A CRIANÇA NO CENTRO DO PLANO DE MARKETING: RELAÇÕES ENTRE INFÂNCIA, MERCADO E PRÁTICAS DE CONSUMO

June 3, 2017 | Autor: Milena Pereira | Categoria: Marketing, Consumo, Publicidade Infantil, Infancia, Crianças, Consumismo
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A CRIANÇA NO CENTRO DO PLANO DE MARKETING: RELAÇÕES ENTRE INFÂNCIA, MERCADO E PRÁTICAS DE CONSUMO

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Milena Gomes Coutinho Pereira2 Universidade Federal Fluminense RESUMO Em tempos de grande concorrência e apelo midiático, o mercado – amparado pela publicidade e marketing – tem demonstrado crescente interesse no público infantil e direcionado cada vez mais investimento a ele. O público infantil - que segundo classificação de James McNeal pode ser enquadrado como mercado primário, de influência e/ou futuro - por sua vez, tem respondido com novos desafios à área. Nesse cenário, tensões e possibilidades se desvelam e imbricam no processo de construção de novas estratégias de entendimento, aproximação e conquista do novo público. PALAVRAS-CHAVE Infância; Mercado; Publicidade; Marketing; Consumo. INTRODUÇÃO Vivemos em uma sociedade fortemente constituída pela mídia. Com frequência a nossa rotina é interpelada por propagandas, anúncios e ações comerciais dos mais variados tipos, advindos dos mais diversos meios. Imagens coloridas, slogans divertidos e “jingles-chicletes” circulam com intensidade e atraem nossos olhos, ouvidos e atenção aos mais recentes lançamentos do mercado - que não tardam a instigar em nós novos interesses de consumo. As crianças3, então sujeitos sociais (ARIÈS, 1978), também são impactadas por esses fluxos de comunicação e de apelos comerciais; elas, inclusive, têm sido cada vez mais consideradas peças-chave nos planejamentos de marketing, até mesmo nos de empresas que não possuem produtos/serviços destinados diretamente ao consumo dela. É curioso perceber o quão a visão do mercado sobre a criança foi sendo ressignificada ao longo do tempo. Se antes se pensava nela apenas como uma simples 1

Trabalho apresentado no Trabalho apresentado no VII Pró-Pesq PP – Encontro de Pesquisadores em Publicidade e Propaganda. De 18 a 20/05/2016. PUC-Rio. 2

Mestra em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF), Bacharel em Estudos de Mídia pela mesma instituição e Pedagoga pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Membro do NEMACS, Núcleo de Estudos em Comunicação de Massa e Consumo. E-mail: [email protected]. 3

Ao longo deste artigo chamaremos de “criança” o sujeito que tem até 12 anos incompletos, conforme definição do Art.2 do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei 8.069 de 13 de julho de 1990.

compradora de balas (MCNEAL, 2000), alguém com pouco a contribuir para a movimentação das engrenagens econômicas, hoje lidamos com um quadro completamente diferente: a sociedade contemporânea reconhece o potencial consumidor e influenciador da criança e investe nele; atualmente pode-se dizer que “todas as indústrias de bens de consumo e produtos sociais têm crianças como alvo”

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(MCNEAL, 2000, p.49). Foi um longo caminho percorrido até que essa nova compreensão se estruturasse. Antes de aplicar cifras milionárias sobre o público infantil o mercado precisou investir em pesquisa sobre e com a criança – afinal, mostrava-se fundamental conhecer bem esse sujeito para só então ser capaz de pensar em produtos e estratégias para ele. Em meio a esse processo, algumas classificações surgiram e ajudaram a mapear as diferentes atuações da criança na sociedade de consumo atual. James McNeal reconhece ao menos três conexões entre público infantil e mercado: para ele, as crianças podem se enquadrar como mercado primário, mercado de influência e/ou mercado futuro; e é sobre as características e tensões dessas classificações que discorreremos a seguir. MERCADO PRIMÁRIO: A CRIANÇA CONSUMIDORA A pesquisadora norte-americana Juliet Schor quando perguntada sobre o porquê de a publicidade referenciar e se direcionar as crianças esclarece: “Os publicitários anunciam porque as crianças compram.” (SCHOR, 2009, p.18). Segundo a autora, apesar de produtos infantis, como roupas, brinquedos e livros, estarem disponíveis a tal público há longos anos, o século XX promoveu a aproximação da criança com o consumo de uma forma inédita. Isso se deu porque “embora os tipos de produtos comercializados para crianças tenham se mantido „mais do mesmo‟, o poder de compra de crianças e adolescentes tem aumentado exponencialmente ao longo do tempo.5” (CALVERT, 2008, p.207). A criança como um mercado primário foi algo que levou tempo para se constituir. Foi preciso haver o encontro de alguns fatores para que a criança conseguisse ser de fato uma consumidora ativa; dentre esses fatores destaca-se o desafio de unir o dinheiro à vontade de gastar (MCNEAL, 2000), o que só aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente com o baby boom. 4 5

