A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada [Book Chapter, 2015]

Share Embed


Descrição do Produto

ƒ”‘Ž†‘ƒƒœ‹‹ ‘” —‹• ‡”ƒ†‘›‡”„‡ ȋ”‰•ǤȌ

A COOPERAÇÃO BRASILEIRA PARA O DESENVOLVIMENTO COM ANGOLA E MOÇAMBIQUE: UMA VISÃO COMPARADA1 Adriana Erthal Abdenur* João Marcos Rampini**

Introdução Desde a virada do milênio, as relações entre o Brasil e os países africanos vêm se intensificando. Tais laços abarcam diversos setores, desde o comércio e os investimentos até a cooperação técnica para o desenvolvimento. Este capítulo analisa o aprofundamento da interação entre o Brasil e dois países africanos de língua oficial portuguesa  – Angola e Moçambique. Mais especificamente, nos Os autores agradecem o apoio do programa “Jovem Cientista do Nosso Estado”, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj), e do projeto “South-South Cooperation”, do Department for International Development (DFID), para a realização dessa pesquisa. 1

* Adriana Erthal Abdenur (PhD Princeton, BA Harvard) é professora do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e pesquisadora sênior do BRICS Policy Center. Sua pesquisa se concentra na cooperação Sul-Sul e no papel das ditas potências emergentes, inclusive os países BRICS, na governança global. ** João Marcos Rampini é Mestre em Relações Internacionais e Especialista em Gestão Governamental e Avaliação de Politicas Sociais, ambos os graus pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

81

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

concentramos sobre o papel da cooperação para o desenvolvimento nas relações bilaterais, assim como na interação por meio de mecanismos multilaterais tais como a Organização das Nações Unidas (ONU), a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas). Por que comparar a cooperação com Angola à cooperação com Moçambique? Além de serem países lusófonos, ambos passam por períodos de crescimento econômico elevado (crescimento anual do PIB de 13,3% e 7,4%, respectivamente). A abundância de recursos naturais nos dois países – sobretudo o petróleo e gás em Angola e o carvão em Moçambique – tem atraído atores do setor público e privado. As relações abarcam não apenas iniciativas diplomáticas e de cooperação técnica coordenadas pelo governo brasileiro, mas também uma gama ampla de atores de ambos os lados: empresas transnacionais, organizações não governamentais, igrejas e associações profissionais, para mencionar apenas quatro categorias de interlocutores. Por outro lado, são dois países bastante distintos. Moçambique possui cerca de 22,4 milhões de habitantes, ao passo que Angola tem “apenas” 17,4 milhões. Em 2010, o PIB nominal per capita de Angola – cerca de 4.700 dólares – ofuscava o de Moçambique, de apenas 4262. Passados vinte anos do final da guerra civil moçambicana, o país permanece fortemente dependente da assistência ao desenvolvimento oferecida pelos países doadores, organizações multilaterais e provedores de cooperação Sul-Sul, ao passo que Angola goza de maior autonomia e recursos, com um fundo soberano (estabelecido em outubro de 2012 com recursos do petróleo e gás) que investe dentro e fora do país. Além disso, Angola está localizada no Atlântico Sul, cujo panorama geopolítico difere bastante do contexto regional de Moçambique, situado no Oceano Índico. Tais divergências oferecem uma oportunidade para se analisar até que ponto a política externa brasileira para a África subsaaria-

na – se é que ela existe no sentido regional – se adapta (ou é adaptada) às condições, oportunidades e percepções locais. Levando em conta as divergências entre Angola e Moçambique, o argumento central do texto é que a cooperação brasileira com esses países, longe de ser homogênea, reflete fatores históricos, políticos e socioeconômicos específicos a cada país. Debruçar-se sobre tais divergências exige repensar as relações Brasil-África de acordo com as experiências de cada país parceiro e como essas especificidades, por sua vez, influenciam a interação com atores brasileiros. O capítulo está estruturado da seguinte forma. A primeira sessão oferece um pano de fundo histórico das interações entre o Brasil e a África, sobretudo com os países que contam com o português dentre suas línguas oficiais. Em seguida, analisamos as iniciativas de cooperação para o desenvolvimento no contexto mais amplo das relações entre o Brasil e Moçambique e Angola, tratando não apenas das divergências entre os dois casos, mas também de certas transformações ocorridas ao longo do tempo. A conclusão lida com o papel da cooperação técnica em um contexto de crescimento econômico reduzido e aponta direções para futuras pesquisas.

CPLP (2013) “Comunidade de Países de Língua Portuguesa: breve retrato estatístico” 12 de julho de 2013. Disponível em: http://www.cplp.org/Files/Filer/ cplp/12CPLP_2012_201307.pdf 2

82

A cooperação Sul-Sul e as relações Brasil-África O conceito de cooperação Sul-Sul O conceito de cooperação Sul-Sul tem suas origens na Guerra Fria, e mais especificamente nas tentativas lançadas por países do então chamado Terceiro Mundo com o duplo objetivo de se distanciarem do embate ideológico travado pelas superpotências, e de encontrarem novos caminhos para o desenvolvimento socioeconômico. Coalizões flexíveis, tais como o Movimento dos Não Alinhados (MNA) e o Grupo dos 77 (G-77) permitiam que países em desenvolvimento juntassem forças para reivindicar uma ordem internacional mais justa e legítima. No âmbito da ONU, a proposta da Nova Ordem Econômica Internacional (Neio) não surtiu o impacto esperado, e foi criticada por alguns analistas pelo conservadorismo excessivo (Rist, 1996). No entanto, a criação 83

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

da Conferência da ONU para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD) resultou dos esforços feitos pelos países em desenvolvimento para alterar a arquitetura da governança global e lançou os primeiros esforços de institucionalização da cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento no âmbito das grandes organizações multilaterais. Portanto, desde o início, o conceito de cooperação Sul-Sul tem natureza dupla: trata-se, ao mesmo tempo, de projeto político e empreitada econômica. A essas dimensões foram-se somando outras, conforme reflete o discurso oficial da ONU. De acordo com a organização, a cooperação Sul-Sul abarca também aspectos sociais, culturais e ambientais3. A Conferência sobre Cooperação Técnica entre Países em Desenvolvimento, de 1978, que produziu o Plano de Ação para Promover e Implementar a CTPD (também conhecido como Plano de Ação de Buenos Aires), representou um marco não apenas no processo de institucionalização da cooperação SulSul dentro do âmbito da ONU, mas também na ampliação da definição dessa cooperação. A cooperação Sul-Sul se expandia não apenas via plataformas multilaterais, mas também por meio das relações bilaterais. Já nas décadas de 50 e 60, países tais como a China, a Índia e o Brasil passaram a oferecer cooperação técnica e econômica, desde investimentos em infraestrutura até capacitação e compartilhamento de tecnologias em áreas como agricultura, saúde e educação. A África, palco de movimentos de libertação e independência, tornou-se um foco importante nessa primeira onda de cooperação Sul-Sul, com interesses econômicos respaldados pelo discurso de solidariedade que foi popularizado por intermédio do Movimento Não Alinhado e o G-77. Contudo, tanto no plano bilateral quanto no multilateral, a escassez de recursos e a inflexibilidade da configuração bipolar da Guerra Fria limitavam o escopo da cooperação Sul-Sul. Além disso, a partir de meados da década de 70, houve uma forte retração da

