A Crítica como Espetáculo: da Cidade Situacionista à Fundação Estética da Guerrilha Publicitária

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A CRÍTICA COMO ESPETÁCULO: DA CIDADE SITUACIONISTA À FUNDAÇÃO ESTÉTICA DA GUERRILHA PUBLICITÁRIA1 Rodrigo Maceira2 ESPM, São Paulo, SP RESUMO Este artigo apresenta as contribuições teóricas dos situacionistas para um debate sobre o papel da cidade na vida social, no pós-guerra, e sua relação com os modos de atuação dos Provos, movimento da contracultura formado em Amsterdã, na década de 1960. Parte-se dessa aproximação para apontar a espetacularização da práxis dos provos como importante antecedente estético e laboratório para o aparecimento da guerrilha publicitária. PALAVRAS-CHAVE: Internacional Situacionista; provos; sociedade do espetáculo; guerrilha publicitária; consumo.

O uso social da cidade foi, desde os anos que precederam a formação da Internacional Situacionista, um dos principais pontos discutidos pelo movimento. Questionavam o que chamaram de racionalização do espaço urbano e suas consequências para a convivência entre os homens e para a liberação da criatividade humana. A cidade racional, na qual os espaços eram pensados a partir da função que desempenhariam, era inimiga da imaginação. Para a realização de qualquer ideia revolucionária, a lógica do cotidiano citadino haveria de ser subvertida em favor de soluções novas e enriquecedoras para uma verdadeira experiência emancipadora na metrópole. Participar da construção/criação da cidade seria, portanto, condição para a autonomia do sujeito. Crítica mordaz à cidade moderna, onde a escalada da alienação configuraria o que Debord descreveu como A Sociedade do Espetáculo (1968), as propostas dos situacionistas para o urbanismo foram pouco a pouco absorvidas por movimentos da contracultura em diferentes lugares da Europa e, mais tarde, dos Estados Unidos. A Trabalho apresentado no GT1 - Propaganda e linguagens, no V Pró-Pesq PP – Encontro de Pesquisadores em Publicidade e Propaganda. De 21 a 23/05/2014. CRP/ECA/USP 2 Mestrando em Comunicação e Práticas de Consumo, pela ESPM-SP, Brasil, sob orientação do Prof. Dr. João Anzanello Carrascoza; e pesquisador do grupo Comunicação, discursos e poéticas do consumo. [email protected]. 1

fundamentação teórica do grupo, imprescindível para Debord e sua esposa Michèle Bernstein, ao lado dos textos e manifestos publicados a modo de guia de conduta, na revista Internationale Situationniste, serviriam de inspiração para os ativistas da publicação britânica Heatwave, para a revista The Rebel Worker, de Chicago; para o punk inglês do final da década de 1970 (BROWN, 2011) e, especialmente para o caso que nos interessa, ao PROVO holandês ainda em meados da década de 1960. A conexão entre os situacionistas e os provos, que Debord tentará desconstruir no momento em que as ações dos jovens de Amsterdã se tornam cada vez mais dispersas, provém, em grande medida, do compartilhamento do aporte intelectual de Constant Nieuwenhuis em ambos os movimentos. Constant, como se fizera conhecer, compunha “o grupo de cinco pessoas que formou a base teórica e organizacional do movimento situacionista” (HOME, 1999, p. 59). Seus principais textos publicados em 1958, quando integrava os situacionistas, e em 1966, já entre os holandeses, têm clara repercussão sobre os modos de ação dos provos, que, por sua vez, mantêm diálogo imediato com a Spassguerrilla que, naquele momento, era gestada na Alemanha. Neste artigo, investigaremos as aproximações entre algumas das proposições teóricas dos situacionistas de Paris e a prática ativista dos provos de Amsterdã, cujo modelo de atuação, veremos nos exemplos que se seguem, a indústria da publicidade copiará, despojada de seu ingrediente crítico, anos depois (BROWN, p. 120). Esperamos apontar ao longo do texto que os métodos experimentados pelos provos, com vasta cobertura da imprensa holandesa, terminam por espetacularizar a crítica da qual partiram e, somente sob essa condição, puderam servir à estética da guerrilha publicitária desenvolvida a partir da década de 1980.

