A cozinha: espaço feminino em \'Neighbours\' de Lília Momplé

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Colóquio sexualidades e género nas literaturas africanas: investigações preliminares e alguns resultados

Azzurra Rinaldi Doutoramento em Literatura de Língua Portuguesa: Investigação e Ensino

A cozinha: espaço feminino em Neighbours de Lília Momplé

O tema da comunicação centra-se nas personagens femininas do romance Neighbous de Lília Momplé que se movem nos espaços domésticos. Para desenvolver tal assunto será preciso o apoio de outros romances de autores moçambicanos, nomeadamente Paulina Chiziane e Mia Couto. O enfoque é analisar como o espaço doméstico – cenário principal em que as personagens se movem – reflete as peculiaridades das três protagonistas do romance. O estudo será desenvolvido a partir do local da cozinha, geralmente considerado como lugar “tipicamente feminino”. Segundo Bell Hooks (1998, 30-31) a casa é um lugar “feminino”. De facto, a autora refere que apesar das casas serem habitadas também por homens, essas permanecem um lugar feminino, mas não de dominação das mulheres, pois a desvalorização da mulher – principalmente devido ao culto da mãe, isto é, a mulher como ser meramente reprodutor – faz com que na África colonial se tenha desenvolvido e elogiado o papel submetido e sacrifical da mulher. Bourdieu (1997: 160) ainda refere que a casa, portanto o espaço interno, reflete as estruturas do espaço social, externo. Neste sentido, a casa torna-se um microcosmo refletindo as hierarquizações da sociedade. Esta situação faz com que a mulher esteja segregada, basicamente, numa única parte da casa, a cozinha, local em que ela pode tratar de uma das suas principais tarefas: confecionar as refeições. Na análise da estrutura da casa do povo Cabila, Bourdieu refere “o homem é a lâmpada do exterior, a mulher do interior” isso significa que a mulher é uma luz artificial que estará sempre subordinada à luz exterior, a luz natural do sol, isto é, o homem. Repare-se a relação de poder entre homem e mulher que se encontra bem definida nos vários espaços da casa. Pois, na casa Cabila, a mulher encontra-se relacionada ao “tear”, lugar da cozinha e das atividades de tecelagem. A zona do “quarto” está situada na parte baixa, descrita pelo autor como lugar escuro de intimidade e sexualidade, portanto relacionado aos ambos os sexos: masculino e feminino. Tal divisão no interior da casa é respeitada também pela arquitetura indígena dos Igbo prevendo um espaço dividido em dois: mulheres e filhos pequenos na parte posterior da casa e homens adultos na parte anterior. Nesta

construção mostra-se, evidentemente, uma separação de espaços refletida na diferença física e sexual. Normalmente, as crianças podem transitar de uma zona para a outra, trazendo mensagens e as mulheres só podem aceder à área “masculina” quando chamadas. Pelo contrário, o homem nunca pode transitar na seção feminina, pois, esta é considerada suja e impura e o homem que ali come arrisca ser vítima de escarnio (Amadiume, 1987: 92). Esta separação do espaço doméstico em masculino e feminino reflete-se bastante também em Neighbours1 de Lília Momplé, Pois, as três protagonistas femininas estão descritas, em diversos momentos, no espaço da cozinha e no ato de cozinhar. Narguiss prepara os petiscos pela festa muçulmana da Ide, à constante espera de um marido que não vem. Mena também está localizada na cozinha a preparar o jantar para o marido e os seus hóspedes Zalíua, Romu e dois sul-africanos que chegarão atrasados. Diferente é a situação de Leia, embora em diversas cenas seja apresentada no ato de cozinhar, o seu relacionamento com o marido não é igual aquele das outras duas protagonistas. Pois, o marido Januário não é uma personagem negativa com os outros homens que aparecem durante a história. Ele não bate na mulher como Dupont, o marido de Mena, ou a trai como Abdul com Narguiss. A positividade da personagem de Januário reflete-se na descrição da sua mulher, Leia, que consegue ter uma maior mobilidade no interior dos espaços da pequena casa descrita minuciosamente pelo narrador. Esta descrição pormenorizada do pequeno lar de Leia e Januário monstra a pobreza da mobília e conta dos sacrifícios que os dois fizeram para a conquista daquele espaço. Pelo contrário, os outros dois ambientes domésticos que aparecem no romance não estão narrados com tanta precisão. Leia tem uma grande liberdade de movimento, entretanto que Mena apenas se consegue mover da cozinha para o quarto (movimento significativo que parece um ato de rebelião da protagonista em relação ao poder masculino). Narguiss vive numa situação estática e não consegue se mover do local da cozinha até que acaba por se adormecer ali, à janela, à espera de Abdul. De facto, a imobilidade peculiar dessa última personagem reflete a sua maneira de pensar sobre a situação da mulher. Embora saiba que o marido esteja com uma amante no Norte do Moçambique, ela não deixa de o amar e de o respeitar. Além disso, apesar do conhecimento da dor que a traição do marido lhe causa, ela continua a acreditar que as filhas devem arranjar um homem para não serem “solteironas” e conseguir, pois, com o casamento, adquirirem um estatuto perante a sociedade. Tal pensamento, porém, encontra-se oposto aos desejos da filha Muntaz que não quer absolutamente arranjar namorado antes de ter acabado os seus estudos em medicina, causando assim a aflição na mãe: a mulher não deve estudar, mas sim ser capaz de agradar ao marido e preparar boas refeições para ele. Assim, o espaço da cozinha resulta por Narguiss o local fundamental da expressão da feminilidade e do papel da mulher na vida dos homens. 1

