A contemporaneidade do não coetâneo: os modos de produção na obra de Nelson Werneck Sodré

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A contemporaneidade do não coetâneo: os modos de produção na obra de Nelson Werneck Sodré Raul Lucas Tanigut Brisola Maciel1

Resumo: O desenvolvimento dos modos de produção no Brasil ocorreu de maneira muito específica, não se dando de maneira linear, fato estudado por diversos autores das ciências sociais. Nelson Werneck Sodré, a partir da sua posição política militante e de referencial metodológico e teórico marxista, dedicou grande parte da sua obra à questão do desenvolvimento nacional. A leitura dos seus principais livros indica que os diferentes modos de produção, com as suas características e mesmo as suas contradições, desenvolveram-se com certa contemporaneidade, o que é evidenciado por termos como “regressão feudal”, “semifeudalismo” e “restos feudais”. Entre os consequentes efeitos sobre as relações sociais oriundas dessa contemporaneidade de características de modos de produção não coetâneos pode ser colocada a convivência do ingresso (ou da sua tentativa) no mundo capitalista, fato observado sobretudo nas relações sociais configuradas nos grandes centros urbanos, com o ainda existente domínio das oligarquias rurais. Os interesses de classe que conduziram a esses processos de desenvolvimento do capitalismo e, simultaneamente, regresso ao feudalismo contribuíram para a sua interpretação de que apenas a partir da aliança entre os trabalhadores e a burguesia nacional ocorreria a revolução nacional-burguesa e a transição completa para o capitalismo - expectativa frustrada alguns anos depois de suas primeiras formulações. Palavras chave: pensamento social, modos de produção, Nelson Werneck Sodré.

Introdução

A ideia de que a passagem – ou, ainda, de que não é possível definir a passagem – entre diferentes modos de produção ou formas de governo nunca se deu no Brasil de maneira linear está presente em muitos estudos, sendo a obra de Nelson Werneck Sodré de grande destaque, principalmente pela maneira como ele expõe a coexistência de características de regimes diferentes e a forte influência dos aspectos coloniais mesmo nos dias atuais. O ponto do qual partimos, focado na análise dos modos de produção, se deve à sua importância para as relações sociais entre os homens, afinal, “a base da vida em sociedade é a produção: para viver é preciso produzir; para 1

Graduado em Ciências Econômicas pela UFPR. E-mail: [email protected].

produzir é preciso trabalhar” (SODRÉ, 1976, p. 3) e isso ocorre sob formas específicas a cada tempo e a cada sociedade. Tomando a comunidade primitiva, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo como os regimes de produção até hoje conhecidos, Sodré (1976) considera que, à exceção do último, os demais existiram e coexistiram no Brasil ao longo do tempo, sendo a “contemporaneidade do não coetâneo” uma das particularidades da nossa formação histórica. Sodré (1990, p. 10) traça em poucas linhas o que pretendemos explorar nesse estudo sobre como é possível constatar a existência e vigência, no Brasil, de etapas diferentes da história, ao mesmo tempo. Melhor dito: a existência de áreas territoriais brasileiras que vivem etapas diferentes. Em linguagem um pouco pretensiosa, já se disse, do fenômeno, que se trata de contemporaneidade do não coetâneo, isto é, da existência, no mesmo tempo, de realidades sociais diferentes, mas no mesmo país ou colônia. Alguém mencionou já o fato de que a viagem ao interior brasileiro corresponde não apenas a uma mudança de fusos horários, mas a uma mudança de etapas históricas. Muitos já observaram as diferenças, no mesmo tempo, na mesma época, entre o litoral exposto às influências externas, em contato com o mundo, e o interior, onde são conservados – e isto é tanto mais verdade quanto mais se recuar no tempo – costumes de outra época. O Brasil apresentou, e ainda apresenta – hoje, com efeitos já bastante atenuados, na verdade –, etapas diversas de desenvolvimento, para usar um conceito generalizado e aplicado na economia. A uniformidade é, ainda, entre nós, uma tendência que vem se acentuando, sem dúvida, mas aquela heterocronia existe e funciona, condicionando comunidades e sociedades. Trata-se de outro aspecto – agora particular, porque brasileiro – do desenvolvimento desigual.

Paiva (2009, p. 91) aponta que a expressão “contemporaneidade do não coetâneo”, originalmente em alemão, do filósofo Ernst Bloch, “foi colocada em uso ainda nos anos 50 através dos intelectuais que aturam no antigo Instituto Ensino Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)”. Outros autores apresentam diferentes versões: Villas Bôas (2005) atribui o termo ao historiador de arte Wilhelm Pinder e Oliveira (2000), ao economista Ignácio Rangel. Embora possa ter sido utilizada em diferentes momentos e contextos, não é o objetivo aqui precisar o sua origem, mas sim o seu significado e, nesse sentido, “contemporaneidade do não coetâneo” implica a ideia de

que “a realidade sempre se constituiu de camadas que vão se superpondo e mixando nos seus mais diferentes níveis” (PAIVA, 2009, p. 91). Com base nisso, nas próximas páginas fazemos uma análise dessa coexistência e superposição de aspectos de modos de produção que vão se desenvolvendo ao longo dos séculos da nossa história, buscando compreender como Nelson Werneck Sodré desenvolve a questão em alguns dos seus principais textos.

