A Crônica como gênero e um olhar para além de suas linhas - Um estudo de caso

June 29, 2017 | Autor: Mauricio Pedretti | Categoria: Critical Theory, Literature
Share Embed


Descrição do Produto

FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE SÃO JOSÉ DO RIO PARDO – FEUC

MAURICIO DIVINO PEDRETTI

A CRÔNICA COMO GÊNERO E UM OLHAR ALÉM DE SUAS LINHAS Um estudo de caso

SÃO JOSÉ DO RIO PARDO 2014

MAURICIO DIVINO PEDRETTI

A CRÔNICA COMO GÊNERO E UM OLHAR ALÉM DE SUAS LINHAS Um estudo de caso

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora como exigência parcial do título de Licenciado em Letras, pela FEUC. Orientador: Me. Edson Luiz da Silveira

SÃO JOSÉ DO RIO PARDO 2014

_________________________________ _________________________________ _________________________________

Dedico este trabalho à minha esposa e ao meu filho, que são minha razão e minha inspiração.

AGRADECIMENTO

Agradeço primeiramente ao meu orientador, Me. Edson Luiz da Silveira, que me emprestou seu tempo e dedicação para que eu pudesse compor este trabalho de tanta importância para minha formação. Agradeço a todos os professores da FEUC pelas palavras e ensinamentos e por mostrar o longo caminho a ser perscrutado, à banca pelo olhar atento e ponderado sobre meu trabalho, à toda equipe FEUC, em especial à Diretora Lila, que deram importante suporte durante minha jornada acadêmica. Dedico ainda um agradecimento especial à minha família, pois em eles, certamente, nada seria possível.

“Só sabemos com exatidão quando sabemos pouco; à medida que vamos adquirindo conhecimento, instala-se a dúvida.” (Johann Wolfgang Von Goethe)

RESUMO

Esta pesquisa traz um breve estudo sobre os aspectos que permitem a classificação de textos em gêneros literários de acordo com a sua forma e estrutura, e sobre as particularidades que possibilitam dois textos de mesmo gênero apresentarem diferenças evidentes. Para obter o resultado desejado, o presente trabalho abordará, primeiramente, a classificação tradicional e as definições do gênero crônica – que é o que vai nos interessar neste trabalho - baseadas em fundamentações teóricas como a de Nelly Novaes Coelho. Em seguida, será feito o levantamento dos pormenores de duas crônicas de escritores e épocas diferentes - uma de Fernando Sabino, conhecido cronista do século XX, e outra de Machado de Assis, nosso maior autor do século XIX – e serão apontados os elementos que as fazem distintas, não obstante classificadas no mesmo gênero. Diante disso, concluirá que um texto possui uma infinidade de fatores que o tornam único, mesmo pertencendo a uma classificação de gênero literária. Palavras-chave: Gênero. Crônica. Classificação.

ABSTRACT

This research brings a brief study about the aspects that allow rating a text in literary genres according to its form and structure and about the particularities that allow two texts of the same literary genres to present evident distinction. To get the expected results, this work is firstly going to approach the traditional literary rating and the chronic genre definitions – that will interest us in this job – based in theoretical fundaments like Nelly Novaes Coelhos’ substantiation. Next this monograph is going to make a detailed survey of two different author’s chronics – a Fenando Sabino’s one, who was a well known writer of the twentieth century and another of Machado de Assis, our greatest writer of the nineteenth century – and to point elements that make them opposite in spite of being rated in the same genre. In addition, the work will conclude that a text owns a lot of factors that make him unique even belonging to a literary genre rating. Keywords: Genre. Chronic. Rating.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................09 1 OS GÊNEROS LITERÁRIOS..................................................................................11 1.1 A crônica como gênero e a crônica no Brasil.................................................12 2 AS NUANCES DAS CONCEPÇÕES DE GÊNEROS.............................................15 3 COMPARANDO AS CRÔNICAS............................................................................17 CONCLUSÃO............................................................................................................21 REFERÊNCIAS...................................................................................................22 ANEXO A – O NASCIMENTO DA CRÔNICA (MACHADO DE ASSIS)...................23 ANEXO B – A ÚLTIMA CRÔNICA (FERNANDO SABINO).....................................25