Tradução minha. Tradução minha.

O fenômeno da “explosão de bebês” levou a Europa a ter mais crianças que adultos, o que demandou a reorganização dos sujeitos e suas práticas, incluindo as econômicas. Acontece que com o expressivo número de crianças na sociedade, o mercado, que nesse momento sofria com a economia abalada pela guerra e almejava ardentemente aquecer as vendas e se reerguer, passou a ver nos bebês uma nova esperança. Diante disso as crianças passaram a ser encaradas como consumidoras, e o mercado começou a se direcionar não apenas para os pais, mas também para elas. Esse cenário possibilitou haver em 1960 uma geração de crianças (os bebês de outrora, agora crescidos) com dinheiro e poder de decisão nas próprias compras. A partir daí a relação da criança com o consumo intensificou-se progressivamente: se em 1960 o público consumidor infantil apareceu com força, em 70 houve a proliferação de produtos voltados a este público (afinal, como vimos, o mercado precisou se direcionar a esse novo sujeito), em 80 legitimou-se o status de consumidora à criança, e em 90 o mercado infantil especializou-se através da segmentação. Para Schor (2004), esta segmentação, que buscava oferecer produtos e serviços mais adequados para cada faixa etária da infância, foi o pontapé inicial para a emergência do marketing infantil, tão popular na contemporaneidade. A publicidade também se desenvolveu ao longo desse tempo, e se aprimorou em muitos aspectos no que se refere a sua relação com as crianças. Diante da necessidade de vender tantos produtos novos e específicos a um público ainda pouco conhecido, ela precisou qualificar e adequar seu discurso para evitar perdas por parte dos investidores. Buckinghan (2012) diz que embora por um lado os mercadólogos enxergassem o potencial lucrativo do público infantil, por outro eles reconheciam os riscos de se investir em tal nicho - considerado volátil, repleto de modismos e incertezas. Esse cenário nebuloso fez então com que empresas e agências publicitárias buscassem pesquisar e ouvir mais a opinião das crianças como forma de desvelar seu perfil e assim avaliar com mais clareza a validade do lançamento proposto, seus pontos fortes e fracos, as melhores estratégias de marketing etc. Ainda com o desejo de propor um diálogo mais direto com o público infantil e o maior engajamento deste público com as marcas, muitas empresas inclusive começaram a buscar novas soluções e lançar, mais recentemente e para além da publicidade infantil, novas técnicas de marketing mais dialógicas e interativas às crianças, como o advergames (inclusão de marcas em games), os anúncios em redes sociais e os aplicativos lúdicos em smartphones, por exemplo. Em comum, tais técnicas

contemporâneas enxergam a criança consumidora “não como se fosse vulnerável e aberto à manipulação, mas sim „esperto‟, sofisticado e conhecedor.” (BUCKINGHAN, 2012, p. 56).