cooperação Sul-Sul, tanto em termos de fluxos quanto em termos de saliência do tema em discussões globais sobre o desenvolvimento internacional. Com o alastramento dos efeitos da crise do petróleo de 1973, muitos países em desenvolvimento se endividaram, recorrendo às instituições de Bretton Woods. Como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial condicionavam os empréstimos aos ajustes estruturais, que incluíam cortes orçamentários, muitos provedores reduziram seus programas de cooperação SulSul. Embora o Plano de Ação de Buenos Aires tivesse mantido a cooperação entre países em desenvolvimento na pauta da ONU, na prática o discurso da cooperação Sul-Sul não se traduziu em iniciativas transformadoras durante as décadas de 80 e 90. Tal quadro começou a se reverter apenas a partir dos anos 2000, quando a cooperação Sul-Sul bilateral ganhou novo fôlego e se expandiu consideravelmente, com a China assumindo a vanguarda. A abertura gradual da economia chinesa e a política de investimentos do governo chinês começavam a render vastas reservas internacionais, e a liderança chinesa optou por usar parte desse excedente de forma a fomentar a internacionalização de suas empresas estatais e privadas, incentivando-as a investir sobretudo na África. Outras grandes economias em desenvolvimento, dentre as quais o Brasil, a Índia, e a Turquia, também passaram por períodos de crescimento relativamente elevado, retomando ou intensificando suas iniciativas de cooperação para o desenvolvimento. Com essa “segunda onda” de cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento, tais países passaram por uma mudança de status no campo do desenvolvimento internacional: de recipiendários de assistência, tornaram-se provedores de cooperação, mesmo que ainda recebam alguma assistência por parte de doadores e organizações multilaterais. Além da mudança de status desses países, o período foi marcado por uma série de tendências. Em primeiro lugar, houve certa diversificação dos atores engajados na cooperação Sul-Sul  – não apenas em termos de Estados oferecendo cooperação, mas também no que diz respeito à gama de atores da sociedade civil e do setor privado envolvida em tais iniciativas (independentemente, ou em parceria com atores estatais). Tal padrão se deve em parte à maior disponibilidade de recursos financeiros, em comparação

UNDP, 2014. Disponível em: Acesso em: 19 jun.2014. 3

84

85

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

com o período da Guerra Fria. Tendo atingido certa estabilidade macroeconômica e alcançado um nível de crescimento econômico razoavelmente elevado, as ditas potências emergentes podiam alocar recursos extras para a expansão da sua cooperação Sul-Sul. Em segundo lugar, o discurso de solidariedade, horizontalidade e não intervenção se intensificou também por meio de novas coalizões informais de potências emergentes, tais como o Fórum de Diálogo Índia – Brasil – África do Sul (Ibas) e o agrupamento Brics, (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), assim como organizações regionais tais como a Unasul, a Comunidade da África Meridional para o Desenvolvimento (SADC) e a Organização de Cooperação de Shanghai (OCS). Em terceiro lugar, alguns provedores de cooperação Sul-Sul, entre os quais os Brics, passaram a defender que o Estado deve desempenhar um papel de protagonista no desenvolvimento. Embora a atuação do Estado varie bastante entre tais países, seus governos rejeitam abertamente as políticas de mercado disseminadas por meio do Consenso de Washington. Em certas regiões, sobretudo a América Latina, governos de esquerda reforçaram o papel do Estado no desenvolvimento, tanto no âmbito doméstico quanto na cooperação internacional. Como muitas dessas economias se recuperaram de forma relativamente rápida após o choque inicial da crise financeira global que eclodiu em 2008, os discursos que ressaltam divergências entre a cooperação Sul-Sul e a assistência do Norte se intensificaram. Ao mesmo tempo, a assistência do Norte passava por um momento de crise. Por um lado, desde os ataques de 11 de setembro e o início da Guerra ao Terror, os EUA e seus aliados passaram a enfatizar questões de segurança internacional. Com isso, a assistência ao desenvolvimento ficou em segundo plano e, em muitos casos, sendo redirecionada de forma a alcançar objetivos de segurança. A securitização do desenvolvimento internacional ocorreu tanto dentro quanto fora da ONU. Além disso, após o início da crise financeira, em 2008, a assistência oficial ao desenvolvimento (official development assistance – ODA) sofreu uma retração temporária, justamente quando o volume e o alcance da cooperação SulSul continuava crescendo (Mawdsley, 2012).

Nesse contexto, ao mesmo tempo em que a cooperação Sul-Sul ganhava peso, o Comitê para a Assistência ao Desenvolvimento (DAC) da OCDE tratava de avançar a Agenda para a Eficácia. Marcos como a assinatura da Declaração de Paris sobre a Eficácia da Ajuda ao Desenvolvimento, em 2005, e o lançamento da Agenda de Ação de Acra, em 2009, foram iniciativas importantes no esforço, por parte da OCDE, de “harmonizar” as normas e práticas do campo do desenvolvimento internacional. A iniciativa  – lançada pelos países desenvolvidos – tentou incorporar provedores de cooperação Sul-Sul, mas vem encontrando resistência por parte dos Brics. O distanciamento desses países da agenda da eficácia tornou-se ainda mais evidente em 2011, na ocasião da IV Reunião de Alto Nível sobre Eficácia da Ajuda, realizada em Busan, e em 2014, quando a Parceria Global foi lançada na Cidade do México.

86

O Brasil e a cooperação técnica Sul-Sul O Brasil passou a oferecer cooperação técnica a outros países em desenvolvimento ainda durante a década de 60, quando certos ministérios lançaram iniciativas voltadas para parceiros da América Latina e da África. Tais esforços se concentravam na capacitação de funcionários públicos de países parceiros. Por exemplo, a Escola de Administração Fazendária (Esaf ) do Ministério da Fazenda inscrevia funcionários de Angola e Moçambique em cursos oferecidos no campus da instituição em Brasília. No entanto, tais iniciativas eram bastante limitadas, tanto em termos do número de ações lançadas, quanto no que diz respeito aos gastos. A cooperação técnica que o Brasil oferecia a países parceiros era muito pequena quando comparada à assistência que o país recebia dos doadores e das organizações multilaterais. Além disso, a coordenação da cooperação Sul-Sul era limitada. Embora o Ministério das Relações Exteriores (MRE) assessorasse os demais ministérios na assinatura de certos acordos internacionais, ainda não possuía divisão ou agência dedicada exclusivamente à coordenação dessas iniciativas. Com isso, a vinculação entre a política externa brasileira e a cooperação técnica oferecida por órgãos do governo senão o MRE era tênue. 87

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

Mesmo assim, com o discurso da cooperação Sul-Sul se fortalecendo no âmbito da ONU, sobretudo a partir do Plano de Ação de Buenos Aires, o Brasil tomou certas medidas para fortalecer a sua cooperação Sul-Sul. Em 1987, foi fundada a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), divisão do Ministério das Relações Exteriores (MRE) encarregada de coordenar a cooperação internacional do Brasil, tanto a recebida quanto a oferecida. Embora boa parte das iniciativas de cooperação Sul-Sul oferecidas por ministérios e outras divisões do governo ficassem fora da pasta da ABC (Cervo, 1994), a criação da ABC foi um passo importante na institucionalização da cooperação técnica brasileira, permitindo também um maior alinhamento entre tais iniciativas e a política externa. Com o fim da Guerra Fria, o Brasil encontrou novas formas de inserção internacional, inclusive por meio da cooperação Sul-Sul. Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), foram privilegiados na cooperação Sul-Sul brasileira os países do Mercosul e outras grandes economias em desenvolvimento, especialmente a China, a Índia e – após o colapso do regime Apartheid, em 1994 – a África do Sul (Saraiva, 2007). A partir de 2003, o governo Luís Inácio Lula da Silva (20032011) tornou a cooperação Sul-Sul uma das prioridades da política externa. Como o governo visava projetar o Brasil como potência emergente  – não apenas dentro da sua própria região, mas também no plano global – a cooperação técnica passou a ser utilizada para facilitar ou cimentar as relações com outros países em desenvolvimento. Para tal, o governo lançou mão de estratégias institucionais e discursivas. No plano institucional, como parte de um esforço de ampliação do corpo diplomático, a ABC passou por reformas que visaram a expansão da capacidade de coordenação de projetos pelo MRE. As mudanças foram realizadas com o objetivo de estreitar o alinhamento entre a cooperação técnica e, por outro lado, as prioridades da política externa tais como estabelecidas pelo governo  – ponto ressaltado pela própria ABC, de acordo com a qual, a missão da cooperação Sul-Sul brasileira é a de: 88

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

contribuir para o adensamento das relações do Brasil com os países em desenvolvimento para a ampliação dos seus intercâmbios, para a geração, disseminação e utilização de conhecimentos técnicos, para a capacitação de seus recursos humanos e para o fortalecimento de suas instituições, por meio do compartilhamento de políticas públicas bem sucedidas4.

