A Construção do STF na Primeira República.

September 18, 2017 | Autor: Guilherme De Souza | Categoria: Habeas Corpus, Cidadania, Supremo Tribunal Federal, Brasil- Educação Na Primeira República - 1890-1930
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! Anais do ! V Seminário Nacional Sociologia & Política !

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14, 15 e 16 de maio de 2014, Curitiba - PR!

ISSN: 2175-6880

A Construção do STF na Primeira República (1889-1930) Guilherme de Souza Peasson1 Heloisa Fernandes Câmara2 Resumo: Este trabalho parte da reconstrução do papel político do Supremo Tribunal Federal (STF) na Primeira República (1889 – 1930) para analisar a formação da cidadania no Brasil e a influência dos regimes oligárquicos no poder central. Foi nos primeiros anos da República que o STF teve sua maior instabilidade. A mercê das influentes oligarquias regionais, viu nas relações políticas uma maneira para fixar suas bases. Espelhado no direito norte-americano, notadamente na Corte Suprema dos Estados Unidos, consolidou seu papel político e ganhou reconhecimento como órgão supremo na interpretação e aplicação da Constituição. Neste contexto deve ser ressaltada a histórica hipertrofia do poder Executivo, que neste momento foi simbolizada pelo abuso do Estado do Sítio (ES). Vários casos envolvendo este instrumento chegaram ao judiciário, e o STF já em seus momentos iniciais foi provocado para avaliar questões políticas frente à conjuntura política que havia se formado. Assim sendo, o Supremo figurou como importante ator político, especialmente através das decisões envolvendo Habeas Corpus. A unidade de análise se dará no papel político exercido pelo Supremo Tribunal Federal na Primeira República na garantia dos direitos individuais da população, com ênfase nos direitos civis e políticos. A linguagem de direitos proveniente da primeira constituição republicana foi utilizada para demandar perante o STF intervenção para resguardar posições individuais em risco devido a crises políticas. De tal modo, este trabalho parte da análise dos dois julgados e votos dos ministros do Supremo, em casos envolvendo conflitos políticos nos quais demandou-se habeas corpus (HC). Busca-se, assim, conhecer as instituições políticas e sociais vigentes, os mecanismos de governo e o conjunto de direitos e liberdades que formam o patrimônio moral do cidadão. Desta forma este trabalho visa um objetivo duplo: compreender a formação e institucionalização do STF, e também analisar em que medida os conflitos jurídicos chegavam e como eram respondidos pelo tribunal. Com isto esperamos contribuir para as análises sobre o STF e suas relações com a política. Palavras-chave: Supremo Tribunal Federal; cidadania; política, habeas corpus. Introdução Na primeira República houve o desafio de construção de instituições políticas que dessem estabilidade ao Estado. A supressão do Poder Moderador, que no Império tinha por principal função conferir unidade política, colocou como desafio a criação de mecanismos hábeis de lidar por um lado com a estabilidade e por outro estabelecer novos padrões de atuação a partir da utilização da linguagem jurídica. O presente trabalho analisa a construção e importância do Supremo Tribunal Federal nos primeiros anos do século XX a partir das discussões trazidas nos Habeas Corpus (HC) nº 1

Graduando do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba Doutoranda em Direito do Estado na Universidade Federal do Paraná. Professora do Centro Universitário Curitiba e pesquisadora do Núcleo de Democracia e Constitucionalismo (UFPR) e Dirpol (UFPR).

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14.166/1924 e nº 2.950/1910. Estes HC são relevantes por trazerem discussões jurídicas e políticas que tratam da forte influência exercida pelo instituto do Estado de Sítio (ES), bem como da utilização desse instrumento processual (HC) na construção da cidadania no Brasil. Isto porque o HC foi utilizado como defesa jurídica em relação a abusos cometidos pelo Executivo em contexto de crises políticas, logo, representou tanto uma provocação para que o nascente STF se posicionasse sobre o alcance das garantias, como também auxiliou na consolidação de mecanismos de limitação do poder político. Se hoje o STF apresenta-se como uma instituição sólida, historicamente percebemos a dificuldade de sua institucionalização e profissionalização, de maneira que a consolidação se deu a partir de sua “auto-construção”, ou seja, a partir de sua atuação política no cenário nacional. Como afirma Lêda Boechat Rodrigues (1968, p. 30): “desempenhou com eficácia em sua órbita de ação a defesa do federalismo, sem descurar da defesa das liberdades civis da população.” O STF foi um ator político relevante na Primeira República, ainda que neste contexto de auto-afirmação e autoconstrução. Neste contexto, o HC teve papel relevante para que o STF pudesse ser provocado para resolver disputas políticas e que tinham relação com a proteção de direitos individuais. Gladys S. Ribeiro afirma que o HC funcionou como um “atalho” para a população em geral chegar à democracia, sendo a República, através do Judiciário, seu guardião (RIBEIRO, 2009. p. 115). O HC tinha particular relevância no Brasil em decorrência do que ficou conhecido como “doutrina brasileira do Habeas Corpus”. No Brasil o HC era utilizado não somente para casos envolvendo liberdade de locomoção, mas todo e qualquer caso de abuso de poder ou ilegalidade. Este panorama modifica-se na Emenda Constitucional de 1926, a qual restringe o uso do instrumento, de maneira que “§ 22. Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que alguém soffrer ou se achar em imminente perigo de soffrer violencia por meio de prisão ou constrangimento illegal em sua liberdade de locomoção”.

1. Habeas Corpus nº 2.950/1910 – O Bombardeio de Manaus Este HC parte de uma situação absolutamente atípica, na qual houve, inclusive, ataque das Forças Armadas à cidade de Manaus, por suposta determinação do governo federal. Apesar de soar como absurdo, este episódio ocorreu no sábado de 08 de outubro de 1910 e suas repercussões foram julgadas pelo STF. Nesta data, as Forças do Exército e da Marinha bombardearam por aproximadamente dez horas a cidade de Manaus, obrigando o Governador Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt a passar o governo do estado de Amazonas ao seu substituto constitucional Antonio Gonçalves Pereira Sá Peixoto (RODRIGUES, 1968, p. 161).