Método e materiais Como afirmou o próprio autor, “a repartição cronológica não passa, no fim de contas, de simples ficção de ordem didática, destinada a distinguir melhor cada uma das fases, na realidade perfeitamente encadeadas” (SODRÉ, 1978, p. 64), o que certamente explica o fato de alguns livros seus serem divididos antes por aspectos qualitativos – políticos, econômicos, culturais, por exemplo – do que pela mera divisão cronológica. Dessa maneira, esse texto também não se prende a rígidos recortes temporais, dando por vezes a impressão de que ele “vai e volta”; entendemos que essa seja a melhor maneira de mostrar as correlações e coexistência que pretendemos como objetivo deste estudo. Se a não-linearidade é, afinal, característica fundamental do nosso desenvolvimento (cultural, social, político, histórico e econômico), estudá-lo de maneira linear e cronológica não é tarefa das mais fáceis. Concordamos com o autor quando este afirma que “nada empresta um caráter mais falso às narrativas históricas do que a apresentação pura e simples dos seus diversos episódios, sem o encadeamento que os liga na continuidade que é o dogma da evolução das sociedades” (SODRÉ, 1998, p. 77). Utilizamos aqui principalmente três textos de Nelson Werneck Sodré:, Introdução à Revolução Brasileira, Formação Histórica do Brasil e Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil. Outros textos também foram trabalhados, bem como análises já feitas a respeito da vasta obra de Sodré, mas formando aqueles três textos a base desse estudo; o que justificamos pelos seguintes aspectos: Introdução à Revolução Brasileira, que trabalhamos com a sua quarta edição, de 1978 – que contempla textos adicionados em relação à primeira edição, de 1958 –, tem como um dos principais pontos o enfoque na regressão feudal e no desenvolvimento desigual dos modos de produção nas diferentes áreas do Brasil, analisando ainda a perspectiva que solucionaria os problemas elencados;

De Formação Histórica do Brasil, lançado em 1962, e do qual utilizamos aqui a nona edição, de 1976, extraímos a contribuição de Sodré para análise da coexistência das formas feudais e semifeudais com o país que ensaiava o desenvolvimento do modo de produção capitalista, marcado ainda, portanto, pelos restos feudais e pelo seu passado colonial; E, por fim, Capitalismo e Revolução Burguesa no Brasil, de 1990, por ser um texto em que “se acentuam o combate político e a polêmica teórica e o autor é levado a defender os principais pontos de sua abordagem histórica do desenvolvimento brasileiro”, pois levou em conta as críticas a outros textos seus, como o Formação Histórica do Brasil, e por “sintetizar o pensamento histórico do autor estreitamente relacionado à fase do desenvolvimento capitalista” (SODRÉ, 2010, p. 23). Sendo destaque dentro da obra de Sodré a sua contribuição ao estudo da formação da cultura brasileira, embora não cabendo abrangê-la aqui, destacamos que inclusive no estudo da formação da Universidade na sociedade brasileira podemos observar as “reminiscências feudais”: A Universidade, entre nós, pois, como em toda a América Latina, sofre pressão dupla, impedindo sua expansão: a das reminiscências feudais no ensino, fixadas particularmente em corpo docente anquilosado nas cátedras, nas formas superadas de aferição do conhecimento, nos concursos bizantinos, nos ritos medievais; e, por outro lado, o do colonialismo cultural, imposto pelo imperialismo, alicerçado não apenas em um sistema policial incompatível com o desenvolvimento científico e em recursos materiais copiosos, meios tecnológicos moderníssimos, meios de comunicação de massa arrasadores. Ela sofre, assim, do que há de mais atrasado no domínio do conhecimento, do que há de mais moderno no domínio da técnica; e se desumaniza, nessa pressão dupla, que a deforma e corrompe. (SODRÉ, 2010, p. 188)

Embora constitua aspecto essencial na obra e inclusive nos textos que selecionamos, não nos aprofundaremos aqui a fundo na questão do nacionalismo e da revolução burguesa como processo que permitira a conclusão do desenvolvimento do capitalismo, por, em primeiro lugar, compreendermos o limite desse espaço para abordar todos os pontos da obra de Sodré e, em segundo lugar, por concordarmos com o autor quando afirma que:

O capitalismo brasileiro avança devagar, aproveita as brechas para avanços mais rápidos, transige sempre com as relações políticas mais atrasadas e as econômicas que as asseguram, manobra, recua, compõe-se. Gera uma burguesia tímida, que prefere transigir a lutar, débil e por isso tímida, que não ousa apoiar-se nas forças populares senão episodicamente, que sente a pressão do imperialismo mas receia enfrentá-la, pois receia mais a pressão proletária. (SODRÉ, 1990, p. 30).