A cidade situacionista Antes mesmo da oficialização da Internacional Situacionista, que só acontecerá em 1958, Gilles Ivain (1953) publicara, como parte das atividades da Internacional Letrista, agrupação precursora dos situacionistas, seu famoso “Formulário para um novo urbanismo” (KNABB, 2007, p.1), que será incluído no primeiro número da Internationale Situationniste.

Ivain apresenta, num texto irônico e ácido, a cidade moderna como o espelho da vida entendiante da classe média burguesa. “Estamos entediados na cidade; já não existe mais o Templo do Sol”3 (IVAIN apud KNABB, 2006, p.1). Ataca diretamente o projeto urbano de Le Corbusier (1887-1965), cujas ideias eram recebidas com entusiasmo à época, acusando-o de destruir “os últimos vestígios de alegria. E amor, paixão, liberdade” (apud KNABB, 2006, p.2). A “unidade de habitação” proposta pelo arquiteto suíço-francês seria um atentado contra a imaginação, uma artificialização da experiência estética (“A escuridão foi banida pela luz artificial; e as estações, pelo ar condicionado” (2006, p.2)). O excesso de comodidade promoveria uma dessensibilização do indivíduo, cada vez mais vulnerável à passividade e à alienação. Nas palavras de Ivain, a arquitetura do futuro deveria ser “um meio de alterar as atuais concepções de tempo e espaço (...) um meio de conhecimento e de ação4” (2006, p. 3). Sobre a fundamentação da ação como procedimento de combate à não participação na sociedade do espetáculo, na qual seríamos todos espectadores, Debord (1957) escreverá, pouco antes da formalização dos situacionistas, que: Primeiro de tudo, nós pensamos que o mundo deve ser mudado. Queremos a mudança mais libertadora da sociedade e da vida nas quais nos encontramos confinados. Sabemos que tal mudança é possível através de ações5 apropriadas. Nossa preocupação específica é a utilização de certos meios de ação6 e a descoberta de novos, meios que são mais facilmente reconhecíveis no domínio da cultura e dos costumes, mas que devem ser interrelacionados com todas as mudanças revolucionárias. (DEBORD apud KNABB, 2006, p. 25)

Nesse mesmo texto, “Revolution and Counterrevolution in Modern Culture” (1957), Debord recuperará as contribuições do Futurismo italiano e do Dadaísmo, com sua repercussão na Alemanha e na França, para manifestações estéticas capazes de contribuir com a crítica à lógica burguesa da produção de arte e à espetacularização da cultura, da qual, como audiência, os indivíduos estariam dissociados. Lembrará que a subversão que trouxeram para a arte teve o mérito de, muitas vezes, convidar o público para a criação, mas os criticará por fazerem dessa participação uma experiência Na versão em inglês consultada: “We are bored in the city, there is no longer any Temple of the Sun.” (KNABB, 2006, p.1) 4 Grifo do autor. 5 Grifo do autor. 6 Grifo do autor. 3

puramente estética, sem consequências para a práxis cotidiana e a mudança social que, ainda para Debord, deveria subjazer qualquer ação que se quisesse revolucionária. O autor de A sociedade do espetáculo (1967) dirigirá críticas mais pontuais ao Surrealismo, muito provavelmente pela própria proximidade que assumidamente manteve com ideias do movimento. Verá entre os surrealistas a positiva preocupação com a “definição construtiva da ação na base do espírito revolucionário” (DEBORD apud KNABB, 2006, p. 28), mas dirá que o movimento teria confiado exageradamente na “infinita riqueza da imaginação inconsciente” (p. 28). Esse entusiasmo excessivo com a potência criativa do inconsciente humano poderia ocasionar, como de fato Debord entenderá em A sociedade do espetáculo, uma obliteração da capacidade do homem em administrar seu próprio destino. Como se, diante de uma inventividade inata e abundante, o homem pensasse não ser necessário mobilizar sua imaginação para participar da criação da sua própria realidade. Uma das consequências desse otimismo desmedido em relação à inventividade humana seria, por exemplo, a passividade diante do cotidiano urbano criticada no “Formulário para um novo urbanismo” de Ivain. Ou, em palavras do Debord, a proliferação de imagens disponibilizadas pela indústria cultural. Entenda-se: o sujeito passivo renunciaria à construção do seu próprio imaginário, no qual as paisagens urbanas, por exemplo, cumprem papel fundamental. Ainda em A sociedade do espetáculo, publicado dez anos depois de “Revolution and Counterrevolution In Modern Culture”, é possível encontrar uma continuidade da crítica que Debord dirigira aos surrealistas, recortada especificamente ao processo produtivo, que, no entender do autor, seria o berço da alienação do sujeito moderno. Para Debord, a origem do espetáculo como estética capaz de reger o cotidiano nas grandes cidades estaria na separação entre o homem que produz e o mundo que ajuda a construir com sua produção. É dizer: ao distanciar-se da dimensão de sua produção – processo que Marx chamou de alienação –, ao deixar de agir sobre ela, o homem estaria colocando-se cada vez mais sob a órbita de influência da produção, que, no caminho inverso, estaria, sim, agindo sobre ele. Distante do sentido do produto de seu trabalho, administrado somente pelas cabeças do sistema, o homem comum teria acesso apenas a recortes do mundo que, como na metonímia, convertem-se, abstratamente, em imagens e representações desse mesmo mundo.