Mesmo com sua pasta de projetos ampliada, certas limitações institucionais perduraram. Por exemplo, o quadro reduzido de funcionários restringe a profissionalização da cooperação oficial, e a ausência de um marco legal para a cooperação internacional dificulta a alocação de recursos e pessoal para projetos de cooperação técnica no exterior. No que diz respeito ao discurso oficial da cooperação Sul-Sul, o governo brasileiro continuou sublinhando o caráter horizontal da sua cooperação, argumentando que a sua cooperação técnica atende a demandas identificadas pelos governos parceiros e ressaltando que o Brasil não impõe condicionalidades políticas à sua cooperação Sul-Sul. Tais afirmações servem não apenas para diferenciar a cooperação brasileira da assistência do Norte, mas também para enfatizar os laços de solidariedade para com outros países em desenvolvimento. De maneira geral, o discurso oficial também trata de apresentar o Brasil como uma fonte alternativa e positiva de políticas públicas inovadoras, retratando a cooperação brasileira como mais eficaz e complementar que a assistência provida pelo Norte, por causa do fato de o país já ter passado por experiências que seriam mais semelhantes aos desafios enfrentados por outros países em desenvolvimento (em comparação com os países avançados). Por isso, o governo considera a cooperação Sul-Sul distinta da “ajuda ao desenvolvimento”, buscando distanciar o Brasil da categoria de “doadores”. Apesar do discurso de solidariedade e horizontalidade, a cooperação Sul-Sul não é isenta de assimetrias, nem se trata de ação desinteressada. As iniciativas de cooperação Sul-Sul  – inclusive a cooperação técnica – são impulsionadas por um leque variado de interesses políticos, econômicos e sociais. ABC, 2014. Disponível em: http://www.abc.gov.br/CooperacaoTecnica/ Historico> Acesso em: 19 jun. 2014. 4

89

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

As relações Brasil-África As relações entre o Brasil e os países africanos têm variado ao longo do tempo. Os laços entre o Brasil e a África remontam ao comércio do império português, e particularmente o tráfego de escravos que eram levados da África para o Brasil. De Angola, por exemplo, escravos atravessavam o Atlântico Sul em direção ao Brasil. Houve também alguma movimentação na direção oposta, de administradores, mercenários, missionários e aventureiros. No século XVII, Angola teve três governadores “brasílicos”— Salvador de Sá (1648-1652), João Fernandes Vieira (1658-1661) e André Vidal de Negreiros (1661-1666) que possuíam propriedades no Rio de Janeiro, Pernambuco e Paraíba (Alencastro, 2007). Com o término legal e, mais adiante, de facto do comércio de escravos, o contato entre o Brasil independente e colônias africanas se reduziu a um mínimo. Após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil redirecionou sua política externa de forma a alimentar o projeto de desenvolvimento econômico e industrial do país. No contexto bipolar do pós-Guerra, o alinhamento com o bloco ocidental, sobretudo os Estados Unidos, era percebido pelas elites brasileiras como o curso de ação mais favorável ao projeto de desenvolvimento nacional. Foi apenas na década de 60 que o governo optou por diversificar suas relações exteriores em busca de novas oportunidades econômicas. O primeiro passo nessa direção foi dado no governo Jânio Quadros, por meio de sua Política Externa Independente (PEI). A adoção de uma postura mais autônoma frente à bipolaridade da Guerra Fria tinha o objetivo de alcançar novos mercados que pudessem absorver produtos da indústria brasileira em expansão, trazendo benefícios econômicos para o país. As relações do Brasil com a África foram enfatizadas, por exemplo, por intermédio da criação do departamento de África no Itamaraty, da abertura de embaixadas no continente e da criação do Instituto Brasileiro de Estudos AfroAsiáticos5. Quadros aprofundou a PEI, sobretudo as relações com

o continente africano, sob a “Política dos 3Ds” (Desarmamento, Desenvolvimento e Descolonização), que tentava se colocar acima dos constrangimentos ideológicos da Guerra Fria6. No entanto, o regime militar que se instalou no Brasil após o golpe de Estado de 1964 reverteu o rumo da política externa, alinhando-a de novo com os EUA. Tal orientação mudaria mais uma vez apenas a partir de 1974, quando  – em busca de novas parcerias econômicas  – o governo enfatizou novamente a cooperação Sul-Sul, inclusive com países da África e do Oriente Médio. No período da ditadura, as relações com a África foram retomadas gradualmente pelos governos Costa e Silva (67-69), Médici (6974) e Geisel (74-79), sempre com foco na diversificação de parcerias (Médici firmou 30 tratados comerciais com países africanos e Geisel, 22). Vale destacar que no governo Geisel, o “pragmatismo responsável e ecumênico” da política externa brasileira priorizou as relações com a África, os países árabes e o campo socialista. No entanto, a descolonização permaneceu tema bastante sensível para o Brasil, em função da postura de passividade adotada pelo governo brasileiro ao colonialismo português na África. Apesar de defender os princípios da soberania e da autodeterminação, o Brasil chegou a defender o colonialismo europeu, e principalmente o português, na África. O compromisso político advindo do Tratado de Amizade e Consulta, que o Brasil assinou com Portugal em 1953, restringia a liberdade de ação do Brasil quanto ao tema colonial (Cau, 2011 p.55). Como parte de sua estratégia, o Brasil tratava de dar um caráter distinto ao colonialismo português, frente aos demais colonialismos7. Isso permitia uma postura mais flexível, porém bastante ambígua. Tal ambiguidade ficava muito clara nas posturas que o Brasil adotava nas sediado pela Universidade Cândido Mendes. A PEI pode ser mais bem compreendida por meio do discurso do diplomata brasileiro Araújo Castro na XVIII Sessão da Assembleia Geral da ONU, em Nova Iorque. 6

Inclusive, Portugal defendia que os territórios ultramarinos não eram dependências, mas sim províncias de um Estado unitário. E, por sua vez, o Brasil reafirmava essa posição. 7

O Instituto, criado em 1961, foi extinto em 1964 pelo governo militar, sendo retomado apenas em 1973 como o “Centro de Estudos Afro-Asiáticos” e 5

90

91

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

Nações Unidas. Por exemplo, ao mesmo tempo em que o país votava contra a resolução que recomendava a Portugal apresentar à ONU informações sobre as suas colônias na África, o Brasil também votava a favor do projeto de “Declaração sobre a concessão de independência aos povos e países das colônias”. Além de prejudicar seu relacionamento com as colônias portuguesas, esse posicionamento também dificultou as relações com outros países africanos, tendo em vista o engajamento destes na luta pelo fim do colonialismo e em favor da autodeterminação dos povos. O Brasil só abandonou sua postura de ambiguidade com o colapso do colonialismo português, esgotado definitivamente após a Revolução dos Cravos e o fim do regime Salazarista em 1974. Os efeitos da crise do petróleo de 1973, somados ao esgotamento do modelo de desenvolvimento praticado no Brasil até então (o da substituição de importações), levaram ao endividamento externo, induziram taxas elevadas de inflação e provocaram baixo crescimento econômico. A crise também foi fator na mudança de postura do Brasil quanto ao colonialismo português. Afinal, uma aproximação com a África portuguesa serviria não apenas para melhorar a imagem do Brasil com outros países em desenvolvimento (inclusive os produtores de petróleo), mas também para prospectar novas fontes de petróleo para o Brasil. A partir dessa virada, o Brasil passou a estabelecer políticas de longo prazo e perseguir objetivos mais estratégicos em relação à África. Porém, vale ressaltar que o reconhecimento das independências foi um reconhecimento de facto; o Brasil não condenou publicamente a política colonialista de Portugal. Assim sendo, no período pós-independências, o Brasil enfrentou certo ressentimento africano por causa de sua postura de passividade durante o período colonial. A partir da instalação de representações diplomáticas nos países recém-independentes, as relações com os países africanos de língua portuguesa começaram a se aprofundar. Foi concedida prioridade estratégica aos países ricos em petróleo, assim como aqueles cujo mercado consumidor parecia promissor para os produtos industrializados brasileiros. Atenção especial foi dada a Angola em função de seus recursos minerais abundantes.

