A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM E A CRÍTICA SOCIAL NA VOZ DE AURÉLIA

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P á g i n a | 1478 A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM E A CRÍTICA SOCIAL NA VOZ DE AURÉLIA Taciana Ferreira Soares48

RESUMO: Consagrado autor da estética romântica no Brasil, José de Alencar é conhecido por criar os chamados “perfis de mulher”. O artigo destina-se a discutir como Alencar usa a personagem Aurélia Camargo, protagonista do romance urbano Senhora, publicado em 1875, como mensageira de crítica social, alertando-nos quanto aos costumes burgueses da época em que o romance foi escrito, que mantinham a mulher presa aos ditames da sociedade de forma geral. Hoje, se percebe que Aurélia tem percepções diferenciadas das de seu tempo, com características não esperadas de uma mulher do século XIX, e que o autor a utiliza para que os leitores repensassem o modelo de família vigente na época. PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Sociedade. Personagem. Senhora. Crítica.

1. A questão autoral A literatura é uma realização cultural, é um produto social, que expressa as condições de sua produção. Como as demais criações artísticas, a literatura é um poderoso agente na construção da identidade de uma comunidade e da confirmação das suas ideologias. O autor literário é um artista cujo trabalho envolve a preocupação estética de criação através da linguagem, é através dela que o autor se apropria do mundo e cria a sua realidade. O artista-escritor é um produto de sua época e de sua sociedade, estando “sujeito aos condicionamentos que seu pertencimento de classe, sua origem étnica seu gênero e o processo histórico do qual é parte lhe impõem“ (FACINA, 2004), adaptando-se a sua comunidade, classe, entre outros aspectos do campo social. Isso quer dizer que o campo de possibilidades criadoras, temáticas e de interpretação particular da realidade que serão feitas pelo autor se desenvolvem num campo de possibilidades limitadas. Por este motivo, não é conveniente dizer que o autor de determinada obra está “a frente do seu tempo”. O artista, sujeito às condições sociais, mimetiza seu tempo e espaço no campo literário referenciando lugares e costumes, entre outros aspectos, seja confirmando-os (falando dos costumes), seja subvertendo-os, disseminando “ideias, valores e opiniões através de um tipo de escrita em que forma e conteúdo são indissociáveis” (FACINA, 2004), levando os apreciadores da obra a algumas reflexões, como é o caso da obra aqui analisada. Não negamos o talento artístico do autor, mas é importante dessacralizar a ideia de que ele é um gênio diferenciado. O autor também faz parte das dinâmicas sociais e sofre as influências do meio. 2. Século XIX: a burguesia e o casamento

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Graduada em letras pela Universidade de Pernambuco/UPE ; Pós-graduanda em literatura pela FAFIRE

P á g i n a | 1479 Senhora é uma das últimas obras de José de Alencar, sendo publicada em 1875, num período em que a classe leitora ainda estava se estabelecendo no Brasil, para um público muito seleto, como afirma BOSI: O romance romântico brasileiro dirigia-se a um público mais restrito do que o atual; eram moços e moças provindos das classes altas, e, excepcionalmente médias; (...) eram, enfim, um tipo de leitor à procura de entretenimento, que não percebia a diferença de grau entre um Macêdo e um Alencar Urbano. (p. 128)

O fato é que esses leitores de folhetins com moldes franceses buscavam, cada um a seu modo e com suas exigências, “reencontrar sua existência pela autoidealização a partir da obra, projetando-se como herói ou heroína em peripécias com que não se depara a média dos mortais” (BOSI, p. 129). Alencar se vale de tal circunstância para, na obra, abrir críticas aos valores e comportamentos da sociedade burguesa fluminense que emergia economicamente, fazendo duras críticas ao casamento por interesse e à ascensão social por meio deste. Essas críticas começam já na titulação dos capítulos do livro – O Preço; Quitação; Posse; Resgate – que sugerem uma transação comercial. O casamento, para a parcela burguesa da sociedade, além de monogâmico e indissolúvel, único espaço legítimo para a eclosão do amor conjugal, era também uma ferramenta econômica, “preservando o patrimônio da recém-formada classe burguesa ao regular a transmissão de bens entre os herdeiros, conjugando matrimônio e patrimônio.” (THIENGO, p. 6). O próprio Alencar sugere sutilmente esse costume no primeiro capítulo do romance, onde usa as expressões “mercado matrimonial” e “empresa nupcial”, quando Aurélia fala do possível valor de seus pretendentes. A posição da mulher no casamento, durante o período em que se passa a obra, era de total passividade e dependência, daí a necessidade masculina para o provento econômico da casa e até mesmo de um homem da família para fazer os arranjos matrimoniais. No século XIX, a imagem da mulher era de ser fortemente submisso: “Na época, a mulher estava sempre à disposição e à espera do seu amado, mas sem demonstração do seu querer.” (RÊGO, p. 17). O casamento origina-se, portanto, desse pacto desigual no qual a esposa obedece ao marido, e ele, em troca, a protege das adversidades, das guerras, da fome etc. O que sustenta esse modelo de casamento é o pressuposto de que a mulher sempre concordará em se submeter como esposa porque o homem é o mais forte e poderá desfrutar da “superioridade do seu sexo.” (AUAD, p. 23)

3. A personagem e a transmissão da mensagem No período em que a obra foi publicada, observava-se nos escritores românticos uma nova tendência: A ficção supera, nessa fase a fórmula romântica, que se esgota no sentimentalismo e no sertanismo, invadindo, depois de 1870, à forma realista, seja na maneira urbana, de análise de costumes e caracteres, seja na regionalista, seja na naturalista.” (COUTINHO, p. 166).