No dia 7 daquele mês começara a correr pela cidade o boato de que a cidade seria palco de um grave acontecimento, que marcaria para sempre a história amazonense. Havia ordem federal para que a Marinha e o Exército abrissem fogo contra a cidade caso houvesse resistência por parte de Bittencourt na passagem de governo. Não foi de outra sorte. No dia 8, por volta das cinco e meia da manhã começou a coação. Como não se obteve sucesso por terra com o Exército, devido a forte força policial que guardava Bittencourt no quartel do regimento militar, os navios da flotilha romperam fogo contra a própria cidade. A situação na cidade de Manaus era nada menos que o repleto caos: enquanto os navios alvejavam os prédios, casas e até hospitais, nas ruas o Exército, a armada e a polícia travavam feroz combate. Por volta das 11 horas da manhã foram suspensas as hostilidades, o Coronel Pantaleão, que estava no comando dos ataques, ordenou que intimassem Bittencourt a fim que este se rendesse, sob pena de continuar os ataques. Porém, Bittencourt considerando que ainda poderia resistir, respondeu que não se submeteria a intimação feita. Em vista disso foram distribuídos boletins pela cidade com os seguintes dizeres: AVIZO Á POPULAÇÃO Insistindo o Sr. Governador do Estado em não passar o exercício de seu mandato, em virtude do disposto no art. 43 da Constituição, conforme o reconheceu o Congresso do Estado, as praças de mar e terra, solicitadas pelo Sr. vice-governador, em exercício, avisam á população que vão bombardear á cidade, a começar de 1 hora da tarde, afim de que todos tomem as devidas precauções para a garantia e segurança de suas vidas. (CORREIO DO PURUS, 1910).

Às 15h do mesmo dia se dava a primeira comunicação pública de Bittencourt desde o início do ataque às autoridades do Rio de Janeiro, dentre elas ao Presidente Nilo Peçanha. Guarda palácio 5 ½ manhã atacada fôrças marinha. Quartel 46 artilhado ostensivamente. Comuniquei imprensa, Congresso, protestando nome governo Estado violência não provocada, ataque direitos sagrados Estado. Taquigrafei Nilo. (SENADO FEDERAL, 1911. p. 39).

Vários cônsules estrangeiros e representantes da Associação Comercial haviam procurado o Coronel responsável Pantaleão Teles Queiros a fim de cessar os ataques, porém a resposta foi a de que arrasaria a cidade se Bittencourt não passasse o governo ao vice-governador (RODRIGUES, 1968, p. 162). Não restou alternativa a Bittencourt senão ceder para evitar maiores prejuízos materiais e derramamento de sangue. Entretanto, deixou claro que iria protestar e “fazer valer todos seus direitos, assim como os do Estado do Amazonas, perante os poderes competentes.” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1911. p. 484-485).

Naquele final de semana, não estava outra coisa nas páginas dos jornais senão o bombardeio ocorrido na cidade de Manaus: Na República jamais se viu uma vergonha desta natureza, de fôrças destinadas à garantia da ordem e da federação, bombardearem cidades que à custa de enormes sacrifícios o povo e as municipalidades levantaram. (DIÁRIO DA TARDE, 1910, p. 1). As tropas federais em Manaus ou agiram por determinação expressa do governo da União, e então é este o autor de um ato de barbariedade e selvageria que nos envergonha perante o mundo civilizado, ou por conta própria, dando prova do estado de anarquia, desordem e indisciplina em que caíram. (JORNAL DO COMÉRCIO, 1910. p. 3). Amazonas excede a tudo quanto se possa imaginar em matéria de anarquia política. A ambição partidária já não encontra entre nós obstáculos de espécie alguma. Chegamos, com o bombardeio de Manaus, a uma situação tresvairada de desgoverno. (CORREIO DA MANHÃ, 1910. p. 2).

Na segunda-feira subsequente ao atentado, o Congresso do Estado do Amazonas enviou à Mesa do Senado Federal um telegrama no qual informava que fora votado no dia 07 daquele mês a perda do mandato do governador, nos termos do art. 43 da Constituição Estadual (SENADO FEDERAL, 1910. p. 56), que proíbe a participação do governador em qualquer empresa industrial ou comercial, como membro da administração ou como simples associado. Assim, como o governador fazia parte da empresa tipográfica Amazonas, a consequência foi a perda do mandato, assumindo, portanto, o governo do Estado o seu vice: Sá Peixoto. Diante da situação, Bittencourt ainda teria transmitido um termo de renúncia datado de 10/10/1910, que confirmava a perda do mandato, e, ao final, ainda acrescentava: “ainda que o Sr. Presidente da República determinasse minha volta ao exercício de tal cargo, eu não o aceitaria.” (CORREIO DO PURUS, 1910. p. 2). Ocorre que, ter sido creditado a uma ordem do governo federal, não teria sido ordenado pelo então presidente Nilo Peçanha, que, de acordo com seu biógrafo, teria ficado furioso com a situação conforme narra Lêda Boechat Rodrigues. A verdade dos fatos foi a de que o senador Pinheiro Machado, que detinha grande influência do governo federal, e, à revelia do presidente, havia incitado os deputados estaduais contrários ao governador a depô-lo, garantindo, se necessário, apoio de forças federais na pessoa do Cel. Pantaleão Telles (RODRIGUES, 1968, p. 163). Na mesma ocasião Nilo Peçanha reuniu os líderes das duas casas legislativas, o senador Francisco Glicério e o Deputado J. J. Seabra, ainda o senador Quintino Bocaiúva, presidente da comissão executiva do Partido dos Republicanos e, por fim, o Ministro de Justiça e o Ministro de Guerra. O presidente, com muita afetação explicitou seu repúdio à situação ocorrida, declarando que não havia explicação para tal brutalidade, que os militares culpados deveriam ser punidos imediatamente (RODRIGUES, 1968. p. 163). Diversas foram as dúvidas levantadas quanto a legalidade e legitimidade da situação. Na Câmara, o deputado Barbosa Lima requeria que fossem solicitadas informações ao presidente para que tomasse providências para a reposição do governador de Amazonas em seu cargo. O deputado