Análise dos textos selecionados de Nelson Werneck Sodré

Para compreensão do processo que se desenvolveria no Brasil, é necessário compreendermos antes o que já se desenvolvia na Europa: com o domínio do capital comercial durante o século XVI na Europa e com o consequente domínio da circulação sobre a produção, aponta Sodré (1978), através dos quais era possibilitado oferecer “a umas áreas o que outras se especializavam em produzir”, a especialização na produção de determinadas mercadorias poderia ser inevitável conforme os interesses daquele capital, tornando-se “muito mais rigorosa e impositiva”. A relação dessas condições com o modo de produção praticado nos séculos iniciais da nossa história demonstram que “a situação colonial, por isso mesmo, é muito mais caracterizada no campo econômico, – pelo modo de produzir as mercadorias e pela escolha das mercadorias a produzir, do que pelo campo político, pela subordinação a determinada metrópole” (SODRÉ, 1976, p. 188), sendo, portanto, a característica feudal da economia brasileira definida não pelas transações com Portugal, mas antes pela organização da propriedade e da produção brasileiras. Ao tratar da Revolução Comercial e da incorporação de Portugal à Idade Moderna, Sodré (1978) aponta como causa para a demora do ingresso do Brasil no desenvolvimento do capital comercial o fato de, ao contrário do ambiente encontrado no Oriente, ser aqui necessário criar as riquezas e o seu sistema de exploração, sendo o processo da feitoria (baseada na exploração do pau-brasil) uma fase proto-histórica. Sobre as relações feudais nesse período colonial, Sodré (1978, p. 20) afirma: Oriunda de um país feudal, a legislação tem características feudais, naturalmente.

A empresa das grandes navegações, as descobertas

consequentes e o desenvolvimento mercantil pertenceram, pelas suas próprias características, a uma etapa anterior ao capitalismo, a etapa do capitalismo

comercial: os dispositivos legais aplicados ao sistema com que se iniciou entre nós, praticamente, a colonização são caracterizadamente feudais. É preciso considerar, entretanto, a realidade colonial, que se sobrepõe à legislação. Assim, a legislação é feudal, mas a realidade gera o escravismo.

Pois, conforme Ducatti (2009, p. 2), Sodré não se refere a feudal como se houvera existido um modo de produção feudal, ou mesmo uma feudalidade medieval, com a instituição do senhorio sobre uma economia natural, como querem seus críticos que provavelmente o leram sem dar conta que o autor, reiteradamente, empregava feudal como estrutura de uma mentalidade de uma elite colonizadora, que conheceu a vassalagem: elemento característico da vida social feudal.

Em seguida, Sodré (1978) analisa a composição das classes sociais portuguesas à época e indica a relação entre a emancipação, de fato ou de direito, dos servos em relação aos senhores e que tal insubordinação intensificou nos territórios metropolitanos a ideia de necessidade do regime escravo de trabalho, o que se realizou nos territórios ultramarinos, como um elemento a mais para o desenvolvimento do capital comercial. Destaca-se o desenvolvimento do feudalismo “na área vicentina, na área pastoril sertaneja, na área amazônica, na área pastorial sulina, na área mineradora, depois da derrocada da economia aurífera” (SODRÉ, 2010, p. 38). A estrutura social que então se desenvolve no Brasil atende perfeitamente as necessidades do desenvolvimento do capital comercial – estabelecem as classes dominantes, a daqui e a de lá, uma associação de interesses que “permitia à Coroa gerir a circulação, enquanto a classe dominante colonial geria a produção” (SODRÉ, 1976, p. 91). A sociedade da primeira fase colonial, pois, tem linhas rígidas e muito simples. Na cúpula, encontramos os proprietários de terra e de escravos, – aqueles que, com o passar dos tempos, constituiriam o que alguns estudiosos apreciam denominar patriciado rural, aristocracia rural, nobreza rural. Importa definir tal classe, e ela se define, com precisão absoluta, segundo o direito e o exercício da propriedade, propriedade da terra e propriedade do escravo, nitidamente conjugadas, pois o sistema deixaria de funcionar sem essa conjugação. Embaixo, encontramos as cada vez mais numerosas massas de escravos, sem qualquer direito, tratados os seus indivíduos como coisas pela própria legislação, fornecendo trabalho sem perceber qualquer recompensa em moeda, assegurada apenas a subsistência, no interesse do

proprietário e não segundo princípios éticos. De permeio, praticamente, nada existe, – não existe espaço para o trabalho livre, não existe coisa pública, não existe povo, e não pode existir, pois, classe média. E nem existe, de outra parte, qualquer elemento caracterizadamente pertencente à burguesia. (SODRÉ, 1978, p. 29, grifos do autor).

Apesar de ser “extemporâneo no processo histórico” (SODRÉ, 2010, p. 66), por ser o escravismo colonial essencialmente diferente do colonialismo clássico, a introdução do trabalho escravo complementava o ideal da Revolução Comercial e se encaixava com a necessidade da colônia da produção dos gêneros chamados coloniais. O trabalho escravo não passa, conforme Sodré (1978), de uma forma de integração das áreas comerciais e coloniais no desenvolvimento mercantil. É assim estabelecida “a rígida ossatura da empresa comercial no Brasil: a grande propriedade e o trabalho escravo, gerando a grande produção para abastecer mercados externos” (SODRÉ, 1978, p. 69). Parte do modo como se desenvolve o sistema produtivo – isto é, com o “reaparecimento do trabalho escravo numa fase histórica em que parecia definitivamente superado e relegado ao esquecimento” (SODRÉ, 1976, p. 75) – nos primeiros séculos da nossa história carregam os traços já evidentes no comércio de especiarias realizado no oriente: pelo fato de que à metrópole interessava apenas o consumo dos produtos aqui extraídos, o que se caracteriza pela indiferença ao modo de produção das especiarias, por ter a especiaria um valor de uso e ser consumida improdutivamente; podendo, assim, o comércio das especiarias, que alimentava o capital comercial que o operava, desenvolver-se de maneira desligada da produção e do consumo; “trata-se de comerciar, pois, e não de produzir, nem de povoar, nem de colonizar” (SODRÉ, 1976, pp. 37-38). É dessa maneira, segundo Sodré (1976, p. 70), que assiste-se “o colonizador, originário de uma área em que domina o modo feudal de produção, regredir ao modo escravista, por imposição da finalidade mesma da produção colonial”, sendo que “a exploração colonial e o trabalho escravo são sinônimos, são peças inseparáveis do mesmo processo”. Outra característica essencial do modo de produção escravista brasileiro é o fato de ele não decorrer da desintegração da comunidade primitiva, pois esta não deixa de existir e de viver ao seu modo quando expulsas ou quando em fuga das áreas de produção coloniais (SODRÉ, 1976).

