A CONSTRUÇÃO DE AFROBRASILIDADES NO USO DA INTERNET POR JOVENS DA GRANDE CRUZEIRO

July 24, 2017 | Autor: D. de Campos | Categoria: Music, Youth Culture, Afrocentrism, Youtube
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A CONSTRUÇÃO DE AFROBRASILIDADES NO USO
DA INTERNET POR JOVENS DA GRANDE CRUZEIRO

Deivison Moacir Cezar de Campos[1]

ULBRA/UNISINOS



RESUMO: O artigo tem como objetivo apontar relações estabelecidas pelos
jovens entre música e internet, buscando verificar como as informações
sobre música são consumidas por jovens moradores da Grande Cruzeiro em
Porto Alegre. Trata-se de um estudo de campo, utilizando referenciais dos
Estudos Culturais latino-americanos e ingleses e da Geografia social. As
informações obtidas na internet são vestidas simbolicamente pelos jovens
para construir ou fortalecer um estilo, que encontra na música seu elemento
mais visível.

PALAVRAS-CHAVE: Grande Cruzeiro; território; consumo; música; internet.

1 INTRODUÇÃO

A música ocupa um importante espaço na construção da identidade negra
na diáspora. Fruto da ressignificação de inúmeras culturas africanas,
desterritorializadas durante o período colonial, as identidades afro-
referenciadas foram geradas a partir de uma indeterminação linguística
superada pela musicalidade. A estratégia possibilitou que, no período pós-
escravista, os negros se reorganizassem em torno de batuques e cantos
seguidos de coros, com conteúdo sagrado ou profano.
Em decorrência dos sucessivos processos de desterritorialização
locais, as identidades afro-brasileiras têm se construído a partir da
ressignificação, construção e tradução destes elementos simbólicos
reorganizados. No entanto, ao contrário de outras formas de representação,


A identidade negra não é meramente uma categoria social e
política a ser utilizada ou abandonada de acordo com a
medida na qual a retórica que a apóia e legitima é
persuasiva ou institucionalmente poderosa. [...] Embora
seja sentida muitas vezes como natural e espontânea, ela
permanece o resultado da atividade prática: linguagem,
gestos, significações corporais, desejos (GILROY, 2001,
p.209).


Os jovens têm a música como principal produto de consumo cultural
(DAYRELL, 2005), constituindo a partir dela diferentes estilos. Os estilos
vão determinar as práticas a serem adotadas para sua representação. No
entanto, outros símbolos percorrem a vivência musical, principalmente
tratando-se da cultura negra. Para Glissant (1989),


Não é nada novo declarar que para nós a música, o gesto e
a dança são formas de comunicação, com a mesma importância
que o dom do discurso. Foi assim que inicialmente
conseguimos emergir da plantation: a forma estética em
nossa cultura deve ser moldada a partir dessas estruturas
orais (apud GILROY, 2001, p.162).