Irineu, em seu pronunciamento, deu margem para o entendimento de que todos já sabiam previamente do que ocorrera naquele Estado, e, ao que parecia menos o presidente. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1911. p. 505). Na sessão do Senado do dia 11/10/1910, Pinheiro Machado condenou o bombardeio, porém defendeu a legalidade e legitimidade do ato de deposição do Governador de Amazonas, o qual foi “praticado com todas as formalidades exigidas pela Constituição do Estado.” Continuava: “[...] fazia votos – e faço ainda – pelo bem-estar dos meus amigos e, assim, gozei com essa diminuição de fôrças do governador do Amazonas. [...] Não há uma comunicação minha, telegráfica ou epistolar, aconselhando golpes de violência contra o governador daquele Estado.” O seu pronunciamento deixou margem para dúvidas quanto ao seu comprometimento com a verdade dos fatos. Transparece um certo contentamento com o episódio, pois não foi esclarecido o fato de um governador, e sua cidade inteira, ser bombardeada pelo próprio exército e marinha, nem a origem e os responsáveis pelo acontecimento, e, como tudo isto fosse apenas um mero dissabor, volta seu discurso para a legalidade dos termos da deposição. A própria negativa à comunicação telegráfica ou epistolar já era comprometedora, pois não havia acusações oficiais contra ele. No mesmo dia, o Jornal do Comercio publicou o telegrama que o presidente enviou a Sá Peixoto, o qual dizia que não podia dar responsabilidade à União pela situação que se criou. Não houve nenhuma comunicação anterior do Congresso de Amazonas ao presidente informando a situação. Dessa forma, diante dos termos em que se deu a deposição, o presidente cientificou Sá Peixoto que deveria passar de imediato a administração à Bittencourt. Na mesma matéria, o J.C. ainda escrevera: Não importa que o Congresso Estadual do Amazonas tivesse decretado a perda do mandato do Governador. A preterição de formalidades essenciais dá à intervenção intempestiva da fôrça federal nessa emergência um caráter excepcional gravidade e basta por si só para cobrir de vício insanável a deliberação legislativa engedrada para ter execução com auxílio da tropa da União e muito provavelmente só pela certeza prévia de tal apoio inconfessável. Estamos, inegàvelmente, diante de um dos mais graves e mais delicados acidentes do regímen federativo. Não fazemos ao Sr. Presidente da República a injúria de supor que S. Ex.ª não se dá conta exata da enormidade do atentado praticado contra o sistema constitucional do País e contra o nosso bom nome de povo civilizado. Preferimos crer que o Chefe do Estado, como toda gente sentada, não voltará atrás da providência que ordenou, nem se deixará levar por comunicações telegráficas de renúncia que podem ser apócrifas, e que, ainda que o não fossem, trairiam a mácula da coação, incontestável e ineludível para tirar-lhe a mácula da coação, incontestável e ineludível para tirar-lhe todo e qualquer alcance ou valor jurídico. (JORNAL DO COMÉRCIO, 1910. p. 3).

Em meio ao quebra cabeça surgido com o caso de Manaus, adveio, no dia subsequente ao atentado, a carta do Governador Bittencourt ao Senador Jorge Morais ligando as peças que não se encaixavam. Logo após o bombardeio, Bittencourt pernoitou no Consulado argentino, que fazia limite a sua casa, por onde passou escalando o muro. Porém, ainda na madrugada do dia 9, fora preso e levado por cerca de quarenta policiais primeiro a chefatura da polícia e depois à casa de Sá

Peixoto que, sob ameaça, foi obrigado a escrever a renúncia nos termos anteriormente citado. Quando conseguiu voltar a sua residência, com a ajuda de amigos, cônsules estrangeiros e representantes da Associação Comercial, embarcou para o Pará (RODRIGUES, 1968. p. 166). Somente no dia 13 Bittencourt enviou telegramas ao Rio de Janeiro informando publicamente que a renúncia era inválida, que foi realizada sob coação. Também informou que havia recebido o telegrama do presidente da república, no qual ordenava o General Pedro Paulo, comandante da região militar, que o repusesse no governo, que ainda levasse para Manaus o 46º e o 47º batalhão (RODRIGUES, 1968, p. 166). No dia 11, enquanto Bittencourt não contava ainda com a ordem de Nilo para repô-lo no governo, os advogados Orlando Lopes e Pedro do Couto impetraram Habeas Corpus em favor do governador. Distribuído ao Ministro Pedro Lessa, foi marcada a sessão de julgamento para o dia 15 de outubro. Em seu voto o ministro Lessa entendeu estar diante de um caso de violação da liberdade individual, visto que o Governador fora obrigado a deixar o palácio do governo do Estado, em Manaus, sendo, portanto, afastado de seu cargo. Por ser público e notório o fato, julgou desnecessário o pedido de informações. Além disso, já era de seu conhecimento a ordem de reposição do Governador. A partir da análise de seu voto nota-se uma situação inusitada: já havia conhecimento por partes dos ministros da ordem do presidente, portanto, em princípio o mérito do HC restaria prejudicado. Saindo pela tangente e, de certa forma reafirmando o papel do STF, o ministro entendeu que, como a reposição ainda não havia ocorrido de fato, a concessão da ordem mostravase pertinente. Este caráter político na posição adotada pelo Supremo fica corroborado pelo seguinte trecho do voto do Ministro Oliveira Ribeiro: Queiram ou não queiram, os que a todo transe pretendem enclausurar o Supremo Tribunal Federal num círculo de ferro, para nele só se tratar dos interesses individuais, é aqui que se interpreta fielmente a Constituição. Pretender fechar a ação do Supremo Tribunal neste regímen ao julgamento das causas cíveis e crimnais, é deixar ao abandono a Constituição da República. [...] Por que pedir informações ao Gôverno, quando o Presidente da República já enviou ao Congresso os telegramas oficiais onde são prestados todos os esclarecimentos? [...] Neste regímen, onde não há Federação sem Estados, o Sr. Presidente da República manda um General repor o Governador do Amazonas e garantir o Congresso Estadual. E num telegrama em que ressalta a duplicidade. ‘Repor o Governador e garantir o Congresso!’. Mas garantir o Congresso em que e porquê? Está aí um caso em que os membros do Supremo Tribunal Federal devem entrar na alta política da Nação, mas como juízes, como magistrados.(grifos nossos) (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 1910. Acordão nº 2950/1910).