Em um contexto internacional marcado por adversidades, a política externa do governo Figueiredo (79-85) adotou o universalismo como orientação política, com o objetivo de consolidar uma maior autonomia para o país. O Brasil buscou então reforçar uma identidade terceiro-mundista, aprofundando as relações com outros países em desenvolvimento e mantendo sua aproximação com o Movimento dos Não Alinhados (mesmo sem ingressar formalmente na organização). Nesse período, a África continuou sendo uma prioridade da diplomacia brasileira, apesar da cooperação ter sido limitada em função das fortes instabilidades políticas e econômicas presentes em ambos os continentes. Figueiredo foi o primeiro presidente brasileiro a visitar a África, passando pela Nigéria, Senegal, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Argélia em 1983. Com a redemocratização brasileira e o fim da Guerra Fria, o governo Sarney (85-90) buscou diversificar ainda mais as relações externas. No entanto, os ajustes estruturais do consenso de Washington, que pregava a austeridade fiscal e os princípios do mercado, estreitaram as opções tanto no âmbito doméstico quanto no plano internacional. Com isso, a cooperação Sul-Sul brasileira se enfraqueceu, o que se refletia também na sua cooperação técnica; o país ainda recebia mais assistência do que oferecia cooperação Sul-Sul. Mesmo assim as relações entre o Brasil e a África na década de 90 recebem interpretações distintas; certos autores enxergam um incremento dos laços, ao passo que outros interpretam a década como marcada pelo enfraquecimento dessas relações. Rizzi (2005) aponta um declínio nas relações Brasil-África, citando diversos fatores, entre os quais: a diminuição do número de diplomatas brasileiros servindo na África; o abatimento do comércio BrasilÁfrica no período pós-Guerra Fria; a vulnerabilidade política e econômica dos países africanos; e a escassez de novas oportunidades de comércio. Já nas interpretações de Hirst e Pinheiro (1995) e Pimentel (2000), houve retomada gradual da política africana na década de 1990. Pode-se considerar que o Brasil fez, como coloca Saraiva (1996), “opções seletivas” no continente africano no período pós-Guerra Fria, concentrando-se em quatro linhas de ação. No plano bilateral, o Brasil buscou estreitar laços com a África do Sul uma vez que o regime Apartheid terminou, em 1994, e com

92

93

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

Angola, para onde enviou tropas como parte da missão de paz da ONU. Na dimensão multilateral, o Brasil investiu na revitalização da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas)8 e na criação da Comunidade de Países Lusófonos (CPLP), lançada em julho de 19969. Contudo, no âmbito geral, o Brasil buscou mais contato com os EUA e com a Europa, enfatizando também o recém-formado Mercosul e, em segundo plano, procurando certa aproximação com a Ásia. Como parte da sua política de aproximação com outras potências regionais, o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) também aprofundou os laços com a África do Sul, englobando aspectos políticos e econômicos. As parcerias do Brasil na África se intensificaram e se diversificaram após a virada do milênio, quando o governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) optou por priorizar a cooperação SulSul, inclusive como forma de aumentar a autonomia da política externa brasileira em relação aos países do Norte. O novo grau de importância dado à África como um todo, se reflete na abertura ou reabertura de embaixadas e outras representações diplomáticas brasileiras no continente. O Brasil tem hoje representações em 37 dos 54 países africanos, das quais 19 foram inauguradas desde o início do governo Lula. Muitos países africanos reciprocaram o gesto abrindo também missões em Brasília: 17 embaixadas e escritórios de países africanos foram inaugurados em Brasília, somando-

-se às 16 que já existiam10. A diplomacia presidencial de Lula, que se interessava pessoalmente pela África, também contribuiu para a intensificação das relações: Lula visitou a África mais vezes que qualquer antecessor. Tais esforços facilitaram não apenas a assinatura de acordos oficiais, mas também a atuação de atores não estatais. Os investimentos brasileiros na África, liderados pela Vale, Petrobras e grandes construtoras tais como a Odebrecht, aumentaram de forma significativa, muitas vezes com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Socioeconômico (BNDES). A própria estrutura do BNDES passou a refletir o maior empenho do governo em fomentar a cooperação Sul-Sul: o financiamento às exportações, lançados em 1990, foram expandidos e concentrados em divisão própria dentro do Banco. Em 2013, o BNDES abriu escritório em Joanesburgo para coordenar suas atividades em todo o continente africano. O discurso oficial passou a ressaltar os laços históricos e demográficos entre o Brasil e a África, por vezes sublinhando também a condição comum de ex-colônia11. Os países africanos membros da CPLP permaneceram prioridades, pois a organização  – vista por parte da liderança como espécie de plataforma para a projeção do Brasil na África  – foi adquirindo um caráter mais estratégico na política externa brasileira. Como aponta Coelin:

A Zopacas foi relançada em 1994, e a proposta para a criação da CPLP foi lançada em 1989, durante o governo Itamar Franco, sendo que a organização foi fundada em 1996 com a participação—além do Brasil – de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe (Timor Leste ingressou na comunidade em 2002, após obter a sua independência, e a Guiné Equatorial se juntou à organização em 2014).

a inserção do Brasil na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa dá-se justamente sob o duplo signo da avaliação político-estratégica do interesse nacional e do sentimento de solidariedade que nos aproxima de países e povos com os quais compartilhamos elementos históricos e culturais, bem como projetos comuns de desenvolvimento e paz. Assim, a CPLP constitui-se em marco orientador de prioridades para a atuação brasileira na cooperação Sul-Sul12.

8

De acordo com o artigo 5º do Estatuto da CPLP (1996), são objetivos gerais da organização: 1- a concertação político-diplomática entre os seus membros em matéria de relações internacionais; 2- a cooperação em todos os domínios, inclusive os da educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, oceanos e assuntos do mar, agricultura, segurança alimentar, administração pública, comunicações, justiça, segurança pública, economia, comércio, cultura, desporto e comunicação social; 3- a promoção e difusão da Língua Portuguesa. 9

94

BBC Brasil, 2011. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/ noticias/2011/10/111017_diplomacia_africa_br_jf.shtml 10

Tal discurso minimiza o apoio dado pelo Brasil ao colonialismo português durante boa parte da Guerra Fria, assim como os frequentes votos na ONU contra a independência de colônias africanas. 11

Artigo disponível em: http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/CPLPPort-4.pdf 12

95

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

Durante a década de 2000, a agenda da CPLP foi ampliada de forma a incluir não apenas cooperação cultural e para o desenvolvimento, mas também iniciativas voltadas para a segurança, como no caso da instabilidade recorrente em GuinéBissau. Do ponto de vista do Brasil, a organização também adquiriu maior peso por conta da nova política de defesa brasileira, que alçou o Atlântico Sul ao mesmo patamar de importância historicamente dedicado a zonas de fronteira terrestres, sobretudo a Amazônia (Abdenur; Souza Neto, 2014). A importância dos países lusófonos para a política externa do período se reflete também na cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento. Levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea) indica que os países de língua portuguesa juntos receberam 27% do volume da Cooperação Técnica, Científica e Tecnológica (CTC&T) brasileira entre 2005 e 2009 (Ipea, 2010). Segundo os dados na África, os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop) são os principais beneficiários da cooperação brasileira na África. Entre os Papop, Moçambique e Angola estão em segundo lugar na lista de maiores parceiros de CTC&T do Brasil (cada um deles recebendo o equivalente a 4% do total de CTC&T brasileira, sendo superados apenas por Guiné-Bissau que recebe cerca de 6%)13. Além das iniciativas bi e multilaterais, o número de projetos de cooperação triangular dentro da CPLP vem aumentando à medida que os países lusófonos têm buscado, cada vez mais, financiamento externo para suas atividades de cooperação, mesmo para além dos doadores do Norte. É, portanto, nesse contexto de aprofundamento das relações com a África que se dá a intensificação da cooperação brasileira com Moçambique e Angola, analisada na próxima parte do texto.

A cooperação Brasil-Angola

Ipea e ABC. (2010), Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional 2005-2009. Brasília: Ipea/ABC.