A música afro-brasileira tem características híbridas, apresentando
referências identitárias de ser [percussão] e devir [combinação com novas
sonoridades], propostas por Hall (1996) para o estudo das identidades
negras na diáspora. A ambiência afro constrói um território geográfico de
fluxo que surge e desparece pela intervenção de um dispositivo de mídia
sonora.
O artigo resulta de uma pesquisa que teve como objetivo traçar as
relações estabelecidas pelos jovens entre música e internet, verificando os
usos da internet para consumo da música e os usos feitos pelos jovens desse
conteúdo em sua prática cotidiana. O texto insere-se numa investigação
ainda incipiente de como os jovens negros estão construindo seu
pertencimento étnico a partir do consumo da música urbana afro-brasileira.
O consumo, neste caso, não somente das letras e sonoridades, mas das
ambiências e vivências experimentadas e possibilitadas pela música.
A amostragem utilizada constitui-se num grupo de nove jovens, com
idade entre 15 e 22 anos, moradores da Grande Cruzeiro, pertencentes a
famílias da classe C e D. Oito dos jovens são negros e um branco, sendo
seis homens e três mulheres. A abordagem foi aleatória, mas a seleção
sistemática. Os jovens foram contatados por estarem junto às escolas José
Loureiro da Silva, rua Capivari, e Brigadeiro Silva Paes, na avenida Cinco
de Novembro.
A definição da amostragem não propõe restringir a pesquisa a "jovens
negros pobres", um dos estereótipos mais presentes nos discursos sociais
estereotipados. Trata-se apenas de um dos grupos de jovens que serão
trabalhados. Por outro lado, buscou-se contextualizar as entrevistas numa
região considerada de negros, buscando refletir sobre a
multiterritorialidade [espaço geográfico, espaço social, territorialização
e desterritorialização simbólica, fluxos] existente nesse espaço e de como
a experiência comunicacional mediada e vivida ocorre neste contexto.
O marco teórico estabelecido é os estudos de recepção, a partir dos
Estudos Culturais latino-americano (CANCLINI, 1996) e ingleses (GILROY,
2003). Também os estudos da Geografia Social (SANTOS, 1996; HAESBAERT,
2004), para discutir a questão da territorialidade.
O trabalho dividiu-se em dois momentos para o levantamento de dados.
No primeiro, foi aplicado um questionário com sete questões abertas, a
partir dos quais foram realizadas as análises. a partir da oralidade
temática (MEIHY, 1998). Os questionários foram analisados considerando
também o método indiciário (GINZBURG, 1990), buscando indicações e sintomas
que funcionam como "chaves para o conhecimento de realidade, minúsculas
partes singulares, tradicionalmente menosprezadas por predomínio de hábitos
e reflexos condicionados" (SANTORO, 2002).
O texto está organizado em dois momentos. Inicialmente, discute-se a
construção de uma leitura hegemônica da Grande Cruzeiro como um território
negro e como a música, através de dispositivos midiáticos, tem produzido
territórios de fluxo. Na segunda parte, discute-se como os jovens têm se
utilizado desse lugar de fluxo para construir seu estilo e também seus
pertencimentos, neste caso a uma identidade étnica afro-brasileira.


2 Música e afro-brasilidade na Grande Cruzeiro

A região denominada Grande Cruzeiro, em Porto Alegre, agrega 29 vilas
entre os bairros Santa Teresa e Nonoai, iniciando próximo ao centro e
estendendo-se até a zona sul da cidade. A vila Grande Cruzeiro tem uma
população estimada em 200 mil habitantes. Esses se caracterizam pelo
reduzido nível de escolaridade e exclusão do mercado de trabalho.
Aproximadamente 30% dessa população é formada por negros (OBSERVA, 2008).
Esse número indica que, enquanto espaço geográfico, a região possui uma
população majoritariamente branca. No entanto, o espaço social apresenta
características de um território negro.
A Grande Cruzeiro começou a se estruturar no século XIX quando as
charqueadas e sítios ali localizados, então periferia de Porto Alegre,
começaram a ser loteados. O processo de urbanização, dinamizado em torno da
metade do século passado, empurrou muitos moradores da região do Segundo
Distrito[2] para áreas mais distantes do Centro. O aterramento de parte do
Rio Guaíba, a construção da primeira Perimetral e a mudança do leito do
Dilúvio descaracterizam espacialmente o antigo território negro, que se
tornou valorizado do ponto de vista imobiliário. As obras acabaram com a
Ilhota e transformaram o Areal da Baronesa (CAMPOS, 2006), levando muitos a
se instalarem no Morro Santa Teresa, marco inicial da Cruzeiro.
O deslocamento da população do antigo Segundo Distrito fez com que a
leitura hegemônica sobre a Grande Cruzeiro a caracterizasse como um
território negro não tradicional[3]. Para Leite (1996), "o território negro
integra o corpus de representações partilhadas pelo grupo, geralmente
associado a um lugar, a uma experiência". Defende também que o território
constitui-se por uma experiência que constrói subjetividade numa trajetória
temporal que perfaz a história do grupo.
Essa trajetória tem sido marcada por sucessivos movimentos espaciais,
conceituados por Gilroy (2001) como diásporas. A diáspora pode ser
compreendida, em síntese, como um movimento de desterritorialização e
reterritorialização de uma população fora de seu lugar de origem e,
portanto,


[...] é um conceito que ativamente perturba a mecânica
cultural e histórica do pertencimento. Uma vez que a
simples sequência dos laços explicativos entre lugar,
posição e consciência é rompida, o poder fundamental do
território [espacial] para determinar a identidade pode
também ser rompido (GILROY, 2001, p.18).