9

INTRODUÇÃO

Nosso trabalho se insere no âmbito da Língua Portuguesa, relacionado também com as áreas de Linguística e Literatura, e tem como tema os gêneros literários (a crônica especificamente), e os elementos que fazem de um texto, único em seu gênero. Para tanto, os corpora escolhidos por nós foram as crônicas O Nascimento da Crônica e A Última Crônica, de Machado de Assis, nosso maior representante da literatura brasileira, e de Fernando Sabino, aclamado escritor da segunda metade do século XX, respectivamente. Selecionamos esses corpora, não ao acaso, mas sim por considerarmos que as duas crônicas, além das características distintas de cada uma, possuem uma singularidade especial que começa pelo título, e é apresentada por todo o texto, enriquecendo nosso trabalho. A nossa proposta fundamental tem como objetivo, a análise comparativa de dois textos do mesmo gênero a fim de apurar quais os aspectos que os diferenciam, não obstante, sejam classificados dentro do mesmo gênero literário. Para tanto, utilizaremos a fundamentação teórica de Coelho (1974), para fazer a ancoragem de nosso trabalho, trazendo as definições dos gêneros literários. A de Laurito (1993) para traçar as características e a história do gênero crônica. E as de Bazerman (2005) e Tufano (1978) para fundamentar os aspectos que definem as peculiaridades de cada texto. A nossa pesquisa está estruturada da seguinte forma:

No primeiro capítulo, abordaremos as concepções dos gêneros literários tradicionais fundamentadas na Antiguidade Clássica, que os classifica em Lírico, Épico e Dramático. Dentro desse mesmo capítulo, se encontra um subcapítulo onde faremos um recorte do gênero crônica e trataremos de sua história como gênero literário, de suas origens, características e de como foi difundido no Brasil. No segundo capítulo, trataremos dos demais elementos que propiciam a um texto obter a unicidade que o torna ímpar, mesmo pertencendo a uma classificação de gênero literária.

10

Para finalizar, o terceiro capítulo foi reservado à análise dos corpora, onde poderemos pormenorizar as diferenças de dois textos do mesmo gênero literário utilizando trechos onde essas distinções são evidenciadas. A esses Capítulos, seguem a Conclusão e as Referências.

11

1 OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Segundo as fundamentações teóricas de Coelho (1974), as definições tradicionais de gêneros em literatura derivam da Antiguidade Clássica, que os classifica em três vertentes: Lírica, Épica e Dramática. Nas obras líricas, encontramos a poesia; ela se estrutura em versos, estrofes, na forma e na sonoridade das palavras. O foco do lirismo está no âmago do ―Eu‖ poético, o eu-lírico. O poeta explora seus sentimentos mais íntimos e inveterados levando à poesia a expressão máxima da subjetividade literária. No Épico, podemos considerar que o ―Eu‖ poético sofre uma ampliação de sentido e passa a ser um arauto, não do poeta na sua interioridade, mas de um coletivo pessoal.

Vemos ecoar essa projeção de muitos em um herói, em

monumentos literários como Os Lusíadas (1572) de Camões e A Odisseia (sec. VIII a.C.) de Homero. Nas obras de cunho Dramático, a literatura se realiza principalmente no teatro e, assim como no lirismo, apresenta subjetividade e individualismo, porém também se atém a atos de representações de fatos, que compõem uma obra de dramaturgia. O teatro, nas dimensões de tragédia, comédia e drama, toma forma. As três formas geralmente possuem preceitos morais, sendo na tragédia, mostrado através de catástrofes, personagens com destinos cruéis e um apelo pela comiseração do espectador, que se comove com as cenas. A comédia, igualmente procura impressionar o público, mas utilizando ironia, sarcasmo e provocando divertimento. O drama traz elementos das outras duas formas, construindo obras de um arrebatamento significativo ao integrar o trágico e o cômico. A partir da classificação tradicional dos gregos, conseguimos melhor entender a origem e as diferenças das concepções de gêneros que as teorias modernas trouxeram ao nosso conhecimento. Toda a literatura, colocada sob os olhos de estudiosos ou leitores atualmente, pode ser analisada e classificada em quatros gêneros básicos: a Poesia, o Teatro, a Ficção – que engloba o romance, o conto, a novela e a crônica (objeto de pesquisa deste presente trabalho acadêmico e tema do próximo capítulo) – e a Crítica, que se entende como uma metalinguagem – linguagem que possui outra linguagem como objeto de estudo. (COELHO, 1974).