14

13

96

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência angolana, em 11 de novembro de 1975. Enquanto o Brasil se coloca como interlocutor entre Angola e o Ocidente (Rizzi, 2005 p. 37), Angola se posiciona como um mediador no projeto brasileiro de aproximação com países africanos. Sobretudo após a virada do milênio, o crescimento econômico, o fim da guerra civil angolana e a crescente importância do Atlântico Sul para as políticas externa e de defesa do Brasil tornaram Angola um dos principais interlocutores do Brasil na África. As relações bilaterais foram lançadas por meio de iniciativas de cooperação econômica. Em abril de 1976, foi organizada a primeira missão comercial brasileira a Angola, levando representantes da Petrobras e do Banco do Brasil. Em julho de 77 foi firmado o convênio MRE-Seplan, que deu origem ao Programa de Cooperação Técnica Brasil-África. Dentro desse contexto, o primeiro gesto para incentivar a cooperação técnica entre Brasil e Angola foi a assinatura do Acordo de Cooperação Econômica, Científica e Técnica, em junho de 1980, na ocasião da visita do Chanceler brasileiro Saraiva Guerreiro. Por meio desse acordo, surgiram projetos de cooperação nas áreas de saúde, cultura, administração pública, formação profissional, educação, meio ambiente, esportes, estatística e agricultura14. O acordo também levou à criação da Comissão Mista Brasil-Angola. Um dos resultados dessa missão foi oficializado em 1979 com a assinatura do acordo entre a Petrobras e a Sonangol (petrolífera estatal angolana). Os primeiros grandes investimentos da iniciativa privada brasileira em Angola tiveram início na década de 1980. A pioneira nesse processo foi a Construtora Odebrecht, que começou a operar em Angola em 1984 na construção da Hidrelétrica de Capanda. Para facilitar a instalação de empresas do Brasil em Angola, o governo brasileiro começou a ampliar as linhas de crédiABC, 2014. Disponível CooperacaoSulSul/Angola

em:

http://www.abc.gov.br/Projetos/

97

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

to para o país africano. Em junho de 1986 foram oferecidos US$ 150 milhões e em julho de 1988 o valor liberado foi de US$ 235 milhões (Rizzi, 2005). Com o final da Guerra Fria, a diplomacia bilateral foi se intensificando, o que se reflete nas visitas de chefes de Estado. Sarney foi o primeiro presidente brasileiro a visitar Angola, em janeiro de 1989, e Fernando Henrique Cardoso viajou ao país em 1996. Com o fim da bipolaridade, surgiram novas oportunidades de cooperação e apoio mútuo no plano multilateral. Na década de 1990, o Brasil não apenas atuou junto ao CSNU em questões relacionadas à guerra civil angolana (1976-1991) e em apoio à legitimidade das eleições de 1992 no país, como também participou ativamente nas missões de paz da ONU em Angola a partir de 1995 (Rizzi, 2005). A V sessão da Comissão Mista Brasil-Angola, realizada em Brasília, ampliou e aprofundou a cooperação bilateral. Durante a reunião, foram assinados diversos acordos e protocolos de intenções nas áreas de agricultura, energia, comércio, educação e formação profissional, entre outros, contando com a participação de diversos órgãos vinculados ao governo brasileiro, tais como a Embrapa, assim como entidades da sociedade civil, como o Senai e o Senac. A parceria entre a Petrobras e a Sonangol também foi aprofundada. Em novembro de 1996, Fernando Henrique Cardoso visitou Angola (assim como a África do Sul) com o objetivo de reverter o decréscimo das relações econômicas. Como no caso de Moçambique, os laços entre o Brasil e Angola se aprofundaram com as oportunidades de cooperação trazidas pela criação da CPLP em julho de 1996. Na esfera política, é importante destacar as afinidades de interesses entre Brasil e Angola no que diz respeito ao adensamento das relações de cooperação Sul-Sul e à revisão das relações de poder do sistema internacional, como, por exemplo, a eliminação das distorções no comércio de produtos agrícolas provocadas pelos países desenvolvidos (José, 2011 p. 235). Rizzi (2005) argumenta que as relações bilaterais entre Brasil e Angola foram estabelecidas com a independência, intensificadas economicamente na década de 1980 e amadurecidas a partir da década de 1990.

Dessa forma, o Brasil passou a atuar como um parceiro importante na reconstrução do país após o fim da guerra civil angolana por meio de iniciativas públicas e privadas. A relação comercial entre Brasil e Angola vem se tornado cada vez mais expressiva. Entre 2009 e 2013, as trocas comerciais entre os dois países aumentaram em 35,9%, de US$ 1,47 bilhão para US$ 1,99 bilhão. No entanto, os fluxos estão marcados por uma forte assimetria: o saldo da balança comercial permaneceu favorável ao Brasil em todo o período, registrando superávit de US$ 544 milhões em 2013. O Brasil exporta para Angola produtos manufaturados (71,3% do total), sobretudo açúcar refinado, máquinas, aviões e automóveis, e importa predominantemente produtos básicos (71,3% do total em 2013), com destaque para petróleo e gás natural15. Como no resto da África lusófona, a presença de empresas brasileiras em território angolano também tem crescido. Em 2000, apenas 7 empresas brasileiras participaram da Feira Internacional de Luanda (Filda), ao passo que, na edição de 2009, o evento contou com 75 expositores brasileiros (José, 2011 p. 222). Atualmente, entre as principais empresas brasileiras com atuação em território angolano, destacam-se as construtoras que participam em projetos de infraestrutura no país: Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e Odebrecht. Além disso, também existem projetos de grande porte sendo executados por empresas como Furnas, Petrobras, Vale do Rio Doce e Embraer. Em alguns projetos, as empresas possuem financiamento à exportação concedido pelo BNDES. Em outros, formaram joint ventures com empresas locais, como no caso da construção do primeiro shopping mall de Luanda, o Belas Shopping (parceria entre a Odebrecht e a angolana HO Gestão de Investimentos (Hogi)16.

98

Brasil Export, 2014. Disponível em: http://www.brasilexport.gov.br/sites/ default/files/publicacoes/indicadoresEconomicos/INDAngola.pdf 15

Em 2014, o shopping contava com várias marcas brasileiras, desde a Bob’s (restaurant fast food) até Ellus (roupas), Boticário (perfumaria) e Mundo Verde (produtos orgânicos). 16

99

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

Visitas presidenciais contribuíram para a intensificação da cooperação econômica. Lula esteve em Angola em duas ocasiões como presidente  – em 2003 e novamente em 2007  – aproveitando para anunciar o aumento do crédito concedido ao país para um montante de dois bilhões de dólares. Já em junho de 2010, em visita do presidente Santos ao Brasil, foram assinados acordos que elevaram o crédito do Brasil para Angola a uma faixa de 10 bilhões de dólares (José, 2011 p. 227). Esses incentivos econômicos serviram não apenas para consolidar os laços bilaterais, mas também para tentar contrapor a influência crescente da China em Angola. Se no momento inicial o principal impulso das relações Brasil-Angola foi comercial, em um segundo momento a cooperação técnica ganhou destaque na agenda bilateral. A ABC coordena diversos projetos em Angola. Na área de agricultura, a Embrapa tem um projeto estruturante de fortalecimento de instituições públicas de pesquisa agrícola. O projeto é executado por intermédio de parceria com o Ministério da Agricultura e Desenvolvimento de Angola e dois institutos de pesquisa locais e faz parte do programa de cooperação triangular entre o Brasil (coordenado pela ABC) e a FAO17. Já na área de saúde pública, o Brasil tem um projeto de capacitação do sistema angolano de saúde, financiado pela ABC e executado por diversas unidades da Fiocruz. O projeto tem dois componentes: apoio ao Instituto Nacional de Saúde de Angola (INS/Angola) e cooperação na formação de pesquisadores e docentes em temas de saúde18. O Brasil também coopera no fortalecimento das escolas de saúde pública de Angola, por exemplo, por meio de um projeto para a realização de um curso de

mestrado em saúde pública. Em 2014 foi assinado também um acordo para novo projeto, um programa de prevenção e controle de malária com forte componente de capacitação técnica19. Alguns projetos de cooperação técnica são colocados em prática por entidades da sociedade civil brasileira. O Serviço Nacional de Aprendizagem (Senai), por exemplo, em parceria com o Instituto Nacional de Emprego e Formação Profissional de Angola (Inefop), inaugurou o Centro de Formação Profissional Brasil-Angola (também conhecido como Centro de Formação Profissional do Cazenga) em novembro de 1999, com a presença do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O projeto, fruto de longa parceria20 entre os dois países, foi elaborado de forma a contribuir para a oferta de mão de obra qualificada para prestar apoio nos esforços de reconstrução do país. O controle do centro, que visa a formação e reciclagem de mão de obra desmobilizada, foi transferido para o governo angolano em 2005. Atualmente o Instituto atende cerca de 1.200 alunos anualmente e funciona com cerca de 30 instrutores, a maioria com cursos de formação profissional realizados no Brasil21. No que diz respeito à cooperação cultural, podemos citar a doação de 1.419 livros brasileiros para bibliotecas angolanas em 2003; a inauguração da Casa de Cultura Brasil-Angola e Centro de Estudos Brasileiros Embaixador Ovídio de Andrade e Melo, instalada em Luanda também em 2003; e a realização do Dia da Amizade Angola-Brasil em Luanda, com apresentação de diversos artistas dos dois países (Jos, 2011). Na área de gestão da Cultura, o Ministério da Cultura e a Universidade Federal da Bahia (UFBA) cooperam com o Ministério da Cultura angolano na capacitação de técnicos, na recuperação do acervo audiovisual angolano e na área de arquivo histórico. O Instituto do