Alheio ao que produz, o homem também está alheio ao que, mais tarde, consumirá. A divisão do trabalho facilitaria a espetacularização do mundo na medida em que sequestra o homem do contato direto com a realidade, que passa a estar irremediavelmente mediado por imagens. Por trás do conceito de ação que tantas vezes aparece nos textos situacionistas, está justamente, e já destacamos, a ideia do sujeito ativo, responsável pela escritura da própria história. A ação situacionista, detonada em busca da libertação do homem e da superação do espetáculo, visa à própria situação que empresta nome ao movimento. Tudo nos leva a crer que os elementos essenciais de nossa pesquisa se encontram em nossa hipótese de construções de situações. A vida de uma pessoa é uma sucessão de situações fortuitas, e mesmo que nenhuma delas seja exatamente o mesmo que a outra, a imensa maioria delas são tão indiferenciadas e tão entediantes que dão uma impressão perfeita de mesmice. Como resultado, as situações intensamente envolventes raramente são encontradas na vida. (...) Devemos tentar construir situações, ou seja, ambientes coletivos e conjuntos de impressões que determinem a qualidade de um momento. 7 (DEBORD apud KNABB, 2006, p. 40)

Em muitas maneiras, a crítica de Debord à estandardização do homem nas cidades modernas nos permite uma aproximação com as angústias a que o sujeito moderno já se expusera, mais de cinco décadas antes, em “The Metropolis and Mental Life” (1903), do sociólogo alemão Georg Simmel. Ao superestímulo da psique e ao estresse cognitivo, o sujeito das metrópoles, dirá Simmel (apud FEATHERSTONE e FRISBY, 2000, p.174), passa a reagir com indiferença. Quase um recurso de preservação da espécie, a não reação configurar-se-ia como uma estratégia de sobrevivência. Isso não significa que os objetos deixam de ser notados, como acontece no caso do débil-mental, mas sim que o significado e a diferenciação do valor das coisas, e consequentemente as coisas propriamente ditas, são experimentadas como insubstanciais. (SIMMEL apud FEATHERSTONE e FRISBY, 2000, p.178)

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Na versão em inglês: “Everything leads us to believe that the essential elements of our research lie in our hypothesis of constructions of situations. A person’s life is a succession of fortuitous situations, and even if none of them is exactly the same as another the immense majority of them are so undifferentiated and so dull that they give a perfect impression of sameness. As a result, the rare intensely engaging situations found in life only serve to strictly confine and limit that life. We must try to construct situations, that is to say, collective ambiances, ensembles of impressions determining the quality of a moment” (DEBORD apud KNABB, 2006, p. 40).