O movimento de desterritorialização e reterritorialização, provocado
pela transferência dos territórios tradicionais, retoma o movimento
espacial da diáspora global. Como uma reprodução em menor escala do
deslocamento desencadeado pelo escravismo colonial, o negro perde seus
referenciais de espaço, tendo que adaptar sua rede de significações e
representações em outro território que não o lugar em que foram
construídos, caracterizando uma diáspora local (CAMPOS, 2009). Neste caso,
a Vila Cruzeiro tornou-se o destino dos moradores do antigo Segundo
Distrito.
A década de 60 marca no Brasil uma aproximação entre as populações
rurais e urbanas, segundo o IBGE[4], passando de 55,9%, em 1970, para 81,2%
em 2000. Neste cenário, o "espaço urbano capitalista-fragmentado" articula-
se a partir de símbolos e campos de lutas (CORREA, 1995) e estrutura-se em
centros comerciais, financeiros, industriais, residenciais e de lazer. As
desigualdades sociais da paisagem urbana, assim como as novas e diferentes
temporalidades e as multiterritorialidades também provam o sentido de
fragmentação da cidade. Desta maneira,


compreender a cidade e explicar a produção do espaço
urbano implica entender esse espaço como relacionado à sua
forma (a cidade) mas não se reduzindo a ela, à medida que
ela expressa muito mais que uma simples localização e
arranjo de lugares, expressa um modo de vida. Esse modo de
vida não está ligado somente ao modo de produção
econômica, embora sofra seu constrangimento, mas está
ligado a todas as esferas da vida social: cultural,
simbólica, psicológica, ambiental e educacional
(CAVALCANTI, 2001).


As relações de poder estabelecidas pelos modos de vida geram os
territórios que são "uma construção coletiva, um espaço de representações e
de ações que combinam os territórios históricos, os territórios vividos e
os territórios projetados e que, por sua vez, a rede é um artefato técnico
que se sobrepõe ao território" (MUSSO apud UEDA in HEIDRICH, 2008, p.78),
seja ela pessoal ou mediada. Esses diferentes territórios formam o que
Haesbaert (2004) vai denominar multiterritorialidade que se realiza, para o
indivíduo, ao "experimentar vários territórios ao mesmo tempo e [...] a
partir daí, formular uma territorialização efetivamente múltipla"
Essa multiplicação do vivido por uma comunidade constrói a
territorialidade, possibilitando que os homens vivam, ao mesmo tempo,
segundo Raffestin (1993), o processo e o produto territorial através de um
"sistema de relações existenciais e/ou produtivistas", geradas no conjunto
formado pela sociedade, espaço e tempo, sendo a "'face vivida' e a 'face
agida' do poder". Nesse processo, percebe-se a constituição de "uma nova
espacialidade urbana que depende de redes desterritorializadas e
fronteiriças" (UEDA in HEIDRICH, 2008, p.82).
Os territórios negros tradicionais, neste caso o Segundo Distrito,
haviam criado dinâmicas internas – éticas, estéticas e estruturais -
próprias, considerando a invisibilidade frente ao público. O processo de
desterritorialização provocou a "dessocialização dos grupos étnicos", que
se constitui na transformação dessas comunidades em grupos culturais
simbólicos, estruturados a partir de marcas de identidade esvaziadas, a
territorialidade espacial. Segundo Schneider,


É precisamente quando as minorias deixam de viver em
colônias e se acham diretamente confrontadas com os outros
grupos que suas especificidades culturais tornam-se fonte
de mobilização coletiva e que se desenvolve o que Gans
denominou de etnicidade simbólica (apud POUTUGNAT; STREIFF-
FENART, 1998, p.71).


