intensificaram o caráter eugênico do paulista, o primeiro por fazer com que viesse ao planalto somente os mais fortes e de maior iniciativa e o segundo por eliminar os fracos e inadaptados ao novo ambiente. Do ponto de vista social, segundo Ellis Jr., sendo os primeiros povoadores de origem plebéia, não se transladou para o planalto paulista as profundas divisões sociais que existiam no Portugal quinhentista. Nos primórdios de São Paulo, o autor identificou um universo marcado pela mais completa igualdade social entre os colonos. Nas suas palavras:

705

Seu livro Vida e Morte do Bandeirante, de 1929, iniciava-se com a refutação de Oliveira Vianna : “Dos vinte e sete volumes publicados, onde se transladam cerca de quatrocentos e cinqüenta processos, nada transparece em abono daquela página arroubada, em que Oliveira Vianna empresta à sociedade paulista dos dois séculos primeiros o luzimento e o donaire de um salão de Versalhes engastado na bruteza da floresta virgem: homens muito grossos de haveres e muito finos de maneiras, opulentos e cultos, vivendo à lei da nobreza numa atmosfera de elegância e fausto. Seria assim a aristocracia nordestina dos senhores de engenho (...). Em São Paulo só a fantasia delirante de um deus seria capaz desse disparate esplendido. Data de pouco tempo a escalada do planalto pelos litorâneos. (...) Em ambiente carregado de tantos sustos e incertezas a prosperidade é impossível” MACHADO, José de Alcântara. Vida e Morte do Bandeirante. São Paulo: Martins ed.; 1972. p. 25. 706 Sobre a recorrência do tema da pobreza colonial na historiografia sobre São Paulo ver BLAJ, Ilana. A Trama das Tensões. O processo de mercantilização de São Paulo colonial (1681-1721). São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP; 2002. Principalmente cap. 1.

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“Assim, a plebe e a burguesia peninsulares como acabamos de ver, forneceram a maior parte das corrrentes povoadoras do planalto além de uns poucos saídos das altas esferas. Vinham eles portanto no regime democrático o mais perfeito, nivelados uns com os outros, pela lei da miséria e da necessidade em que viviam na Europa. Aqui, na colônia, formaram um meio social ‘sui generis’, absolutamente desprovido de castas e até de classes, vivendo todos, os ibéricos e mamelucos, irmanados na mais absoluta igualdade a qual é mostrada pela leitura simples dos documentos de publicação oficial.”707 (grifos meus). A passagem e o estabelecimento no planalto paulista foram apresentados como um verdadeiro reinício, como a fundação de uma nova sociedade marcada pelos valores de uma democracia social. Contestando diretamente a origem aristocrática do bandeirante preconizada por Oliveira Vianna708, o liberal Ellis Jr. inventava uma origem socialmente democrática para a sociedade paulista, representando-a à imagem e semelhança da sociedade colonial norte-americana, conforme a descrevia o pensamento americanista do séc. XIX. A este respeito Ellis Jr. era bastante explícito, amparando sua caracterização das origens de São Paulo em Laboulaye, um dos luminares do liberalismo francês filoamericano do séc. XIX. Em nota de rodapé, o autor paulista explicava: “O estado de nivelamento social do planalto, durante esses estágios primevos, é bem aquele que o historiador Laboulaye, no seu Histoire des États Unis, vol. 1, 138, ao descrever a colônia de New Plymouth, pinta com mão de mestre: ‘.... todos irmãos pela fé e pelo sofrimento, iguais de condições e sorte, o que mais poderiam ser, senão uma pura democracia. Não havia ali um chefe guerreiro dividindo a terra entre seus companheiros de armas(...) A igualdade era absoluta entre os peregrinos.’ ” 709 O americanismo de Ellis Jr. não parecia estar baseado em Tocqueville como aquele de Tavares Bastos e Alberto Salles, mas em Laboulaye e na versão cientificista do 707

ELLIS Jr. Alfredo. Op. Cit., 1926, p. 314. A refutação direta a Oliveira Vianna está no seguinte trecho: “A completa paridade de tratamento, entre todos os moradores paulistanos, revelada pelo exame dos documentos, foi o apanágio dessa democracia, que acabamos de evidenciar. Foi ela, pois, observada entre os primitivos paulistas em sua plenitude, não sendo certas as idéias de que os mesmos tivesse sido ‘extremamente zelosos de suas linhagens aristocráticas’ [citação retirada de Oliveira Vianna] como se lê escrito algures”. Idem, Ibidem, p. 298. 708