Por fim, votou pela concessão da ordem para reposição do Governador de Amazonas a despeito de força federal, a despeito de qualquer poder estadual.

O voto dissidente deu-se por parte do Ministro Godofredo Cunha, declarando que também julgava ser caso de Habeas Corpus, porém negou a ordem. Entendeu estar prejudicado o mérito, uma vez que o Presidente já havia dado as necessárias providências para a reposição do governador, além disso, os autos não contavam com prova necessária e suficiente dos fatos. O acórdão lavrado pelo Ministro Pedro Lessa levou a seguinte ementa: Habeas Corpus para a garantia de liberdade individual de um Governador de Estado deposto e deportado pelas forças federais, que agiram sem ordem do Presidente da República. Como consequência da garantia da liberdade individual dá-se a do exercício das suas funções políticas. A coação prova-se com a notoriedade pública do fato: artigos de imprensa, discussões no Congresso Nacional, etc.

Passemos a analisar o texto do acórdão: [...] o paciente foi coagido a retirar-se do palácio do governo do Estado e sair de Manaós, pelas fôrças federais de terra e mar que alli estacionavam, as quaes chegaram ao extremo de bombardear a cidade, praticando todos estes actos sem nenhuma ordem do Presidente da República. Isto posto: Considerando que o caso indubitàvelmente é de habeas-corpus, porquanto o paciente foi constrangido na sua liberdade individual, ou de locomoção, que a Constituição Federal, no art. 72 § 22, garante nestes termos: ‘dar-se-á o habeas-corpus sempre que o indivíduo sofrer, ou se achar em iminente perigo de sofrer, violência ou coação, por illegalidade ou abuso de poder’. Se a ofensa à liberdade individual é manifesta, não menos evidente é a illegalidade da coação, pois o Exército e a Armada estão sob o comando superior do Presidente da República (Const. Fed., art. 48, ns. 3 e 4), e o próprio Govêrno Federal só pode intervir nos negócios peculiares dos Estados nos casos expressos do art. 6º da Constituição de 1891. Considerando que o fato de se tratar do governador de um Estado não é motivo legal para se não conceder a ordem impetrada. A liberdade individual é um direito fundamental, necessário como condição para o exercício de numerosíssimos direitos, não só dos indivíduos que nenhuma função pública exercem, como dos funcionários públicos de quaisquer categorias; [...] Se o Poder Judiciário deixasse de proteger a liberdade individual, sempre que esta fosse ofendida por uma coação ilegal, pelo fundamento de se envolver na espécie uma questão de ordem política, por êsse modo anularia um dos principais benefícios do habeas-corpus é que o direito ofendido, ou ameaçado, seja a liberdade individual, ou de locomoção, e que a coação seja ilegal, hipótese exatamente verificada nestes autos; [...] Na espécie dos autos, a coação ilegal que sofrer (e ainda não cessou) o paciente, tem sido de tal modo noticiada pela imprensa diária, tem sido tão discutida nas duas casas do Congresso Nacional, suscitando providência do Poder Executivo Federal, que, tratando-se de habeas-corpus, bem se pode considerar a prova do fato perfeitamente suficiente, sendo assim desnecessário o pedido de informações. Considerando, finalmente, que a asserção de ter sido o governador do Estado do Amazonas destituído do seu cargo pelo Poder Legislativo do Estado não justifica de modo algum a coação que sofrer, e ainda não cessou, o dito governador, porquanto sem a legalidade da destituição, matéria estranha ao habeas-corpus, em caso nenhum poder fôrças federais, destacadas de um Estado, sem ordem do Presidente da república, e com violação dos preceitos constitucionais, que garantem a autonomia dos Estados, coagir um governador, ou presidente, a retirar-se da sede do governo; O Supremo Tribunal Federal, visto não se poder considerar prejudicado o habeas-corpus, por ainda persistirem os efeitos da coação ilegal de que foi a vítima o governador do Estado do Amazonas, coronel Antônio Bittencourt, concede a êste a ordem impetrada, a fim de que cesse o constrangimento ilegal, devendo-se telegradar ao juiz seccional do Estado do

Amazonas para que faça cumprir a presente ordem, requisitando, se for necessário, fôrça federal (grifos nossos).

Acompanhou o voto do relator os Ministros M. Espíndola, Cardoso de Castro, Canuto Saraiva, Oliveira Ribeiro, André Cavalcânti, Ribeiro de Almeida e Amaro Cavalcânti. Divergiu o Ministro Godofredo, reafirmando que o próprio acórdão já evidenciara que já foram tomadas as providências pelo poder executivo, restando prejudicado o Habeas Corpus. Aqui se percebe claramente a amplitude dada ao instituto do Habeas Corpus para garantir a liberdade individual ao governador do Amazonas. Lessa expõe em toda sua essência a Doutrina Brasileira do Habeas Corpus nos termos por ele defendida, qual seja a garantia do direito individual da liberdade de locomoção ameaçada pela violação de quaisquer outros direitos, portanto uma forma indireta de violação da liberdade de locomoção. O instituto do HC se consagrou na Constituição de 18913 com grande margem para sua utilização. Não abrangia somente os casos de liberdade de locomoção ou o direito de ir e vir, assim como o era em suas origens, mas o remédio era destinado a qualquer ameaça de abuso de poder estatal. A construção doutrinária e jurisprudencial do Habeas Corpus fez com que o Brasil desenvolvesse uma teoria própria deste instituto, afastando-se das teorias inglesas e francesas que de praxe serviam de norte para o tecnicismo processual brasileiro. Havia três correntes de interpretação: a de Rui Barbosa, que entendia o remédio como instrumento para defesa de qualquer direito ameaçado, ou afrontado por abuso de poder ou ilegalidade; a segunda, que o restringia à liberdade de locomoção, nos termos que se herdara o instituto dos países europeus e EUA e; por fim, a corrente sustentada por Pedro Lessa, ministro do STF, que entendia que o instituto poderia ser utilizado em qualquer caso de ofensa à liberdade de locomoção por meio da afronta por outro direito. A teoria defendida por Lessa não se enquadra nos extremos da doutrina liberal. Estabelece um meio termo, no qual o STF atua como agente político na garantia de liberdades individuais, não alterando substancialmente a teoria clássica do HC. Imaginemos se fosse aqui adotada a posição 3