Embrapa (s.d.) “Projetos estruturantes” https://www.embrapa.br/projetosestruturantes 17

Centro de Relações Internacionais em Saúde (2012) “Relatório de Atividades” Fiocruz: http://portal.fiocruz.br/sites/default/files/documentos/ Relatorio%20CRIS%202012%20b.pdf 18

100

19

ABC (s.d.) disponível em: http://www.abc.gov.br/imprensa/mostrarnoticia/152

20

A primeira visita de técnicos da ABC e do Senai a Luanda ocorreu em 1997.

Agência Brasileira de Cooperação (s.d.) “Centro de Formação BrasilAngola”. Disponível em: http://www.abc.gov.br/Projetos/CooperacaoSulSul/ CentroFormacaoAngola 21

101

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) também atua na execução deste projeto22. Além da cooperação bilateral, o Brasil também oferece a Angola cooperação por meio da CPLP. Como exemplo, podemos citar o Programa de Formação Técnica em Informação em Saúde para os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa e Timor-Leste, que tem a participação da Fiocruz e inclui Angola entre os cinco países onde o projeto está sendo colocado em prática (os demais são Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe)23. A cooperação Brasil-Angola também se estende à dimensão política, com uma parceria estratégica assinada por meio de declaração conjunta em 23 de junho de 2010, na ocasião da visita do presidente angolano José Eduardo dos Santos. Mecanismos institucionais visando a consolidação das relações entre os dois países incluem a formação de uma Comissão Bilateral de Alto Nível e a assinatura do Plano Plurianual de Cooperação Brasil-Angola, que estabelece parâmetros para a ampliação da cooperação. Em 2011, o presidente Santos expressou seu apoio à candidatura brasileira a um assento permanente no CSONU24. Em 2014, o Brasil retribuiu o gesto apoiando a candidatura de Angola ao cargo de membro não permanente no mesmo Conselho25. A importância estratégica de Angola para o Brasil aumentou com a reformulação da política brasileira de defesa, que eleva o Atlântico Sul ao mesmo patamar de importância historicamente

dada à Amazônia e à região do Prata. A nova atenção dada ao Atlântico Sul é, em parte, resultado das descobertas de reservas de petróleo nas camadas do pré-sal e dos esforços por parte da diplomacia brasileira de ampliar as águas jurisdicionais do país por meio da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar – elementos ressaltados pela campanha “Amazônia Azul,” lançada com o objetivo de conscientizar a população brasileira sobre a importância do espaço atlântico para o desenvolvimento e defesa nacionais. Como o Brasil vem desempenhando papel de liderança no processo de revitalização da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (Zopacas), mecanismo que busca estimular a cooperação para a manutenção de um ambiente de paz e cooperação na região, Angola tornou-se um parceiro ainda mais importante em questões geopolíticas (Abdenur; Souza Neto, 2014). Em 2007, Luanda sediou reunião ministerial da Zopacas, ao final da qual foi lançado o Plano de Ação de Luanda. Além do âmbito multilateral, Angola vem tornando-se importante parceira em assuntos militares; a parceria estratégica em defesa prevê não apenas o aumento das exportações de materiais de defesa do Brasil para Angola, mas também o Programa de Desenvolvimento do Poder Naval de Angola (Pronaval), no que a Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), da Marinha brasileira, irá cooperar com o governo angolano na construção de estaleiros, capacitação de recursos humanos, e manutenção e operação de seis navios-patrulha adquiridos também por meio do Pronaval. Outros aspectos da cooperação bilateral em defesa abrangem o ensino e treinamento de oficiais e suboficiais, saúde militar, operações especiais, missões de paz e sistemas de vigilância marítima26.

ABC (s.d.) “Brasil e Angola firmam três novos projetos de cooperação técnica nas áreas cultural e de saúde). Disponível em: http://www.abc.gov.br/ imprensa/mostrarnoticia/152 22

Fiocruz (s.d.) “Cooperação Internacional do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde”. Disponível em: http://www.icict. fiocruz.br/content/cooperacao-internacional 23

MRE (2011) “Comunicado Conjunto por ocasião da visita da Presidenta Dilma Rousseff a Angola” Luanda, 20 de outubro de 2011, Nota à imprensa no. 405. 24

Portal Brasil, 2014. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/governo/2014/06/ dilma-anuncia-apoio-brasileiro-a-candidatura-de-angola-no-conselho-deseguranca-da-onu 25

102

Portal Brasil, 2014. “Angola busca cooperação brasileira para implementar Programa Naval”. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/defesa-eseguranca/2014/08/angola-busca-cooperacao-brasileira-para-implementarprograma-naval 26

103

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação Brasil-Moçambique As relações diplomáticas entre os dois países foram estabelecidas em 15 de novembro de 1975, poucos meses após a independência de Moçambique. Em 1976 foi aberta a Embaixada em Maputo (a Embaixada de Moçambique seria estabelecida em Brasília apenas em 1998). Os primeiros anos da relação bilateral foram complicados por conta de diversos fatores. Do lado moçambicano, restava um ressentimento por parte das lideranças políticas em relação ao apoio que o Brasil havia dado ao colonialismo português, o que provocou certa resistência e falta de confiança mesmo após o lançamento das relações formais. Além disto, durante a Guerra Fria Moçambique optou por manter uma cooperação privilegiada com países socialistas dentro do contexto de bipolaridade da época, justamente quando o Brasil ainda se encontrava sob regime militar. Por fim, a instabilidade regional e a guerra civil moçambicana, que eclodiu em 1977, também prejudicaram um contato mais próximo com o Brasil. Já o Brasil passava por sérias dificuldades econômicas, agravadas pela crise do petróleo. A contenção de despesas dificultou a disponibilidade de crédito para Moçambique, justamente quando o período pós-independência demandava investimentos, limitando a dimensão da cooperação técnica oferecida pelo Brasil. Em função desse cenário adverso, a primeira visita oficial de um representante do governo moçambicano ao Brasil ocorreu apenas em setembro de 1981, quando Joaquim Chissano, então Ministro de Negócios Estrangeiros, esteve no Brasil. Nessa ocasião foi assinado o Acordo Geral de Cooperação entre a República Federativa do Brasil e a República de Moçambique, estabelecendo um arcabouço geral para o aprofundamento das relações bilaterais. Em meados da década de 80, com o processo de redemocratização no Brasil, as relações com a África ganharam novo fôlego. Com o fim da guerra fria, o contexto político-econômico melhorou consideravelmente para as relações bilaterais entre Brasil e Moçambique. O período de redemocratização do Brasil coincidiu com a o fim da guerra civil moçambicana e a transição 104