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antropogeógrafo francês Edouard Demolins, autor de A quoi tient la supériorité des anglo-saxons?, livro citado pelo historiador paulista. Através da apropriação destes autores, Ellis jr. procurava conferir solidez à sua peculiar representação do período colonial paulista, levando ao limite a idéia de uma democracia primitiva piratiningana, defendida, como vimos, pelos autores republicanos. Mas esta louvação de um início socialmente democrático não representava qualquer intenção igualitária por parte do autor. Pelo contrário, o destaque da origem pobre e igualitária somente servia para legitimar a posterior diferenciação social que, segundo o autor, teria ocorrido em São Paulo levando à criação de uma aristocracia cujos principais representantes eram os bandeirante e seus descendentes, descritos como “os verdadeiros aristocratas”710. Contudo, esta aristocracia bandeirante era essencialmente baseada no valor liberal e republicano do mérito individual, definido por Ellis Jr. como decorrente da “capacidade de trabalho” e da “seleção moral”711, diferindo daquela aristocracia descrita por Oliveira Vianna, baseada nos títulos nobiliárquicos, na origem racial ariana e na posse do latifúndio. O quadro social da São Paulo colonial teria sido, assim, marcado pela passagem de um período inicial de democracia social absoluta para uma crescente separação social, legitimada pelo princípio darwinista social do struggle for life. Desta forma, Ellis Jr. conseguia justificar a predominância social da oligarquia paulista sua contemporânea sem negar os seus mais caros valores liberais, uma vez que o caráter aristocrático deste grupo era ancorado nos valores burgueses do mérito e da competição e não exclusivamente no nascimento e na tradição. No entanto, o caráter democrático do paulista não ficaria restrito aos primórdios e ao terreno societário, Ellis Jr. o identificaria como estando também no próprio cerne da psicologia política do paulista.

O espírito liberal e democrático do bandeirante. Ellis Jr. deu ênfase ao estudo da “evolução da psicologia” paulista, tema ao qual dedicou uma das três partes em que foi dividido seu livro. Nela, procurando estudar os 709

Idem, Ibidem, p. 296. Idem, Ibidem, p. 313. 711 Idem, Ibidem, p. 314. 710

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valores psicológicos correspondentes ao tipo racial mestiço formado no planalto, Ellis Jr. acabou conferindo um caráter cientificista ao velho tema da liberdade primitiva do paulista antigo, também contestado pela representação historiográfica antiliberal de Oliveira Vianna que identificava o bandeirante como anárquico e turbulento. O autor paulista retomava a tese da pobreza original dos colonizadores de São Paulo para ressaltar seu caráter “inculto, ignorante e sem instrução”712, ainda mais agravado pelo meio rude no qual se estabeleceram. Frisava o fato dos bandeirantes não terem deixado nenhum trabalho literário ou artístico, apesar de viverem em pleno período do Renascimento. Nem mesmo a presença jesuíta era positivamente considerada, uma vez que Ellis Jr. retomava o antijesuitismo dos republicanos históricos Júlio Ribeiro e Martim Francisco e apontava “essa religiosidade do paulista” como “uma das causas do atraso mental da gente do planalto”713, identificando-a ainda como fator de “seleção regressiva” uma vez que o sacerdócio condenava à não reprodução os indivíduos intelectualmente superiores da comunidade. Mas até mesmo do atraso intelectual Ellis Jr. retirava vantagens para o paulista, pois com isso teria aumentado o isolamento mental do colono frente à metrópole, possibilitando que “um ideal diferente iluminasse o ambiente do planalto”714. Ao identificar este ideal com a “idéia de pátria”, Ellis Jr. retomava a idéia, também cara aos republicanos históricos, de que São Paulo fora o berço do nativismo brasileiro, a primeira entre as capitanias em que surgiu a idéia de separação da metrópole, como atestavam as tentativas de aclamação de Amador Bueno e Amador Bueno da Veiga715. Mas este impulso independentista foi logo abafando pela metrópole interventora, que no séc. XVIII impôs sua autoridade a partir da região das minas. Apesar de considerar que o paulista antigo mantinha um certo respeito, de origem ibérica, à autoridade real, Ellis Jr. ressaltava que a pobreza e afastamento geográfico impostos pelo meio planaltino levaram à organização de um governo próprio e à conseqüente transformação da psicologia política do paulista. Se anteriormente afirmava a

712

Idem, Ibidem, p. 197. Idem, Ibidem, p. 203. 714 Idem, Ibidem, p. 208. 715 Assim, escrevia o autor: “A lembrança do reino a medida que se afastava, com o isolamento, a noção de uma pátria nova aflorava a mentalidade paulista, noção esta que combatida pelos portuguêses recém vindos 713