12

1.1 A crônica como gênero e a crônica no Brasil

Devemos remontar a história do descobrimento de nosso país para nos debruçarmos sobre o que é considerado o primeiro texto brasileiro com as características do gênero crônica, escrito em 1500. Pero Vaz de Caminha, escrivão da Corte a bordo das caravelas de Pedro Álvares Cabral, foi incumbido de observar e registrar tudo o que visse no novo mundo para que o rei fosse informado. Nesse texto, conhecido como Carta de Caminha ou do Descobrimento do Brasil, escreveu sobre os fatos que ele e os ―descobridores‖ presenciaram no primeiro contato que tiveram com a terra e os nativos, o cotidiano e o eventual. Seus registros não continham nada mais nada menos que a apresentação do que vivenciou (dentro das limitações de praxe), permitindo-se incrementar os pontos que julgava merecedores, segundo seus objetivos. Esse texto foi endereçado de volta a Portugal ao rei D. Manoel na forma de carta, o qual, sendo analisado, mostra-se recheado das características do gênero crônica. Caminha, seguindo Fernão Lopes, cronista-mor em Portugal, do século XV, coloca no texto elementos da crônica histórica, que é o registro de acontecimentos históricos, mas que se aproxima muito da crônica moderna. Crônica, do Latim chronica também é uma palavra de origem grega khrónos que significa tempo. Como afirma Laurito (1993, p. 12) ―seja um registro do passado, seja um flagrante do presente, a crônica é sempre um resgate do tempo‖, um texto desse gênero é um texto curto que narra acontecimentos num espaço temporal, mas sem dar foco a sua passagem e sim ao momento, às situações ou pessoas. Os personagens da crônica são meros participantes e não têm o destaque que lhes é conferido nos romances. O cronista tem a liberdade de escrever o fatídico ou a ficção; tem a possibilidade de misturar os dois e de alcançar um grande número de leitores, como demonstra a longevidade deste gênero e diversidade de publicação, como o surgimento da crônica jornalística, também chamada de folhetim e publicada em jornais. O folhetim surgiu na França, no início do século XIX, tendo como principal objetivo o entretenimento, e sua popularidade se dá com a possibilidade de publicação em larga escala no jornal, o que conferiu um espaço legítimo destinado a este tipo de texto. Assuntos leves como histórias curtas, temas humorísticos e

13

críticas literárias e de arte eram o que estampavam os feuilleton, o que nós conhecemos como folhetins. Como todas as novidades literárias, o folhetim não ficou somente na Europa e chegou ao Brasil seguindo os mesmo moldes do feuilleton francês. Tinha caráter de conversa e era voltado, principalmente, à elite da época, já que a maioria do povo tinha pouco acesso e não tinha muita instrução. Os assuntos das crônicas eram os que agradavam os leitores da época, como intrigas e amores vividos por personagens estereotipados no cenário carioca do século XIX, a política e a sociedade em geral. Machado de Assis foi importante folhetinista desta época e publicou uma farta obra nesse formato. Mas, a crônica em folhetim não abordava somente o frívolo. Críticas duras à sociedade e temas políticos relevantes também eram escritos e publicados, sendo igualmente recebidos pelo ávido público leitor. O escritor José de Alencar, contemporâneo de Machado de Assis, também produziu nesse gênero, fez uso dessa temática. Avançando pelas décadas que se seguem, a crônica não deixou de se transformar, juntamente com as cidades, sua sociedade e política. O cronista do início do século XX possuía o mesmo veículo de informação, o jornal, que ainda chegava a um número reduzido de pessoas, cuja maioria era analfabeta, porém, esse número já era maior que o do século anterior e o jornal, também reformulado pela evolução da tecnologia, se tornou mais atraente e colorido. Já o perfil do cronista sofreu mudanças e seu foco passou a ser o protagonista da cidade: o homem comum. João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto, cronista da década de 1910, procurou ir às ruas e colher sua fonte de inspiração, onde a vida acontecia de fato. Misturando ficção e realidade, seu foco era o homem em seu cotidiano. A pobreza e a miséria, marcas da sociedade carioca do século XX, construíram o retrato da crônica moderna. Além da ficção, o lirismo também foi usado largamente pelo consagrado Olavo Bilac, que além de cronista, foi um grande poeta e que conferia ao mesmo homem comum, mais honra e valor, e não só a sua existência mundana. Usando de seu subjetivismo e introversão poética, sua crônica, novamente, deu novos ares à literatura. A partir da década de 1930, no Brasil, a crônica começou a se consolidar como um gênero literário notoriamente brasileiro, quando escritores como Rubem Braga, passaram a adotar esse novo gênero como definitivo na sua escrita. Os

14

cronistas não mais seriam os escritores de outros estilos que viam na publicação de crônicas uma possibilidade de fonte de renda. Um cronista, agora, seria verdadeiramente um cronista e iria trabalhar e lapidar o seu texto assim como era feito por escritores de outros gêneros, como os poetas. Nas décadas seguintes, a diminuição do analfabetismo e a popularidade dos jornais e revistas fizeram com que o gênero, que fora consolidado, agora alcançasse os seus chamados ―anos dourados‖.