Sua primeira positivação se deu em 1832 no primeiro Código de Processo Penal (CPP), tornando efetiva a referida cláusula. Por este motivo o CPP se tornou um marco histórico do poder legiferante garantindo liberdades individuais brasileiras, mostrando-se como uma reação liberal aos abusos praticados por D Pedro I, mostrando desde o princípio a árdua tentativa de balanceamento entre Autoridade e Liberdade. Ao longo do Reinado de D. Pedro II o instituto foi se consolidando. Um aviso ministerial de 30 de agosto de 1863 o equiparou à prisão, para uso do habeas corpus, constrangimentos ilegais à liberdade física, independente de seu coator. Sendo que, mais tarde, o art. 18, § 1º, da Lei 2.033/1871, estendeu o remédio à ameaça de constrangimento. Finalmente, a constituição de 1891 adveio com a prescrição do habeas corpus em seu art. 72, § 22: Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 22 - Dar-se-á o habeas corpus, sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder.

conservadora da doutrina. No direito brasileiro ficaria sem guarida o a tutela dos direitos violados pelo absurdo ocorrido na cidade de Manaus em outubro 1910. Vemos aqui, portanto, a clara atuação do STF como ator político na democracia brasileira, a exemplo do direito norte-americano, em que a Corte Suprema assumiu um papel ativo na garantia da Constituição (ainda que em vários momentos este papel tenha sido bastante controverso). No momento em que o STF concede a ordem de Habeas Corpus fica evidenciado o “recado” enviado ao Executivo quanto à competência de apreciar o episódio ocorrido. Toda a violação de direitos garantidos pela Constituição cabe ao Supremo Tribunal Federal julgar, e não ao chefe do Executivo, como ocorreu. Apesar de não ser uma ordem manifesta de Nilo Peçanha, não caberia ao STF julgar o ocorrido e determinar que fossem tomadas as previdências que entenderem por adequadas. Um breve olhar na posição adotada pelos Ministros no julgado percebe-se que apenas Godofredo da Cunha divergiu de seus pares. Tomando como premissa de que a concessão da ordem pelo STF foi uma espécie de recado dado a Nilo Peçanha, era de se esperar que a divergência fosse se dar justamente em relação a Godofredo Cunha, tendo em vista seus estreitos laços com o presidente. Foi Nilo Peçanha quem o indicou a assumir a cadeira do Supremo (KOERNER, 1994, p. 62). Conta Koerner que quando Godofredo Cunha era juiz seccional do Rio de Janeiro concedeu Habeas Corpus para garantir as eleições de dezembro de 1896 em Campos, onde Nilo Peçanha era candidato. O juiz seccional requisitou em pessoa o vice-presidente Manuel Victorinno força federal para que consumasse a ordem concedida. G. Cunha coordenou 200 praças pelo município. Nesta ocasião Nilo teria prometido a Godofredo Cunha que o nomearia Ministro se fosse Presidente da República. Daí poder-se reforçar o caráter político do HC, bem como do próprio processo de nomeação do STF. A concessão do Habeas Corpus não se deu em prol exclusivamente do acontecimento, mas em razão da necessidade do STF em se reafirmar frente a interferência nas esferas de poder por parte do chefe do executivo. Portanto, além de o acórdão garantir a tutela do direito de liberdade individual violado frente ao absurdo ocorrido em Manaus, nas entrelinhas deixou transparecer a (auto) afirmação política do STF enquanto órgão supremo na interpretação da Constituição.

2. Habeas Corpus nº 14.166/1924 – “Sem Nota De Culpa” Já o Habeas Corpus nº 14.166/1924 tem por pano de fundo o conflito entre Judiciário e Executivo na garantia de liberdades individuais e as barreiras encontradas no exercício da cidadania.

O Ministro Guimarães Natal, relator, traz importantes considerações sobre o entendimento do STF acerca do instituto do Estado de Sítio à época, expondo que a medida excepcional não tem como pretexto legitimar os abusos cometidos pelas autoridades públicas, assim como ocorria constantemente diante dos excessos do Poder Executivo. Antes de analisar efetivamente ao texto do acórdão, voltaremos nosso estudo à trajetória do Ministro Guimarães Natal e sua relevância para compreender o período e o seu julgamento. Ainda que uma das críticas atuais feitas ao Supremo seja da excessiva politização na indicação de seus componentes (competência do Presidente da República), no início da Primeira República seus ministros eram bem menos “profissionais” no sentido que a maior parte tinha carreiras políticas e não eminentemente jurídicas. Assim, a análise do perfil dos julgadores, ainda que não seja o objeto principal deste trabalho, mostra-se promissora para a compreensão do caso. Guimarães Natal nasceu em 25 de dezembro de 1860, na capital da província de Goiás, mesma cidade do paciente dos autos do HC em apreço. Iniciou seus estudos no Liceu Goiano, concluindo na Faculdade de Direito de São Paulo, cujo curso terminou recebendo o grau de bacharel em ciências jurídicas e sociais no dia 15 de novembro de 1882. Regressando à cidade de Goiânia atuou como promotor público e curador de órfãos até 1885, quando foi nomeado juiz substituto, permanecendo no cargo por pouco mais de quatro anos. Com a Proclamação da República em 1889 fez parte da junta governativa até março de 1890, cargo sucedido pelo governador provisório. Apesar de participar da junta, ainda permaneceu como juiz substituto, e em dezembro de 1889 foi nomeado juiz da comarca de Rio das Pedras. Foi relator da comissão do projeto constitucional de 1889. Por meio de decreto foi nomeado o 1º vice-governador de Goiás, sendo exonerado também por decreto em 1891. Diante desta instabilidade gerada pela sucessiva emissão de decretos, candidatou-se a deputado, sendo eleito. Porém renunciou o mandato uma vez que foi nomeado Juiz federal de Goiás. Por fim, em 11 de setembro de 1905 foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, cargo este que permaneceu até 1927, quando foi aposentado pelo decreto de 13 de abril. A nomeação do Ministro Guimarães Natal foi um dos acordos da Política dos Governadores estabelecida durante o governo de Rodrigues Alves. De acordo com Koerner, sua nomeação para o STF foi uma forma pela qual este presidente assegurou a manutenção de sua aliança com a do governo. G. Natal era cunhado de Leopoldo de Bulhões, nomeado por Rodrigues Alves. Leopoldo Bulhões era Ministro da Fazenda e dominava as relações de poder do estado de Goiás, no período em que Natal era juiz federal. Ocorre que em 1904, o governador do Estado de Goiás rompeu com Bulhões, aliando-se à oposição. Na sucessão governamental, a oposição acabou por assumir o controle do estado, não restando alternativa a Bulhões senão pedir a demissão de seu cargo, Rodrigues Alves entendeu não