Romance dividido em três episódios que se enterlaçam.

Para reforçar o tema da cozinha como lugar feminino é preciso indicar que arquitetonicamente este local é uma área que fica separada das outras zonas da casa. Tal separação é principalmente devida aos fumos, aos vapores e aos cheiros que se produzem cozinhando; nesta maneira, a cozinha acaba por ser um local privilegiado das mulheres que se afastam dos lugares de domínio masculino. “Fechar” a cozinha implica à mulher um limite, representado no romance com a exclusão de Mena das conversações entre o marido e os dois hóspedes. De facto, ela não consegue entender logo que os três - mais os dois sul-africanos que chegarão à casa de Mena e Dupond, num segundo momento serão protagonistas de um ato de terrorismo. A protagonista quer saber dos acontecimentos e dos vários discursos que os homens fazem na sala de jantar, mas não pode porque o marido a obriga a preparar o jantar para eles e nem sequer lhe é permitido sentar-se à mesa para consumar a refeição. Mena detesta o marido e isso faz com que ela assuma uma certa tendência à rebeldia, não acatando as suas ordens. Ela faz perguntas, opõe-se à sua vontade, mesmo quando Dupont recorre aos insultos e à violência. Pede-lhe para não sair à noite do atentado; liga à polícia, quando descobre as más intenções dos três homens. Ela é a personagem mais ativa entre as mulheres presentes na obra. Consegue entrar no quarto sem a autorização do marido, como se o local da sexualidade não esteja construído para ser um espaço comum aos dois sexos. De facto, é aqui que se mostra a “superioridade” do marido: ele irrompe no quarto e nota que Mena não dorme, porque está preocupada com que os homens farão durante à noite. Depois de uma breve discussão, Dupont sai do lugar deixando a luz acesa – pormenor que demonstra a falta de respeito do marido e também o seu controlo naquele espaço. De facto, a luz pode ser identificada como permanência do poder masculino no interior do quarto que não deixa de existir mesmo depois da saída do homem da casa. Um outro detalhe que reflete esta situação do poder masculino no quarto é o facto de Mena ter deixado a porta entreaberta, unindo, nesta maneira, a sala onde estão os homens a jantar e o quarto. Pelo contrário, a porta da cozinha ficava fechada, permitindo, assim, à mulher a possibilidade de uma maior privacidade, que no quarto não chega a ter. A rebeldia de Mena está também presente na caraterística da personagem de não conseguir ter filhos, pois, como é notório, é a capacidade de procriação que faz com que uma mulher possa ser aceite na sociedade. A autora Paulina Chiziane, por exemplo, em várias obras fala da mulher como um ser exclusivamente reprodutor, portanto, a sua tarefa é principalmente ter filhos juntamente a cuidar do marido. A impossibilidade de dar a luz torna a protagonista do terceiro episódio uma mulher a metade, não completa, que consegue, por isso, ter um comportamento diferente das outras personagens femininas do romance. Comparável à Mena, é a filha de Narguiss, Muntaz também uma rebelde, sendo estudante em medicina e não tendo nem querendo um homem. A descrição de Muntaz parece que referir entre as linhas que os tempos contemporâneos criam mulheres “andróginas”, isto