Essas classificações de “vulneráveis” e “espertos”, entretanto, para Buckinghan, é simplista demais. Para ele não faz sentido discutir a relação da criança com a mídia e o consumo a partir do binarismo criança ativa X criança passiva porque na cultura do consumo há inúmeras negociações possíveis, que envolvem diversos agentes sociais e incontáveis níveis de enlaçamento. Ao se tratar da prática de consumo infantil é fundamental, então, observar que ela ocorre em muitos cenários, como a família, a escola e a relação de pares (criança com criança), por exemplo. Para Buckinghan, lançar um olhar analítico sobre esses espaços é uma forma de ver que o consumidor não é apenas um indivíduo fechado nele mesmo, mas um sujeito social; alguém que se relaciona, dialoga e interage com outros indivíduos. Observar esses espaços deixa claro que embora o mercado tenha poder de sugerir produtos e a publicidade tenha poder de associar significados aos tais, a apropriação das mensagens midiáticas é bastante plural e negociada entre os sujeitos, e, portanto, passa longe de ser unilateral e acrítica.

MERCADO DE INFLUÊNCIA: A CRIANÇA NEGOCIADORA E SUA IMPORTÂNCIA NO PROCESSO DE DECISÃO DE COMPRA FAMILIAR

A criança sempre foi, em algum nível, consumidora, no entanto, foi no período moderno que ela aprendeu a gostar de comprar. No mais, para além de se tornar uma ávida consumidora de produtos para si, a modernidade também oportunizou que ela se tornasse uma importante influenciadora do consumo familiar. Um dos pontos que favoreceu a estruturação desse quadro foi o desenvolvimento de uma nova habilidade infantil: a negociação. “Negociar”, que segundo o dicionário significa “fazer uma transação comercial a respeito de” 6, passou a fazer parte da infância a partir do momento em que a criança desejou ter seus desejos atendidos pelos pais. Quando isso aconteceu, ela se deu conta de que para alcançar tal objetivo seria necessário dialogar mais intensamente com o adulto acerca de suas preferências para conseguir defender seus interesses. Segundo

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Disponível em: http://www.dicionarioweb.com.br/negociar/ Acessado em 25/06/2015

Nicolas Montigneaux, o desenvolvimento da habilidade de negociação na infância alterou de fato os fluxos de consumo da família, mas foi além: ela reorganizou, de maneira mais ampla, as regras e subjetividades da relação parental; afinal, se antes a relação dos pais com a criança era baseada no poder da autoridade, na modernidade ela passa a ser marcada pela negociação. Como se sabe, em um processo de negociação precisa haver ao menos dois falantes; isso quer dizer que quando pai/mãe e filho(a) negociam algo, tanto a criança quanto o adulto discorrem. Logo, isso significa que a criança, antes assujeitada ao discurso adulto, agora dialoga com ele, troca impressões, debate, argumenta, critica e defende seu ponto de vista. A emergência desse novo quadro na modernidade nos faz identificar a existência de uma criança que tanto tem direito à fala quanto a escuta; direitos estes que, cabe frisar, culminaram no movimento de crescente autonomia e respeito da opinião infantil no ambiente familiar e que ressignificaram, para além e entre outras questões, seu papel nos processos de consumo, tanto individual quanto do lar. Ator econômico de primeira classe, a criança é considerada cada vez mais responsável nos mecanismos de consumo. Essa responsabilidade tem por origem também as fábricas e as empresas que consideram esse segmento de mercado positivo para a economia. Seu poder de compra é considerável, quer este seja consequência, diretamente, do dinheiro da mesada que as próprias crianças gerenciam, seja indiretamente por intermédio de pedidos acolhidos. (...) Trata-se de uma população fortemente influenciadora, participante das decisões de compra de produtos e serviços que lhe dizem respeito diretamente ou que fazem parte do conjunto familiar. A criança não se contenta apenas em escolher os objetos para seu próprio uso, ela influencia também o consumo de toda a família. Sua influência ultrapassa, de longe, sua própria esfera de consumo. (MONTIGNEAUX, 2003, p.17 e 18)

Quando o público infantil passou a ser de fato reconhecido como um segmento lucrativo, o mercado intensificou o investimento sobre ele. Dessa forma, enxergar a criança como elemento comercial estratégico deu margem ao surgimento de novos produtos/serviços voltados a infância e também a novos modelos de propaganda e de propostas de engajamento com marcas. A partir disso, vimos crescer, por exemplo, o número de figuras infantis e recursos lúdicos em geral nas propagandas, inclusive nas de produtos destinados ao consumo adulto. O objetivo do mercado publicitário com essa atitude foi, de uma maneira geral, se aproximar da criança e conquistar seu interesse e/ou sua indicação de compra.