Sua produção aumentou e a demanda

cresceu. A excelente qualidade dos textos e a riqueza de recursos usados pelo cronista fizeram com que o brasileiro consumisse e apreciasse a crônica. Surgiram grandes cronistas como Fernando Sabino, Rachel de Queiroz, Millôr Fernandes, Nelson Rodrigues e Vinicius de Moraes, os quais, através de uma linguagem recheada de humor e leveza, poesia, ficção e linguagem familiar ao brasileiro, honraram o gênero e deram sentido aos ―anos dourados‖ da crônica. Tal crescimento e popularização continuaram pela década de 1960, e na contemporaneidade, a crônica é considerada o gênero mais lido pelo povo brasileiro, com publicação em larga escala em jornais, revistas e agora, com os avanços tecnológicos e a atual ―era digital‖, o computador e a internet se firmaram como um novo veículo de informação que permite um alcance ainda maior de público leitor e ainda um terreno fértil para cronistas iniciantes que criam seus próprios espaços de publicação através de blogs e redes sociais. Os temas são os mais diversificados na atualidade como humor, filosofia, política e problemas sociais. Nomes como o de Luís Fernando Veríssimo e Ignácio Loyola Brandão estão entre os maiores cronistas atualmente no Brasil. Mais do que nunca a crônica, que foi se firmando mais e mais como gênero com o passar dos anos, atinge seu auge e conquista seu espaço merecido na literatura brasileira.

15

2 AS NUANCES DAS CONCEPÇÕES DE GÊNEROS

Ao definirmos que determinado texto pertence a um gênero específico através da análise de suas características, chegamos à conclusão de que, logicamente, um outro texto do mesmo gênero, seguirá possuindo os mesmo traços textuais. Porém, tal definição limita demasiadamente a gama de possibilidades de criação do escritor e não permite maior reconhecimento e imersão do leitor quanto à significância do texto. Dessa maneira percebe-se claramente que os estilos variam de autor para autor em virtude das pesquisas pessoais em busca de novas formas de expressão. (TUFANO, 1978, p. 20). Há outros elementos que determinam o texto, como a época, o ambiente social do escritor e a sua ligação com o discurso falado, e ao considerá-los na construção dos gêneros, nos inteiramos da real dimensão das concepções dos gêneros literários. Assim, quando o leitor identificar um gênero, ele conseguirá se inserir no universo social no qual o autor se encontrava quando construíra seu texto. Na visão de Bazerman (2005) sobre essa dimensão social que forma o texto, assim que o escritor consegue construí-lo de forma satisfatória, estabelece-se entre ele o leitor, uma forma de contato que se dá através do que ele chama de fatos sociais: ―Cada texto bem sucedido cria para seus leitores um fato social. Os fatos sociais consistem em ações sociais significativas realizadas pela linguagem, [...] Esses atos são realizados através de gêneros [...].‖ (BAZERMAN, 2005, p. 22). Sendo assim, podemos chegar à compreensão de que cada autor usará artifícios pertencentes a sua época, costumes e universo social, que propiciarão a um texto obter a unicidade que o tornará ímpar, mesmo pertencendo a uma classificação de gênero literária. Porém vale salientar que nem todos os escritores devem ser observados dessa forma, mais uma vez voltando ao ponto de que cada escritor possui uma singularidade significativa. Concluímos, portanto, que o estilo de uma época são os procedimentos artísticos (utilização de artifícios literários) e as concepções da realidade mais frequentes e comuns entre os artistas dessa época, salientando-se, porém, que nem todos os artistas podem ser enquadrados nessas tendências. (TUFANO, 1978, p. 20).

16

Para encerrar este capítulo, ainda gostaríamos de salientar a importância dessas peculiaridades de escrita de cada autor, que tem a faculdade de somar à determinada literatura, no quesito que se refere ao seu engrandecimento, amadurecimento e evolução. Podemos afirmar ainda que o próprio esforço dos escritores em encontrar a expressão adequada é uma das causas principais da evolução dos artifícios literários, pois à medida que variam as concepções da realidade, varia também as formas de expressão dessas concepções. (TUFANO, 1978, p. 21).

