A Cor da Morte

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CRIMINOLOGIA

Apresentamos aqui um estudo

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estatístico e criminológico sobre as vítimas de homicídio no Brasil. Os resultados demonstram a existência de relações entre gênero, idade, estado civil e cor da pele, por um lado, e vitimização, por outro - relações que se repetem todos os anos e em quase todos os estados. A falla de dados mais precisos impossibilitou o estudo sistemático dessas relações no país durante muitas décadas, mas agora é possível saber que a morte tem cor. Essa suspeita já existia, mas antes não havia como demonstrá-la, porque a cor estava morta em muitas estatísticas brasileiras. A morte da cor tinha tonalidades verde e amarela, em uma espécie de fundamentalismo patriótico que negava a discriminação racial e seus efeitos. O Brasil acolheu, de longa data, o mito de que somos uma democracia racial e de que a cor da pele não faz diferença. Faz. O escravagismo brasileiro foi descrito como benevolente: não o foi. Com freqüência, usamos o contraste com a desigualdade racial nos Estados Unidos, onde é mais profunda, para isentar sociedade e governo brasileiros de qualquer responsabilidade. Não a assumimos. Parte da esquerda endossou esse mito, insistindo em reduzir tudo à influência das classes: as distinções entre as 'raças' (termo utilizado aqui apenas como sinônimo de 'cor da pele', sem qualquer outra conotação) seriam redutíveis a diferenças de classe. Não o são. Nos registros de vitimas de homicídios organizados pelo Ministério da Saúde, a partir de dados das declarações de óbito, o quesito referente à cor só começou a ser preenchido, em todo o Brasil, a partir de 1996. Os dados estatísticos ainda são de baixa qualidade, mas permitem algumas conclusões, apesar do alto percentual de mortos com 'raça ignorada' ou 'sem informação', que tende a melhorar: passou de 15% do total de homicídios em 1996 a 8% em 2000. Por isso, descobrir qual o efeito da raça sobre a probabilidade de vitimização por homicídio é, em si, uma história de detetive:pois o percentual de óbitos com 'raça ignorada' ou 'sem informação' varia muito de estado para estado. No entanto, há um padrão espacial que se repete ano após ano: o percentual de vítimas com 'raça desconhecida' ou 'ignorada' é alto nos mesmos estados (figura 1). A qualidade da informação sobre raças também varia bastante entre os estados - como nas diferenças quantitativas no registro da cor da pele da vítima. Dentro de cada estado,

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outubro de 2004 • Cl~NCIA HOJE• 27

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Figura 1. O registro da raça (cor da pele) das vítimas de homicídios nas declarações de óbito ainda é falho em muitos estados brasileiros, e aqueles que mais omitiram esse dado em 1999 continuaram a ignorá-lo em 2000

a fal ta de qualidade dos dados concentra-se em alguns municípios, e estes são sempre os mesmos. Essas situações sugerem descaso e/ou incompetência no nível municipal e descaso, incompetência e falta de controle no nível estadual. A solução para essas imprecisões, portanto, está nas esferas estadual e municipal, e seria o maior controle de preenchimento das declarações de óbito e a junção das informações coletadas pelas secretarias de saúde e de segurança. Os ministérios da Saúde e da Justiça tentam padronizar as informações, mas o progresso tem sido lento. A raça voltou à agenda política em função das pressões do Movimento Negro e da agenda progressista de alguns partidos políticos e grupos sociais. Esse retorno também derivou, secundariamente, das necessidades das pesquisas: sem dados era impossível pesquisar e conhecer. A elite simbólica pressionou para que a raça fosse levada a

1.

Em estatística, quando os efeitos de duas variáveis I! ,

sobre uma terceira são independentes, eles são considerados não interativos. Nesse caso, a presença ou ausência de uma variável não altera o efeito da outra sobre o fenômeno que queremos explicar. Entretanto,

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quando o efeito conjunto das duas variáveis é diferente da simples soma de seus efeitos separados, ocorre interação. Nos dados sobre homicídios, a raça tem efeito altamente interativo: aumenta mais a probabilidade de

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vitimização entre adolescentes e jovens adultos do que entre menores de 10 anos, entre homens do que entre mulheres etc. Isso torna necessário

criar, em uma equação que descreva estatisticamente o fenômeno estu dado, termos que representem essas interações. 11111 28 • Cl[NCIA HOJE.

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sério na coleta de dados. Mas ninguém sabia exatamente o quanto custava ser negro. Estamos começando a saber e é muito pior do que se pensava.

Negros, vítimas preferenciais A taxa (por 100 mil habitantes) de mortalidade de negros por homicídios foi 87% maior do que a de brancos em 2000, diferença semelhante à de 1999. Alé na morte a violência mostra a sua face estável e estrutural. Para fins analíticos, porém, convém separar, entre os identificados como negros, os 'prelos' e os 'pardos', seguindo a classificação adotada nos Censos nacionais pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Eslalística. Por que fazer isso? Porque a taxa de vitimização dos prelos foi 21 o/o mais alta do que a dos pardos em 2000. Juntar os dois grupos em uma só categoria faz desaparecer essa diferença e diminui o poder de explicar o homicídio. No que concerne à vitimização por homicídios, ser pardo é mais seguro que ser preto, mas é muito menos seguro que ser branco: a taxa de vitimização dos pardos foi 53% mais alta que a dos brancos em 1\• 2000. Apesar disso, a compreensão do fenômeno é facilitada se, na apresentação de dados, estiverem somados os pretos e os pardos. Por isso, este artigo apresenta alguns resultados contrastando brancos e negros e outros realçando as diferenças entre pretos e pardos. As taxas de vitimização dos homens são muito mais altas que as das mulheres. Por isso, impõe-se a medida metodológica de calcular as taxas de cada raça (ou cor da

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Figura 2. As taxas de homicídios por 100 mil habitantes (Brasil, 2000). considerando a raça e o sexo, revelam que as principais vítimas são os homens e, em qualquer dos sexos, os negros (que Incluem, segundo critérios do IBGE, pardos e pretos)

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10 pele, quando usada) separando o :J: os homens das mulheres. Quano 1 do fazemos isso com os dados de ----- ---2000, vemos que tanto entre os homens quanto entre as mulheres as diferenças entre brancos e negros são claras, e também que tais diferenças são mais fortes entre os homens (figura 2) . Vemos ainda que a influência do gênero sobre a vitimização é maior que a da raça. Entre os homens, a taxa de vitimização por 100 mil habitantes é 56,7 para os negros e de 36,7 para os brancos; entre as mulheres, as taxas são muito mais baixas, mas as diferenças relativas persistem: 4,4 para as negras e 3,6 para as brancas. Entre os negros, as taxas masculinas são 13 vezes maiores que as femininas, enquanto entre os brancos essa relação é de 10 vezes. A idade também é um fator importantíssimo na análise do homicídio: são jovens os que morrem. Devido ao infanticídio, os índices referentes ao primeiro ano são altos, baixando em seguida. O crescimento dos homicídios começa logo depois dos 10 anos e sofre uma aceleração após os 14. Entre os jovens brasileiros, essa é a maior causa de mortes. Em níveis diferentes, as tendências entre idade e homicídio observadas no país parecem ser universais: usando dados de vários países e séries históricas, algumas com informações sobre essas variáveis cobrindo mais de 150 anos, diferentes pesquisadores chegaram à mesma conclusão - são jovens os que morrem e são jovens os que matam.

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