Não há, pois, evolução entre a comunidade primitiva e o escravismo; aquela permanece até hoje, salvo quando o avanço das relações capitalistas, como nos nossos dias, ameaça contemplar a destruição dos stocks indígenas. A sociedade escravista é formada, no mesmo território, por elementos provindos do exterior. (SODRÉ, 1990, p. 11).

Sodré (1976, pp. 76-77, grifo do autor), apontando que “os modos de produção sucedem-se uns aos outros e impõem-se uns aos outros, na medida em que a produtividade do anterior se mostra insuficiente e a do novo abre perspectivas ao desenvolvimento material”, pergunta “como poderia, numa etapa em que preponderava o modo feudal e começava a apontar o modo capitalista em largo esforço, alinhar-se o modo escravista, e encontrar um lugar. se era mais atrasado, se a sua produtividade era inferior?”. Isso se deve, segundo o autor, ao fato de que na história colonial “tudo se mede em quantidade e não em qualidade”, o que significa que, em função da produção em larga escala, o “modo escravista aqui estabelecido consegue alinhar-se com a de outros modos e competir ou figurar no mercado com o que produz, na realidade, porque é colonial”. Analisando documentos como as Cartas de Doação e o Regimento de Tomé de Sousa, ressalta: Não é difícil concluir que tal legislação trazia evidentes marcas feudais. Nem poderia ser de outra maneira, uma vez que a classe dominante em Portugal, na época, era a dos senhores feudais. Não há coincidência, também, no fato de que surgem novos pontos de vista quando os estudiosos tomam em consideração os fatos e não as leis, regulamentos e cartas régias. A legislação foi uma coisa; a realidade foi outra coisa. Do exame da realidade – como a colonização aconteceu, e não como foi planejada, – é que derivam as teses novas, de regime capitalista ou de regime escravista, declinando a de regime feudal. Os que apoiaram a tese da existência de características capitalistas na empresa de colonização foram levados a isso, certamente, pela confusão que reinou por longo tempo entre as noções de capital comercial, características da fase mercantil, e capitalismo. Hoje, parece claro que, embora tenha contribuído para a transformação de que resultou o aparecimento do modo capitalista de produção, o capital comercial, como se apresentava na época da expansão ultramarina, estava longe de aparentar-se e mais ainda de caracterizar o referido modo de produção. Como estava longe de aparentar-se com aquilo que, no modo de produção capitalista, tem o mesmo nome de capital comercial. Assim, a conclusão a que leva o exame da realidade é que

o Brasil iniciou a sua existência colonial sob o modo escravista de produção. (SODRÉ, 1976, pp. 81-82).

A inexistência de mercado interno era uma das consequências do fato de a produção ser toda voltada para fora e não para o consumo interno, e mesmo a produção agrícola de subsistência não tinha qualquer expressão econômica, pois não se destinava ao mercado e não tem valor de troca (SODRÉ, 1978). A produção era, portanto, de “redoma”, pois, segundo Sodré (1976), ela era fechada por dentro, dada a ausência de mercado interno, e por fora, pelo regime de monopólio comercial. Longe, e muito longe, de estabelecer as bases para uma exploração dos recursos que a terra pode proporcionar, e em que fiquem associados os seus moradores ou filhos, a grande empresa comercial da colônia malbarata os seus elementos, relega a um nível baixíssimo a população, desmoraliza o trabalho, concentra os lucros em poucas mãos, está sempre longe de deixar vestígios duradouros, dissipa os recursos locais e apenas complementa a estrutura econômica europeia. (SODRÉ, 1978, pp. 69-70).

Após apontar as evidências de que a dinâmica interna da estrutura colonial ocorre como peça auxiliar da dinâmica do capital mercantil, longe de, porém, sê-lo de fato, prossegue, ainda, afirmando que o que aqui foi praticado durante os primeiros séculos não era agricultura e nem mesmo poderia ser comparado a tal, por enriquecer a poucos e empobrecer a todos os demais e por não transbordar os elementos substanciais de acumulação, os quais permitiram um real desenvolvimento local (SODRÉ, 1978). Ao final do século XVIII, como consequência do regime aqui adotado, a estrutura social brasileira apresenta-se ainda como uma estrutura que “antagoniza os que trabalham e os que usufruem do trabalho de outros: entre senhores e escravos, entre senhores e trabalhadores livres, entre os que detêm a propriedade dos meios de produção e os que dela estão privados” (SODRÉ, 1976, p. 175). E, mais tarde, a própria abertura comercial, garantindo a estabilidade dessa base agrária, fundamentada na grande propriedade, a produção de gêneros coloniais e no trabalho escravo, “em vez de representar, pois, uma transformação substancial naquela estrutura, a integração na economia internacional fortalecia, sob todos os sentidos, as suas linhas essenciais”, reforçando a noção de que, embora o capitalismo já se desenvolvesse em outros países, no Brasil “era a estrutura econômica colonial que proibia qualquer mudança, pela sua presença maciça e profunda” (SODRÉ, 1978, p. 81). O que se define, portanto é que