Para Kotler e Keller (2006), a publicidade é um fator de suma importância no processo de tomada decisão da compra. Segundo os autores, esse processo tem início no reconhecimento de necessidade, etapa que fundamentalmente se conecta com a publicidade porque a função básica desta é justamente criar novas necessidades e fazer o sujeito acreditar que precisa de determinado produto. Quando o sujeito então reconhece essa nova necessidade ele sente interesse pelo produto e chega à segunda etapa do processo de decisão de compra: a busca por informações. Essa busca, no caso, pode ser feita de diferentes maneiras: através de fontes pessoais (família, amigos, vizinhos, conhecidos), fontes comerciais (publicidade, vendedores, representantes, embalagens, expositores), fontes públicas (meios de comunicação de massa, classificações de consumo) e fontes experimentais (manuseio, uso do produto). Com funções diferentes, essas fontes ajudam o sujeito a avaliar as alternativas disponíveis, que vem a ser, ainda de acordo com Kotler e Keller (2006), a terceira etapa do processo de decisão de compra. Nesse momento, então, o consumidor faz julgamentos mais racionais sobre marcas e valores e os prós e contras do produto/serviço com o objetivo de finalmente chegar a quarta e última etapa: a decisão de compra. Apesar do fluxo organizado, Kotler e Keller (2006) dizem que o momento de conclusão da compra é muito importante e pode ir contra tudo que se estruturou nas etapas anteriores; isso porque a existência de fatores imprevistos, como a atitude do vendedor e o tempo de espera na loja, por exemplo, podem frustrar o consumidor e leva-lo a outro caminho, na contramão do que se construiu até então. Em se tratando do processo de tomada de decisão de compra pelas crianças, Alves (2002) travou um paralelo com o comportamento adulto e notou que, de maneira geral, adultos e crianças passam pelas mesmas etapas do fluxo. No entanto, o autor comenta que enquanto o adulto fecha o processo efetuando a compra do produto, a criança, que em muitas das vezes não dispõe de dinheiro para arrematar a mercadoria desejada, encerra seu processo de outra maneira: tomando sub-decisões e repassando-as ao adulto em forma de pedido ou influência para que este por fim, e guiado por sua indicação, efetue a compra.

MERCADO DO FUTURO: A BUSCA DAS MARCAS PELA FIDELIZAÇÃO DO CONSUMIDOR DESDE A INFÂNCIA

Com a importância econômica da criança sendo cada vez mais reconhecida pelo mercado, muitas empresas e marcas contemporâneas passaram a pensar em formas diferentes de aproximar o público infantil de seus produtos, mesmo daqueles que não se destinam ao consumo direto dos pequenos, como carros e contas bancárias por exemplo. Um dos objetivos dessa postura das marcas, segundo McNeal (2000), é semear na criança de hoje o adulto consumidor de amanhã. Apesar de em geral tratamos a questão como novidade oriunda da sociedade contemporânea, Daniel Thomas Cook (2004) lembra que a intenção de se investir na criança com olhos no futuro não é recente, e que tal afirmativa pode ser confirmada ao observar um trecho presente na revista de economia Dry Goods Economics, de 1914, em que diz: “Tenha em mente os interesses do bebê, e a família deste bebê terá interesse em seu negócio. O próprio bebê rapidamente crescerá e se tornará um cliente real de sua loja. As necessidades se ampliarão conforme o bebê cresce. Não esqueça isso!7”. Com a finalidade de nutrir um futuro cliente, a publicidade, que vem a ser uma linguagem comunicacional e mercadológica bastante influente no cotidiano de parte significativa das crianças brasileiras, emerge então como ferramenta facilitadora da relação entre marcas e público infantil ( no caso, também encarado como futuro público adulto). Ela, que por essência e propósito é capaz de pedagogizar novos desejos e sonhos de aquisição nos adultos, acaba por também ensinar certos gostos, valores e preferências de consumo às crianças. Afinal, como diz Chris Preston, "o papel macro da propaganda é educar a próxima geração sobre o consumo." (2004, p. 365; apud NETTO; BREI; PEREIRA, 2010). Com olhos nesse possível cliente futuro, muitas marcas apostam em linhas de produtos que satisfaça tanto o público infantil quanto o adulto; essa seria uma forma de estimular a criação de um relacionamento em fluxo contínuo com os sujeitos. Ou seja, algumas marcas acompanham todo processo de migração etária do sujeito ao oferecerem a eles uma gama de produtos que casa com cada fase de seu desenvolvimento. Por sinal, é esse tipo de acompanhamento feito pela marca que constrói pouco a pouco a fidelização do cliente e a sensação para o sujeito de que há naquela marca um “amigo de infância”, algo/alguém íntimo com quem se pode contar. Kotler e Keller