ser a ocasião, oferecendo-lhe uma cadeira do STF. Porém, Bulhões, ao que aparenta desiludido com as relações políticas formadas, ofereceu a cadeira a seu cunhado, Guimarães Natal (KOERNER, 1998, p. 61-62). Neste ponto cabe uma importante constatação a partir da sucessão governamental do Estado de Goiás: Miguel da Rocha Lima assumiu o governo do estado em 14 de julho de 1905, cargo em que permaneceu até 1909, ou seja, Rocha Lima era o nome de oposição justamente no momento em que o Leopoldo Bulhões optou por deixar o cargo que exercia como ministro da Fazenda, revelando aqui a manifesta hostilidade política entre estes. A ocorrência dos fatos objeto do presente HC se deu justamente durante o governo de Miguel da Rocha Lima, que exerceu o cargo de governador novamente de 25 de abril de 1924 a 25 de abril de 1924. Tendo em vista que o ministro G. Natal assumiu o cargo do STF a partir de uma desavença política justamente entre Miguel da Rocha Lima e Leopoldo Bulhões, seu cunhado, é de se esperar que o julgamento deste HC restaria extremamente influenciado, ainda mais por se tratar de abusos cometidos pelo próprio Estado, o que não se deu de outra forma, como veremos a seguir. Voltemos aos autos em apreço. O Habeas Corpus 14.166/1924, em que é paciente Jorge Pereira de Avellar, segundo alega o impetrante seu pai Antonio Pereira de Avellar, foi preso sem que tivesse cometido algum delito. Buscando informações junto ao Mal. Chefe da Polícia, recebeu a informação de seu filho era preso político. Afirma ainda que seu filho era perseguido pela polícia, pois respondeu processo por vadiagem4 e outro por furto. Cabe destacar a política de “limpeza” social adotada por Arthur Bernardes enquanto presidente neste período. Seu governo foi marcado pela utilização constante do Estado de Sítio como forma de limpeza da cidade (CÂMARA, 2010, p. 50). Este instrumento foi utilizado para promover a erradicação do pobre, afastar aqueles que não se enquadravam nos padrões de uma sociedade organizada, indesejados na construção de uma ordem social “moderna”. Desta forma, Jorge Pereira Avellar já estava preso no xadrez5 da Polícia Central, há 32 dias no momento da impetração do HC, sem que houvesse sequer nota de culpa ou processo instaurado. Durante o trâmite processual foi solicitado para que o Ministro da Justiça informasse se o paciente estava ou não preso, e foi determinado que informasse o que se apurou contra o preso na fase de inquérito, principalmente no tocante a acusação de Comoção Intestina ocorrida no dia 5 de 4

O crime de vadiagem consiste em uma contravenção prevista no art. 390 do Código Penal de 1890. A medida intervencionista busca um disciplinamento social a partir da reforma urbana e higiênica. Sua origem se dá a partir da herança de uma sociedade escravocrata, em que tinha como concepção geral a ideia de que o trabalho era algo degradante, destinado apenas à mão de obra escrava. 5 Xadrez é o termo utilizado à época para designar a cadeia, prisão ou cela, sendo inclusive o termo utilizado no HC 14.166/1924 objeto de análise.

julho de 1924. Ocorre que o Ministro da Justiça se limitou a informar que J. Pereira Avellar não se encontrava preso, não informando se houve a realização de inquérito ou mesmo formação de culpa. Apesar da ocorrência de manifestações pontuais neste período, sob a perspectiva da cidadania, estes autos de Habeas Corpus revelam uma importante característica da população neste período. A grande maioria da população guardava um sentimento de temerosidade em relação ao governo, portanto esses movimentos não seriam uma recusa à cidadania, mas uma afirmação de direitos por parte dos indivíduos que se defendiam do Estado. O Judiciário era solicitado em caso de abusos do poder, ainda que sem grande certeza quanto a uma resposta positiva. Pode-se considerar que houve um tensionamento através da propositura dos casos, para verificar qual a possibilidade de sucesso dada pelo judiciário6. Diante de abuso por parte do Estado, era ao Judiciário que os indivíduos recorriam a fim de obter uma resposta do Estado à suas demandas. O HC foi julgado prejudicado diante das informações prestadas pelo Sr. Ministro da Justiça, porém Guimarães Natal firma veemente posição em seu julgado quanto ao ocorrido. O Ministro declarara que, se o sítio suspendia temporariamente as formalidades constitucionais garantidoras da liberdade individual, em tempos normais não autorizava a prisão arbitrária de nenhum cidadão, mas unicamente a dos participantes do distúrbio que a medida excepcional estava destinada a reprimir. A sua detenção deverá estar pautada na prevenção de que a liberdade do detento não concorra para a intensificação do movimento subversivo. Argumentava, ainda, que não bastava à autoridade invocar o Estado de Sítio para que a detenção determinada, durante a vigência do Sítio, fosse considerada legal. Isso seria privar o detento dos recursos legais para provar a inexistência de motivos para a suspeita de sua conivência com os perturbadores da ordem. Na ocasião, o ministro frisa que dar ao Estado de Sítio a extensão que se lhe vinha dando, e entendê-lo assim em um país onde tanto se tinha abusado da medida excepcional que dela já se fizera meio ordinário, fácil e cômodo de governo, era converter no mais perigoso dos instrumentos de opressão, no meio mais violento de ataque à ordem constitucional, o recurso criado pela Constituição para restabelecê-la. Este trecho demonstra que não era novidade a violação de preceitos constitucionais em prol da satisfação dos interesses das oligarquias regionais, a qual fazia parte de uma cultura política legalista comum. A herança psicológica e a arrogância ideológica das auto proclamadas "classes conservadoras" forneceram as linhas mestras para os reflexos repressores de um Estado oligárquico e autoritário, antes de 1930. 6