A colônia era colocada, desde os seus primeiros dias, na rígida dependência ao mercado externo: num mercado em que se gerava o capitalismo mundial, produzia mercadorias – no início, o açúcar – à base de relações de produção pré-capitalistas. Não era capitalista, mas constituía fonte de acumulação para o capitalismo ascendente. E isto só era possível, justamente, por força do escravismo aqui instalado desde o início da colonização, superada a fase proto-histórica do escambo do pau-brasil. Eram, pois, três níveis históricos que se ajustavam para isso: o feudalismo europeu, em que se gerava o capitalismo, e o escravismo brasileiro, que se fundia com o feudalismo trazido da sociedade metropolitana. A contemporaneidade destes três regimes, que concorriam para estruturar a maior empresa comercial do tempo, apresenta-se, desde logo, como uma das mais complexas singularidades que a história conheceu. E marca a complexidade, que se prolonga no tempo, de uma sociedade em que os limites entre os três regimes – feudalismo, escravismo, capitalismo – ficam imprecisos e conservam essa imprecisão através dos séculos. (SODRÉ, 2010, pp. 65-66).

Mesmo quando da queda do monopólio português do comércio do açúcar no mercado internacional, conforme Sodré (1976, p. 135), a economia colonial teve de “adaptar-se às transformações que faziam emergir, no ocidente europeu, o modo capitalista de produção”, o que não quer dizer que ela o absorvesse para desenvolvê-lo internamente, mas apenas que se manteve em condição de peça auxiliar ao desenvolvimento da metrópole, porém em um novo contexto. Esse tipo de exploração apenas deixa de atender às necessidades dos produtores em torno da metade do século XVIII, ao mesmo tempo em que, com um grande crescimento populacional, “formavam-se numerosos grupos que, não sendo de proprietários ou de escravos, estavam inteiramente à margem da estrutura da produção, não se enquadravam nela” (SODRÉ, 1978, p. 75). A predominância rural perde espaço para o crescimento urbano e a busca por novas terras, necessária em função do crescimento populacional e dos “processos agrários destrutivos”, foi acompanhada pelo avanço em questões como escoamento e comunicações, mas o que se via quanto às técnicas praticadas era pouca ou quase nenhuma evolução. Com o desenvolvimento dos aspectos urbanos e industriais e com o maior consumo de produtos importados, o Brasil continuava sendo uma área com uma estrutura anacrônica de produção, a qual utilizava ainda as técnicas mais rudimentares e o trabalho servil. (SODRÉ, 1978, p. 83). O traço essencial da economia brasileira nesse período, prossegue Sodré (1978, p. 84), é se tratar de uma estrutura de

mercantilismo colonial “com a particularidade de submeter-se, de condicionar-se e de servir ao capitalismo, complementando setores a que ele não podia acudir, entrosandose em suas necessidades e integrando-se, sem qualquer discrepância, em seu desenvolvimento”. Sobre o momento em que a expansão dos mercados consumidores se apresentava como indispensável, Sodré (1976) apresenta duas barreiras fundamentais: o monopólio comercial e o trabalho escravo. Como a classe dominante colonial e a metropolitana já não estavam tão alinhadas em seus interesses, estabeleceu-se “um acordo entre as forças externas e as forças internas interessadas na eliminação do regime de monopólio”, e, assim, “permanecendo secundária, a contradição referente ao tráfico negreiro e ao trabalho escravo prolongar-se ia por quase todo o século XIX, gerando sucessivos atritos entre as forças internas e as forças externas” (SODRÉ, 1976, pp. 173174). Derrubados os obstáculos ao desenvolvimento do capitalismo internacional, eram mantidas as características essenciais do colonialismo brasileiro. Embora, portanto, desenvolvesse o capital comercial e esse servisse como grande estímulo para a passagem ao capitalismo, ele não representava por si só o capitalismo; o capital comercial, inclusive, perde no modo de produção capitalista a independência que antes detinha, para tornar-se capital dependente e auxiliar do capital industrial (SODRÉ, 1976). O processo que dá surgimento ao capitalismo, é preciso se ter em mente, é endógeno e “surge de condições internas do país ou região em que se implanta; na surge de condições externas, não surge do capital comercial, como causa única e necessária” (SODRÉ, 1976, p. 24). As passagens do período colonial ao imperial e, posteriormente, ao republicano têm nessa mesma obra abordagem semelhante e que reforçam a ideia de que as alterações políticas sempre tiveram como característica essencial a manutenção da estrutura de classes estabelecida. Sobre a primeira passagem, aponta o autor que Por mais suave que fosse a transição, entretanto, e por maiores que fossem os esforços em fazê-la suave, acarretando o mínimo possível de modificações, o momento da autonomia política representou uma pequena pausa na inexorável pressão representada pelo domínio absoluto da classe proprietária, um rápido hiato, até que ela reorganizasse as suas fileiras e se acomodasse ao novo quadro que se apresentava, recrutando ainda os elementos que iriam, na construção administrativa e política que se levantava, definir a sua posição e assegurá-la. (SODRÉ, 1978, p. 39).