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Tradução minha.

(2006) reforçam essa questão ao comentarem sobre o papel das marcas para a lucratividade e segurança do mercado. Na visão dos autores:

As marcas identificam a origem ou o fabricante de um produto e permitem que os consumidores - sejam indivíduos ou organizações – atribuam a responsabilidade pelo produto a determinado fabricante ou distribuidor. Os consumidores podem avaliar um produto idêntico de forma diferente, dependendo de como a marca é estabelecida. Eles conhecem as marcas por meio de experiências anteriores com o produto e do programa de marketing do produto. Descobrem quais delas satisfazem suas necessidades e quais deixam a desejar. À medida que a vida dos consumidores se torna mais complexa, agitada e corrida, a capacidade que as marcas têm de simplificar a tomada de decisões e reduzir os riscos é inestimável. (KOTLER & KELLER, 2006, p.269)

Partindo desse pressuposto, compreende-se que empresas investem pesadamente na construção e manutenção de suas marcas porque sabem o alto valor que elas possuem no processo de tomada decisão da compra; afinal, uma marca bem construída ao longo do tempo torna-se sinônimo de qualidade, e isso é determinante para conquistar o consumidor e fidelizá-lo. Nesse viés, ter um cliente fiel se traduz em mais segurança e estabilidade à empresa, que ganha uma margem mais elástica para propor novidades e até mesmo o aumento dos preços de seus produtos. Pensar sobre esses pontos ajuda-nos a vislumbrar o porquê se tornou interessante para as marcas alimentarem uma relação cada vez mais precoce com os possíveis consumidores: quanto mais precocemente uma marca for apresentada ao sujeito, e quanto melhor for estruturado o vínculo entre o tal e a marca, maior será a chance de torna-lo um cliente fiel. A criancinha de hoje é o consumidor de amanhã. Para as empresas, é necessário conquistar sua fidelidade o mais cedo possível. As marcas podem solicitar, legitimamente, da criança a esperança de reencontrála amanhã como consumidora para que, finalmente, os filhos que tenham se tornem, eles também, novos consumidores. Quantas vezes compramos jujubas, caramelos, chocolates e bombons para nossos filhos pensando primeiro no prazer que tivemos quando pequenos? (MONTIGNEAUX, 2003, p.22)

Para exemplificarmos essa relação, pensemos sobre a rede mundial de fast food Mc Donald‟s. Lá tem o “Mc Lanche Feliz”, um lanche “feito para crianças” - que possui tamanho reduzido, fruta e brinquedos de brinde -, e, em paralelo, há toda uma linha de hambúrgueres e lanches (maiores e sem brinquedos) voltados ao público jovem/adulto.

Diante das ofertas variadas, é comum pais e filhos partilharem refeições no estabelecimento. Com isso, inicialmente crianças comem lá por influência dos pais e na companhia deles; depois, mais crescidas, passam a frequentar o lugar acompanhadas dos amigos de mesma faixa etária; e mais um tempo adiante elas levam seus próprios filhos para lanchar no Mc Donald‟s. A ida a este fast food, portanto, passa a ser uma prática familiar (em muitos sentidos) para aquele sujeito, algo capaz de conferir à marca Mc Donald‟s inclusive certa afetividade, algo que se passa de pai para filho. No caso, vale reforçar que “pela observação e boca-a-boca, as crianças acumulam gradualmente percepções de uso de imagem do usuário de uma determinada marca em suas mentes.” (MINDY, 2012, p.370)8 e que isso por si só já é um fator de peso para a criação de um relacionamento com a marca.