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origem socialmente democrática do paulista, neste ponto, passava a afirmar o caráter também liberal e democrático de suas tradições políticas: “A sua parca população, a sua pobreza de recursos de qualquer espécie, faziam dessa parte elevada da capitania vicentina, um lugar esquecido, e entregue exclusivamente quasi a si mesma, ou ao donatário, que também só cogitava de auferir os lucros aliás, bem magros que o seu feudo com os seus frágeis elementos poderia proporcionar, em comparação com os produzidos pelas capitanias de Pernambuco, Bahia, etc. Ora, isso resultaria para o planalto um governo próprio, com muita independência de ação, exercido por elementos democraticamente tirados do próprio povo, muito raras vezes aí se imiscuindo os poderes centrais, de modo que esse governo autônomo paulista, criou uma mentalidade popular ativa, independente, liberal, que se dirigindo aos governantes da terra de igual para igual, só muito de longe tributava um culto mais aparente e visto do que real, a ‘S. Magestade el rey Nosso Senhor’ (...)”716(grifos meus). Em outra passagem Ellis Jr. qualificou este governo autônomo paulista como um regime “de verdadeiro self government, saturado de democracia”717, aplicando ao caso da São Paulo colonial o mesmo princípio (self government) que o pensamento americanista tradicionalmente identificava como sendo o cerne do modelo político norte-americano, como atestavam os trabalhos de Tocqueville e, entre nós, de Tavares Bastos718. Ellis Jr. procurava aproximar o passado colonial paulista do modelo norte-americano de colonização, procurando ressaltar como ambos estavam afinados com os valores liberais e democráticos. Da mesma forma que os norte-americanos, também os paulistas seriam marcados por uma psicologia política liberal e independentes frente ao poder estatal, diferenciando-se dos demais brasileiros, principalmente nortistas, presos à tradição ibérica de submissão ao poder estatal. Os valores do liberalismo e do republicanismo estavam enraizados nos costumes e tradições paulistas, fazendo parte de sua própria essência.

da terra, não podia entretanto deixar de tomar rápido incremento. Aí estão as aclamações de Amador Bueno, em 1641, e a de Amador Bueno da Veiga em 1709, a testemunhar a nossa conclusão.”Idem, Ibidem, p. 208. 716 Idem, Ibidem, p. 229. 717 Idem, Ibidem, p. 223. 718 Ver FERREIRA, Gabriela, Op. Cit., 1999, p. 179-180.

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Com esta definição de um espírito paulista liberal e democrático, Ellis Jr. inovava frente aos autores republicanos ao relacioná-la a uma peculiar forma de organização fundiária na São Paulo colonial, o que o levava, mais uma vez, a contestar a tese de Oliveira Vianna da predominância do latifúndio e da aristocracia dele decorrente em todo o centro-sul colonial. Nas palavras de Ellis Jr.: “Quanto ao regime da divisão da propriedade, interessantíssima questão já abordada por Oliveira Vianna, nos seus estudos sobre as populações paulistas, esses documentos [‘Inventários e testamentos’ e ‘sesmarias’] vêm revelar coisas completamente novas, destruindo velhas ficções fantasiosas de nossos cronistas antigos. Pela publicação dos ‘Inventários e testamentos’, bem como das ‘Sesmarias’, verifica-se que São Paulo no séc. XVII foi o centro de um enxame de fazendolas de pequena cultura e de pastoreio de diminutos rebanhos.”719 Para Ellis Jr., o latifúndio não predominava na São Paulo colonial, sendo o planalto caracterizado pela pequena propriedade, base material do espírito democrático vigente em Piratininga. Coisa muito diferente ocorria nas capitanias do norte da colônia: “Muito longe, como se verifica, estamos do latifúndio, que só era possível no norte da colônia, onde cada fazenda tinha várias dezenas de léguas quadradas; só surgindo ele em São Paulo no séc.XIX na época do café.”720 O regime de pequena propriedade era transformado em mais uma das especificidades da história regional que auxiliavam a explicar a exceção paulista. Mas as conseqüências sociais da pequena propriedade, aos olhos de Ellis Jr., num primeiro momento, pareciam distanciar o bandeirante do tipo norte-americano em um aspecto: enquanto este era identificado como “particularista” o paulista colonial era entendido como um tipo “semi-rural e comunitário”, uma vez que a pequena propriedade aproximava os colonos ao redor das vilas do planalto. Ellis jr. vacilava ao representar o tipo social do bandeirante, apresentando-o como um tipo intermediário entre o saxão e o ibérico, sendo dotado dos “atributos de temeridade, audácia, espírito ávido de aventuras e cheio de arrojo”721 do primeiro e do “espírito comunitarista” do segundo. O paulista antigo

719

Idem, Ibidem, p. 258. Idem, Ibidem, p. 260. 721 Ellis Jr. escreve: “o paulista antigo, com os seus atributos de temeridade, audácia, espírito ávido de aventuras e cheio de arrojo parece à primeira vista definir um indivíduo particularista, como o anglo saxão, 720