A etnicidade simbólica provoca outro movimento espacial que denomino
denominado diáspora relacional (CAMPOS, 2010). Marcado por redes de
relações desterritorializadas [fluxo], proporciona elementos de
identificação e de espacialidade, como, por exemplo, nos cultos afro
brasileiros.


Isto que dizer que não se trata apenas de um artifício
técnico no contexto da musicalidade, mas de uma
configuração simbólica que, conjugada a dança, constitui
ela própria um contexto, uma espécie de "lugar", ou de
cenário sinestésico e sinergético, onde ritualisticamente
algo acontece [...] a reatualização dos saberes do culto
simultânea à inscrição do corpo do indivíduo num
território, para que se lhe realimente a força cósmica,
isto é, o poder de pertencimento a uma totalidade
integrada (SODRÉ, 2006, p.214).


Os dispositivos midiáticos têm exercido um efeito semelhante à
territorialidade negra produzida pela roda (CAMPOS, 2010), construindo
outras ambiências a partir de elementos simbólicos, pois territorializar-se
"significa também, hoje, construir e/ou controlar fluxos/redes e criar
referenciais simbólicos num espaço em movimento, no e pelo movimento"
(HAESBAERT, 2004).
A circulação e apropriação de estilos, idéias e histórias, baseados em
referenciais africanos reelaborados, tem ocorrido por transferência de
formas culturais, políticas e estruturas de sentimentos, respaldadas em
discursos políticos de cidadania, justiça racial e igualdade. O fluxo
comunicacional nessa nova espacialidade tem sido facilitado por um fundo
comum de "experiências urbanas, pelo efeito de formas similares – mas de
modo algum idênticas - de segregação racial, bem como pela própria memória
da escravidão, um legado de africanismos e um estoque de experiências
religiosas definida por ambos" (GILROY, 2001, p.175). O consumo cultural
torna-se então um importante lugar de troca social e de construção de
pertencimento, possibilitando o acesso aos diferentes estilos.
Nesse movimento, os elementos simbólicos locais e diaspóricos de
constituição de afro-brasilidades têm circulado, principalmente, através de
estratégicas estéticas, fazendo com que a música ocupe um importante lugar
de visibilidade, pois o mercado tem se apropriado de sonoridades geradas
nesses territórios negros em busca de novidades para o consumo (KELLNER,
2001). Os usos da internet, relacionadas à música, pelo grupo pesquisado,
combinadas com outros suportes, como o videoclipe, servem para a construção
do efeito de presença desses jovens e, a partir dele, formas comunicativas
de constituição de pertencimento.