Fonte da imagem: https://www.mcdonalds.com.ph Acessado em 13/04/2016

No ramo da moda temos alguns exemplos de marcas mundiais, como Nike e Adidas, que diversificam suas linhas a fim de fazer com que crianças e adultos usufruam dos mesmos produtos – e por vezes, até do mesmo exato modelo de vestuário e calçado. Isso, por sua vez, permite ao sujeito manter um estilo fashion de certa forma coerente desde a infância até a mais alta idade, como podemos ver na imagem que segue:

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Tradução minha.

Fonte das imagens: www.adidas.com.br. Acessado em 28/08/2015

Produtos de higiene pessoal também se enquadram nesse perfil de consumo contínuo. Procter & Gamble, por exemplo, vende desde fraldas até absorventes femininos e lâmina de barbear; linhas inteiras de produtos variados que atendem de bebês a idosos. A lista de exemplos é interminável, mas, independentemente do setor da produção, tais marcas têm em comum a disposição de um plano comercial que objetiva acompanhar de perto diferentes fases da vida do sujeito e ampará-lo a qualquer momento, mostrando-se uma presença constante – e por isso confiável - diante qualquer necessidade que surja.

Fonte da imagem: Google. Acessado em 14/04/2016

Diante disso, vemos delineando com contornos cada vez mais fortes uma infância contemporânea que desde muito cedo já se encontra cercada de diversos produtos e estímulos de consumo oferecido tanto pela mídia quanto pelos próprios pais; estímulos esses que impactam, como vimos, tanto as escolhas de compra da criança hoje quanto as que serão tomadas por ela na idade adulta.

NÍVEIS DE ENGAJAMENTO DAS CRIANÇAS COM AS MARCAS Muito se discute acerca do quão eficaz é o investimento midiático – ênfase no publicitário- sobre a criança uma vez que ela ainda se encontra na fase de desenvolvimento cognitivo, o que em partes limitaria a compreensão de algumas mensagens. Sobre isso, é importante ressaltar que existem níveis de engajamento da criança com as marcas, e que estes variam conforme a faixa etária porque em cada momento da vida há um tipo de percepção diferente. Ou seja, conforme a idade e nível de cognição infantil, a propaganda pode ser mais ou menos compreensível/persuasiva à criança. Os mercadólogos, sabendo disso, costumam guiar suas campanhas publicitárias com base na psicologia do desenvolvimento de Piaget, que demarca de forma bastante objetiva a cognição e o aspecto sensório motor do sujeito em cada fase da vida. Criando um paralelo com a teoria piagetiana, Montigneaux (2003) identificou como ocorre a recepção de marcas pelos sujeitos em diferentes momentos da existência. De acordo com os estudos dele, antes dos 4 anos de idade as marcas não conseguem se conectar muito com a criança porque ela precisa do tátil, do concreto, para compreender um significado; ou seja, como a marca é algo que envolve subjetividade e complexos entendimentos de valor e diferenciação, a criança não compreende. Nesta idade, aliás, a criança sequer diferencia uma propaganda de um programa de televisão, por exemplo; e isso, para Linn (2006), turva seu entendimento e a torna mais vulnerável às investidas do marketing. Já entre 4 e 5 anos de idade as crianças conseguem “identificar um nome da marca a partir de seus elementos figurados como a logo, a forma geral da palavra ou a presença de uma letra conhecida que permita à criança reconstruir o nome da marca (o M de Mc Donald‟s)”. (MONTIGNEAUX, 2003, p.70). Ou seja, “A criança identifica logomarcas antes mesmo de alfabetizada, mostrando desde os primeiros anos de vida potencial para absorver as mensagens promocionais.” (GIACOMINI FILHO, 2000, sem página). Sobre essa fase, é importante lembrar que até os 5 anos de idade os pais são a referência de maior peso para a criança, e que, por isso, ela tende a aceitar o que eles dizem como sendo verdade absoluta. Assim, os pais dizem, por exemplo, que o produto X é ruim, a criança tende a acatar a opinião deles sem grandes embates. Isso por vezes significa descredibilizar o discurso publicitário (que diz que consumir o produto X é bom) em prol da fala dos pais.