Essa anulação da intensidade da experiência entre o homem e a cidade, à qual nos referimos ao comentar o texto-chave de Gilles Ivain para o urbanismo situacionista, também estava presente no texto “Another city for another life” (apud KNABB, 2006, p. 71), assinado por Constant, na Internationale Situationniste #3, editada em 1958. Da mesma maneira como haviam feito Ivain e Debord, Constant praticamente propôs um manual de instruções para aquilo que os provos fariam sete anos depois na capital holandesa. Entre tantas outras coisas, Constant “implorava por aventura”, antevia a necessidade do desenvolvimento de um lazer criativo diante da automatização da produção e da decorrente disponibilidade de tempo, duvidava da capacidade das artes tradicionais em ajudar na criação de uma nova ambiência e anunciava o momento em que os homens seriam levados a executar seus projetos com os meios de que dispunham (apud KNABB, 2006, p. 71). Descrevia o plano de uma cidade com cenários que tornariam possíveis jogos antes imprevistos e cobrava do lazer uma função criativa e criadora, emancipadora. Contamos com infringir as leis que impedem o desenvolvimento de atividades efetivas na vida e na cultura. Estamos no nascimento de uma nova era e já estamos tentando esboçar a imagem de uma vida mais feliz, de urbanismo unitário (o urbanismo criado para trazer o prazer).8 (NIEUWENHUIS apud KNABB, 2006, p. 73)

No modelo corrente das cidades, “as relações humanas eram impossíveis” (NIEUWENHUIS apud KNABB, 2006, p. 71), e os bairros tinham dois motivos “que dominavam tudo: o tráfico de carros e o conforto dentro de casa” (p.71). Eram, concluía Constant, “a abjeta expressão do bem-estar burguês” (p.71), destituídas de qualquer preocupação lúdica. Sobre o questionamento de que também os situacionistas estariam planejando a cidade sob uma perspectiva funcionalista, Constant anotará que, ainda que pudessem estar redefinindo funções, o faziam para que o jogo e a brincadeira pudessem subvertêlas numa fase seguinte da reorganização da experiência urbana. O Homo ludens ressignificaria a cidade, refundando a finalidade dos espaços a cada rodada nova. Somente o confronto entre regras novas, de atividades pensadas para perseguir o mesmo

Na versão em inglês: “We count on infringing the laws that hinder the development of effective activities in life and in culture. We are at the dawn of a new era and are already attempting to sketch out the image of a happier life, of unitary urbanism (the urbanism intended to bring pleasure).” (NIEUWENHUIS apud KNABB, 2006, p. 73) 8

prazer do jogo, haveria de libertar a sociedade das restrições da engrenagem produtivista. Também na Inglaterra, os situacionistas reivindicarão a vocação lúdica do lazer como marca de autonomia. Organizados em torno à Heatwave, publicação inspirada pelas edições francesas da Internationale Situationniste e liderada por Daniel Radcliffe, destacarão a importância da “criação de um novo, puramente lúdico tipo de atividade livre” que deveria emergir do tempo poupado com a automação do trabalho (apud BROWN, 2011, p. 154). Como bem sintetizara Ivain em o “Formulário para um novo urbanismo”, na perspectiva situacionista, “a necessidade de criação total estivera sempre intimamente associada com a necessidade de brincar9 com a arquitetura, o tempo e o espaço” (apud KNABB, 2006, p.4).

Amsterdã, capital da provocação: das situações ao détournement As atividades do que viria a ser o PROVO tiveram suas raízes nos happenings semanais que Robert Grootveld protagonizava, diante da estátua do Lieverdje localizada no Spui, no centro de Amsterdã, em 1964. As apresentações de Grootveld, que combinavam ataque à indústria tabagista e misticismo, foram responsáveis pela reunião do núcleo intelectual dos provos e pela consequente decisão de publicar uma revista para combater o conservadorismo da família burguesa e a passividade promovida pelas políticas de bem-estar social. Entre os entusiasmados visitantes do templo, está Constant, que encontra ali uma confirmação das próprias ideias quanto ao Novo Urbanismo. Para o ex-situacionista, o templo é um exemplo perfeito de “ambiente antifuncional”, criado não por necessidade, mas por brincadeira. Um espaço ideal para o Homo ludens que se contrapõe radicalmente aos cânones imperantes na arquitetura, na qual, seguindo os princípios “funcionais” de Le Corbusier, continuam sendo impostos espaços concebidos para o homem que tem de produzir. (GUARNACCIA, 2010, p. 47).