P á g i n a | 1480 Nesse período, fala-se em quarta geração romântica, onde percebemos um Alencar mais maduro em sua escrituração, o Romantismo estava intensamente povoado de críticas político-sociais, influenciando o autor, apesar de Alencar estar inserido na segunda geração. Pode-se argumentar que a literatura constitui uma forma especial de expressar e transmitir mensagens através de uma linguagem carregada de significados, caracterizando-se pela plurifuncionalidade que o discurso poético atinge ao veicular as informações e ideologias, expressas pela organização de elementos específicos que regem a narratividade. A obra literária cria “liames entre a vida e a ficção, gerando problemas como a verossimilhança das histórias, a coerência moral das personagens, a fidelidade das construções ambientais.” (BOSI, p. 127). É a partir da criação desta para-realidade que reside na obra que o autor envia sua mensagem crítica aos leitores, utilizando-se da voz e das vontades da personagem, no nosso caso, Aurélia, gerando com ela uma identificação. Personagem é o ser que desempenha as funções ativas na narrativa de ficção. São os atores. A personagem não é o primeiro, nem o mais importante elemento da estrutura da obra literária. É um dos elementos dessa estrutura. [...] A personagem, portanto, é um suporte para a comunicação da experiência do artista e um dado essencial para a completação de sua mundividência. A personagem é capaz de provocar o enredo, como pode ser provocada por este. A personagem vive na obra a partir do comportamento que o artista lhe atribui. Este comportamento, na verdade, é uma série de atributos verbais que procuram dar a ilusão de realidade vivida. (ATAÍDE, 1941, p. 38)

Em suma, nas narrativas, personagens são seres inventados (ficcionais), em regra, humanos ou com traços de humanidade, que figuram na narrativa e que só tem vida dentro dela. São os seres que praticam as ações contadas pelo narrador. Ainda, numa observação técnico-estruturadora da narrativa, vemos mais uma transgressão na nossa protagonista: no período romântico, a figura feminina tendia a ser representada como personagem classificada enquanto Objeto desejado – “força de atração; fim visado; objeto de carência; elemento que representa o valor a ser atingido” (BRAIT, 2010, p. 50), aparecendo na tradição patriarcal como uma heroína passiva que espera o seu herói buscador. Aqui, Aurélia assume a posição de condutora da ação – “personagem que dá o primeiro impulso à ação; é o que representa a força temática; pode nascer de um desejo, de uma necessidade ou de uma carência” (BRAIT, 2010, p. 50), classificação comumente destinada à figura masculina. No período romântico da literatura brasileira, a mulher tem um papel representativo característico, com a imagem geralmente associada à pureza, idealização, amabilidade, redenção, subserviência como é o caso, por exemplo, da Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, autor da mesma escola literária, onde a protagonista aceita sua sorte com conformidade. No romance, Aurélia mostra um comportamento diferenciado, desencadeado pela decepção amorosa, seguido pelo desejo de vingança. Aurélia configura-se ao longo do romance com uma postura representativa tradicionalmente masculina, sugerida inclusive no trecho: “o princípio vital da mulher abandonava seu foco natural, o coração, para concentrar-se no cérebro, onde residem as faculdades especulativas do homem” (ALENCAR, p. 29), na qual a protagonista escolhe seu marido mesmo a contragosto de seu tutor, Lemos: “eu não lhe aconselharia que se casasse senão depois da maioridade, quando conhecesse bem o mundo.” (p.29),

P á g i n a | 1481 praticamente o compra com seu dote, é autônoma em seus atos, rege liderança sobre seus bens e família, mesmo antes do falecimento da mãe, onde nos é dito que: “suportava todo o peso da casa” (p.83). Dona de suas atitudes, ela mesma escolhe seu destino. 4. Aurélia e a crítica A figura de Aurélia representa uma contestação dos estereótipos femininos do sec. XIX. Logo na primeira página do romance, nos é falado sobre a existência de Firmina Mascarenhas, uma velha parenta que acompanha a protagonista na sociedade e assim é descrita pelo narrador: “Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha ainda admitido certa emancipação feminina”. (ALENCAR, p. 17). Logo de início, o autor nos fala em emancipação feminina de forma sutil, apontando para as temáticas que serão encontradas ao longo da trama. No prefácio, Alencar afirma que a história não é da própria lavra do escritor, afirmando ainda que a história é verdadeira. Ele usa situar a narrativa no passado, como um recurso, já que, ao ler a obra, percebemos que os costumes nela apresentados são contemporâneos aos do autor. Atentemos também ao seguinte trecho, uma reflexão interior feita por Lemos, tio e tutor da protagonista: - Não se recusam sem contos de reis, pensou ele, sem razão sólida, uma razão prática. O seixas não a tem; (...). Queria que me dissessem os senhores moralistas o que é esta vida senão uma quitanda? Desde que nasce um pobre-diabo até que o leva a breca não faz outra coisa senão comprar e vender? Para nascer é preciso dinheiro, e para morrer ainda mais dinheiro. (ALENCAR, p. 49)