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teria todas as caracterísiticas do anglo-saxão exceto o seu caráter “particularista”. Ficava sugerido que para a completa identidade do paulista com o tipo saxão seria necessária a transformação daquele em um tipo “particularista”, o que o autor apresenta como sendo resultado do advento do latifúndio cafeeiro no séc. XIX. Assim, para Ellis Jr., este aspecto comunitarista/ibérico do bandeirante - fruto do meio adverso, que levava à união dos colonos, e da pequena propriedade, que os agrupava próximos às cidades – não seria mantido indefinidamente, sendo suprimido com as mudanças ocorridas ao longo dos séc. XVIII e XIX. Com o advento do latifúndio cafeeiro, o paulista se isolava no sertão, perdendo o contato com os demais povoadores e o caráter comunitário correspondente. “Daí, o particularismo, era forçoso, tinha que tomar um grande impulso, com a absoluta eliminação das bases do comunitarismo(...) E assim, o paulista se identificou definitivamente com o individualismo, atingindo o pináculo da sua evolução”722. Ou seja, para Ellis Jr., o paulista moderno não somente manteria os caracteres típicos dos anglo-saxões (iniciativa, arrojo, espírito aventureiro e democrático, etc.) como ainda os aprofundaria, uma vez que perderia o comunitarismo ibérico tradicional. O paulista moderno do séc. XIX tornou-se um tipo particularista, complementando o processo de aproximação com o tipo ianque. Ellis Jr. conseguiu comprovar que o advento do latifúndio escravista cafeeiro não somente não suprimia os traços ianques do caráter paulista como ainda os acentuava ainda mais, transformando o paulista moderno em um ianque completo, dotado de iniciativa, temeridade, etc. e também do espírito particularista que lhe faltava. De certa forma, Ellis jr. rebatia, nas entrelinhas e sem citar o autor, a caracterização de Paulo Prado sobre a decadência do paulista moderno pela perda de seu espírito de liberdade e independência política. Para Ellis Jr., o paulista moderno era um aperfeiçoamento do paulista antigo, fruto do aprimoramento das qualidades ianques esboçadas no bandeirante.

que sempre desprezou a comunidade, agindo sempre só, ou com uma pequeníssima porção de homens, dotado de igual sentimento individualista, à frente dos quais empregava as maiores somas de energia; - um exame mais profundo, no caráter paulista, e no seu modo de vida, deixa a evidência que, não obstante tudo isso, o paulista dos dois primeiros séculos pertencia ao tipo comunitário, dentro do qual foram praticadas todas as façanhas do bandeirismo, que hoje tanto nos enchem de justificado orgulho.”Idem, Ibidem, p. 275. 722 Idem, Ibidem, p. 290.

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Desta forma, pode-se chegar a algumas conclusões sobre o sentido político da representação do passado paulista elaborado por Alfredo Ellis Jr. em seu livro Raça de Gigantes. Em seu conjunto, esta obra procurava reafirmar e aprofundar a visão republicana da história paulista e, ao mesmo tempo, contestar os fundamentos históricos da crítica às instituições democrático-liberais da primeira república, elaboradas por Oliveira Vianna. Ao construir um passado colonial paulista baseado na pequena propriedade, num tempo primordial socialmente igualitário, na ausência de preconceitos aristocráticos entre os primeiros habitantes, na vigência de um governo autônomo e de uma primitiva democracia política marcada pelo self govermment, além da liberdade diante do poder estatal metropolitano, Ellis Jr. acabava aproximando o período colonial paulista ao período colonial norte-americano, conforme descrito pelo pensamento liberal do séc. XIX, representado, dentre outros, por Laboulaye e Tocqueville. A conclusão implícita na obra de Ellis Jr. era que, pelo menos no caso paulista, a crítica levantada por Oliveira Vianna sobre a inadequação das instituições políticas liberais federativas com a tradição e a realidade nacionais, não tinha sentido. No caso paulista, a democracia liberal não era algo inadequado à realidade e à tradição, ao contrário, ela era apresentada por Ellis Jr. como a própria essência da tradição regional paulista. A identidade regional construída pela historiografia bandeirante dos republicanos paulistas, com destaque para Ellis Jr., tinha nos valores liberais o seu traço característico, o bandeirante, entendido como paulista antigo, era transformado em símbolo fortemente marcado pelos valores liberais americanistas da energia empreendedora e da liberdade individual frente ao poder estatal. A exceção paulista implicava, para Ellis Jr., não somente a afirmação da eugenia racial da sub-raça mameluca, mas também a existência de uma origem igualitária e uma psicologia política livre. Mediante esta específica representação do passado colonial paulista, a elite política do estado procurava explicar a exceção de progresso e civilização que São Paulo pretendia representar no conjunto da nação. Da mesma forma como Tocqueville acreditava em relação aos Estados Unidos, para a elite regional, a chave para a compreensão do progresso e da “democracia paulista” estava nas suas origens coloniais. A forma peculiar de colonização do planalto paulista – pequena propriedade, igualdade social original, miscigenação racial eugênica, self government representado pelas câmaras, psicologia

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política livre e democrática – o aproximava dos Estados Unidos. O republicanismo paulista, mediante esta visão do passado, procurava fundir dois pólos que desde o séc. XIX apareciam como opostos e conflitantes para o pensamento liberal brasileiro: tradição e progresso. Toda a civilização moderna e liberal democrática que consideravam vicejar na São Paulo dos anos 20, era vista como decorrência única e exclusiva de seu passado colonial bandeirante. Assim, num ambiente de profunda euforia modernizadora, puderam apelar para um símbolo de caráter histórico – o bandeirante – para representar a identidade de toda a coletividade paulista.