3 O uso do simbólico mediado no vivido

A relação entre a música e a juventude, segundo Dayarell (2005) é uma
construção histórica, que se iniciou no século passado com o jazz. Na
década de 70, ocorre uma expansão e diversificação de estilos. Também
verifica-se a ampliação da possibilidade dos jovens tornarem-se produtores
musicais, com a popularização da aparelhagem eletrônica. Os jovens pobres
também se inserem no mercado de trabalho, gerando a ampliação do consumo
juvenil, principalmente na moda e no lazer, e criando espaços próprios de
diversão nas periferias dos grandes centros, como os bailes e sons.
Como principal produto cultural consumido pelos jovens, a música está
integrada ao cotidiano das cidades, oferecendo "a possibilidade de conjugar
a trama de um caminho de busca existencial com os signos de uma pertença
coletiva" (DAYRELL, 2005, p.37). Os signos de identificação acabam por
constituir as chamadas subculturas juvenis, ligadas aos diferentes estilos
que surgem a partir das preferências musicais. O estilo, neste contexto, é
a "manifestação simbólica das culturas juvenis expressa em um conjunto mais
ou menos coerente de elementos materiais e imateriais que os jovens
consideram representativos da sua identidade individual e coletiva" (p.41).
As subculturas tornam-se uma forma de territorialidade em meio a
globalização, pois "quanto mais globalizado, mais fragmentado o mundo
reaparece. Nesse globalizar-se-fragmentar-se grupos e grupelhos afloram. A
vizinhança passa a ser uma escala geográfica importante na vida das
pessoas." (CANCLINI, 1996, p.31). Partindo desta perspectiva, buscou-se uma
amostragem que compartilhasse as características de grupo.
Os jovens do grupo pesquisado na Grande Cruzeiro ouvem principalmente
pagode e funk[5], utilizando-se de símbolos dos estilos musicais no
cotidiano. Desta maneira, além da própria idéia de juventude ser "uma
condição social e uma representação" (DAYRELL, 2005, p.21), buscam outros
lugares de representação. Os meios de comunicação, enquanto esfera
socializadora, tem oferecido elementos para a construção desses estilos,
reforçando a tendência de estetização da vida cotidiana (FEATHERSTONE,
1995, 100). No que tange a música, Canclini (1996) diz que a circulação de
músicas étnicas tem contribuído para reproduzir e renovas os imaginários.
Mesmo que as músicas de preferência dos jovens não sejam étnicas,
apresentam características afro-brasileiras, combinando formas vernaculares
africanas [batuque] com novas sonoridades.
Além do pagode e do funk, um dos jovens referiu outro estilo musical
afro-diapórico - o hip-hop. Os três estilos apresentam as características
de hibridização que tem sido, no processo dinâmico do mercado musical,
recombinado das mais diferentes formas. As batucadas, que "adaptaram os
padrões sagrados às exigências seculares" (GILROY, 2007, p.246), podem ser
ouvidas nos estilos indicados, mantendo um diálogo sempre reatualizado com
os elementos considerados africanos. No entanto, a "África que vai bem
nesta parte do mundo é aquilo que a África se tornou no Novo Mundo, no
turbilhão violento do sincretismo colonial, reforjada na fornalha do
panelaço colonial" (HALL, 2003, p.40).
Os grupos referidos nas entrevistas seguem essa combinação. Três
jovens o apontaram o Bom Gosto como preferido, seguido pelo Exaltasamba,
com duas referências. Com essa sonoridade [híbrido de samba e pop], também
foram citados, uma vez cada, Sorriso Maroto, Rodriguinho, Grupo Zoeira e
Pura Cadência. Zói di Gato foi o único MC de funk apontado. Representando a
música afro-diaspórica, foram citados as cantoras Beyonce e os rappers Boy
e Soldier. Sobre a musicalidade de artistas da diáspora negra, Gilroy
(2001) vai dizer que

Os ritmos irreprimíveis do tambor, outrora proibido,
muitas vezes ainda são audíveis em seu trabalho. Suas
síncopes características ainda animam seus desejos básicos
– serem livres e serem eles mesmos – revelados nesta
conjunção única de corpo e música da contracultura (p.163-
164).