Logo no início do governo do Marechal Floriano houve a utilização maciça do instituto do estado de sítio e neste contexto do desterro. Rui Barbosa propõe HC em nome dos desterrados para que a medida seja revista tanto por incompatibilidades formais quanto materiais. Entretanto o STF nega o pedido com o argumento de que não teria a atribuição de analisar questões políticas. Este entendimento muda alguns anos depois. (CÂMARA, 2010. 43-44). A partir deste caso pode-se perceber que a provocação do judiciário não era sinônimo de sucesso na demanda, até pelos interesses políticos envolvidos, mas em algumas situações era a única alternativa.

As oligarquias estabeleceram um acordo junto aos coronéis em que se dava apoio eleitoral em troca de controle dos municípios (KOERNER, 1994, p 61). O embate travado entre o Supremo e o Chefe do Poder Executivo nos primeiros anos de sua existência foi intenso, principalmente frente às medidas retaliatórias de Floriano Peixoto (COSTA, 2006, p. 32). As oligarquias regionais também chamadas de situações estaduais podem ser definidas por grupos de interesse que interferem nas relações políticas e sociais de forma que mandam, governam, dirigem, orientam, determinam o curso da economia e as expressões da sociedade, a qual se encontra tolhida, impedida, imobilizada. A Constituição de 1891 sofreu muitas contestações. Percebe-se em suas linhas não somente uma perspectiva jurídica, mas também a delimitação de seus titulares na distribuição de poder. A superioridade do STF, na forma do pensamento de Rui Barbosa e da tradição norteamericana, se mostra na verdade apenas no papel, revelando o caráter nominal da Constituição, assim como afirma Raymundo Faoro: “[...] como se ela estivesse despida de energia normativa, incapaz de limitar o poder ou conter os titulares dentro de papéis prévia e rigidamente fixados” (FAORO, 2001, p. 556 - 557). Nos primeiros anos da República, o Estado de Sítio foi utilizado equivocadamente como instrumento para promover abusos, para promover uma ditadura por conveniência. 7 Sua positivação pela Constituição de 1891 angariou as mais diversas interpretações, sua hermenêutica era estritamente política, objetivando o fortalecimento dos poderes governamentais. Dos doze presidentes da Primeira República, somente os presidentes Campos Sales, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Delfim Moreira não invocaram o ES. Mal. Floriano Peixoto foi o primeiro a utilizar do instituto em 1892, e merece destaque Arthur Bernardes, que em seu governo (1922-1926) atingiu 1.287 dias de vigência a medida excepcional (CÂMARA, 2010, p 42). Para Tarquino de Souza (SOUZA, 1895, p. 7), autor contemporâneo da Constituição de 1891, a expressão “Estado de Sítio” “designa a situação em que se acha uma praça de guerra ou ameaça por exercito inimigo”. Podendo ainda a expressão ser empregada no caso de “em que se ache qualquer parte do território nacional convulsionado por commoções internas e onde para a defesa do systema de governo em vigor, da ordem e da tranquillidade social” Sendo assim “o poder público é coagido a assumir poderes extraordinários, suspendendo as garantias constitucionaes e tomando medidas rigorosas e excepcionaes com a celeridade exigida pela gravidade dos acontecimentos”

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A decretação do Estado de Sítio não se dava nos termos previstos no texto constitucional: agressão ou ameaça estrangeira ou comoção interna. À pretexto de manter a ordem social, o ES era utilizado para que os grupos de interesse articulados com o Poder Executivo promovessem seus interesses afastando de certa forma a interferência do Judiciário em seus atos.

Partindo desta premissa, o ES é medida extrema positivada em dispositivo constitucional, que prevê a suspensão temporária de garantias referentes aos direitos de liberdade individual, enquanto a nação estiver sob ameaça externa ou subversão da ordem interna. Acrescenta-se a este conceito que deve o decreto que instituiu o sítio prever quais os garantias individuais que restarão suspensas e o seu prazo de vigência, ressaltando que o sítio deverá viger enquanto perdurar a ameaça. Em que pese o Estado de Sítio suspender garantias constitucionais, devemos nos atentar que de forma alguma se suspende a Constituição da República em sua integralidade. Todos os atos praticados durante os tempos de exceção deverão se submeter ao crivo constitucional, cabendo apreciação destes pelos órgãos jurisdicionais. A principal dissonância encontrada na interpretação do estado sítio se dá na expressão “garantias constitucionais”, prevista no art. 80 da Constituição de 1891, permitindo que seja usado como instrumento de opressão e arbítrio. Para definir “garantias constitucionais”, primeiramente é preciso definir “direitos individuais, explica Tarquino de Souza (1895, p. 15–17). Os direitos individuais compreendem as manifestações de do indivíduo para consigo e para com a sociedade, conservando, modificando e criando bens. Portanto os direitos individuais: “[...] são aspectos, manifestações da personalidade humana em sua existência subjectiva ou nas suas situações de relação com a sociedade ou os individuos que a compõem.” Enquanto que “as garantias constitucionaes stricto sensu, são as solemnidades tutelares, de que a lei circumda alguns desses direitos contra os abusos do poder. As garantias constitucionais protegem e amparam o exercício desses direitos”. Isto posto, pode-se afirmar que são as garantias constitucionais que podem ser suspensas, devendo o decreto do estado de sítio estabelecer expressamente quais são as garantias que serão suspensas. A limitação dos direitos dos cidadãos de forma arbitrária ou abusiva encontra uma barreira na própria ordem democrática e nos princípios republicanos. Mesmo em tempos de exceção, a decretação do Estado de Sítio não pode prever a suspensão da liberdade civil e política dos cidadãos, de forma que os direitos e as garantias fiquem totalmente a mercê da discricionariedade dos órgãos do poder público. A medida deverá se limitar aos efeitos estritamente necessários a garantir o restabelecimento da ordem pública. Assim o ES funcionará justamente para o fim que foi criado, garantir a ordem social e política em tempos de exceção, representando um “mal necessário”. Frente aos abusos cometidos enquanto decretado o Estado de Sítio na Primeira República, o HC se mostrou como o principal instrumento a funcionar de forma a frear os avanços do Executivo e garantir o direito de liberdade individual dos cidadãos perante o Estado.