Entretanto, esse quadro muda progressivamente após a criança completar 6 anos de idade. É que nesta fase ela se torna capaz de conhecer algumas marcas por categoria de produto, o que abre caminho para que aos 7 e 8 anos ela já demonstre bom conhecimento de marcas e compreensão acerca da finalidade comercial das mesmas. (MONTIGNEAUX, 2003). Esse conhecimento desenvolvido faz com que a criança seja mais crítica em relação à publicidade, assim, após os 8 anos, as crianças "não mais acreditam que os comerciais digam sempre a verdade" (JOHN, 1999, p. 189; apud NETTO; BREI; PEREIRA, 2010 ). Para a criança, a diferenciação de valor entre marcas se constrói nos anos seguintes, inclusive no que concerne ao julgamento do que é marca “voltada ao consumo dela” e o que é marca “voltada ao consumo adulto”. Dessa forma, dos 8 aos 11 anos ela identifica a “melhor” marca e, ao fazê-lo, a hierarquiza dentre as demais conforme sua preferência. Essa hierarquização é inclusive justificada, de forma simples, com classificações que consideram o que é “bom” e “ruim” no produto/serviço. É nessa fase também que a criança começa a comprar seus próprios produtos e estabelecer um vínculo mais próximo com a marca de preferência. Trata-se de um período em que a publicidade precisa reforçar sua relação com a criança porque a recepção de seus anúncios tende a ser cada vez mais crítica.

O relacionamento entre a marca e a criança não é uma comunicação de sentido único. Supostamente, há uma troca, uma interatividade. A relação deve ser entendida pela criança como algo vivo. A marca mobilizará a criança, solicitará sua curiosidade e estimulará sua imaginação. A criança deverá se colocar em ação, ler, descobrir, adivinhar, responder a questionamentos, mostrar-se astuta: atitudes que, nessa idade, lhe dão muito prazer. (MONTIGNEAUX, 2003, p.94)

Em síntese, a partir dos 7 anos, e mais intensamente entre 10 e 11 anos, o racional ganha força na cognição da criança e ela consegue contatar mensagens e “valores mais profundos da marca, alguns dos quais podem ser abstratos.” (ibidem, p.75). É por conta do desenvolvimento do seu lado racional que a criança entre 7 e 11 anos de idade passa a questionar mais os pais. Portanto, nessa faixa etária as crianças trabalham e aprimoram mais seus argumentos de forma a criar novas formas de afirmar suas falas, suas práticas de individualidade (muito baseadas no consumo de produtos de importância sígnica e de distinção) e sua autonomia.