Canclini (1996) também aponta uma nova constituição social em que as
esferas de cidadania, meios de comunicação de massa e consumo estão
aproximados, sendo necessária a criação de novos patamares e modelos de
cidadania. Os estilos, evidenciados pelos gostos musicais, são uma das
estratégias utilizadas pelos jovens para as negociações pessoais e
coletivas, obtendo esses referenciais de representação através do consumo
de bens culturais. O consumo, para o autor, "é o conjunto de processos
socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos"
(p.77).
A internet, enquanto meio convergente, possibilita que os jovens
experenciem a música a partir de vários formatos – áudio, vídeo, texto,
letras, imagens, etc. Ao mesmo tempo, oferece a oportunidade de que os
jovens encontrem espaços de relacionamento com pessoas da mesma subcultura.
Para Sodré (2006), as novas tecnologias do social possibilitam a
"emergência de uma nova Cidade humana." Este lugar, é um espaço
privilegiado para o processo de territorialização do simbólico.
Do grupo pesquisado, sete dos nove jovens tem acesso mais freqüente à
internet. Um diz acessar pouco e um não acessa. Cinco dos oito jovens
acessam a internet em casa, quatro referem acessar a internet em lan
house[6]. Desses, dois coincidem com os que acessam de casa e dizem ir às
casas que comercializam o acesso a internet para encontrar os amigos. Dois
entrevistados disseram acessar a internet no "curso" e um utiliza o
computador no serviço.
A navegação se dá principalmente em sites de relacionamento. Os oito
possuem conta na página de relacionamento Orkut e quatro utilizam o
Messenger (MSN). Com esses acessos, buscam essencialmente relacionar-se com
amigos. Afirmam não falar diretamente sobre música, mas conversam
principalmente sobre as festas que frequentam ou que irão freqüentar e
também sobre cantores e shows. O jovem que referiu ouvir hip-hop participa
de comunidades que tratam dessa cultura.
Seis dos jovens dizem navegar em outros sites, buscando notícias
sobre seus artistas preferidos e letras das músicas. Com isso, conseguem
cantar as músicas durante as festas e em "rodas de samba". As informações
sobre cantores serão alguns dos assuntos discutidos quando estiverem com os
amigos ou nas festas. Acessar o site do Youtube para assistir e baixar
videoclipes de funk, pagodes e hists americanos, foi referido por sete
jovens.
A internet, portanto, serve para construir e manter redes
desterritorializadas, que se territorializam em determinados lugares, como
nas festas, por exemplo. Por outro lado, servem de fonte de informações que
serão utilizadas nos momentos de interação pessoal e para buscar elementos
para a identificação de símbolos para a construção do seu estilo. "Logo,
devemos admitir que no consumo se constrói parte da racionalidade
integrativa e comunicativa de uma sociedade" (CANCLINI, 1996, p.56).
Os jovens homens consomem informações, imagens e sonoridades na
internet para, principalmente, observar como os cantores se vestem,
buscando adaptar as roupas para o uso cotidiano e nas festas. Também os
gestos e posturas dos cantores. As mulheres estão atentas principalmente ao
jeito das cantoras dançarem e como estão penteadas. Todos referiram que,
em síntese, buscam novidades para cada nova festa e para "atualizar o
visual".
Os lugares frequentados pelos jovens são as que tocam os estilos
referidos. Os mais citados são a quadra da Banda da Saldanha e da escola de
samba Imperadores, a cervejaria Chopp1, o Delmar e o Risca Faca[7]. Nestes
locais, os elementos simbólicos apropriados pelo consumo são levados ao
vivido. As jovens apresentam novos penteados e passos de dança apropriados
dos músicos também na internet. Referem que assistir ao clipe na televisão
não oferece a possibilidade de repetição para aprender as coreografias,
levando-os à internet. Os jovens observam os gestuais e a maneira de parar
e caminhar dos cantores preferidos, construindo a partir deles sua
performance.
A performance faz do corpo o "âmbito de convergência das práticas
culturais" (FILHO, 2009), tornando-o elemento central para o efeito de
presença. Nesse lugar, a convergência da experiência de corporidade, ao som
das músicas híbridas afro-brasileiras, com o efeito de presença –
apropriado e ressignificado a partir do consumo –possibilita um reforço da
representação do estilo ao qual estão ligados. Também nessa ambiência, no
caso estudado, acontece a construção de um território negro de fluxo, em
que são oferecidos elementos para uma experiência de afro-brasilidade. Para
Gilroy,

Os músicos, dançarinos e artistas negros do Novo Mundo
difundiram reflexões, estilos e prazeres através dos
recursos institucionais das indústrias culturais
colonizadas e capturadas por eles. Essas mídias,
principalmente a gravação de som, têm sido apropriadas às
vezes com propósitos subversivos de protesto e afirmação
(GILROY, 2007, 159).

Essa afirmação se dá com base numa tradição que está em permanente
movimento, pois "as culturas negras não são estáticas [...] são
constantemente construídas e reconstruídas" (SANSONE, 2007), num movimento
espaço-temporal ainda múltiplo. Ao territorializar elementos simbólicos de
estilos afro-brasileiros, os jovens também experimentam uma vivência negra.