é, femininas no corpo e masculinos de cabeça. A figura da jovem encontra-se situada num espaço social entre a vida “tradicional” da mulher, que a vê em casa cuidadosa na ajuda pela preparação da comida para o Ide e uma zona “moderna” que implica uma relação com o ambiente externo, lugar tipicamente e culturalmente “masculino”. Pois, como é evidente, o homem é o ser que se move nos lugares da vida pública e desenvolvendo atividades oficiais e de representação, enquanto que a mulher fica no marasmo do espaço doméstico desenvolvendo tarefas habituais (Bourdieu, 1998: 53). A funcionalidade do externo e interno é posta ainda mais em evidência no romance O Sétimo Juramento de Paulina Chiziane, em que as mulheres que habitam no exterior são maioritariamente prostitutas, contribuindo a conotação negativa deste espaço que se torna um sítio de perdição. As prostitutas descritas na obra não obedecem a convenções sociais, diferentemente da protagonista, Vera, que ficando fechada no espaço doméstico respeita as regras “sexuais” impostas pela sociedade. Uma demonstração da ausência de regras comportamentais das mulheres nos lugares externos é dada pelo romance O Último Voo do Flamingo de Mia Couto, em que a prostituta Ana Deusqueira aproxima a sua maneira de falar à brutalidade oral considerada “tipicamente masculina”. De facto, na realidade como na ficção, a linguagem dos homens costuma ser caracterizada pela arrogância demonstrada não apenas das diferentes obras destes três autores moçambicanos, mas também por inúmeros estudos linguísticos que referem tal prepotência presente na fala dos homens e a submissão na oralidade da mulher. Vê-se os textos de autoras como Suzanne Romaine Communicating Gender, (1999), Robin Lakoff Language and Woman’s Place, (1975), Marina Yaguello Les Mots et les Femmes, Payot, Parigi. (1987), Jennifer Coats Women, Men and Language (1986) entre outros. Na obra O Sétimo Juramento, Vera, ao longo do romance, enfrenta uma transição de um espaço para o outro desenvolvendo uma consciência e ganhando uma força que a obrigará a sair do seu local natural para o externo e conseguir salvar a família do seu marido que estringiu um pacto com o demónio Makhulu Mamba. O ato de rebelião de Vera apanha forma aquando a sogra lhe conta do incesto entre o defunto marido e a mãe dele. Perante esta situação a mãe de David permaneceu em silêncio, porque a tarefa da mulher é esconder as atrocidades que acontecem no interno da casa e não as combater. Mas não é assim que pensa Vera, que se descobre ter um carater rebelde, assim como Mena do romance de Lília Momplé: ambas opostas aos maridos violentos. A rebelião de Mena ao confrontar o marido é evidente em vários trechos do romance, mas resulta emblemática na parte final - em que já se sabe que Dupont, depois de ter cometido o atentado, não voltará - ela consegue tomar o seu amado café matinal sem ouvir críticas a esse hábito e pode “tomá-lo à vontade. Dupont não está para implicar”. (Momplé 2012: 153) Demonstrando assim o puder que o homem tem também no espaço interior.