Constant será o elo entre a teoria situacionista e a prática dos provos. Publicará, no número 9 da revista PROVO, em 1967, textos datados de 1961 e profundamente influenciados por sua experiência ao lado da Internacional Situacionista. Em “New Urbanism”, tornava a criticar a “simplificação” da visão de Le Corbusier em relação à 9

Grifos preservados do texto original.

experiência urbana, o excesso de espaço e tempo tomado pelos automóveis e a inexistência de ambientes de convivência e lazer criativos, favoráveis ao desenvolvimento da própria cultura. O parágrafo com o qual Constant conclui o texto nos ajuda a ilustrar a motivação das noites de sábado comandadas por Grootveld, em Amsterdã. Os pontos expostos até aqui explicam por que as lutas dos jovens contra as regras fossilizadas voltam-se principalmente à reconquista do espaço social por excelência, a rua, visando reestabelecer os contratos essenciais para o jogo. Os idealistas que se iludem, pensando poder estabelecer tais contatos mediante a organização de clubes juvenis, publicações ou excursões, na verdade estão tentando substituir com modelos controlados as iniciativas espontâneas. Eles se opõem à característica mais importante da nova geração: a criatividade, o desejo de criar um modelo próprio de comportamento e, em última análise, de criar um novo modo de vida. (NIEUWENHUIS apud GUARNACCIA, 2010, p. 84)

Durante sua curta existência, os provos holandeses concretizarão diversos postulados situacionistas. A ocupação bem humorada do espaço público, o tempo livre transformado em jogo criativo e, com precisão, o détournament teorizado por Debord (KNABB, 2006, p.14). As ações levadas a cabo pelos provos, aliás, configuram um modelo de intervenção no espaço público para veiculação de mensagens que, décadas à frente, inspirará as guerrilhas publicitárias. “Sua guerrilha místico-artística é exemplar, propondo uma doce ideia de gestão da vida cotidiana”, define Guarnaccia (2010, p.74). Em seus happenings, Grootveld mobilizou os jovens que o assistiam a atacar a publicidade de toda e qualquer marca relacionada a tabaco. Exortou-os a intervir sobre cartazes e anúncios, colando a letra “k”, de “kanker” (câncer, em holandês), nas peças. O resultado foi uma adesão geral e, em poucos dias, os “ks” de Grootveld haviam tomado a cidade. Satisfeito com a repercussão da convocatória, e da sua prisão pela ação, Grootveld redirecionará a provocação para as marcas de automóvel, numa atitude que Guarnaccia classificará de pioneira, porque “em pleno boom automobilístico, a tribo da Spui tem a clarividência de (...) propor a bicicleta como santo instrumento tribal” (2010, p. 74). Novamente, os jovens provos cobriram os cartazes publicitários de automóveis com a letra “k” e repetiram a onda de provocação por toda a cidade. Essa será a inspiração para o Plano das Bicicletas Brancas, colocado em circulação, em julho de 1965, com a publicação do manifesto homônimo no número cinco da revista Provokatie. Nele, os provos combatiam o “monstro” automóvel, em

sacrifício de quem “todo dia as massas oferecem novas vítimas” (GUARNACCIA, Figura 1: O plano das bicicletas brancas (1965)

Fonte: GUARNACCIA, 2010, p. 77.

2010, p. 76). Explicavam também que a bicicleta branca seria uma alternativa à propriedade privada ao colocar-se à disposição das necessidades de transporte de qualquer cidadão. Na prática, o plano propunha espalhar bicicletas brancas por Amsterdã para o uso gratuito dos moradores da cidade, em detrimento do automóvel. A bicicleta branca está sempre aberta. A bicicleta branca é o primeiro meio de transporte coletivo gratuito. A bicicleta branca é uma provocação contra a propriedade privada capitalista, porque a bicicleta branca é anarquista! (...) As bicicletas brancas aumentarão em número até que haja bicicletas suficientes para todos, e o transporte branco fará desaparecer a ameaça automobilística. (apud GUARNACCIA, 2010, p. 76)

A ação, organizada à noite para evitar a reação da polícia (por isso, explica Guarnaccia, a opção pelo branco), alcançará grande repercussão em toda a Holanda justamente pelo confronto que, à medida que obtém a adesão de jovens moradores de Amsterdã, travará com a polícia e autoridades locais. A cobertura do plano, com fotos nos principais jornais holandeses, acaba por estimular os provos a intensificarem a ação,

cujo manifesto ganhará propostas mais técnicas no número seguinte da Provo. Intimamente relacionada à vocação lúdica da cidade defendida pelos situacionistas, o Plano das Bicicletas Brancas também é herdeiro do patafísico Alfred Jarry, que, no final do século XIX, emprestara ideias fundamentais ao nascimento do Dadaísmo. Sem dúvida, a crítica antiautomobilística dos Provos deve muito às intuições de Constant quanto às mudanças sociais provocadas pela automatização do trabalho. Van Dujin, de resto, nunca escondeu sua admiração pela obra do ex-situacionista, que, por sua vez, demonstrou-se desde logo um entusiástico apoiador do movimento que foi crescendo ao redor dos happenings. (GUARNACCIA, 2010, p. 78)