Em outro texto, Sodré (1976, pp. 187-188), mostra que a classe dominante colonial “transforma a sua aliança com a classe dominante portuguesa numa aliança com a burguesia europeia”, recebendo em troca “a liberdade de comércio, como conquista econômica; o aparato liberal, como forma exterior” e cuidando de que as alterações fossem, na prática, as menores possíveis, assim, “quando a classe dominante brasileira empresa a autonomia e a realiza com um mínimo de alterações internas, transfere, na realidade, da fase anterior à fase posterior uma estrutura colonial de produção”. Quanto à segunda, quando “o império se desfazia, pouco a pouco, num processo de desagregação por vezes claríssimo, silencioso, opaco, obscuro, por vezes” (SODRÉ, 1998, p. 311), o período foi marcado pela introdução de novas técnicas na produção, mais na indústria do que na agricultura, e, assim, alguns pontos específicos, como as grandes cidades portuárias ou as regiões de escoamento da produção, tinham aparência de fisionomia moderna, mas ainda com profundos e fortes traços de colonialismo (SODRÉ, 1978). Entre esses dois momentos, já esboçando traços de interesses de parte da elite dominante de um regime mais capitalista do que colonialista, Sodré (1976, p. 274) aponta que uma das frações do Império permanecia ancorada na estrutura colonial, na medida em que perdia em força, a outra aceitava inovações, abandonava velhas técnicas e normas, alijava o trabalho escravo, esposava relações capitalistas de produção e ansiava por reformas na medida em que ganhava em força.

Como bem observa Madureira (2006, p. 19), “embora não chegassem a influenciar ‘fundamente’ a ordem econômica, a política e os demais fatores sociais poderiam criar obstáculos para o seu desenvolvimento, dificultar a evolução dos padrões de produção material da sociedade”. Para Sodré (1978), o trabalho escravo apresentavase como um entrave à acumulação capitalista da mesma maneira que o sistema de economia fechada e de monopólio no período anterior e, além disso, o trabalho havia sido degradado a tal ponto em que manter trabalhadores pagos acabou se tornando mais econômico que manter trabalhadores escravos – ainda assim, conforme Sodré (1976, p. 173), “as forças internas, isto é, a classe senhorial dominante, estava interessada no comércio livre, mas não estava interessada no trabalho livre”. Esse período não representou alterações radicais na composição das classes ou nas relações entre elas e delas com a propriedade, de maneira que “a Abolição não correspondeu, pois, a

nenhuma alteração essencial na fisionomia da sociedade brasileira, de vez que não se refletiu na hierarquia social” (SODRÉ, 1978, p. 46). Analisando a condição do trabalho, Sodré (1976, p. 247-248) explica o que considera como os aspectos principais da regressão feudal pela qual passa o país nessa época: O fenômeno da transição de vastas áreas antes escravistas a um regime caracterizado de servidão ou semi-servidão é possível, no Brasil, pelas disponibilidade de terras. Este é um dos fatores fundamentais, mas não deve ser apreciado pelo que apresenta mas pelo que, realmente, é. A disponibilidade de terras é um fato inequívoco, – mas de terras apropriadas, não de terras por apropriar. Há espaços vazios, mas não há propriedades a conquistar: não há transferência de propriedades. Está claro que o problema não é estático: grandes áreas não apropriadas, já objeto de ocupação, são apropriadas, por diferentes processos, entre os quais o da violência pura e simples, é como se sempre tivessem sido propriedades. É nesses vazios que se estabelece a base da regressão.

Para um melhor entendimento do emprego dos termos relacionados ao feudalismo, Ducatti (2009, p. 12) considera que O termo feudal é empregado não no sentido restrito de uma adjetivação que corresponda necessariamente ao modo de produção da servidão, e précapitalista, mas como uma denominação que ora aponta uma possibilidade de superação do sistema escravista, ora se presta a uma expressão de cunho político, que indica relações rurais de dominação ainda distantes daquelas inseridas dentro do contexto capitalista.

De volta a Sodré (1976, p. 248), ele aponta ainda como característica essencial do trabalho escravo e da sua abolição: Quando o fenômeno se generaliza, os seus reflexos no mercado de mão-deobra

tornam-se

evidentes:

o

modo

escravista

de

produção

está

irremissivelmente condenado. Tornou-se um anacronismo. O interessante, entretanto, é que ele não se torna um anacronismo ao mesmo tempo em toda a extensão brasileira. Vai apresentando o seu caráter anacrônico quer nas áreas em que o trabalho escravo evolui para o trabalho livre, quer nas áreas

em que o trabalho escravo não encontra condições para evoluir para o trabalho livre e evolui para a servidão.

O que permite, portanto, aspectos essenciais que já abordamos, como o desenvolvimento desigual, o anacronismo e a coexistência de características de modos de produção diversos é que os processos internos são geralmente decididos ou pelo menos fortemente influenciados por circunstâncias de interesses de produção e de desenvolvimento de determinadas atividades, oriundas sobretudo do exterior; foram, assim, tais circunstâncias que fizeram surgir a utilização do trabalho escravo; outras circunstâncias, porém também com cunho de interesse econômico, exigiram o seu fim. Para entender melhor esse contexto, basta observarmos o papel da Inglaterra, principalmente o tríplice aspecto da sua política internacional, conforme Sodré (1978, p. 78): de propugnadora da autonomia dos povos de formação colonial, de dominadora das rotas marítimas em que circulavam as mercadorias que constituíam objeto de trocas mundiais, e de policiadora do tráfico negreiro a que estivera, em etapa anterior, tão estreitamente associada.