CONCLUSÃO.

Ao longo deste trabalho, procurei compreender a identidade paulista não como algo dado e natural, mas sim como o resultado de um processo de construção que lançou mão dos recursos simbólicos disponíveis, com destaque para a historiografia. Ao me voltar para a atuação dos historiadores, logo percebi não somente o paralelismo existente entre as práticas políticas nas quais estavam envolvidos em seu presente e os discursos sobre o passado que elaboravam, mas a mobilização destes últimos para legitimar as primeiras. Passei a priorizar o estudo do uso político que se fez do passado.

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Durante o período monárquico, a necessidade de transformar uma realidade colonial marcada pela predominância da fragmentação em um Estado nacional dotado de unidade e coesão fez com que a reflexão sobre o regional, mesmo sendo considerada, se mantivesse em estreitos limites. A identidade regional, durante o período monárquico, não contestava a identidade nacional una que se pretendia criar como recurso simbólico voltado à introjeção, nas mentes e corações dos súditos (principalmente das elite regionais) da fidelidade ao novo desenho estatal unitário monárquico constitucional. Para o caso específico paulista, em que as tradições regionais se identificavam com o antigo colono, que ao longo do séc. XIX passou a ser chamado de bandeirante, havia a agravante de que o novo padrão de identidade nacional, que vinha sendo construída pela intelectualidade da corte, congregada em torno do IHGB, era o padrão indianista, que se afirmava pela condenação do extermínio indígena perpetrado pelo “ambicioso” colono laico, e em especial pelos bandeirantes paulistas. Assim, o bandeirante teve, no geral, sua figura demonizada pela produção historiográfica de meados do séc. XIX, com a nuance do elogio à sua atuação como demarcador de fronteiras, um outro tema central para um Império que teve como meta prioritária a definição dos incertos contornos territoriais do Estado nacional que pretendia consolidar. Diante da impossibilidade de louvação incondicional do bandeirante, o resultado foi a procura de outras figuras históricas mais afinadas com os valores da elite monárquica. Assim, os índios guaianás e os jesuítas foram representados sob luzes positivas. Mas nenhuma foi tão unanimemente representativa da identidade regional monárquica do que Amador Bueno, o abnegado paulista que, em 1640, desprezou os apelos da plebe e dos estrangeiros e abriu mão da independência de São Paulo por fidelidade à coroa bragantina. Tanto Tobias de Aguiar, o liberal revoltoso de 1842, quanto o ultracentralizador Varnhagen, todos legitimavam suas posições apelando para o exemplo de Amador Bueno. Mas o relativo descaso da elite provincial com suas origens se alterou a partir do início da década de 1870. Neste momento, passou-se a viver uma conjuntura marcada por intensa modernização econômica (principalmente no Sul do país) e crise das instituições imperiais, centralizadoras e escravocratas. Esta crise está na raiz do surgimento de uma nova intelectualidade crítica ao status quo monárquico (a “geração 70” estudada por Ângela Alonso), que tomou como programa político-intelectual o mapeamento das causas

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do atraso brasileiro. Dentre a longa lista de vícios da formação brasileira que elencaram, destacavam-se três, diretamente relacionados à elaboração de um novo discurso da paulistanidade: a) o Absolutismo das instituições políticas herdadas da colônia e perpetuadas pela centralização monárquica; b) o meio tropical pujante e impositivo que, segundo a lei determinista de Buckle, impedia o desenvolvimento da civilização no Brasil, fazendo com que o homem fosse menor que a natureza; c) a formação racial mestiça que, pela presença de tipos negros e índios (considerados inferiores pelo racismo científico vigente) inviabilizariam o progresso do país. No mesmo contexto em que estas idéias se consolidavam como instrumento de legitimação das propostas republicanas, territorialistas e imigrantistas, a província de São Paulo transformava-se no setor mais dinâmico da economia nacional, por conta da afirmação da agroexportação cafeeira que possibilitou à elite regional assumir um lugar dependente porém privilegiado na divisão internacional do trabalho. No momento em que se procurava romper com o atraso material brasileiro, a província de São Paulo apresentava-se como original exemplo de progresso material. O setor mais radicalmente anticentralizador da elite paulista logo aderiu ao republicanismo e esboçou um projeto nacional que, mediante a defesa de ampla autonomia regional, procurava transformar o estado de São Paulo em uma verdadeira utopia liberal. Pautada pelo exemplo norte americano a elite republicana paulista procurava construir, a partir de São Paulo, um Brasil à imagem e semelhança dos Estados Unidos. Isto implicava no incentivo a uma política econômica de caráter agrário-territorialista (ocupação do sertão mediante vigorosa política ferroviária e povoamento por mão-de-obra imigrante) e a luta pelo redesenho liberalizante do estado brasileiro, de maneira que fossem contempladas as formas republicana e federativa. Ao mesmo tempo em que propunha este projeto modernizador americanista, a elite republicana paulista rompia com a auto-visão monárquica e reelaborava a própria identidade, apresentando o paulista de elite como o agente por excelência da modernidade americanista. O paulista seria caracterizado como o “ianque do Brasil”, sendo este o cerne da nova identidade regional. Diferente dos americanistas argentinos da geração de 37, para quem o “ianque hispano-americano” era um projeto a ser alcançado no futuro, os