17

3 – COMPARANDO AS CRÔNICAS

A partir dos levantamentos feitos nos capítulos anteriores, neste , faremos a análise e comparação dos elementos textuais e os específicos de dois textos do mesmo gênero, qual seja, a crônica, a fim de concluir que os dois textos, mesmo sendo classificados como do mesmo gênero, possuem diferenças concretas e exigem do leitor diferentes níveis de entendimento, gerando certa dificuldade de interpretação. Para tanto, achamos de bom grado escolher como corpus de pesquisa duas crônicas que se diferenciam das demais, devido ao caráter peculiar que possuem, pois, apesar serem de dois autores de épocas e construtos sociais opostos: Machado de Assis, escritor do final do século XIX e Fernando Sabino, escritor da segunda metade do século XX, tratam ambas do tema crônica, numa espécie de metalinguagem criativa. As crônicas são: O Nascimento da Crônica e A Última Crônica, de autorias de Machado de Assis e de Fernando Sabino, respectivamente. Procederemos na análise e comparação da seguinte maneira: primeiramente faremos um levantamento do vocabulário empregado nos textos, em seguida observaremos os títulos e os temas que os autores escolheram para seus textos, faremos uma especulação sobre os personagens e finalizaremos com um último olhar sobre as diferenças evidenciadas a fim de caminhar para a conclusão de nosso trabalho. A crônica de Sabino apresenta apenas uma palavra que, a nosso ver, pode ser insólita aos olhos do leitor: irrisório: escarninho; ridículo; (BUENO, 1985, p. 619). A de Machado, escritor com outro parâmetro de linguagem, época e costumes, possui uma série de palavras nas quais o leitor certamente encontrará estranhamento: conjetura: suposição; hipótese; (BUENO, 1985, p. 289), coetâneo: coevo; contemporâneo; da mesma época; (BUENO, 1985, p.271), debicar: provar; comer pequena quantidade; (BUENO, 1985, p. 325), tropelia: prazer mundano; astúcia; travessura; (BUENO, 1985, p.1155), amatório: que diz respeito ao amor; erótico; (BUENO, 1985, p. 85), prosápia: progênie; raça; (BUENO, 1985, p. 914), canícula: estrela Sírio (astronomia); perna fina (informal); (BUENO, 1985, p.223).

18

Além de palavras pouco usuais e arcaísmos, a expressão ―baldo ai naipe‖ (situação difícil, pobreza), pouco usada na linguagem contemporânea, colabora para que o texto se torne complexo com relação ao entendimento e compreensão. Ao compararmos o léxico que constitui as crônicas, fica evidente que a de Sabino, proporciona ao leitor uma fácil compreensão e contextualização; Quando este mesmo leitor deita os olhos sobre a crônica de Machado, irá se deparar com um apanhado de palavras e expressões estranhas que farão com o entendimento do texto na sua completude, se torne trabalhoso sem o uso de um dicionário ou enciclopédia. Outro aspecto de muita relevância que analisaremos nos textos, será o título e, em decorrência, os temas abordados. Na crônica O Nascimento da Crônica, Machado de Assis, através da elucidação de situações variadas, transmite ao leitor impressões da origem do gênero. Assim ele faz uso dessa espécie de metalinguagem que diz repeito ao gênero pelo gênero, ou seja, escreve um texto com todas as características e particularidades do gênero crônica, para, justamente, expor as suas definições e as definições tradicionais da origem desse gênero. Fernando Sabino também faz uso desse mesmo artifício metalinguístico para a edificação de seu tema ao intitular sua crônica A Última Crônica, porém, o leitor conta com várias formas de interpretação das possíveis aspirações do escritor quanto ao título de seu texto. Sabino poderia estar pressagiando ao leitor que esta seria, de fato, a última crônica a ser escrita por ele; apenas a última crônica escrita naquele dia; uma analogia ao poema de Manuel Bandeira O Último Poema, cujo primeiro verso é citado por Sabino no texto; ou ainda poderia estar exprimindo o desejo de escrever, no futuro, a sua última crônica com a beleza e simplicidade de um gesto trivial como o sorriso de um pai no dia do aniversário da filha, situação que o autor denota no texto. Essa última hipótese, talvez a verossímil. ―Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.‖ (SABINO, 1979, p.42). Ao nos atentarmos aos personagens, também encontramos algumas diferenças entre as crônicas. A crônica de Sabino apresenta um narrador

19

personagem, que além de observar os fatos narrados, participa deles; ele interage com os demais personagens: um pai, uma mãe e uma filha, que se encontram em um local comum, um botequim, para comemorar o aniversário da garota. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. (SABINO, 1979, p. 42).