Com o advento do dispositivo constitucional que prevê o Estado de Sítio surgiram as controvérsias e as mais absurdas interpretações do texto constitucional, as quais foram usadas para legitimar os abusos cometidos pelas autoridades administrativas. A referida medida causava controvérsias entre os doutrinadores à época. Enquanto uns entendiam que a medida se dava em prol da ordem do estado, equivalente a legítima defesa, outros entendiam que a medida era inútil, ineficaz e perigosa (SOUZA, 1895, p. 8). Afirma o ministro G. Natal que a errônea interpretação do Estado de Sítio permitira os mais revoltantes atentados contra a liberdade, servindo à satisfação de ódios e vinganças, com a detenção de grande número de cidadãos, civis e militares, por longos meses, ao cabo dos quais, depois dos maiores sofrimentos, eram postos em liberdade, por nada se haver apurado contra eles que justificasse as prisões. As autoridades que praticavam estes abusos nunca eram responsabilizadas, devido a outra interpretação da Constituição, segundo a qual, desde que o Congresso aprovasse o sítio, ficavam aquelas autoridades isentas de processo perante o Judiciário. Lembrava o ministro Natal que os defensores de tal interpretação esqueciam-se de que a aprovação do Congresso jamais teria a virtude de tornar constitucional o que era contra a Constituição, mesmo porque os seus próprios atos estavam sujeitos à anulação pelo Judiciário, caso violassem preceitos constitucionais. Recusar-se, pois, o Judiciário, sob o pretexto do Estado de Sítio, a acudir com esse remédio constitucional (HC) às vítimas de tais abusos e negar-se a responsabilizar criminalmente as autoridades que os houvessem praticado, seria faltar à sua alta missão tutelar da liberdade dos cidadãos. A doutrina defendida por Natal, ainda na vigência da Primeira República, não encontra respaldo na Suprema Corte no período tumultuado dos anos seguintes (COSTA, 2006, p. 91). Nos governos subsequentes o ES também foi amplamente utilizado, com o mesmo caráter aqui explicitado, qual seja garantir a vontade do Estado, mediante a violação dos precípuos mandamentos constitucionais, principalmente no tocante à liberdade individual, promovendo abusos em prol de uma suposta ordem social. Isto revela uma característica que acompanha a República desde seus primeiros anos de existência: a hipertrofia do executivo. Tendo assim o Judiciário um papel reacionário na política brasileira.

3. Considerações Finais O artigo parte da análise de dois HC julgados pelo STF para compreender o processo de formação política e jurídica desta corte, especialmente em casos envolvendo conflitos políticos. Em um momento de construção enquanto instituição, o STF viu na política um meio para se manter e impor sua presença no cenário político-social.

Entre trancos e barrancos o STF atuou ativamente na construção da cidadania do povo brasileiro, garantindo, por muitas vezes, que fossem reparados ou até mesmo não violados as garantias e direitos do cidadão frente aos abusos do Estado. O papel político do STF na primeira República pode ser entendido como a tênue linha entre autoridade e liberdade. O que os casos analisados nos mostram é que no momento de construção da república o judiciário utilizando a linguagem do direito teve grande repercussão na esfera política.

Referências: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão nº 2.950/1910, 15 de outubro de 1910. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 14.166/1924, Relator: Ministro Guimarães Natal. Distribuído em 03 de dezembro de 1924. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Anais Da Câmara Dos Deputados. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Vol. V, 1911. CÂMARA, Heloisa Fernandes. Estado de Exceção entre o Direito e a Vida: Soberania, Biopolítica e Campos. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. COSTA, Emília Viotti da. STF: O Supremo Tribunal Fedeal e a Construção da Cidadania. 2 ed. São Paulo: UNESP, 2006. ENDOIDECEU! O bombardeio de Manaus. Diário da Tarde, Bahia, 10 out. 1910. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 3. ed. São Paulo: 2001. KOERNER, Andrei. Judiciário e cidadania na constituição da República Brasileira. São Paulo: Hucitec/Departamento de Ciência Política, 1998. KOERNER, Andrei. O poder Judiciário no Sistema Político da Primeira República. Revista USP, São Paulo, n. 21, 1994. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/26936/28714> Acesso em: 02 out. 2013. PARSIVAL. Manáos 11 de outubro de 1910. Correio do Purus, Manaus, ed. 0077, 6 nov. 1910. RIBEIRO, Gladys Sabina. Cidadania e luta por direitos na Primeira República: analisando processos da Justiça Federal e do Supremo Tribunal Federal. Tempo, Niterói , v. 13,n. 26, 2009 . Disponível em: . Acesso em: 02 Out. 2013. RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Vol. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

SENADO FEDERAL. Anais do Senado Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Vol. IV, 1910. SOUZA, Tarquino de. O Estado de Sítio. Revista Brasileira, Rio de Janeiro, T III, 16º fasc., p. 6, 15 ago. 1895. VIDAL, Gil. Brutalidade e Selvageria. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 jan.1910, ano X, n. 3372, p. 2.

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