Numa ação anterior, também realizada em 1965 com o objetivo desmoralizar o diplomata que se casaria com a princesa Beatrix, tratado como o novo “k” da Holanda (Claus von Amsberg havia lutado nas tropas nazistas), o grupo passou a encartar o panfleto de divulgação entre as páginas do De Telegraaf. Um dos métodos criativos adotados por esse misterioso grupinho anarquista para distribuir seus panfletos é o de escondê-lo entre as páginas dos jornais matutinos (...) Olaf Stoop, um membro do grupo que trabalha na banca do aeroporto de Amsterdã, é surpreendido enquanto “prepara” cópias do De Telegraaf com panfletos anti-Claus e é imediatamente despedido. A notícia, publicada com grande ênfase pelos jornais, fornece a primeira e necessária propaganda para os Provos. (GUARNACCIA, 2010, p. 68)

Os jovens que se envolveram com os provos em Amsterdã refletem uma crítica que custou caro aos situacionistas (BROWN, 2011, p. 135): a exemplo dos próprios movimentos que procuraram superar (em particular, o Dadaísmo e o Surrealismo), o grupo de Debord terminou por manter-se à distância da classe operária. No caso dos holandeses, o próprio Robert Grootveld passou a achar “muito apropriado que o Provo apele para a classe ociosa, em vez de recorrer à classe trabalhadora” (GUARNACCIA, 2010, p.68). Ideia muito semelhante havia sido desenvolvida, ainda na década de 1950, por Isidore Isou, idealizador do Letrismo e, em diversos tópicos, pioneiro da Internacional Situacionista (GRANÉS, 2012, p.121). Sob a perspectiva da projeção midiática das suas ações, entenderam ser mais interessante o diálogo com fãs de rock e leitores de revistas semanais que com trabalhadores que cumpriam longas jornadas de trabalho no chão de fábrica. Os meios de comunicação de massa mostraram-se uma forma eficiente de afetar e recrutar seguidores. No jornal e em registros fotográficos, a imagem do movimento fez-se sedutora, e a crítica, estetizada. Se o apelo dos provos às ferramentas do sistema pode ser abordado com otimismo – comentando a gestação do Situacionismo, a inglesa Sadie Plant (1992) dirá

que “o capitalismo nos levou a tal ponto que o fim da experiência alienada é uma possibilidade real” (PLANT, 2008, p. 15 e 17) e nela reside a brecha crítica que sobrevive ao espetáculo –, por outro lado, o próprio Debord dedicará, na Internationale Situationniste #11, de 1967, um texto profundamente reparador aos desdobramentos do movimento holandês. Ali, os provos serão acusados de “efêmeros”, e sua atuação política de “irrisória”. Dirá ser extremamente errado supor que os holandeses “tenham fornecido tropas aos teóricos isolados da Situacionista Internacional”, como afirmara o Figaro Litteraire. Refutará qualquer relação entre os movimentos, personalizando uma série de censuras a Constant. Basta notar a presença na hierarquia do Provo do ex-situacionista Constant, com quem rompemos em 1960. Naquela época, as tendências tecnocráticas de Constant impediram-no de ver as coisas a partir da perspectiva de uma revolução, que ele considerava ser "inexistente”. Assim que o movimento Provo virou moda, Constant redescobriu a revolução, sob o nome de "urbanismo anarquista". As maquetes eternas do "seu" urbanismo unitário foram exibidas na Bienal de Veneza, sob o título original, para que fizessem uma boa impressão. Constant representou a Holanda como artista oficial. A derrota do Provo já estava inscrita em sua submissão a uma hierarquia interna e à ideologia idiota que inventou às pressas para que a sua hierarquia pudesse funcionar. A SI só teve contato com os elementos da base radical, que deve ser distinguida do movimento oficial, e que sempre defendeu uma separação urgente em relação a este último.10