A de Machado nos é apresentada por um narrador observador e crítico, que nos trás fatos aparentemente desconexos. Os únicos personagens que aparecem são duas mulheres que confabulam sobre a trivialidade do tempo que trouxe um calor infernal, e trabalhadores que aparecem cavando covas, empapados em suor tamanho o calor, em um cemitério onde será enterrado um defunto. Tal simples fato, o calor é, aos olhos do escritor, um motivo contundente para o surgimento de uma crônica. ―Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! (ASSIS, 1994, p. 13).

.

20

CONCLUSÃO

Depois desses levantamentos, podemos concluir que os dois textos, são obviamente, crônicas. Apesar disso, possuem singularidades que garantem a eles a unicidade literária que todo texto, sem exceção, possui. Jamais dois textos, mesmo que sujeitados a uma classificação de gênero literário, serão, sumariamente, iguais. Semelhantes sim, iguais não, em vários níveis de compreensão como textuais e léxicas e interpretativas. Nosso corpora, escolhido especialmente para que essa conclusão fosse alcançada de forma esclarecida, demonstra, através das peculiaridades de cada escritor, Machado e Sabino, que merecidamente se tornaram imortais em nossa literatura por sua prolífica contribuição, que cada texto carrega intrinsecamente o estilo próprio de seu autor. Fernando Sabino edificou sua crônica criando o cenário de um botequim, local o qual um escritor, certamente, buscaria a fim de adiar o ato da escrita, e acaba por nos brindar com uma belíssima narrativa onde uma situação corriqueira se desenrola inesperadamente e despretensiosamente frente a ele, instigando-o e permitindo-o que sua almejada última crônica, com a pureza de um sorriso de pai, seja concebida. O brilhantismo Machadiano, jamais o permitiria escrever sobre um tema de forma desprendida de um sentido maior. O calor, frivolidade que é o estopim para a sua crônica, não é trazido ao acaso quando é usado para metaforizar a mesquinhez da alma humana que sempre julga seu problema maior que o do outro. Como as duas mulheres que reclamam e dos trabalhadores que cavam e cavam por oras a fio sob o escaldante sol, sem manifestarem seu descontentamento. O próprio defunto ao final da crônica pode ser melhor observado. Será que ele mereceria uma crônica apesar de não estar vivo e não sentir aquele mesmo calor que se aplacava sobre todos? Assim concluímos nosso trabalho, com a garantia de que, em suma, dois textos nunca possuirão a noção de caráter ordinário que uma classificação sugere.

21

Queremos ainda salientar que o presente trabalho não é a palavra definitiva acerca do tema e que não esgota as possibilidades de vindouros trabalhos sobre esse ele.

22

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Crônicas escolhidas. São Paulo: Ática, 1994.

BAZERMAN, Charles. Atos de fala, gêneros textuais e sistemas de atividades: como os textos organizam atividades e pessoas. São Paulo: Cortez, 2005.

BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa. 11. ed. Rio de Janeiro: FAE, 1985.

COELHO, Neli Novaes. Literatura e linguagem: a obra literária e a expressão lingüística, introdução aos cursos de letras e de ciências humanas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1974.

JAFFE, Noemi; BIGNOTTO, Cilza. Crônica na sala de aula: material de apoio ao professor. 2. ed. São Paulo: Itaú Cultural, 2004.

LAURITO, Ilka. Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993.

SABINO, Fernando. A Companheira de Viagem. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1965.

TUFANO, Douglas. Estudos de literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Ed. Moderna, 1978.

23

ANEXO A – O NASCIMENTO DA CRÔNICA (MACHADO DE ASSIS) 1877

Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica. Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendoos, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem. Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano. Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica. Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contUdo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão

24

velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra. Não afirmo sem prova. Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido! Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia? O texto acima foi publicado no livro "Crônicas Escolhidas”, Editora Ática – São Paulo, 1994, pág. 13, e extraído do livro "As Cem Melhores Crônicas Brasileiras", Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2007, pág. 27, organização e introdução de Joaquim Ferreira dos Santos.

25

ANEXO B – A ÚLTIMA CRÔNICA (FERNANDO SABINO) 1965

A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho -- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.

26

A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeitalhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

Texto extraído do livro "A Companheira de Viagem", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.