Analisando o período da Revolução Industrial, Sodré (1976, p. 169) aponta que “na Inglaterra predomina o modo capitalista de produção; na península ibérica, o modo feudal, alimentado pela exploração das áreas coloniais; no Brasil, o modo escravista, com transição para o modo feudal em vastas zonas”. Mais uma vez o regime de produção interno não se apresenta de maneira semelhante ao do regime externo; sendo, inclusive, o próprio afluxo de metais preciosos, especialmente o do ouro brasileiro, “que permitira aos proprietários das máquinas o capital em dinheiro para atender aos trabalhadores assalariados” (SODRÉ, 1976, p. 167). Não que a estrutura produtiva brasileira tenha passado imune às transformações estabelecidas pela mineração – como a alta do preço da mão de obra escrava e o trabalho baseado em tarefas ou mesmo por conta própria, a formação de uma área consumidora na colônia, além das alterações demográficas (SODRÉ, 1976) –, mas, sob a relação metrópole-colônia, a mineração teve impactos menores, dado o modo exploratório que lhe foi característico; se, por um lado, a atividade mineradora e a difusão do trabalho livre e de outras formas de trabalho ampliaram “o poder aquisitivo e a capacidade de consumo da população colonial”, fazendo com que o Brasil passasse “de mercado apenas produtor a mercado produtor e

consumidor”, a metrópole apresentava-se, por outro lado, como “onerosa ao consumo, pelo regime de monopólio de comércio que exercia e que acrescia o preço das mercadorias importadas, com prejuízo do consumidor colonial” (SODRÉ, 1976, p. 164). O desenvolvimento da lavoura cafeeira, embora mantivesse ainda a produção rural monocultora e latifundiária, representa a introdução de relações capitalistas na produção agrícola, as quais, entretanto, coexistiam com relações ainda coloniais e inerentes a estrutura em que essa lavoura se desenvolvia (SODRÉ, 1978). Apenas a partir desse período é possível vislumbrar de fato a eliminação dos aspectos feudais – seja pela substituição ou, como sempre foi mais característico do nosso desenvolvimento, pela sobreposição –, possível a partir da acumulação de capitais e as consequentes alterações sobre o processo de produção e de circulação das mercadorias brasileiras. Podendo ser definido como o primeiro grande esforço brasileiro para criar riqueza, a atividade cafeeira pode ainda ser caracterizada na transformação de uma estrutura colonial. Representou, afirma Sodré (1976), uma criação originalmente brasileira, pois gerada de condições internas e se utilizando de recursos internos e, o mais importante, destaca, aproveitando o que havia de velho no Brasil para gerar o novo. O regime produtivo capitaneado pela ascensão cafeeira carrega consigo, e isso pode ser observado até hoje, as contradições do nosso desenvolvimento: Muitas vezes, e certamente nas áreas em que relações capitalistas de produção foram introduzidas, mas coexistem com antigas relações, na mesma pessoa confundem-se o proprietário de terras e o locatário capitalista. Na fazenda de café, o senhor é a um tempo latifundiário e capitalista, apropriando-se da renda capitalista e da renda pré-capitalista. O colono é a um tempo assalariado e servo, porque desprovido dos meios de produção, vendendo forca de trabalho e, nesse sentido, “livre”, e submetido a formas de exploração feudal, e nesse sentido “servo”, – é, de qualquer forma, semiproletário. Se a renda capitalista tende a superar a renda pré-capitalista, os entraves feudais são ainda poderosos. (SODRÉ, 1976, p. 354).

A estrutura da propriedade territorial não apenas sobrevive quase inalterada ao conjunto de transformações sofridas pelo país, como ainda se beneficia dos investimentos e empréstimos estrangeiros – grande parte da disponibilidade de capitais é explicada pela abolição oficial do tráfico negreiro –, os quais reforçam a atuação dos grupos mercantis ligados à importação e à exportação. Dada essa combinação, não é “difícil compreender a impossibilidade prática apresentada ao desenvolvimento de uma

burguesia nacional impulsionadora dos empreendimentos capazes de alterar a fisionomia colonial do Brasil” (SODRÉ, 1978, p. 52). No contexto em que se realizam os empréstimos, sobretudo nas décadas imediatamente após o processo de independência, torna-se claro que “a autonomia, inserida no conjunto da revolução burguesa, acentua os traços da divisão mundial do trabalho e torna mais duras as condições em que as áreas coloniais buscam solucionar os seus problemas”, principalmente pelo fato de que “não se destinam a investimentos, a abrir áreas novas, a introduzir técnicas novas: destinam-se a cobrir a diferença na balança do comércio externo e tão somente a isso” (SODRÉ, 1976, p. 196). Assim,

O resultado de tal conjugação de fatores não poderia, de forma alguma, ser outro senão o da impossibilidade de exploração da riqueza nacional, existente ou latente, em benefício dos próprios brasileiros. [...] a estrutura colonial estava presente e atuava com força ainda enorme e no sentido de que tais alterações não chegassem a limites muito largos e importassem em substanciais transformações. (SODRÉ, 1978, pp. 52-53).