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

do país para uma economia de mercado. A estabilidade política, a consolidação da democracia e os avanços econômicos em Moçambique criaram condições favoráveis para o aprofundamento das relações bilaterais. Do lado brasileiro, o Plano Real, colocado em prática em 1994 pelo governo Fernando Henrique Cardoso, trouxe a estabilidade macroeconômica e, portanto, as bases para a retomada do crescimento econômico. Já Moçambique, cuja economia tornou-se altamente dependente da assistência do Norte, buscava diversificar suas parcerias no exterior, inclusive com os provedores de cooperação Sul-Sul. As relações bilaterais se intensificam durante o governo Lula. Durante sua presidência, Lula visitou Moçambique três vezes (em 2003, 2008 e 2010), assinando vários acordos de cooperação bilateral com o país e perdoando quase toda a dívida de Moçambique (US$ 315 mi de US$ 330 mi). Na cooperação técnica, amparada pelo Acordo Geral assinado em 1981, destacam-se projetos na área de desenvolvimento urbano, agricultura e segurança alimentar, saúde pública e fortalecimento do Poder Judiciário. De acordo com a ABC, ao final de 2011, o programa bilateral de cooperação técnica Brasil-Moçambique era composto por 21 projetos em execução, sendo que outros nove se encontravam em processo de negociação. Dentre os projetos mais visíveis nas mídias e nos debates públicos estão o projeto ProSavana, parceria entre a ABC e a agência japonesa de desenvolvimento internacional (Jica) e o governo moçambicano, que visa transformar a região de savana na província de Matola em um grande corredor de monocultura voltada à exportação de commodities. O projeto, inspirado na experiência da Embrapa de transformação do cerrado do centro-oeste brasileiro, visa a modernização da agricultura de Nacala de forma a aumentar a produtividade e produção, mas também tem sido alvo de críticas por parte da sociedade civil por incluir o deslocamento de populações locais. Outro projeto de destaque é a instalação, liderada pela Fiocruz, de uma fábrica de medicamentos, sobretudo antirretrovirais usados no tratamento do HIV/Sida, em Matola. A fábrica, originalmente prometida por Lula durante visita a Maputo em 2003, foi cons105

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

truída com financiamento da Vale no município de Matola, perto da capital, visando a transferência de tecnologias e conhecimento na fabricação, embalagem, armazenamento, controle de qualidade e distribuição de medicamentos. Apesar de ter sido formalmente inaugurada em 2012, o projeto tem sofrido uma série de atrasos e ainda não se encontra plenamente operacional. Embora esses dois projetos tenham recebido atenção na mídia e nos debates públicos, há outras iniciativas voltadas para o fortalecimento de capacidades locais, muitas delas visando a criação ou ampliação de instituições governamentais. Por exemplo, a Fiocruz contribui para a criação de um banco de leite materno, para a ampliação de um mestrado em ciências da saúde, e para o fortalecimento do Instituto Nacional de Saúde (Almeida et. al., 2010). A maioria dos projetos de cooperação técnica é coordenada pela ABC e colocada em prática por ministérios ou instituições vinculadas ao Estado, tais como a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), em parceria com órgãos do governo moçambicano. No entanto, alguns projetos são executados juntamente com atores não estatais, sobretudo do lado brasileiro. O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), por exemplo, está implementando um centro de formação profissional em Maputo. Na área de desenvolvimento urbano, também existem projetos de cooperação técnica que foram estabelecidos entre municípios brasileiros e municípios moçambicanos. A cidade de Porto Alegre, por exemplo, já havia cooperado com Xai-Xai e Inhambane, compartilhando sua experiência com reassentamentos. Mais recentemente, em janeiro de 2013, surgiu um projeto com maior dimensão para o intercâmbio de ferramentas de gestão urbana entre cidades dos dois países. O objetivo é melhorar a capacidade de gestão do desenvolvimento de oito municípios em Moçambique (Dondo, Inhambane, Lichinga, Manhiça, Maputo, Matola, Nampula e Xai-Xai) e seis no Brasil (Porto Alegre, Belo Horizonte, Guarulhos, Vitória, Canoas e Maringá), assim como de duas associações de autoridades locais (Associação Nacional de Municípios de Moçambique  – ANAMM  – e Frente Nacional de Prefeitos

do Brasil  – FNP), mediante ações de intercâmbio de boas práticas e capacitação institucional27. Concretamente, o projeto inclui o desenvolvimento, a adaptação local, a gestão e conhecimento de três ferramentas de gestão pública (Orçamento Participativo; Cadastro Territorial Multifinalitário; Plano Diretor Participativo), por meio da troca de experiências entre as cidades dos dois países28. A cooperação também se estende à área de defesa. Em julho de 2005, foi estabelecida a adidância das Forças Armadas junto à Embaixada em Maputo29- reflexo da importância crescente de Moçambique como parceira na cooperação militar. Oficiais e suboficiais moçambicanos são treinados em academias militares brasileiras, e em 2014 o Brasil ofereceu contribuir para a estrutura naval moçambicana. Também foi prometida a doação de aeronaves de treinamento, e os dois países estudam a possibilidade de incorporar o fornecimento de equipamentos de defesa à cooperação militar bilateral30. Tais laços de cooperação têm se intensificado por meio de visitas de chefe de Estado (inclusive a ida do Presidente Armando Guebuza a Brasília em setembro de 2007) e diversas reuniões ministeriais. A Comissão Mista de Cooperação Brasil-Moçambique tornou-se mecanismo importante na manutenção e ampliação desses laços. No plano econômico, o comércio entre Brasil e Moçambique, em números absolutos, ainda é pouco expressivo: aproximadamente US$ 99,1 milhões em 2014, sendo que os intercâmbios estão caracterizados por uma forte assimetria. Apenas 0,05% das exportações moçambicanas estão destinadas ao Brasil, que ocupa o 53o lugar entre os compradores de Moçambique.

106

Disponível em: Acesso em: 05 jun.2014. 27

Disponível em: Acesso em: 05 jun.2014. 28

MRE (s.d.) “Relações bilaterais Brasil-Moçambique”. Disponível em: http:// maputo.itamaraty.gov.br/pt-br/relacoes_brasil-mocambique.xml 29

Notícias Online (2014) “Área da defesa: Moçambique e Brasil reforçam cooperação” 20 março 2014. Disponível em: http://www.jornalnoticias.co.mz/ index.php/politica/12594-area-da-defesa-mocambique-e-brasil-reforcamcooperacao 30

107

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

Da mesma forma, Moçambique foi o 96o parceiro comercial do Brasil em 201331. O Brasil exporta para Moçambique predominantemente produtos manufaturados (77,5% do total em 2013), sobretudo veículos, máquinas e automóveis, ao passo que importa de Moçambique quase exclusivamente (95,9% do total) commodities (hulha betuminosa)32. Já os investimentos brasileiros em Moçambique aumentaram de forma significativa na década de 2000, em parte graças aos incentivos fiscais, tais como isenções de impostos e reduções de taxas, concedidos pelo governo moçambicano para projetos de grande porte. Dentre os maiores investidores brasileiros no país estão a Odebrecht (infraestrutura), Siemens (telecomunicações), Petrobras (petróleo e gás) e Vale (mineração e transporte)33. A presença brasileira em Moçambique não é isenta de críticas. Como já mencionado, o projeto ProSavana tem sido alvo de fortes contestações por parte da sociedade civil moçambicana, frequentemente em articulação com entidades brasileiras. Intelectuais moçambicanos tais como Mia Couto e Paulina Chinzane também questionam a influência cultural do Brasil em Moçambique; o primeiro contesta a imagem elitista e branca que o Brasil passa no exterior34, ao passo que Chiziane critica as telenovelas e as igrejas pentecostais com sede no Brasil que abriram filiais em Moçambique35. As reações à cooperação brasileira em Moçambique  – tanto os elogios quanto os questionamentos  – tendem a se diversificar a medida que os laços vão se expandindo, tanto por vias bilaterais quanto por meio de mecanismos multilaterais tais como a ONU e a CPLP. Brasil Export, 2014. Disponível em: http://www.brasilexport.gov.br/sites/ default/files/publicacoes/indicadoresEconomicos/INDMocambique.pdf 31

Brasil Export, 2014. Disponível em: http://www.brasilexport.gov.br/sites/ default/files/publicacoes/indicadoresEconomicos/INDMocambique.pdf 32

33

ibid.

