A Democracia Que Não Ousa Dizer Seu Nome
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A Democracia Que Não Ousa Dizer Seu Nome Carlos Frederico Pereira da Silva Gama1
Publicado em SRZD em 31 de Agosto de 2016 – http://www.sidneyrezende.com/noticia/267159
As maiores manifestações de rua no Brasil desde as Diretas Já motivaram a Presidência da República a propor pactos em 2013. A diversidade e contundência das demandas não cabiam num pacote de medidas provisórias. Exigiam articulações entre a sociedade e o sistema político que possibilitassem mudanças constitucionais. Os pactos de Dilma Rousseff incluíam a preservação dos fundamentos da economia, um plebiscito para a criação de Constituinte exclusiva para a reforma política, combate à corrupção e investimentos de longo prazo em educação, saúde e transportes. Os pactos sumiram na fumaça da governabilidade, no ritmo da campanha eleitoral de 2014. Partido que ocupava a presidência das duas casas do Congresso e a vice-presidência da República (Michel Temer), o PMDB mostrou seu desagrado com as propostas em vésperas de uma eleição presidencial. Na base do governo e na oposição, outros partidos demonstraram seu desinteresse pelas demandas e seu desconforto com a contestação das ruas, oriunda de movimentos políticos não-tradicionais. Em 2015 as ruas estavam novamente cheias. Dessa vez, pedindo o impeachment da Presidenta reeleita com 54 milhões de votos. Na campanha, Dilma prometera mais mudanças. No retorno ao Planalto, decisões que tomou no segundo governo bloquearam qualquer crença na transformação. A reforma política foi engavetada. Saúde e Educação sofreram dramáticos cortes orçamentários, bem como investimentos em infraestrutura. Dantes parte dos pactos, a responsabilidade fiscal se tornou uma justificativa para a sangria. Através de múltiplas mídias, escândalos de corrupção se tornaram uma presença constante no cotidiano do país, envolvendo ministros de estado, lideranças partidárias e os presidentes da Câmara (Eduardo Cunha) e Senado (Renan Calheiros). O ano terminou num processo de impeachment (todos os presidentes eleitos pós-1988 tiveram os seus). Os pactos de 2013 retornaram, como assombrações vingativas, ao palco do impeachment em 2016. Com a qualidade de vida a perigo, índices econômicos em queda e investimentos adiados, a pauta política e jornalística se centrou na disputa surda entre a Presidenta afastada e o Vice interino. Em números recordes, manifestantes superavam simbolicamente as Diretas. Enquanto redes sociais se tornavam canais de ódio e válvulas de escape para demandas insatisfeitas no sistema político, nas ruas a reforma política era entoada juntamente com os cânticos do impeachment. A saída de uma Presidenta eleita pelo voto direto pela segunda vez era exibida e exigida, a plenos pulmões. A Nova República caiu num profundo paroxismo. Após ciclos de inclusão de novas elites e de aumento da participação política de milhões dantes apartados do protagonismo democrático, o
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Professor de Relações Internacionais e Diretor de Assuntos Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT).
sistema político demonstrou inquietude. Diante de contestações, se fechou. Denúncias de corrupção foram aceitas em silêncio, na esperança que de o impeachment de Dilma fosse suficiente. Entre os governos Dilma e Temer, a Nova República expôs suas chagas sem chegar a um bom termo. As políticas do segundo governo Dilma – já bastante aquém de “mais mudanças” – caíram no abismo da interinidade. Uma brutal reversão de expectativas pôs a perigo as conquistas de três décadas. Consumado o segundo impeachment em 24 anos e a passagem do governo Dilma ao governo Temer, a jovem democracia brasileira ainda não tem o que dizer às demandas da atual geração. Do impeachment de Fernando Collor, conduzido por PMDB, PT e PSDB, chegamos ao impeachment de Dilma. O PMDB criou uma Constituição. O PSDB estabilizou a economia. O PT multiplicou a justiça social. Mas os três parecem incapazes de se desvencilhar da lógica incômoda do impeachment. O revanchismo eleitoral passou a ser grafitado com frequência nos muros do Alvorada. Ao veredito derradeiro das urnas, em seu trajeto a Nova República adicionou outros dois. Primeiramente, o incômodo impeachment se tornou variável política fundamental. Vitórias nas urnas, doravante, passarão pelo crivo do Parlamento contestado. Essa dinâmica não é inovadora: remonta aos idos da República Velha, cujo Senado se notabilizou por “fazedores de reis”. Em seguida, a palavra burilada das Cortes. A atuação do Supremo Tribunal Federal cresceu em envergadura política. Suas decisões rivalizam com a representatividade de urnas e ruas. Numa bizarra conjunção, a jovem democracia brasileira é louvada por sua fidelidade às minúcias do estado democrático de direito e criticada por suas contradições, resultados e dificuldade de planejamento. Uma democracia que não ousa dizer seu nome – embora este figure com destaque nas análises de observadores estrangeiros e organismos internacionais. A corrupção – estigma capaz de abreviar governos de PIBinhos, estímulo para a governabilidade e a “união nacional” entre crises, combustível nos “milagres” econômicos – permanece no horizonte e afeta a percepção política. Muitas autoridades que decidiram a deposição de Rousseff estão sob a mira dos operadores da lei. Paradoxalmente, manifestações de ódio alimentam a inércia da representação. O presidencialismo de coalizão não planejou acolher os grupos que participaram das transformações dos últimos 30 anos. Essas forças não se acomodaram e levaram o sistema a seus limites. O repúdio a eleitos nas urnas não é um sinal de amadurecimento democrático, mas dos limites da participação política na Nova República. O veto tardio do impeachment e a soberania vicária das cortes são sintomas dessa desconexão entre representados insatisfeitos e seus eleitos. A novidade das jornadas de 2013 não era a utopia. Pontos de chegada eram menos importantes que os de partida: as desconexões de um Brasil emergente, silenciadas e ignoradas. Ao repolitizar a política, manifestações manifestaram os limites da representação, tornaram mais doídas as feridas. O Brasil de 2016 é menos injusto, menos desigual, mais diverso e mais próspero que o de 1992 ou 1985. Isso parece pouco, diante das demandas dos que se sentem alijados do sistema político – ou daqueles que carregam os efeitos desse mesmo sistema no curso de suas vidas. As contradições da democracia que não ousa dizer seu nome não serão superadas com polícia. Se a política é o começo, o trajeto passa inexoravelmente pelas urnas. Por décadas, lutamos pelo direito de lidar com esses dilemas. Eles vieram com força em 2016 – e não temos rotas de fuga.
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