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republicanos paulistas, se auto-identificavam como a concretização, no presente, desta espécie de “homem novo” da modernidade americanista. Para conferir solidez a esta identidade que apresentava o paulista como uma exceção de progresso, a elite republicana paulista lançou-se à elaboração de um discurso identitário regional que fazia uso do passado. Procuraram, assim, mostrar que São Paulo esta livre – se não totalmente, pelo menos parcialmente – dos três entraves ao progresso elencados pelos seus companheiros da “geração de 70”. Assim, ao inventarem uma origem livre e democrática para o paulista – representada nos eventos da expulsão dos jesuítas, na Guerra dos Emboabas e na importância das câmaras municipais – procuraram provar que, ao contrário do que saquaremas e liberais monárquicos afirmavam para o caso brasileiro723, no caso paulista havia uma tradição local de self government que minimizava os efeitos do absolutismo colonial ibérico. Ao defenderam (Alberto Salles) a originalidade climática do planalto paulista, livravam São Paulo do efeito pernicioso da tropicalidade ao mesmo tempo em que afirmavam a reversão da lei Buckle, sendo o homem paulista mais forte que a natureza. Por fim, afirmavam a ausência do negro e o caráter predominantemente branco do tipo tradicional paulista, anulando os efeitos da mestiçagem. Se o Brasil mantinha-se atrasado pelas suas tradições políticas absolutistas, pelo meio tropical que submetia o homem e pela formação mestiça da população, São Paulo caminhava na senda do progresso devido a uma formação diferente, pautada por tradições de liberdade e independência, por um clima ameno e por uma população predominantemente branca. Desta produção dos anos 1870 e 1880, normalmente pouco considerada pelas análises (mais preocupadas em estudar o período posterior à criação do IHGSP) emergia o esboço de uma nova imagem do colono paulista, do bandeirante. Esta foi forjada no calor do debate político da luta republicana, marcando o cerne da contra-história que visava contestar o sentido político centralizador e monarquista da historiografia indianista.

723

Estudando os usos de Tocqueville pelo saquarema Visconde de Uruguai e pelo novo liberal Tavares Bastos, Gabriela Nunes Ferreira afirma: “Ao se debruçarem sobre a organização social e política do Brasil, Tavares Bastos e Uruguai partem de uma observação comum: a ausência, entre nós, da tradição de autogoverno e da ´educação cívica´ que o acompanha. Sobre esse tema ambos tomam recorrentemente, como contraponto, os exemplos inglês e americano. O exercício do self government nas instituições locais é louvado como fonte de virtudes públicas e escola de liberdade.” FERREIRA, Gabriela Nunes, Op. Cit. 1999; p. 179.

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No bandeirante, a elite paulista projetou os valores que se auto atribuía, apresentando-o não somente como agente definidor dos limites territoriais mas também como povoador do sertão e paladino da liberdade brasileira. Ele estava ligado a um processo mais amplo de criação de uma identidade regional que apresentava o paulista como que fadado à implantação da modernidade no Brasil. Assim, o caso da identidade paulista foi marcado por tendência diametralmente oposta àquela da identidade nordestina, elaborada a partir da década de 1920 e estudada por Durval Muniz de Albuquerque Jr.724. Enquanto esta incorporava a aversão ao moderno, a paulista se colocava como caracterizada visceralmente pelos valores de uma certa modernidade: iniciativa individual, energia, movimento, espírito empreendedor, liberdade frente ao Estado e à Igreja. O paulista se apresentava como o demiurgo da modernidade brasileira. Com a implantação da República ocorre a institucionalização da contra-história republicana, processo representado pela criação, em 1894, do IHGSP: o lugar por excelência de produção de uma visão paulista do passado nacional, que se traduziu no veículo privilegiado de um “destino manifesto paulista” em que se ressaltava a missão dos paulistas de se ocupar o território e levar a bandeira da liberdade para todo o país. Por esta historiografia, verdadeiro suporte simbólico da hegemonia política então desfrutada pela elite regional paulista, buscava-se mostrar que, pela originalidade de seu passado, São Paulo sempre desempenhara o papel de líder na construção da nação. Nos anos 20, com a figura do bandeirante já consolidada como herói regional de dimensões nacionais, ocorre o seu envolvimento nas lutas políticas de questionamento do status quo republicano. Assim, o antiliberal Oliveira Vianna apresentava uma representação original do bandeirante. Este seria socialmente um aristocrata, racialmente um ariano e politicamente um caudilho turbulento. Porém, mais importante, o bandeirante era tomado por Oliveira Vianna como personagem central de uma interpretação da história nacional que tinha como propósito mostrar como as instituições políticas liberais e federalistas eram inadequadas à realidade nacional. Em outros termos, Oliveira Vianna se apropriava da figura do bandeirante para utiliza-lo na obra de deslegitimação das instituições da primeira república.