A contundente negação de Debord em face das tentativas de aproximação entre os situacionistas e os provos revela justamente a espetacularização do movimento holandês, ou, em palavras extraídas do texto original, que os provos “promoveram banalidades espetacularmente”. Deixaram-se institucionalizar pela tentação do espetáculo, ao qual se somaram em ações que, na perspectiva da crítica debordiana, privilegiaram a imagem à revolução, a estética à emancipação. Ao final, que veio rápido (em 1967, o movimento já havia se diluído na Holanda), os provos teriam sucumbido à lógica da indústria cultural, cultivando seguidores à medida que puderam se apresentar como novidade (MORIN, 2005), e dispersando-se a partir do momento em que perderam sua dimensão entertainer. Ainda que reivindiquem distância da aplicação distorcida de muitas de suas críticas, os situacionistas foram especialistas em espetáculo e, como tal, não puderam evitar a apropriação despolitizada de algumas de suas ideias.

10

Disponível em http://www.notbored.org/provos.html. Acesso em jan/14.

O método adotado pelos provos não é outro senão o détournement de Debord, cujas duas leis fundamentais o filósofo francês descrevera em “Détournement as negation and prelude”, de 1959. Como técnica estimulada pelos situacionistas, o détournement supõe a reutilização de elementos, reorganizados de modo a assumir sentido novo. Comum nas artes, em especial na arte de vanguarda, o détournement prevê uma contaminação de sentidos decorrente do agrupamento de elementos usualmente não associados em contextos igualmente atípicos. Nesse movimento, os elementos devem despir-se de seus sentidos originais em nome de um conjunto conferido de “novo escopo e efeito” (DEBORD apud KNABB, 2006, p.67) O détournement11 seria um caminho para a situação e, na contramão do que imaginou Debord, também para o espetáculo. Se na arte contemporânea, o readymade catapultou Duchamp, ou a Pop Art de Warhol buscou ressignificar embalagens de comida, também na publicidade a bricolagem e o pastiche transportarão a proposta do “desvio de sentido” para mensagens com fins comerciais. É exatamente o que fará, partindo do entendimento de uma cidade lúdica e da ressemantização do que Augé (1994) chama de não-lugares, a guerrilha publicitária, a partir da década de 1980. Obstruirá o itinerário do cidadão, detendo sua atenção sobre intervenções que garantem sentido e uso novos a locais transitórios da paisagem urbana. Fará da publicidade um convite à brincadeira. Isso acontece quando a TAM faz circular um ônibus double-decker em alusão à estreia da rota São Paulo-Londres ou quando a Avon instala maçãs do amor no saguão do aeroporto de Campinas, no Dia dos Namorados. Ocorre quando a Ediouro adesiva as paredes dos vagões do metrô com palavras cruzadas, em promoção da revista Coquetel, e também quando a Boticário abre uma loja de desejos num shopping comercial. Ou quando o canal Fox Sports transforma os assentos do metrô em arquibancadas para a Copa do Mundo e também quando a Ariel contrata o artista Moose para grafitar paredes de Londres estampando roupas limpas nos muros imundos da cidade. Quando a United Airlines converte o túnel de acesso do metrô em uma de suas aeronaves, ou quando a Coca-cola cria uma máquina de rolo compressor para “pavimentar felicidade” numa espécie de pop-up park, no meio de Vilnius, na Lituânia. Acontece quando os provos

11

René Viénet defenderá, na Internationale Situationniste #11, o uso aliado do détournement com a “promoção de táticas de guerrilha nos meios de comunicação de massa”, como maneira de combinar a crítica teórica da sociedade moderna com uma crítica “in acts” (KNABB, 2006, p. 274).