Sodré (1976, p. 294) considera que O esforço brasileiro corresponde a uma adaptação às condições do capitalismo agora em fase imperialista. Toda a nossa história, e as alterações que ela assinala, marca as etapas por um esforço de adaptação: da produção colonial ao capital comercial; da produção colonial ao capitalismo; da produção semicolonial ao imperialismo. A República, nas alterações que introduz, marca nitidamente, o extraordinário esforço de adaptação das condições internas às condições externas, de uma capitalização em início a um processo capitalista que atinge a sua etapa imperialista. [...] Com a República, assistimos, realmente, ao apogeu da estrutura colonial de produção: o Brasil é um dos principais supridores de matérias-primas do mercado mundial e o seu produto fundamental é o alimentício que figura em maior volume nas correntes de troca, com a particularidade de fazê-lo ainda sem concorrência. Isto acontece quando o mundo assiste a um extraordinário surto do comércio internacional, decorrente do crescimento vertical da produção capitalista que, com o surto demográfico, invade mercados e destrói velhas relações.

A coexistência entre os quadros colonial e capitalista, este desenhado sobretudo nas relações sociais e produtivas urbanas, aquele evidenciado pela estrutura de propriedade e pela orientação da produção rural, não era propriamente harmoniosa: a mesma depreciação cambial que beneficiava os exportadores, era a que sobrecarregava e prejudicava os consumidores, as classes dependentes, os trabalhadores e a classe média (SODRÉ, 1976, p. 300). Considerando todas as dicotomias que se formavam ou que se mantinham na estrutura social, A acumulação capitalista, no seu inexorável desenvolvimento, entrara na etapa decisiva, aquela em que os grandes empreendimentos se conjugam, estabelecendo-se os trustes e cartéis de produção, dominando os mercados e impondo-lhes o direito de suas necessidades. A pressão externa, por isso mesmo, – da estrutura internacional do capitalismo, em fase de acumulação, – vai se tornando cada vez maior, sobre a estrutura interna, colocada tradicionalmente em dependência. (SODRÉ, 1978, p. 102).

Analisando, mais à frente, o momento em que, pela primeira vez, a produção industrial superou a produção agrícola, no intervalo das duas grandes guerras mundiais, Sodré (1978) aborda o surgimento da pequena burguesia a partir da divisão do trabalho, da introdução dos seus elementos nos quadros políticos e administrativos, do crescimento do mercado e do comércio interno e do aumento do espaço para o desenvolvimento das profissões liberais. Entretanto, segundo Sodré (1978, p. 111), como o desenvolvimento do modo de produção capitalista não chega a todas as regiões ou a todas as camadas da população, grande parte vive ainda os danos da dependência econômica, sendo o colonialismo econômico “mais nocivo, mais rígido, mais inexorável do que o colonialismo político” e que, nessas condições, “não sofre pausas por si mesmo e nem adota transigências”. Para Sodré (2010), completar a revolução burguesa era condição preliminar para a superação dos restos feudais; e, nesse sentido, Sodré (1978, p. 58) indica que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, a burguesia nacional “passa a definir a sua função, equacionando problemas e exigindo soluções acordes com a realidade”, não fugindo, entretanto, as classes às suas contradições, pois “enquanto a classe trabalhadora, a burguesia nacional e parte da pequena burguesia se colocam de um lado, alinham-se de outro à grande burguesia, cujos interesses estão vinculados aos mercados externos, a classe dos proprietários territoriais”. Permanece válida ainda a afirmação de que

no Brasil, antes e hoje, as formas se apresentam travestidas e são, via de regra, mistas. [...] funciona, evidentemente, um processo em que antigos servos ou elementos mantidos em semi-servidão, como pequenos proprietários de terras e de instrumentos de produção, são despojados do que possuem [...]. o proesso não acontece em todo o Brasil. Muito ao contrário – e aqui temos aquela outra desigualdade de desenvolvimento já mencionada –, antecipa-se em algumas áreas e se retarda em outras, em terceiras não começou ainda. O nosso país é um mosaico e não se distingue dele, senão por força de fantasia, processos puros e uniformes, generalizados. Claro está que, ao longo da história, todas essas desigualdades, todas essas particularidades, acabam por apresentar aspectos confusos e complexos. (SODRÉ, 1990, p. 28).

Conclusão

Buscamos aqui traçar como Nelson Werneck Sodré expôs em alguns dos seus livros o desenvolvimento dos modos de produção no Brasil, como, sem abrir mão do método e do seu caráter político, ele soube relacioná-lo às contradições internas e externas que sempre se impuseram. Embora muitos pontos de sua obra tenham sido criticados, especialmente os que dizem respeito à existência do feudalismo no Brasil, bem como da influência dos restos feudais, Sodré desenvolve de maneira esclarecedora e convincente a noção de que tiveram “o Brasil é ainda suficientemente colonial para que se denunciem, por toda a parte, em variados aspectos, a presença do passado, e do passado distante, num momento em que se processa a mais acelerada transformação de sua história” (SODRÉ, 1978, p. 73). Ao tratar do desenvolvimento de maneira desigual e contemporânea dos modos de produção no Brasil, a obra de Nelson Werneck Sodré mostra como “o progresso material esteve à frente dos impactos sociais que os projetos envolvidos no ordenamento proposto poderiam trazer” (MARTINS; MARTINS DE SOUZA, 2013, p. 164); processo sempre atrelado aos interesses das elites dominantes, às pressões externas e aos resquícios de colonialismo e feudalismo ainda presentes nas nossas relações sociais e econômicas.

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