O interior, portanto, resulta ser, ao par do exterior, o espaço da masculinidade, deixando a cozinha tornar-se o local privilegiado das mulheres, propício para extravasarem as suas frustrações ou desejos. No romance de Lília Momplé, isso é bem evidente no início da história, pois, Narguiss está a cozinhar para a festa do Ide e as três filhas estão com ela, até que, mais tarde, entrará em casa a prima dela, Fauzia, para as ajudar nos preparativos. Entre elas encetam-se diálogos em que abordam situações pessoais: a comunicação da partida de Fauzia para Lisboa e a frustração de Narguiss pelas filhas que não conseguem arranjar marido. Uma situação parecida de convívio neste espaço doméstico é-nos oferecido pelo romance de Mia Couto O Outro Pé da Sereia em que as três personagens femininas - Constança, Mwadia e a brasileira Rosie – moem o grão à volta da mesa da cozinha, falando sobre os homens de Vila Longe e da própria estereotipização feita no Brasil. Os diálogos que ocorrem nesta parte da obra são importantes para lembrar a pouca consideração que os homens têm pelas mulheres no exterior da sociedade. «(Constança:) – É o que eu lhe digo: os homens daqui são péssimos. (Rosie:) – Não é isso que se conta lá no Brasil. - Isso é porque não pedem a opinião das mulheres.» (Couto, 2000: 202) Emblemática é a última frase de Constança que demonstra não só a pouca consideração das mulheres, mas também o facto de não poder ter voz porque ficam fechadas nas suas próprias casas. A situação de Leia, a protagonista feminina do segundo episódio de Neighbours, é diferente em relação às outras duas personagens. O lugar dela não é a cozinha, mas a sala: espaço comum e partilhado pelo par e a pequena criança de dois anos. Parece que a situação de pobreza em que vive a família a leve a uma condição de “paridade” no interior do pequeno apartamento, ao contrário das outras duas famílias do romance que são ricas a causa do emprego de Abdul e da corrupção de Dupond. Pelo contrário, Januário trabalha honestamente como professor de ensino noturno, mas mesmo assim não consegue alcançar o mesmo estatuto dos outros dois homens, não causando, nesta maneira, um desequilíbrio entre o trabalho não remunerado da mulher em casa que cuida da pequena filha e prepara o jantar e aquele do marido que desenvolve as suas tarefas no espaço exterior, trazendo à família o necessário para sobreviver. O espaço partilhado por Leia e Januário demonstra a paridade que existe entre os dois, evidenciada também pelas várias descrições que aparecem ao longo do romance: «E, mais uma vez, lhe está agradecida por não ser como tantos homens que, sobretudo aos domingos, enchem os restaurantes onde consomem ordenados inteiros com um prato de carne ou peixe fresco, deixando em casa a upsawa e o repolho para as mulheres e os filhos.» (Momplé, 2012: 46)

A situação de paridade entre Leia e Januário é consequência da história de vida do protagonista, que o vê, no seu passado, empregado numa casa de brancos, facto que estimula uma consciência sobre o significado de ser tratado como um ser inferior. No romance, parece que o espaço da cozinha é vivido com base na forma de os maridos tratam as suas mulheres: quanto mais submissas, mais a cozinha se torna um espaço fundamental. A incapacidade de rebeldia de Narguiss faz com que a cozinha seja o único espaço em que o seu episódio se desenvolva, entretanto que a especificidade de carácter de Mena oferece à protagonista uma maior possibilidade de movimento, porém ficando submetida à vontade do marido. Em algumas ocasiões narradas em flashback, ela consegue fazer prevalecer a sua voz sobre a do marido, mas a sua rebelião não a liberta do espaço da cozinha, evidenciando, assim, o poder que o homem exercita sobre ela. Só quando consegue beber o seu café “à vontade” é que há a plena vitória da mulher, que quase lembra o conto Medida contra a violência recolhido nas Histórias do Senhor Keuner de Bertold Brecht em que só à morte do “agente” o senhor Egge consegue responder negativamente à pergunta “Vais estar ao meu serviço?” (Brecht, 2007, 60). Particular é o caso de Leia, que como temos visto, tem uma grande liberdade de movimento no espaço doméstico. Porém, a sua morte e a de Januário durante o atentado, quase parece indiciar a impossibilidade das duas pessoas positivas serem resgatadas socialmente. A morte de Narguiss acontecida na espera do marido à janela parece significar o perecer de uma tradição que vê a mulher submetida ao homem. De facto, a esperança nesta nova situação feminina está representada pela sobrevivência da pequena filha de Leia e Januário que, se calhar, crescendo, se tornará uma rebelde como Mena ou como a futura médica Muntaz.

Referências Amadiume, Ifi, Male Daughters, Female Husbands. Gender and Sex in African Society, Zed books, London – New Jersey, 1987 Bourdieu, Pierre, A Casa ou o Mundo Invertido, In Bourdieu, Pierre, O senso prático, Vozes, Petrópolis, 1997 Bourdieu, Pierre, La Domination Masculine, Seuil, Paris, 1998 Brecht, Bertold, Histórias do senhor Keuner, Campo das Letras, Porto, 2007 Chiziane, Paulina, O Sétimo Juramento, Caminho, Lisboa, 2000 Couto, Mia, O Último Voo do Flamingo, Caminho, Lisboa, 2000 Couto, Mia, O Outro Pé da Sereia, Caminho, Lisboa, 2006 Hooker, Bell, Elogio del Margine, Feltrinelli, Milano, 1998 Momplé. Lília, Neighbours, Caminho, Lisboa, 2012

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