724

ALBUQUERQUE Jr. , Durval Muniz de. Op. Cit. 1999.

364

De forma semelhante, Paulo Prado também se apropriou do bandeirante para criticar não as instituições vigentes, mas o que considerava o falseamento destas mesmas instituições pelo grupo perrepista no poder. Assim, a crítica política de Paulo Prado veio indissociável da sua crítica ao paulista moderno, apresentado como unicamente preocupado em enriquecer e politicamente apático, quando não governista. Ao procurar explicar o adesismo governamental do paulista moderno, Paulo Prado reinterpretava o passado regional, apresentando o paulista moderno como ainda decadente no que respeitava à antiga energia cívica dos paulistas antigos. O paulista moderno, para Paulo Prado, não era herdeiro do espírito livre e independente do bandeirante. Este era mobilizado pelo liberal oposicionista Paulo Prado, em um período de predomínio político inconteste do situacionismo perrepista, visando relembrar o caráter indômito e antigovernista do paulista antigo. Na sua ótica, ser fiel ao espírito paulista significava rebelar-se contra o governo tirânico, identificado, entre outros, com o perrepismo. Por fim, o grupo perrepista, nos anos 20, passou a mobilizar o imaginário paulista visando legitimar o seu poder, então em franca crise de hegemonia. O meio foi a articulação, em torno do jornal oficial O Correio Paulistano, de um grupo de intelectuais que passou a efetivar uma política de divulgação, a nível nacional, da versão paulista da história nacional. Do seio desta política de culto ao passado paulista, Alfredo Ellis Jr. se dedicou a refutar historicamente a obra de Oliveira Vianna, pretendendo, assim, esvaziar as críticas que o autor fluminense levantou contra as instituições liberais federalistas. A historiografia de Ellis Jr., apesar de esquecida, representou o ponto alto da visão republicana do passado paulista. Através dela apresentava-se um período colonial paulista completamente original, baseado na pequena propriedade, marcado pela igualdade absoluta entre os colonos, e regido pelo mais puro self government, ou seja, um período colonial paulista em diversos pontos semelhante ao norte-americano, conforme definido pela historiografia liberal do séc. XIX (Tocqueville e Laboulaille). Com esta representação do passado, Ellis Jr, procurava mostrar que os valores liberais e “democráticos” não eram mera cópia ou “macaqueação”, conforme afirmava Oliveira Vianna, mas o resultado de um peculiar desenvolvimento histórico paulista, estando perfeitamente adequado à realidade regional.

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Assim, na crise da primeira república, Alfredo Ellis Jr., reafirmava a visão republicana do passado que apresentava as origens paulistas como sendo marcadas pelos valores democráticos, o que o diferenciava do resto do Brasil. Evidenciava, desta forma, a consolidação de um discurso regional que apresenta o paulista como uma exceção de energia e iniciativa em meio a um Brasil ibérico, estatista e atrasado. Mesmo com a derrota perrepista em 1930 o símbolo bandeirante continuou a ser usado para os mais diverso propósitos e pelos mais diferentes grupos. Por um viés predominantemente territorialista, e sem conotação de exclusividade regional, ele foi apropriado por todos os governos que identificavam na integração nacional uma das condições de modernização do país. Assim, ao longo de todo o século XX, da “marcha para Oeste” do Estado Novo, passando pelo desenvolvimentismo materializado na Brasília de Juscelino Kubitschek até desembocar na rodovia Transamazônica, obra maior dos planos geopolíticos do regime militar, o espírito bandeirante foi invocado como representante de uma identidade nacional afinada com os valores da modernização capitalista. Mesmo entre os paulistas derrotados, congregados a partir de 1938 no Clube Piratininga, então uma espécie de trincheira do perrepismo, a figura do bandeirante continuou a exercer seu fascínio, como atesta o uso que dele se fez no movimento de 1932. A identificação entre o colono seiscentista paulista e o espírito moderno ianque foi tão bem articulada pelos intelectuais paulistas que, em finais dos anos 40, Vianna Moog teve dificuldade em traçar as diferenças entre bandeirantes e pioneiros725. Se, a partir dos anos 1960, sob o impacto das críticas à modernização capitalista, a imagem gloriosa do Bandeirante perdeu muito de seu poder mobilizador, a imagem do paulista como dotado de uma ética própria, mais afinada com os valores da livre iniciativa e do empreendedorismo, continuou vigente, encontrando suporte em outros símbolos e outras explicações. Ela aparece com especial destaque na obra de um autor como Simon Schwartzman, herdeiro intelectual de Raimundo Faoro e defensor do modelo civilizacional norte