Mesmo em alguns momentos da narrativa, onde Aurélia não parece ter participação alguma, como o transcrito aqui, percebemos que seu tutor é levado a pensar da seguinte maneira por sua influência, estando essa reflexão em confluência com outras opiniões da protagonista reveladas desde o início da trama pelo narradoronisciente, como é o caso a seguir: As revoltas mais impetuosas de Aurélia eram justamente contra a riqueza que lhe servia de trono, e sem a qual nunca por certo, apesar de suas prendas, receberia como rainha desdenhosa a vassalagem que lhe rendiam. (ALENCAR, p. 18)

Ainda é interessante pontuar o episódio do casamento de Aurélia e Fernando Seixas, no momento da escolha dos padrinhos junto a Lemos, que sugere, segundo a moda da sociedade, “uma baronesa para madrinha e dois figurões, coisa entre senador e ministro, para padrinhos” (ALENCAR, p. 67), na qual a moça escolhe Torquato Ribeiro e é questionada pelo noivo e pelo tio, já que “um simples bacharel não corresponde de modo algum à noção aristocrática que o velho tinha do paraninfo de uma herdeira milionária”. Mesmo com a negativa dos dois homens que deveriam ter as rédeas das suas ações, Aurélia não cede na escolha de seu padrinho. Ao lado da protagonista e da sua excentricidade, como é descrita no romance (excentricidade essa que é onde mais representativamente encontramos as ferramentas de crítica do autor), podemos escolher outras mulheres, de certo modo também

P á g i n a | 1482 representativas na trama, que seguem o padrão feminino de comportamento do período, as irmãs e a mãe de Seixas: Fernando quis concorrer com seu ordenado para a despesa mensal, mas tanto a mãe, como as irmãs, recusaram. Sentiam elas ao contrário não poder reservar alguma quantia para acrescentar aos mesquinhos vencimentos, que mal chegavam para o vestuário e outras despesas do rapaz. No geral conceito, esse único filho varão devia ser o amparo da família, órfã de seu chefe natural. Não o entendiam assim aquelas três criaturas, que se desviviam pelo seu ente querido. Seu destino resumia-se em fazê-lo feliz; não que elas pensassem isto e fossem capazes de o exprimir; mas faziam-no. (ALENCAR, p. 41)

Comparando-as à Aurélia, é visível a diferença de comportamento: uma é altiva, sagaz e decidida, ignorando as opiniões do seu responsável legal e tomando ela mesma as suas decisões; as outras três, completamente dependentes da voz e da presença de Seixas, que é seu objeto de total dedicação. Até mesmo a mãe, D. Camila que, na ausência do marido, deveria ser a chefe de família - pelo menos no comando da casa espera que o filho (inclusive, que não era o filho mais velho) volte dos seus oito meses de viagem para autorizar o romance entre a irmã Nicota e o seu pretendente. 5. Considerações finais A obra literária, principalmente neste período histórico, se molda como um forte instrumento na configuração do imaginário coletivo. Ao final da análise, percebemos que Alencar, ao dar à história o lavor literário, constrói sua obra afim de, sutilmente, levar uma reflexão aos seus principais leitores, de modo que eles pensem sobre a validade de alguns costumes existentes na época. O romance, encontrando seu públicoalvo e função no lazer das mulheres das classes mais altas, faz Aurélia, a moça rica e formosa, parecer ser o veículo perfeito de identificação direta das moças burguesas e o protótipo feminino idealizado pelos rapazes e suas famílias para contrair matrimônio; para, a partir daí, conseguir fazer sua crítica atingir grandes esferas. A leitura do romance, independente do tempo, nos faz ponderar sobre a maneira que pensamos os relacionamentos, as suas motivações e a relação com até que ponto vamos para atingir o poder econômico, logo, é necessária uma percepção diferenciada da protagonista, que, diferente da tradição romântica, se desloca da imagem de mulher idealizada, sendo um instrumento poderoso de reflexão. 6. Referências ALENCAR, José de. Senhora. São Paulo: Ática, 1997. ATAÍDE, Vicente de Paula. A Narrativa de Ficção, São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1974. AUAD, Daniela. Feminismo: que história é essa?. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. FACINA, Adriana. Literatura & Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. BRAIT, Beth. A Personagem. São Paulo: Ática, 2006. COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.

P á g i n a | 1483 REGO, Florita. Leituras numa ótica feminina. Recife: Baraúna, 2006. THIENGO, Mariana. O perfil de mulher no romance Senhora, de José de Alencar. Travessias (UNIOESTE. Online), v. 3, p. 1-17, 2008. Disponível em: < erevista.unioeste.br/index.php/tra vessias/article/download/3016 /23 62> Acesso em: 01/07/2013.

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