colocam K de câncer em publicidade de cigarro, ou quando encartam panfletos nos jornais diários e em vending machines de Amsterdã. Ou ainda quando espalham bicicletas brancas para uso gratuito e comunitário. Acontece quando a UNICEF investe numa vending machine de água contaminada numa rua de Nova York e em outras dezenas de exemplos que apenas se tornaram possíveis a partir da espetacularização da vida na metrópole. A reutilização criativa do espaço urbano precisou passar antes pelas experimentações de movimentos como o Provo, e aprender com eles, para então chegar às mãos da publicidade. O próprio Tzara, abre-alas de muitos dos movimentos da contracultura surgidos a partir da década de 1950, escrevera, no “Manifesto Dada” (1918), que “a publicidade e os negócios também são elementos poéticos” (2012, p.18) Em “A User’s Guide to Détournement” (1956), Debord e Wolman (apud KNABB, 2006, p. 14), ao buscar alternativas para a educação em favor da consciência revolucionária e da propagação das ideias situacionistas, já haviam destacado que tanto maior seria o efeito do détournement geral quanto maior a distorção do sentido dos seus elementos constitutivos. Também para os autores a efetividade do détournement seria inversamente proporcional à racionalidade da abordagem. A guerrilha publicitária aprendeu a lição. A experiência diante de uma máquina que vende água suja é um ótimo exemplo da irracionalidade que permanece como aprendizado. A máquina da amizade da Cocacola, na qual amigos que se ajudassem poderiam conseguir refrigerantes sem pagar, é outro – vending machines são pensadas para vender e não para presentear. Igualmente ilustrativo é o uso da tela do cinema, em ação da Natura, para veicular a mensagem de carinho de um espectador para sua parceira, ambos na plateia. No lugar do cinema, a vida real. Papéis e funções reinventados. O cinema ressignificado. Os ambientes cotidianos

publicizados12.

O

consumo

estetizado.

E

o

cidadão-espectador

espetacularizado.

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Sobre o conceito de publicização e as transformações no discurso publicitário contemporâneo, ver CASAQUI, Vander. Por uma teoria da publicização: transformações no processo publicitário. Revista Significação, nº 36, p. 131-151, 2011.

Feitiço contra o feiticeiro Neste artigo, procuramos demonstrar as principais contribuições da Internacional Situacionista para o debate em torno à vocação da cidade no pós-guerra e seu pioneirismo para usos criativo da metrópole, no ativismo, na arte e, mais recentemente, na publicidade. Ao recuperar documentos centrais do pensamento do holandês Constant, quisemos, a despeito da rejeição de Debord a tal conexão, aproximar a crítica situacionista em relação à alienação e à espetacularização da sociedade capitalista, dos métodos empregados pelo Provo holandês, em meados da década de 1960. Sem essa discussão sobre o espaço urbano e sua função na vida social, fundamental aos modos de atuação dos provos, não seria possível se falar, hoje, em guerrilha publicitária. Ao promover o curto-circuito da rotina citadina por meio de intervenções lúdicas, os provos holandeses invadiram pautas de jornais e conversas de todas as partes do país. Ao levar a cabo propostas situacionistas, propagaram-se – literalmente. Os métodos ativistas dos provos não são exclusividade do movimento: também em outros países, especialmente na Alemanha (Spassguerrilha e Kommune 1) e nos Estados Unidos (Motherfuckers, Guerrilla girls), e nas artes, em tempos diferentes, destacaram-se ações semelhantes, que mereceriam um artigo à parte para uma discussão aprofundada. Recortamos nosso estudo aos provos devido à já mencionada imediata relação entre situacionistas e os ativistas que se reuniram em torno à revista PROVO. Os textos e as referências reunidas são suficientes para ilustrar também a relação entre essas ações e as intervenções de marcas sobre o espaço urbano que passaram a ser conhecidas como guerrilha publicitária, ou, inclusive, marketing ambiental, esta última palavra recorrente nos textos sobre cidades publicados entre os números da Internationale Situationniste. Ironicamente, a prática provocativa dos provos encontrou nos meios de massa a régua do próprio sucesso. Cresceu e envolveu à medida que foi notícia. A crítica levantada pelos jovens de Amsterdã – muitas delas inquestionavelmente interessantes –, mediada por imagens midiáticas, foi estetizada a ponto de oscilar, como disse Debord, na mesma frequência de produtos de moda. Estetizada, provou-se divertida e inofensiva. E, inofensiva, emprestou formatos, linguagens e ideias à comunicação publicitária.

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MORIN, E. Cultura de massas no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. PLANT, S. El gesto más radical. La internacional situacionista en una época postmoderna. Madrid: Errata naturae editores, 2008. TZARA, T. Siete manifiestos Dada. Barcelona: Tusques Editores, 2012.

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