Essa maior racionalidade da criança, por sua vez, faz então com que ela reivindique com mais ênfase os produtos que deseja ter. Diante disso, entre 7 e 11 anos de idade ela desenvolve progressivamente suas preferências e refuta com mais intensidade a intervenção dos pais em suas escolhas. Com isso, notamos que quando a criança se encontra nessa faixa etária há uma chance grande do cenário familiar tornarse instável, haja vista que a criança vivencia o momento de desconstrução da ideia de que “pai e mãe sabem tudo”, algo que, como vimos, é bastante forte no período anterior de sua vida. A marca que tem como meta alcançar o público infantil em geral procura adequar seus anúncios ao entendimento da criança, propondo, por exemplo, propagandas com mensagens simples e claras e estéticas atrativas. Nesses casos, frequentemente identificamos nos anúncios cores vibrantes, efeitos gráficos e sonoros, personagens animados etc; em síntese, tudo que possa tornar o apelo comercial mais fascinante para os pequenos. Lembrando, porém, que a adoção de tais elementos também agrada aos adultos, que contemporaneamente valorizam o “mundo mágico da propaganda” (ROCHA, 2010) por este ser repleto de sonho, magia, finais felizes, juventude e sucesso, fatores que a priori contrastam com a realidade caótica de nossos tempos. O que interessa-nos destacar aqui, entretanto, é que se valendo de propagandas no estilo mencionado muitas marcas conseguem firmar um primeiro contato com as crianças. Estas, por sua vez, logo na primeira infância são atraídas pelas imagens e sons do anúncio; depois, pelo nome da marca (e sua logo, consequentemente), pela narrativa proposta pela propaganda, e, por fim, e aos poucos, conforme seu crescimento, com os produtos propriamente e com os valores da marca anunciante. Conclui-se, assim, que o consumo da marca pelo público infantil acontece mesmo antes de a criança ter consciência do que de fato é uma marca. Para além, notase que conforme nível de desenvolvimento etário/cognitivo da criança esse consumo pode variar de compreensão, propósito, e, por consequência, de grau de engajamento. Nesse processo, cabe reforçar que não é só o entendimento da criança que muda, mas também sua posição como público-alvo, como mercado. Conforme seus deslocamentos, o marketing também se desloca como forma de alcançar a atenção infantil e vender produtos e valores tanto para seu consumo próprio, quanto para o consumo de sua família e do que ela será no futuro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÈS, Philippe. História social da infância e da família. Tradução: D. Flaksman. Rio de Janeiro: LCT, 1978 ALVES, Carlos Teixeira. Comportamento do Consumidor: Análise do comportamento de consumo da criança, Lisboa, Escolar Editora, 2002. BUCKINGHAN, David. Repensando a criança-consumidora: Novas práticas, Novos paradigmas. In: comunicação, mídia e consumo são paulo ano 9 vol. 9 n. 25 p. 43-72 ago. 2012. CALVERT, Sandra L. Children as consumers: advertising and marketing. In: The future of children. Vol.18. nº 1. 2008. Disponível em: http://www.researchgate.net/publication/49852129. Acessado em 25/06/2015. COOK, Daniel Thomas. The Commodification of Childhood: the Children`s clothing industry and the rise of the child consumer. Durham & London: Duke University Press, 2004. GIACOMINI FILHO, Gino. Interfaces da comunicação mercadológica com o público infantil. Monografia publicada na forma de Relatório de Pesquisa. Escola de Comunicações e Artes da USP e Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano do Sul/IMES, 2000. 28 p. Disponível em: http://repositorio.uscs.edu.br/bitstream/123456789/104/2/Interfaces.pdf Acessado em 29/06/2015. KOTLER, Philip; KELLER, Kevin Lane. Administração de marketing. 12ª ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006. LINN, Susan. Crianças do consumo: a infância roubada. Tradução de Cristina Tognelli. São Paulo: Instituto Alana, 2006. MCNEAL, James. Children as consumers of comercial and social products. Working paper for the conference Marketing health to kids 8 to 12 years of age. October 21 & 22, 1998. Publicado em 2000. Disponível em: http://www.documentacion.edex.es/docs/1801MCNni%C3%B1.pdf. Acessado em 25/06/2015. MINDY, F. Ji. Children's relationships with brands: 'true love' or 'one-night' stand? Psychology & Marketing 19 (4), 369-387. 2002. Disponível em: http://www.mediarakkers.nl/images/stories/pdf/1110196794.pdf. Acessado em 29/06/2015. MONTIGNEAUX, Nicolas. Público-alvo: crianças. A força dos personagens e do marketing para falar com o público infantil. Tradução de Jaimes Bernardes. Rio de Janeiro: Campus, 2003. NETTO, Carla Freitas Silveira; BREI, Vinícius Andrade; PEREIRA, Priscila Andrade Flores. O fim da infância? As ações de marketing e a "adultização" do consumidor infantil. RAM, Rev. Adm. Mackenzie (Online) vol.11 no.5 São Paulo Oct. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S167869712010000500007&script=sci_arttext Acessado em 28/08/2015. ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo: um estudo antropológico da publicidade. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2010. SCHOR, Juliet. Nascidos para comprar: uma leitura essencial para orientarmos nossas crianças na era do consumismo. Tradução: Eloisa Helena de Souza Cabral. São Paulo: Editora Gente, 2009.

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