Época, 2014. Disponível em: http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2014/04/ bmia-coutob-o-brasil-nos-enganou.html (authors’ translation) 34

Agência Brasil, 2012. Disponível em: http://memoria.ebc.com.br/ agenciabrasil/noticia/2012-04-17/novelas-brasileiras-passam-imagem-de-paisbranco-critica-escritora-mocambicana 35

108

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

Conclusão A intensificação da cooperação brasileira com Angola e Moçambique faz parte de um fenômeno mais abrangente: a crescente importância dada por atores brasileiros – tanto atores estatais quanto empresas do setor privado e entidades da sociedade civil – aos laços com a África, e mais especificamente com a África lusófona. O aumento dos fluxos comerciais (ainda que marcados por fortes assimetrias em favor do Brasil), a expansão dos investimentos e a diversificação das iniciativas lançadas por ONGs, associações e entidades religiosas refletem a percepção de novas oportunidades no continente africano. Ao mesmo tempo, a ampliação da cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento, inclusive na sua dimensão técnica, mostra que a demanda angolana e moçambicana por maior interação com o Brasil abarca áreas tão diversas quanto a agricultura, a educação e a saúde pública. Sobretudo a partir da década de 90 – com o fim da guerra civil angolana e, por outro lado, a estabilização da economia brasileira – novos mecanismos bi- e multilaterais permitiram a consolidação das relações não apenas no plano econômico, mas também nas suas dimensões política, cultural e militar. Ao mesmo tempo, tal comparação requer uma série de qualificações, pois as divergências históricas, econômicas, políticas e culturais entre Angola e Moçambique  – apesar do status comum como ex-colônias portuguesas que se tornaram independentes durante a Guerra Fria – não podem ser ignoradas. Tais diferenças afetam as relações desses países com o Brasil, o que significa que a cooperação brasileira é “filtrada” por meio de instituições, práticas e normas locais, levando a resultados que não podem ser interpretados como idênticos. Por exemplo, o fato de Angola estar situado no Atlântico Sul, que se tornou nova região prioritária da política de defesa do Brasil, traz uma série de motivações e preocupações que não existem necessariamente nas relações Brasil-Moçambique. Da mesma forma, os investimentos brasileiros em carvão moçambicano e a efetivação do projeto ProSavana em Nacala provocam reações locais que não se aplicam ao caso da cooperação Brasil-Angola. É, portanto, essencial repensar a “cooperação Brasil109

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

A cooperação brasileira para o desenvolvimento com Angola e Moçambique: uma visão comparada

África” à luz dessas especificidades, de forma a evitar generalizações que perpetuem o mito de uma África homogênea. Finalmente, é essencial analisar tais laços ao longo do tempo, pois a trajetória histórica das relações entre o Brasil e seus parceiros africanos  – tal como demonstram os casos de Angola e Moçambique – é inconstante, variando não apenas de acordo com as motivações e recursos brasileiros e africanos, mas também conforme o contexto mais amplo. Tanto no caso angolano quanto no moçambicano, por exemplo, o Brasil enfrenta concorrência não apenas dos países do Norte global, mas também – e cada vez mais – de outros provedores de cooperação Sul-Sul. Ao mesmo tempo que o Brasil colabora com os demais Brics, inclusive por meio do projeto do Novo Banco de Desenvolvimento (anunciado em 2014, durante a sexta cúpula dos cinco chefes de Estado em Fortaleza), as potências emergentes competem por nichos e oportunidades em comércio, investimentos, cooperação técnica e (de forma geral) influência na África. Futuras análises da cooperação brasileira com países africanos, inclusive Angola e Moçambique, devem levar em conta essas novas geometrias de cooperação e concorrência, inclusive quando elas se sobrepõem nos mesmos espaços.

CERVO, Amado. Socializando o desenvolvimento: uma história da cooperação técnica internacional do Brasil. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 37, n. 1, p. 37-63, 1994.

Referências bibliográficas ABDENUR, Adriana Erthal; SOUZA NETO, Danilo Marcondes. O Brasil e a cooperação em defesa: a construção de uma identidade regional no Atlântico Sul. Revista Brasileira de Política Internacional (impresso), Brasília, v. 57, p. 1, 2014. ALENCASTRO, Luiz Felipe. Brazil in the South Atlantic: 1550-1850. Mediations, Chicago, v.23, n.1, p. 157-174, 2007. ALMEIDA, Célia; CAMPOS, Rodrigo Pires; BUSS, Paulo; FERREIRA, José Roberto; FONSECA, Luiz Eduardo. A concepção brasileira de ‘cooperação Sul-Sul estruturante em saúde. Revista Eletrônica de Comunicação Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 25-35, 2010. 110

CAU, Hilário Simões. A construção do Estado em Moçambique e as relações com o Brasil. UFRGS, 2011. Disponível em: http://www. lume.ufrgs.br/handle/10183/30619 JOSÉ, Joveta. A política externa de Angola: novos regionalismos e relações bilaterais com o Brasil. UFRGS, 2011. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/ handle/10183/35078/000794257.pdf HIRST, Monica. Países de renda média e a cooperação Sul-Sul: entre o conceitual e o político. In: LIMA, Maria Regina Soares de; HIRST, Monica (org.). Brasil, Índia e África do Sul: desafios e oportunidades para novas parcerias. São Paulo: Paz e Terra, 2009. HURRELL, Andrew. Brazil: What Kind of Rising State in What Kind of Institutional Order? In: ALEXANDROFF, Alan S.; COOPER, Andrew F. (org.). Rising States, Rising Institutions, challenges for global governance. Baltimore: The Brookings Institution Press, p.128-150, 2010. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA); AGENCIA BRASILEIRA DE COOPERAÇÃO (ABC). Cooperação Brasileira para o Desenvolvimento Internacional 2005-2009. Brasília: Ipea/ABC, 2010. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/ portal/index.php?option=com_content&view=article&id=6874 MENDONÇA JÚNIOR, Wilson. Política Externa e Cooperação Técnica: As relações do Brasil com a África durante os anos FHC e Lula da Silva. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2013. LEITE, Iara Costa. Cooperação Sul-Sul: Conceito, História e Marcos Interpretativos. Observatório Político Sul-Americano (Iesp/Uerj), Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, 2012. 111

Adriana Erthal Abdenur e João Marcos Rampini

LEITE, Patricia Soares. O Brasil e a Cooperação Sul-Sul em três momentos de Política Externa: os governos de Jânio Quadros/ João Goulart, Ernesto Geisel e Luiz Inácio Lula da Silva. Brasília: Funag, 2011. MAWDSLEY, Emma. From Recipients to Donors: Emerging Powers and the Changing Development Landscape. Londres: Zed Books, 2012. PIMENTEL, José Vicente de Sá. As relações entre o Brasil e a África Subsaárica. Revista Brasileira de Política Internacional, Brasília, v. 43, n. 1, 2000.

POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A COALIZÃO IBAS: COMÉRCIO E INSERÇÃO INTERNACIONAL1 Adriana Schor* Janina Onuki**

RIZZI, Kamilla Raquel. Relações Brasil-Angola no pós-guerra fria: os condicionantes internos e a via multilateral. UFRGS, 2005. Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/7721 SARAIVA, José Flávio Sombra. O lugar da África: a dimensão atlântica da política externa brasileira (de 1946 a nossos dias). Brasília: EdUnB, 1997. SARAIVA, Miriam Gomes. South-South cooperation strategies in Brazilian Foreign Policy from 1993 to 2007. Revista Brasileira de Política Internacional [online], Brasília, v. 50, n. 2, 2007.

Introdução Embora não haja convergência entre os especialistas sobre qual foi o grau de mudança da política externa brasileira, ocorrida com o início do governo Lula, e depois continuada pelo governo Dilma, ainda assim não há como negar que a cooperação Sul-Sul foi uma marca de destaque e a aproximação com os países em desenvolvimento e emergentes ocupou lugar de relevo no discurso da diplomacia desde então. Um dos exemplos mais bem acabados do foco da política externa brasileira na última década no chamado Sul foi o Fórum Índia-Brasil-África do Sul (Ibas). Inserido no contexto dessa discussão sobre as mudanças no projeto de política externa que passou a vigorar a partir da eleição do governo petista, o acordo de cooperação entre Brasil, Índia e África do Sul assinado em 2003 Uma versão preliminar deste capítulo foi publicada como artigo, em inglês, na New Global Studies (2013). 1

* Professora do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisadora do Caeni-USP. ** Professora do Instituto de Relações Internacionais da USP e pesquisadora do Caeni-USP.

112

113

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.