4 CONSIDERAÇÕES

A análise da relação estabelecida, pelos jovens pesquisados, entre
música e internet indica que esta não se dá de maneira direta. Ao navegar,
os jovens buscam relacionar-se com os amigos, tendo as festas que
freqüentam um importante tema de conversa. Também buscam adquirir
informações que possam ser utilizadas nas suas interações pessoais e para
construir ou fortalecer um estilo, que encontra na música seu elemento mais
visível.
As informações obtidas na internet são vestidas simbolicamente. Os
jovens homens buscam referencias de roupas a usar e expressões gestuais. As
mulheres estão mais atentas aos penteados e a novos passos de dança. O uso
desses bens simbólicos apropriados não se dá somente no ambiente específico
da festa. São levados ao cotidiano, visando fortalecer a representação do
estilo escolhido.
O grupo utilizado na amostragem pertence a famílias das classes C e D
e, por isso, fortalece a representação simbólica por não terem acesso a
todos os produtos que produziriam os mesmos sentidos em nível material.
Pode-se observar que, além da adaptação de roupas ao estilo, compartilham
expressões de fala e utilizam gestos dos mestres de cerimônia de funk e
cantores de pagode.
Os jovens indicaram consumir principalmente músicas afro-brasileiras,
com destaque para o pagode. No entanto, em nenhum momento referiram as
letras. A atenção está nas sonoridades e na manifestação expressiva. Pode-
se inferir com isso que enquanto a primeira produz o estilo, a segunda gera
a possibilidade de vivência de um pertencimento étnico.
A ambiência musical produzida pela intervenção de um dispositivo de
mídia sonora perturba o cotidiano, construindo uma territorialidade
geográfica negra que, como referido, por ser simbólica, é
desterritorializada. O uso dos elementos simbólicos do estilo e a
apropriação de elementos negros durante as interações pessoais, ainda devem
ser aprofundados em pesquisas posteriores, estando aqui apontados que
ocorrem.
Inicialmente, a pesquisa buscava refletir sobre as possibilidades de
investigação ao se construir uma territorialidade negra de fluxo [festa,
roda de conversa] num território geográfico negro [Grande Cruzeiro].
Observou-se, no entanto, que a territorialidade negra por constituir-se a
partir do simbólico independe de um espaço geográfico específico, podendo
realizar-se em outros lugares.


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Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
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[1] Jornalista. Doutor em Ciências da Comunicação. Coordenador do curso de
Jornalismo da Ulbra.
[2] O Segundo Distrito compreendia a região da rua Baronesa do Gravataí até
a avenida 13 de Maio [atual Getúlio Vargas] e, no sentido norte-sul, da rua
28 de Maio [continuação da Ipiranga antes das obras de assoreamento do
arroio] até a José de Alencar. Nas áreas próximas ao Dilúvio havia grandes
áreas sem ocupação e sem ruas definidas, constituindo-se num prolongamento
do território negro. Nesta área, localizava-se principalmente a Ilhota, que
ficava isolada pelo arroio, tendo como único acesso a Travessa Batista
(PESAVENTO, 1999). Atualmente a região constitui os bairros Menino Deus,
Cidade Baixa e Praia de Belas, principalmente.
[3] Denomino território negro não tradicional aqueles que surgiram depois
do período da primeira diáspora local; ou seja, quando os negros tiveram
que desocupar as áreas povoadas no período pós-abolição.
[4] Tendências Demográficas, 2000. IBGE, 2001.
[5] O funk é uma derivação do rap. No entanto, suas letras são cantadas e
não faladas. As temáticas das letras estão ligadas aos cotidianos de
pobreza, violência e principalmente a sexualidade. As letras são
consideradas alienadas pelos músicos do rap e pelo movimento social negro
(DAYRELL, 2005).
[6] O papel das lan houses como lugar de interação pessoal nas regiões
populares ainda não foi devidamente pesquisado.

[7] Os dois últimos locais da lista ficam na própria Vila Cruzeiro.
Funcionam durante o dia como sinuca e secos e molhados, respectivamente. À
noite, os salões são esvaziados e transforma-se em baile funk. Dos nove
entrevistados,sete afirmaram frequentar os locais.
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