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O autor afirmava: “Por que nisso de emprestar ao bandeirante atributos que ele nunca teve, o paulista de quatrocentos anos é um perfeito ianque. Se, para valorizar o símbolo que lhe é caro, for preciso atribuir ao bandeirante atributos orgânicos, ele o atribuirá; se para magnificá-lo for preciso torcer a história, ele a torcerá. Embora tomando de empréstimo ao pioneiro [norteamericano], para dar ao bandeirante, qualidades, intenções e preocupações que nunca ele teve, ainda é a imagem idealizada do bandeirante a que mais cultua o Estado mais pioneiro do Brasil.” MOOG, Vianna. Bandeirante e pioneiros. Paralelo entre duas culturas. Porto Alegre: Ed. Globo; 1954. p. 236.

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americano diante dos ataques filo-iberistas de Richard Morse726. Hoje em dia, alguns autores tendem a considerar a onda neoliberal como uma “paulistanização do Brasil” que viria apagar o longo período de intervenção estatal varguista727. Neste sentido, a leitura de que os governos de Fernando Henrique Cardoso representaram “os paulistas no poder” ecoa as teses antigas de um espírito livre e independente do paulista que o habilitaria a construir um Brasil moderno, livre da herança estatista ibérica e, no limite, à imagem e semelhança dos Estados Unidos. Ao estudar a construção da identidade paulista e dos mitos a ela relacionados, procurei seguir a postura de Sérgio Buarque de Holanda, para quem fazer a história de um mito não significa querer ressuscita-lo, “como se ainda nos fosse possível fazer milagres”: “Esta espécie de taumaturgia não pertence, em verdade, ao ofício do historiador, assim como não lhe pertence o querer erigir altares para o culto do Passado, deste passado posto no singular, que é palavra santa, mas oca. Se houvesse a necessidade de forçar algum símile, eu oporia aqui à figura do taumaturgo a do exorcista. Não sem pedantismo, mas com um bom grão de verdade, diria efetivamente que uma das missões do historiador, desde que se interesse nas coisas de seu tempo – mas em caso contrário ainda se pode chamar historiador? -, consiste em afugentar do presente os demônios da história. Quer isto dizer, em outras palavras, que a lúcida inteligência das coisas idas ensina que não podemos voltar atrás e nem há como pretender ir buscar no passado o bom remédio para as misérias do momento que corre.”728

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Em artigo sobre o levante de 1932 este autor sugere uma interpretação deste movimento como uma espécie de versão brasileira da Guerra de Sessão em que o vitorioso foi o lado do atraso. Ver SCHWARTZMAN, Simon. “O sentido da Revolução de 1932” publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6/nov./1982, também acessível em http://www.schwartzman.org.br/simon/rev32.htm. Ver também Idem, São Paulo e o estado nacional. São Paulo: Difel; 1975. Nesta obra, Schwartzman procurou defender a tese da originalidade do sistema político paulista, pautado pela defesa dos interesses dos agentes sociais autônomos, diante de um quadro geral brasileiro marcado pela predominância de uma cultura política patrimonialista. São Paulo seria uma exceção no quadro de um Brasil patrimonialista. Sobre um balanço do debate entre este autor e Richard Morse ver OLIVEIRA, Lúcia Lippi. “Iberismo e americanismo, um livro em questão” In Idem, Americanos, Representações da identidade nacional no Brasil e Estados Unidos. Belo Horizonte: ed. UFMG.; 2000. 727 Rubens Barbosa Filho, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e membro do diretório do PSDB daquela cidade, interpreta da seguinte forma a ascensão do tucanato: “A vitória de Fernando Henrique Cardoso e dos paulistas em 1994 vinga a derrota de 1932 e recoloca na ordem do dia a mesma palavra de ordem de sessenta anos atrás. A luta pela Constituição no início dos anos 30 é a mesma que orienta agora o movimento pela “desestitucionalização”,patrocinado pelos paulistas e seus acólitos do PFL. O que se desejava antes é o que se quer agora: a redução do peso da intermediação política em nossa vida, a diminuição das regulações formais e substantivas em favor de uma movimentação mais autônoma dos seres sociais e econômicos, a destruição de um conjunto de instituições que deram carne e osso á perspectiva maquiaveliana e varguista.” In BARBOSA FILHO, Rubens. “ Os Paulistas no poder” In Idem (org.) Os Paulistas no poder. 728 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso. Motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: ed. Brasiliense; 1994. p. XVI.

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Antes de ressuscitar, busco aqui exorcizar a identidade do paulista como homem novo da modernidade liberal latino americana.

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